Skip to main content

Capítulo Sete

O Sacrifício Executado por Dakṣa

Texto

maitreya uvāca
ity ajenānunītena
bhavena parituṣyatā
abhyadhāyi mahā-bāho
prahasya śrūyatām iti

Sinônimos

maitreyaḥ — Maitreya; uvāca — disse; iti — assim; ajena — pelo senhor Brahmā; anunītena — apaziguado; bhavena — pelo senhor Śiva; parituṣyatā — plenamente satisfeito; abhyadhāyi — disse; mahā-bāho — ó Vidura; prahasya — sorrindo; śrūyatām — ouve; iti — assim.

Tradução

O sábio Maitreya disse: Ó Vidura de braços poderosos, o senhor Śiva, sendo assim apaziguado pelas palavras do senhor Brahmā, falou o seguinte em resposta ao pedido do senhor Brahmā.

Texto

mahādeva uvāca
nāghaṁ prajeśa bālānāṁ
varṇaye nānucintaye
deva-māyābhibhūtānāṁ
daṇḍas tatra dhṛto mayā

Sinônimos

mahādevaḥ — o senhor Śiva; uvāca — disse; na — não; agham — ofensa; prajā-īśa — ó senhor das criaturas; bālānām — dos filhos; varṇaye — eu respeito; na — não; anucintaye — eu considero; deva-māyā — a energia externa do Senhor; abhibhūtānām — daqueles iludidos por; daṇḍaḥ — vara; tatra — ali; dhṛtaḥ — usada; mayā — por mim.

Tradução

O senhor Śiva disse: Meu querido pai, Brahmā, não me importo com as ofensas cometidas pelos semideuses. Como esses semideuses são infantis e menos inteligentes, não levo a sério suas ofensas, e os puni apenas para corrigi-los.

Comentário

SIGNIFICADO—Há dois tipos de punições: aquela que o conquistador impõe ao inimigo e aquela que o pai impõe ao filho. Há um abismo de diferença entre essas duas classes de punições. O senhor Śiva é por natureza um vaiṣṇava, um grande devoto, daí seu nome ser Āśutoṣa. Ele está sempre satisfeito e, por isso, não ficou irado como se fosse um inimigo. Ele não é hostil contra nenhuma entidade viva; ao contrário, ele sempre deseja o bem-estar de todos. Sempre que ele castiga alguém, ele o faz assim como o pai que pune seu filho. O senhor Śiva é como um pai porque ele nunca leva a sério nenhuma ofensa de nenhuma entidade viva, especialmente dos semideuses.

Texto

prajāpater dagdha-śīrṣṇo
bhavatv aja-mukhaṁ śiraḥ
mitrasya cakṣuṣekṣeta
bhāgaṁ svaṁ barhiṣo bhagaḥ

Sinônimos

prajāpateḥ — do Prajāpati Dakṣa; dagdha-śīrṣṇaḥ — cuja cabeça transformou-se em cinzas; bhavatu — que seja; aja-mukham — com o focinho de um bode, śiraḥ – uma cabeça; mitrasya — de Mitra; cakṣuṣā — através dos olhos; īkṣeta — veja; bhāgam — quinhão; svam — seu próprio; barhiṣaḥ — do sacrifício; bhagaḥ — Bhaga.

Tradução

O senhor Śiva continuou: Uma vez que a cabeça de Dakṣa já se transformou em cinzas, ele terá a cabeça de um bode. O semideus conhecido como Bhaga será capaz de ver seu quinhão do sacrifício através dos olhos de Mitra.

Texto

pūṣā tu yajamānasya
dadbhir jakṣatu piṣṭa-bhuk
devāḥ prakṛta-sarvāṅgā
ye ma uccheṣaṇaṁ daduḥ

Sinônimos

pūṣā — Pūṣā; tu — mas; yajamānasya — do executor do sacrifício; dadbhiḥ — com os dentes; jakṣatu — mastigar; piṣṭa-bhuk — comendo farinha; devāḥ — os semideuses; prakṛta — feita; sarva-aṅgāḥ — completo; ye — quem; me — a mim; uccheṣaṇam — um quinhão do sacrifício; daduḥ — deram.

Tradução

O semideus Pūṣā será capaz de mastigar somente por intermédio dos dentes de seus discípulos e, se estiver sozinho, terá de contentar-se comendo massa feita de farinha de grão-de-bico. Mas os semideuses que concordaram em me dar o meu quinhão do sacrifício se recuperarão de todos os ferimentos.

Comentário

SIGNIFICADO—O semideus Pūṣā tornou-se dependente de seus discípulos para mastigar. Caso contrário, ele teria permissão de engolir somente massa feita de farinha de grão-de-bico. Assim, sua punição continuou. Ele não poderia usar seus dentes para comer, uma vez que rira do senhor Śiva, zombando dele ao mostrar-lhe os dentes. Em outras palavras, não era correto que ele tivesse dentes, pois ele os havia usado contra o senhor Śiva.

Texto

bāhubhyām aśvinoḥ pūṣṇo
hastābhyāṁ kṛta-bāhavaḥ
bhavantv adhvaryavaś cānye
basta-śmaśrur bhṛgur bhavet

Sinônimos

bāhubhyām — com dois braços; aśvinoḥ — de Aśvinī-kumāra; pūṣṇaḥ — de Pūṣā; hastābhyām — com duas mãos; kṛta-bāhavaḥ — os que precisam de braços; bhavantu — terão que; adhvaryavaḥ — os sacerdotes; ca — e; anye — outros; basta-śmaśruḥ — a barba do bode; bhṛguḥ — Bhṛgu; bhavet — ele pode ter.

Tradução

Aqueles cujos braços foram cortados terão que trabalhar com os braços de Aśvinī-kumāra, e aqueles cujas mãos foram cortadas terão que trabalhar com as mãos de Pūṣā. Os sacerdotes também terão que agir dessa maneira. Quanto a Bhṛgu, ele terá a barba da cabeça do bode.

Comentário

SIGNIFICADO—Bhṛgu Muni, um grande partidário de Dakṣa, recebeu a barba da cabeça do bode que substituíra a cabeça de Dakṣa. A troca da cabeça de Dakṣa indica que a moderna teoria científica, de que a massa cinzenta seja a causa de todo o trabalho inteligente, não é válida. A massa cinzenta de Dakṣa e a de um bode são diferentes, mas Dakṣa ainda assim agia como ele mesmo, muito embora sua cabeça fosse substituída pela de um bode. A conclusão é que é a consciência específica de uma alma individual que age. A massa cinzenta é apenas um instrumento que nada tem a ver com a verdadeira inteligência. As verdadeiras inteligência, mente e consciência fazem parte da alma individual em particular. Encontraremos nos versos adiante que, após a cabeça de Dakṣa ter sido substituída pela cabeça de bode, ele continuou tão inteligente como era anteriormente. Ele ofereceu belas orações para satisfazer o senhor Śiva e o Senhor Viṣṇu, o que um bode não pode fazer. Portanto, conclui-se definitivamente que a massa cinzenta não é o centro da inteligência: é a consciência de uma alma em particular que trabalha inteligentemente. Todo o movimento para a consciência de Kṛṣṇa destina-se a purificar a consciência. Não importa que espécie de cérebro alguém tenha, pois, se ele simplesmente transferir sua consciência da matéria para Kṛṣṇa, sua vida se tornará exitosa. O próprio Senhor confirma na Bhagavad-gītā que qualquer pessoa que adote a consciência de Kṛṣṇa alcança a mais elevada perfeição da vida, independentemente da condição abominável de vida em que ela possa ter caído. Especificamente, qualquer pessoa em consciência de Kṛṣṇa volta ao Supremo, volta ao lar, ao deixar seu presente corpo material.

Texto

maitreya uvāca
tadā sarvāṇi bhūtāni
śrutvā mīḍhuṣṭamoditam
parituṣṭātmabhis tāta
sādhu sādhv ity athābruvan

Sinônimos

maitreyaḥ — o sábio Maitreya; uvāca — disse; tadā — naquele momento; sarvāṇi — todas; bhūtāni — personalidades; śrutvā — após ouvirem; mīḍhuḥ-tama — o melhor dos abençoadores (senhor Śiva); uditam — faladas por; parituṣṭa — estando satisfeitas; ātmabhiḥ — de coração e alma; tāta — meu querido Vidura; sādhu sādhu — muito bem, muito bem; iti — assim; atha abruvan — como dissemos.

Tradução

O grande sábio Maitreya disse: Meu querido Vidura, todas as personalidades presentes ficaram muito satisfeitas de coração e alma ao ouvirem as palavras do senhor Śiva, que é o melhor entre os abençoadores.

Comentário

SIGNIFICADO—Neste verso, descreve-se o senhor Śiva como mīḍhuṣṭama, o melhor dos abençoadores. Ele também é conhecido como Āśutoṣa, que indica que ele se satisfaz muito rapidamente e se irrita muito rapidamente. Afirma-se na Bhagavad-gītā que as pessoas menos inteligentes recorrem aos semideuses em troca de bênçãos materiais. A esse respeito, as pessoas geralmente recorrem ao senhor Śiva, e, como ele sempre se satisfaz rapidamente e abençoa seus devotos sem tecer considerações, ele se chama mīḍhuṣṭama, ou o melhor dos abençoadores. Os materialistas sempre anseiam por obter vantagens materiais, mas não levam a sério as vantagens espirituais.

Às vezes, evidentemente, acontece de o senhor Śiva se tornar o melhor abençoador na vida espiritual. Conta-se que, certa vez, um brāhmaṇa pobre adorou o senhor Śiva em troca de uma bênção, ao que o senhor Śiva aconselhou o devoto a ir ter com Sanātana Gosvāmī. O devoto se dirigiu a Sanātana Gosvāmī e informou-lhe que o senhor Śiva o aconselhara a pedir a melhor bênção dele (Sanātana). Sanātana tinha uma pedra filosofal consigo, que ele mantinha junto com o lixo. A pedido do pobre brāhmaṇa, Sanātana Gosvāmī deu-lhe a pedra filosofal, e o brāhmaṇa ficou muito feliz por possuí-la. Agora ele poderia obter tanto ouro quanto desejasse simplesmente tocando ferro com a pedra filosofal. Porém, após despedir-se de Sanātana, ele pensou: “Se a melhor bênção é uma pedra filosofal, por que Sanātana Gosvāmī a mantinha junto com o lixo?” Então, ele voltou e perguntou a Sanātana Gosvāmī: “Senhor, se esta é a melhor bênção, por que a mantinhas junto com o lixo?” Sanātana Gosvāmī, então, disse-lhe: “Na verdade, esta não é a melhor bênção. Mas estás preparado para receber de mim a melhor bênção?” O brāhmaṇa disse: “Sim, senhor. O senhor Śiva mandou que eu viesse e te pedisse a melhor bênção.” Sanātana Gosvāmī, nesse momento, mandou-o atirar a pedra filosofal em um rio próximo e, então, regressar. O brāhmaṇa pobre assim o fez, e, quando regressou, Sanātana Gosvāmī iniciou-o com o mantra Hare Kṛṣṇa. Assim, pela bênção do senhor Śiva, o brāhmaṇa obteve a associação do melhor devoto do Senhor Kṛṣṇa e foi, desse modo, iniciado no mahā-mantra – Hare Kṛṣṇa, Hare Kṛṣṇa, Kṛṣṇa Kṛṣṇa, Hare Hare/ Hare Rāma, Hare Rāma, Rāma Rāma, Hare Hare.

Texto

tato mīḍhvāṁsam āmantrya
śunāsīrāḥ saharṣibhiḥ
bhūyas tad deva-yajanaṁ
sa-mīḍhvad-vedhaso yayuḥ

Sinônimos

tataḥ — depois disso; mīḍhvāṁsam — o senhor Śiva; āmantrya — convidando; śunāsīrāḥ — os semideuses encabeçados pelo rei Indra; saha ṛṣibhiḥ — com todos os grandes sábios, encabeçados por Bhṛgu; bhūyaḥ — novamente; tat — aquele; deva-yajanam — local onde os semideuses são adorados; sa-mīḍhvat — com o senhor Śiva; vedhasaḥ — com o senhor Brahmā; yayuḥ — foram.

Tradução

Depois disso, Bhṛgu, o principal dos grandes sábios, convidou o senhor Śiva a ir à arena de sacrifício. Assim, os semideuses, acompanhados pelos sábios, pelo senhor Śiva e pelo senhor Brahmā, foram todos ao local onde o grande sacrifício estava sendo realizado.

Comentário

SIGNIFICADO—Todo o sacrifício preparado pelo rei Dakṣa fora perturbado pelo senhor Śiva. Portanto, todos os semideuses ali presentes, juntamente com o senhor Brahmā e os grandes sábios, pediram especificamente ao senhor Śiva que viesse e reacendesse o fogo de sacrifício. Existe uma frase comum, śiva-hīna-yajña: “Qualquer sacrifício sem a presença do senhor Śiva é feito em vão.” O Senhor Viṣṇu é Yajñeśvara, a Personalidade Suprema em questão de sacrifícios, mas, em cada yajña, é necessário que todos os semideuses, encabeçados pelo senhor Brahmā e pelo senhor Śiva, estejam presentes.

Texto

vidhāya kārtsnyena ca tad
yad āha bhagavān bhavaḥ
sandadhuḥ kasya kāyena
savanīya-paśoḥ śiraḥ

Sinônimos

vidhāya — executando; kārtsnyena — totalmente; ca — também; tat — isto; yat — que; āha — foi dito; bhagavān — o Senhor; bhavaḥ — Śiva; sandadhuḥ — executado; kasya — do vivo (Dakṣa); kāyena — com o corpo; savanīya — destinado ao sacrifício; paśoḥ — do animal; śiraḥ — cabeça.

Tradução

Depois que tudo foi executado exatamente de acordo com as orientações do senhor Śiva, o corpo de Dakṣa foi unido à cabeça do animal destinado a ser morto no sacrifício.

Comentário

SIGNIFICADO—Desta vez, todos os semideuses e grandes sábios tiveram muito cuidado para não irritar o senhor Śiva. Portanto, tudo o que ele pedia era feito. Afirma-se aqui especificamente que o corpo de Dakṣa foi unido à cabeça de um animal (um bode).

Texto

sandhīyamāne śirasi
dakṣo rudrābhivīkṣitaḥ
sadyaḥ supta ivottasthau
dadṛśe cāgrato mṛḍam

Sinônimos

sandhīyamāne — sendo executada; śirasi — pela cabeça; dakṣaḥ — rei Dakṣa; rudra-abhivīkṣitaḥ — tendo sido visto por Rudra (senhor Śiva); sadyaḥ — imediatamente; supte — dormindo; iva — como; uttasthau — desperto; dadṛśe — viu; ca — também; agrataḥ — em frente; mṛḍam — senhor Śiva.

Tradução

Quando a cabeça do animal foi fixada no corpo do rei Dakṣa, Dakṣa imediatamente voltou à consciência, e, como se tivesse acordado do sono, o rei viu o senhor Śiva diante dele.

Comentário

SIGNIFICADO—O exemplo dado aqui é que Dakṣa se levantou como se tivesse despertado de um sono profundo. Em sânscrito, isso se chama supta ivottasthau. Isso significa que, após acordar do sono, um homem imediatamente se lembra de todos os deveres que deve executar. Dakṣa fora morto, e sua cabeça fora decepada e reduzida a cinzas. Seu corpo jazia morto, mas, pela graça do senhor Śiva, logo que a cabeça de um bode foi unida ao corpo, Dakṣa recuperou sua consciência. Isso indica que a consciência também é individual. Dakṣa, na verdade, obteve outro corpo ao receber a cabeça de um bode, mas, como a consciência é individual, sua consciência permaneceu a mesma apesar da mudança de sua condição corpórea. Assim, a constituição física nada tem a ver com o desenvolvimento da consciência. A consciência transporta-se com a transmigração da alma. Há muitos exemplos disso na história védica, tais como o caso de Mahārāja Bharata. Após abandonar seu corpo de rei, Mahārāja Bharata foi transferido ao corpo de um veado, mas reteve a mesma consciência. Ele sabia que, embora antigamente tivesse sido o rei Bharata, ele tinha sido transferido ao corpo de um veado por estar absorto em pensar num veado no momento de sua morte. Apesar de ter o corpo de um veado, entretanto, sua consciência era a mesma que a do corpo do rei Bharata. O Senhor dispõe as coisas tão bem que, se a consciência de alguém se transforma em consciência de Kṛṣṇa, não há dúvida de que, em sua próxima vida, ele será um grande devoto de Kṛṣṇa, mesmo que se lhe ofereça uma espécie de corpo diferente.

Texto

tadā vṛṣadhvaja-dveṣa-
kalilātmā prajāpatiḥ
śivāvalokād abhavac
charad-dhrada ivāmalaḥ

Sinônimos

tadā — nessa altura; vṛṣa-dhvaja — senhor Śiva, que monta um touro; dveṣa — inveja; kalila-ātmā — coração poluído; prajāpatiḥ — rei Dakṣa; śiva — senhor Śiva; avalokāt — ao vê-lo; abhavat — tornou-se; śarat — no outono; hradaḥ — lago; iva — como; amalaḥ — purificado.

Tradução

Nessa altura, quando Dakṣa viu o senhor Śiva, que monta um touro, seu coração, que estava poluído com inveja do senhor Śiva, purificou-se imediatamente, assim como as chuvas de outono purificam a água num lago.

Comentário

SIGNIFICADO—Temos aqui um exemplo de por que o senhor Śiva é chamado de auspicioso. Se alguém vê o senhor Śiva com devoção e reverência, seu coração purifica-se imediatamente. O rei Dakṣa estava poluído de inveja do senhor Śiva, apesar do que, por vê-lo com um pouco de amor e devoção, seu coração se purificou imediatamente. Na estação das chuvas, os reservatórios d’água tornam-se sujos e lodosos, mas logo que a chuva de outono vem, toda a água torna-se imediatamente limpa e transparente. Analogamente, embora o coração de Dakṣa estivesse impuro por ele ter difamado o senhor Śiva, motivo pelo qual foi severamente punido, Dakṣa voltava agora à consciência, e, simplesmente por ver o senhor Śiva com veneração e. respeito, ele se purificou de imediato.

Texto

bhava-stavāya kṛta-dhīr
nāśaknod anurāgataḥ
autkaṇṭhyād bāṣpa-kalayā
samparetāṁ sutāṁ smaran

Sinônimos

bhava-stavāya — para orar ao senhor Śiva; kṛta-dhīḥ — embora decidisse; na — nunca; aśaknot — fosse capaz; anurāgataḥ — sentindo; autkaṇṭhyāt — devido à ansiedade; bāṣpa-kalayā — com lágrimas nos olhos; samparetām — morta; sutām — filha; smaran — recordando-se.

Tradução

O rei Dakṣa quis oferecer orações ao senhor Śiva, porém, logo que se recordou da malfadada morte de sua filha Satī, seus olhos encheram-se de lágrimas, e, constrangido, sua voz embargou-se a ponto de ele não conseguir dizer nada.

Texto

kṛcchrāt saṁstabhya ca manaḥ
prema-vihvalitaḥ sudhīḥ
śaśaṁsa nirvyalīkena
bhāveneśaṁ prajāpatiḥ

Sinônimos

kṛcchrāt — com grande esforço; saṁstabhya — apaziguando; ca — também; manaḥ — mente; prema-vihvalitaḥ — movido de amor e afeição; su-dhīḥ — aquele que volta à verdadeira razão; śaśaṁsa — louvou; nirvyalīkena — sem duplicidade, ou com grande amor; bhāvena — ao sentir; īśam — ao senhor Śiva; prajāpatiḥ — rei Dakṣa.

Tradução

Nessa altura, o rei Dakṣa, movido de amor e afeição, ficou bem desperto em sua verdadeira razão. Com grande esforço, ele apaziguou sua mente, conteve seus sentimentos e, com consciência pura, colocou-se a oferecer orações ao senhor Śiva.

Texto

dakṣa uvāca
bhūyān anugraha aho bhavatā kṛto me
daṇḍas tvayā mayi bhṛto yad api pralabdhaḥ
na brahma-bandhuṣu ca vāṁ bhagavann avajñā
tubhyaṁ hareś ca kuta eva dhṛta-vrateṣu

Sinônimos

dakṣaḥ — rei Dakṣa; uvāca — disse; bhūyān — muito grande; anugrahaḥ — favor; aho — ai de mim; bhavatā — por ti; kṛtaḥ — feito; me — a mim; daṇḍaḥ — punição; tvayā — por ti; mayi — a mim; bhṛtaḥ — feita; yat api — embora; pralabdhaḥ — derrotado; na — nem; brahma-bandhuṣu — a um brāhmaṇa desqualificado; ca — também; vām — ambos; bhagavan — meu senhor; avajñā — negligência; tubhyam — de ti; hareḥ ca — do Senhor Viṣṇu; kutaḥ — onde; eva — certamente; dhṛtavrateṣu – alguém ocupado em realização de sacrifício.

Tradução

O rei Dakṣa disse: Meu querido senhor Śiva, cometi uma grande ofensa contra ti, mas és tão bondoso que, ao invés de retirar tua misericórdia, fizeste-me um grande favor punindo-me. Tu e o Senhor Viṣṇu nunca negligenciais ninguém, nem sequer brāhmaṇas inúteis e desqualificados. Por que, então, deveríeis negligenciar a mim, que estou ocupado em executar sacrifícios?

Comentário

SIGNIFICADO—Embora se sentisse derrotado, Dakṣa sabia que sua punição fora simplesmente uma grande misericórdia do senhor Śiva. Lembrou que o senhor Śiva e o Senhor Viṣṇu nunca negligenciam os brāhmaṇas, mesmo que os brāhmaṇas às vezes sejam desqualificados. Segundo a civilização védica, um descendente de família brāhmaṇa jamais deve ser punido severamente. Isso foi exemplificado no tratamento de Arjuna a Aśvatthāmā. Aśvatthāmā era filho de um grande brāhmaṇa, Droṇācārya, e, apesar de ter cometido a grande ofensa de matar todos os filhos adormecidos dos Pāṇḍavas, motivo pelo qual foi condenado até mesmo pelo Senhor Kṛṣṇa, Arjuna o perdoou, não o matando por ele ser filho de um brāhmaṇa. A palavra brahma-bandhuṣu aqui usada é significativa. Brahma-bandhu significa alguém que nasce de pai brāhmaṇa, mas cujas atividades não estão ao nível dos brāhmaṇas. Uma pessoa assim não é brāhmaṇa, mas sim brahma-bandhu. Dakṣa provou ser um brahma-bandhu. Ele nascera de um grande pai brāhmaṇa, o senhor Brahmā, mas o jeito como ele tratou o senhor Śiva não foi exatamente bramânico; portanto, ele admitiu não ser um brāhmaṇa perfeito. O senhor Śiva e o Senhor Viṣṇu, entretanto, são afetuosos mesmo com um brāhmaṇa imperfeito. O senhor Śiva puniu Dakṣa, não como alguém faz com seu inimigo; pelo contrário, ele puniu Dakṣa simplesmente para fazê-lo voltar à razão, de modo que ele viesse a entender que agira erroneamente. Dakṣa entendeu isso e reconheceu a grande misericórdia do Senhor Kṛṣṇa e do senhor Śiva para com os brāhmaṇas caídos, incluindo ele mesmo. Embora fosse caído, ele fizera o voto de executar o sacrifício, como é dever dos brāhmaṇas, e assim ele começou suas orações ao senhor Śiva.

Texto

vidyā-tapo-vrata-dharān mukhataḥ sma viprān
brahmātma-tattvam avituṁ prathamaṁ tvam asrāk
tad brāhmaṇān parama sarva-vipatsu pāsi
pālaḥ paśūn iva vibho pragṛhīta-daṇḍaḥ

Sinônimos

vidyā — sabedoria; tapaḥ — austeridades; vrata — votos; dharān — os seguidores; mukhataḥ — da boca; sma — foi; viprān — os brāhmaṇas; brahmā — senhor Brahmā; ātma-tattvam — autorrealização; avitum — para disseminar; prathamam — primeiramente; tvam — tu; asrāk — criado; tat — portanto; brāhmaṇān — os brāhmaṇas; parama — ó grandioso; sarva — todos; vipatsu — em perigo; pāsi — proteges; pālaḥ — como o protetor; paśūn — os animais; iva — como; vibho — ó grandioso; pragṛhīta — trazendo na mão; daṇḍaḥ — um bastão.

Tradução

Meu querido, grande e poderoso senhor Śiva, primeiramente foste criado da boca do senhor Brahmā a fim de proteger os brāhmaṇas na aquisição de educação, austeridades, votos e autorrealização. Como protetor dos brāhmaṇas, proteges sempre os princípios reguladores que eles seguem, assim como um vaqueirinho mantém um bastão em sua mão para proteger as vacas.

Comentário

SIGNIFICADO—A função específica do ser humano na sociedade, não importa qual seja o seu status social, é praticar controle da mente e dos sentidos, observando os princípios reguladores prescritos nos śāstras védicos. O senhor Śiva é denominado paśupati porque protege as entidades vivas em sua consciência desenvolvida para que elas possam seguir o sistema védico de varṇa e āśrama. A palavra paśu refere-se ao animal, bem como à entidade humana. Afirma-se neste verso que o senhor Śiva está sempre interessado em proteger os animais e as entidades vivas animalescas, que não são muito avançadas no quesito espiritual. Afirma-se também que os brāhmaṇas são produzidos da boca do Senhor Supremo. Devemos sempre nos lembrar de que o senhor Śiva está sendo tratado como o representante do Senhor Supremo, Viṣṇu. Na literatura védica, descreve-se que os brāhmaṇas nascem da boca da forma universal de Viṣṇu, os kṣatriyas nascem de Seus braços, os vaiśyas de Seu abdômen ou cintura, e os śūdras de Suas pernas. Na formação de um corpo, a cabeça é o fator principal. Os brāhmaṇas nascem da boca da Suprema Personalidade de Deus a fim de aceitar caridade para a adoração a Viṣṇu e espalhar o conhecimento védico. O senhor Śiva é conhecido como paśupati, o protetor dos brāhmaṇas e outros seres vivos. Ele os protege dos ataques de não-brāhmaṇas, ou pessoas incultas que são contra o processo de autorrealização.

Outro aspecto desta palavra é que as pessoas que estão simplesmente apegadas à parte ritualística dos Vedas e não compreendem a posição da Suprema Personalidade de Deus não são mais avançadas que animais. No começo do Śrīmad-Bhāgavatam, confirma-se que, mesmo que alguém execute os rituais dos Vedas, caso não desenvolva um senso de consciência de Kṛṣṇa, todo o seu esforço ao executar rituais védicos é considerado mera perda de tempo. O objetivo do senhor Śiva ao destruir o yajña de Dakṣa foi de punir Dakṣa porque, quando Dakṣa o negligenciou, Dakṣa estava cometendo uma grande ofensa. A punição do senhor Śiva foi tal qual a de um vaqueirinho, que leva um bastão consigo para amedrontar seus animais. Comumente se diz que é necessário um bastão para proteger os animais porque eles não sabem raciocinar e argumentar. O raciocínio e argumento deles é argumentum ad baculum: a menos que haja um bastão, eles não obedecem. Para a classe de homens animalescos, é necessária a força, ao passo que aqueles que são avançados se convencem por raciocínio, argumentos e a autoridade das escrituras. As pessoas que estão simplesmente apegadas a rituais védicos, sem maior avanço de serviço devocional, ou consciência de Kṛṣṇa, são quase como animais, e o senhor Śiva encarrega-se de protegê-las e às vezes puni-las, como puniu Dakṣa.

Texto

yo ’sau mayāvidita-tattva-dṛśā sabhāyāṁ
kṣipto durukti-viśikhair vigaṇayya tan mām
arvāk patantam arhattama-nindayāpād
dṛṣṭyārdrayā sa bhagavān sva-kṛtena tuṣyet

Sinônimos

yaḥ — quem; asau — isto; mayā — por mim; avidita-tattva — sem conhecer o fato real; dṛśā — pela experiência; sabhāyām — na assembleia; kṣiptaḥ — foi insultado; durukti — palavras descorteses; viśikhaiḥ — pelas flechas de; vigaṇayya — não levando em conta; tat — isto; mām — a mim; arvāk — para baixo; patantam — deslizando para o inferno; arhat-tama — o mais respeitável; nindayā — pela difamação; apāt — salvaste; dṛṣṭyā — vendo; ārdrayā — por compaixão; saḥ — este; bhagavān — Vossa Onipotência; sva-kṛtena — com tua própria misericórdia; tuṣyet — te satisfaças.

Tradução

Não conheço a plenitude de tuas glórias. Por esta razão, disparei flechas de palavras ásperas contra ti em plena assembleia, embora não as levasses em conta. Eu estava descendo ao inferno devido à minha desobediência a ti, que és a personalidade mais respeitável, mas tiveste compaixão de mim e me salvaste punindo-me. Peço-te que te satisfaças com tua própria misericórdia, uma vez que não posso satisfazer-te com minhas palavras.

Comentário

SIGNIFICADO—Como de costume, o devoto numa condição adversa de vida aceita tal condição como misericórdia do Senhor. De fato, as palavras insultuosas usadas por Dakṣa contra o senhor Śiva eram suficientes para atirá-lo perpetuamente em uma vida infernal. Porém, o senhor Śiva, sendo bondoso com ele, aplicou-lhe uma punição para neutralizar a ofensa. O rei Dakṣa compreendeu isso e, sentindo-se agradecido pelo comportamento magnânimo do senhor Śiva, quis demonstrar sua gratidão. Às vezes o pai castiga o filho, e, quando o filho cresce e chega à razão, compreende que o castigo do pai, na verdade, não era punição, mas, sim, misericórdia. Do mesmo modo, Dakṣa apreciou o fato de receber uma punição do senhor Śiva como manifestação da misericórdia do senhor Śiva. Esse é o sintoma de alguém que progride no caminho da consciência de Kṛṣṇa. Afirma-se que o devoto na consciência de Kṛṣṇa jamais aceita uma condição de vida dolorosa como condenação da Suprema Personalidade de Deus. Ele aceita a condição dolorosa como uma graça do Senhor, pensando: “Eu teria sido punido ou posto numa condição de vida mais perigosa devido às minhas más ações do passado, mas o Senhor me protegeu. Assim, recebi somente uma pequena punição como sinal da execução da lei do karma.” Pensando dessa maneira acerca da graça de Kṛṣṇa, o devoto sempre se rende à Suprema Personalidade de Deus cada vez mais seriamente e não se deixa perturbar pela suposta punição.

Texto

maitreya uvāca
kṣamāpyaivaṁ sa mīḍhvāṁsaṁ
brahmaṇā cānumantritaḥ
karma santānayām āsa
sopādhyāyartvig-ādibhiḥ

Sinônimos

maitreyaḥ — o sábio Maitreya; uvāca — disse; kṣamā — indulgência; āpya — recebendo; evam — assim; saḥ — o rei Dakṣa; mīḍhvāṁsam — ao senhor Śiva; brahmaṇā — juntamente com o senhor Brahmā; ca — também; anumantritaḥ — recebendo permissão; karma — o sacrifício; santānayām āsa — começou novamente; sa — juntamente com; upādhyāya — sábios eruditos; ṛtvik — os sacerdotes; ādibhiḥ — e outros.

Tradução

O grande sábio Maitreya disse: Sendo assim perdoado pelo senhor Śiva, o rei Dakṣa, com a permissão do senhor Brahmā, recomeçou a realização do yajña, juntamente com os grandes sábios eruditos, os sacerdotes e outros.

Texto

vaiṣṇavaṁ yajña-santatyai
tri-kapālaṁ dvijottamāḥ
puroḍāśaṁ niravapan
vīra-saṁsarga-śuddhaye

Sinônimos

vaiṣṇavam — destinadas ao Senhor Viṣṇu ou Seus devotos; yajña — sacrifício; santatyai — para realizações; tri-kapālam — três tipos de oferendas; dvija-uttamāḥ — o melhor dos brāhmaṇas; puroḍāśam — a oblação chamada puroḍāśa; niravapan — ofereceram; vīra — Vīrabhadra e outros seguidores do senhor Śiva; saṁsarga — contaminação (doṣa) devido ao contato dele; śuddhaye — para purificação.

Tradução

Depois disso, a fim de recomeçar as atividades de sacrifício, os brāhmaṇas primeiramente providenciaram a purificação da arena sacrificatória da contaminação causada pelo contato de Vīrabhadra e dos outros seguidores fantasmagóricos do senhor Śiva. Em seguida, eles providenciaram a oferenda de oblações conhecidas como puroḍāśa ao fogo.

Comentário

SIGNIFICADO—Os devotos e seguidores do senhor Śiva, encabeçados por Vīrabhadra, são conhecidos como vīras, e são demônios fantasmagóricos. Eles não apenas poluíram toda a arena sacrificatória com sua simples presença, como também criaram uma situação negativa urinando e defecando. Portanto, a contaminação criada por eles teria de ser primeiramente purificada pelo método de oferecer oblações puroḍāśa. Não se pode executar viṣṇu-yajña, ou oferecimento ao Senhor Viṣṇu, de maneira suja. Oferecer algo em estado sujo chama-se sevāparādha. A adoração à Deidade de Viṣṇu no templo também é viṣṇu-yajña. Em todos os templos de Viṣṇu, portanto, o sacerdote que cuida do arcanā-vidhi tem que ser muito limpo. Tudo deve ser mantido sempre limpo e asseado, e os alimentos devem ser preparados de maneira limpa e asseada. Descrevem-se todos esses princípios reguladores em O Néctar da Devoção. Há trinta e dois tipos de ofensas na execução do serviço de arcanā. É necessário, portanto, que a pessoa seja extremamente cuidadosa para não estar suja. Em geral, sempre que se inicia qualquer cerimônia ritualística, em primeiro lugar se canta o santo nome do Senhor Viṣṇu para purificar o ambiente. Quer esteja em condição pura ou impura, interna ou externamente, se alguém canta ou mesmo se lembra do santo nome da Suprema Personalidade de Deus, Viṣṇu, purifica-se imediatamente. A arena do yajña fora profanada pela presença dos seguidores do senhor Śiva, encabeçados por Vīrabhadra, de modo que toda a arena precisava ser santificada. Embora o senhor Śiva estivesse presente e fosse todo-auspicioso, ainda assim era necessário santificar o local porque seus seguidores haviam invadido a arena e cometido muitos atos ofensivos. Essa santificação foi possível somente através do canto do santo nome de Viṣṇu, Trikapāla, que pode santificar os três mundos. Em outras palavras, admite-se aqui que os seguidores do senhor Śiva geralmente são impuros. Eles nem mesmo são muito limpos: não se banham regularmente, têm cabelos compridos e fumam gāñjā. Pessoas de hábitos tão irregulares são incluídas entre os fantasmas. Uma vez que estiveram presentes na arena de sacrifício, a atmosfera tornou-se poluída e foi preciso santificá-la mediante oblações trikapāla, que indicavam a invocação do favor de Viṣṇu.

Texto

adhvaryuṇātta-haviṣā
yajamāno viśāmpate
dhiyā viśuddhayā dadhyau
tathā prādurabhūd dhariḥ

Sinônimos

adhvaryuṇā — com o Yajur Veda; ātta — tomando; haviṣā — com manteiga clarificada; yajamānaḥ — rei Dakṣa; viśām-pate — ó Vidura; dhiyā — em meditação; viśuddhayā — santificada; dadhyau — ofereceu; tathā — imediatamente; prāduḥ — manifesto; abhūt — tornou-Se; hariḥ — Hari, o Senhor.

Tradução

O grande sábio Maitreya disse a Vidura: Meu querido Vidura, logo que o rei Dakṣa ofereceu a manteiga clarificada com mantras do Yajur Veda em santificada meditação, o Senhor Viṣṇu apareceu ali sob Sua forma original como Nārāyaṇa.

Comentário

SIGNIFICADO—O Senhor Viṣṇu é onipenetrante. Qualquer devoto que, em santificada meditação, seguindo os princípios reguladores, cante os mantras necessários em serviço e com espírito devocional pode ver Viṣṇu. Afirma-se na Brahma-saṁhitā que o devoto cujos olhos são ungidos com o unguento do amor à Divindade pode ver a Suprema Personalidade de Deus sempre dentro de seu coração. O Senhor Śyāmasundara é muito bondoso com Seu devoto.

Texto

tadā sva-prabhayā teṣāṁ
dyotayantyā diśo daśa
muṣṇaṁs teja upānītas
tārkṣyeṇa stotra-vājinā

Sinônimos

tadā — naquele momento; sva-prabhayā — por Sua própria refulgência; teṣām — todos eles; dyotayantyā — pelo brilho; diśaḥ — direções; daśa — dez; muṣṇan — diminuindo; tejaḥ — refulgência; upānītaḥ — trazido; tārkṣyeṇa — por Garuḍa; stotra-vājinā — cujas asas chamam-se Bṛhat e Rathantara.

Tradução

O Senhor Nārāyaṇa estava sentado no ombro de Stotra, ou Garuḍa, que tinha grandes asas. Tão logo o Senhor apareceu, todas as direções se iluminaram, diminuindo o brilho de Brahmā e dos outros presentes.

Comentário

SIGNIFICADO—Nos dois ślokas seguintes, apresenta-se uma descrição de Nārāyaṇa.

Texto

śyāmo hiraṇya-raśano ’rka-kirīṭa-juṣṭo
nīlālaka-bhramara-maṇḍita-kuṇḍalāsyaḥ
śaṅkhābja-cakra-śara-cāpa-gadāsi-carma-
vyagrair hiraṇmaya-bhujair iva karṇikāraḥ

Sinônimos

śyāmaḥ — negra; hiraṇya-raśanaḥ — uma roupa como ouro; arka-kirīṭajuṣṭaḥ – com um elmo ofuscante como o Sol; nīla-alaka — cachos azulados; bhramara — grandes abelhas negras; maṇḍita-kuṇḍala-āsyaḥ — tendo o rosto decorado com brincos; śaṅkha — búzio; abja — flor de lótus; cakra — roda; śara — flechas; cāpa — arco; gadā — maça; asi — espada; carma — escudo; vyagraiḥ — cheios de; hiraṇmaya — dourados (braceletes e pulseiras); bhujaiḥ — com mãos; iva — como; karṇikāraḥ — árvore florida.

Tradução

Sua tez era negra, Sua roupa amarela como ouro e Seu elmo ofuscante como o Sol. Seu cabelo era azulado, da cor das abelhas negras, e Seu rosto decorava-se com brincos. Suas oito mãos portavam búzio, roda, maça, flor de lótus, flecha, arco, escudo e espada, e estavam decoradas com ornamentos dourados como braceletes e pulseiras. Todo o Seu corpo se assemelhava a uma árvore florescente belamente decorada com várias espécies de flores.

Comentário

SIGNIFICADO—O rosto do Senhor Viṣṇu, como se descreve neste verso, parece uma flor de lótus com abelhas zunindo sobre ela. Todos os ornamentos do corpo do Senhor Viṣṇu assemelham-se ao ouro derretido da cor rubro-dourada do sol matinal. O Senhor aparece, assim como o Sol nasce de manhã, para proteger toda a criação universal. Seus braços ostentam diferentes armas, e Suas oito mãos são comparadas às oito pétalas de uma flor de lótus. Todas as armas mencionadas são para a proteção de Seus devotos.

Geralmente, nas quatro mãos de Viṣṇu, estão uma roda, uma maça, um búzio e uma flor de lótus. Esses quatro símbolos são vistos nas quatro mãos de Viṣṇu em diferentes arranjos. A maça e a roda são os símbolos da punição do Senhor para os demônios e canalhas, e a flor de lótus e o búzio são usados para abençoar os devotos. Existem sempre duas classes de homens – os devotos e os demônios. Como se confirma na Bhagavad-gītā (paritrāṇāya sādhūnām), o Senhor está sempre pronto a proteger os devotos e aniquilar os demônios. Há demônios e devotos neste mundo material, mas, no mundo espiritual, tal distinção não existe. Em outras palavras, o Senhor Viṣṇu é o proprietário tanto do mundo material quanto do mundo espiritual. No mundo material, quase todos têm natureza demoníaca, mas também há devotos, que parecem estar no mundo material embora estejam sempre situados no mundo espiritual. A posição do devoto é sempre transcendental, e ele é sempre protegido pelo Senhor Viṣṇu.

Texto

vakṣasy adhiśrita-vadhūr vana-māly udāra-
hāsāvaloka-kalayā ramayaṁś ca viśvam
pārśva-bhramad-vyajana-cāmara-rāja-haṁsaḥ
śvetātapatra-śaśinopari rajyamānaḥ

Sinônimos

vakṣasi — sobre o peito; adhiśrita — situadas; vadhūḥ — uma mulher (a deusa da fortuna, Lakṣmī); vana-mālī — enguirlandado com flores silvestres; udāra — belo; hāsa — sorridente; avaloka — olhar; kalayā — com uma pequena parte; ramayan — agradável; ca — e; viśvam — o mundo inteiro; pārśva — lado; bhramat — movendo-se para trás e para adiante; vyajana-cāmara — pelo de cauda de iaque branco para abanar; rāja-haṁsaḥ — cisne; śveta-ātapatra-śaśinā — com um dossel branco como a Lua; upari — em cima; rajyamānaḥ — parecendo belo.

Tradução

O Senhor Viṣṇu parecia extraordinariamente belo porque, sobre Seu peito, estavam situadas a deusa da fortuna e uma guirlanda. Ele tinha o rosto belamente decorado com uma atitude sorridente, capaz de cativar todos no mundo, especialmente os devotos. Abanos de pelos brancos em ambos os lados do Senhor pareciam cisnes brancos, e o dossel branco sobre Sua cabeça parecia a Lua.

Comentário

SIGNIFICADO—O rosto sorridente do Senhor Viṣṇu é agradável para o mundo inteiro. Não somente os devotos, mas também não-devotos, sentem-se atraídos por tal sorriso. Este verso descreve muito bem como o Sol, a Lua, a flor de lótus de oito pétalas e as zumbidoras abelhas negras eram representados pelos abanos de pelo, pelo dossel sobre a cabeça, pelos brincos que se mexiam em ambos os lados de Seu rosto e por Seu cabelo negro. Tudo isso, acompanhado por búzio, roda, maça, flor de lótus, arco, flechas, escudo e espada em Suas mãos, forma uma grande e bela audiência para o Senhor Viṣṇu, a qual cativou todos os semideuses ali presentes, incluindo Dakṣa e o senhor Brahmā.

Texto

tam upāgatam ālakṣya
sarve sura-gaṇādayaḥ
praṇemuḥ sahasotthāya
brahmendra-tryakṣa-nāyakāḥ

Sinônimos

tam — a Ele; upāgatam — chegou; ālakṣya — após verem; sarve — todos; sura-gaṇa-ādayaḥ — os semideuses e outros; praṇemuḥ — reverências; sahasā — imediatamente; utthāya — após levantarem-se; brahma — senhor Brahmā; indra — senhor Indra; tri-akṣa — senhor Śiva (que tem três olhos); nāyakāḥ — liderados por.

Tradução

Assim que o Senhor Viṣṇu tornou-Se visível, todos os semideuses – o senhor Brahmā e o senhor Śiva, os Gandharvas e todos ali presentes – imediatamente ofereceram suas respeitosas reverências prostrando-se bem diante dele.

Comentário

SIGNIFICADO—Subentende-se que o Senhor Viṣṇu é o Supremo Senhor mesmo do senhor Śiva e do senhor Brahmā, isto para não falar dos semideuses, Gandharvas e entidades vivas comuns. Afirma-se em uma oração que yaṁ brahmā varuṇendra-rudra-marutāḥ: todos os semideuses adoram o Senhor Viṣṇu. De modo semelhante, dhyānāvasthita-tad-gatena manasā paśyanti yaṁ yoginaḥ: os yogīs concentram suas mentes na forma do Senhor Viṣṇu. Assim, o Senhor Viṣṇu é adorável para todos os semideuses, todos os Gandharvas e mesmo para o senhor Śiva e o senhor Brahmā. Tad viṣṇoḥ paramaṁ padaṁ sadā paśyanti sūrayaḥ: Viṣṇu é, portanto, a Suprema Personalidade de Deus. Muito embora anteriormente, em suas orações, o senhor Brahmā tivesse se referido ao senhor Śiva como o Supremo, quando o Senhor Viṣṇu apareceu, Śiva também caiu prostrado diante dEle para oferecer-Lhe respeitosas reverências.

Texto

tat-tejasā hata-rucaḥ
sanna-jihvāḥ sa-sādhvasāḥ
mūrdhnā dhṛtāñjali-puṭā
upatasthur adhokṣajam

Sinônimos

tat-tejasā — pela refulgência deslumbrante de Seu corpo; hata-rucaḥ — tendo perdido os brilhos; sanna-jihvāḥ — tendo línguas silenciosas; sa-sādhvasāḥ — tendo medo dEle; mūrdhnā — com a cabeça; dhṛta-añjali-puṭāḥ — com mãos levadas à cabeça; upatasthuḥ — oraram; adhokṣajam — a Adhokṣaja, a Suprema Personalidade de Deus.

Tradução

Na presença da refulgência deslumbrante do brilho corpóreo de Nārāyaṇa, o brilho de todos os demais se esvaiu, e todos pararam de falar. Temerosos com respeito e veneração, todos os presentes saudaram-nO, levando suas mãos à cabeça, e se prepararam para oferecer suas orações à Suprema Personalidade de Deus, Adhokṣaja.

Texto

apy arvāg-vṛttayo yasya
mahi tv ātmabhuv-ādayaḥ
yathā-mati gṛṇanti sma
kṛtānugraha-vigraham

Sinônimos

api — ainda; arvāk-vṛttayaḥ — além das atividades mentais; yasya — cujas; mahi — glórias; tu — mas; ātmabhū-ādayaḥ — Brahmā etc; yathā-mati — de acordo com suas diferentes capacidades; gṛṇanti sma — ofereceram orações; kṛta-anugraha — manifesta por Sua graça; vigraham — forma transcendental.

Tradução

Embora o poder mental inclusive de semideuses como Brahmā não conseguisse compreender as ilimitadas glórias do Senhor Supremo, todos eles puderam perceber a forma transcendental da Suprema Personalidade de Deus por graça dEle. Somente por tal graça puderam oferecer suas respeitosas orações de acordo com suas diferentes capacidades.

Comentário

SIGNIFICADO—O Senhor Supremo, a Personalidade de Deus, é sempre ilimitado, e ninguém, nem mesmo uma personalidade como o senhor Brahmā, pode enumerar completamente as Suas glórias. Afirma-se que Ananta, uma encarnação direta do Senhor, tem bocas ilimitadas, com cada uma das quais tem tentado descrever as glórias do Senhor por um período de tempo ilimitado; todavia, as glórias do Senhor permanecem ilimitadas, e por isso Ananta nunca termina de descrevê-las. Não é possível que uma entidade viva comum entenda ou glorifique a ilimitada Personalidade de Deus, mas podemos oferecer orações ou serviços ao Senhor de acordo com nossa capacidade em particular. Esta capacidade aumenta com o espírito de serviço. Sevonmukhe hi jihvādau significa que o serviço ao Senhor começa com a língua. Isso se refere ao cantar. Cantando Hare Kṛṣṇa, começa-se a servir ao Senhor. Outra função da língua é saborear e aceitar a prasāda do Senhor. Devemos começar nosso serviço ao Ilimitado com a língua e aperfeiçoar-nos em cantar, e aceitar a prasāda do Senhor. Aceitar a prasāda do Senhor significa controlar todo o conjunto de sentidos. A língua é considerada o sentido mais incontrolável porque anseia por muitos comestíveis insalubres, forçando, desse modo, a entidade viva a cair no calabouço da vida material condicionada. À medida que a entidade viva transmigra de uma forma de vida a outra, ela é obrigada a comer tantos alimentos abomináveis que, no final das contas, não há limite para eles. Deve-se usar a língua para cantar e comer a prasāda do Senhor, de modo que os demais sentidos sejam controlados. O canto é o remédio, e a prasāda, a dieta. Com esses processos, podemos começar nosso serviço, e, à medida que o serviço aumenta, o Senhor revela-Se cada vez mais ao devoto. Mas não há limites para Suas glórias, e não há limite para a ocupação de servir ao Senhor.

Texto

dakṣo gṛhītārhaṇa-sādanottamaṁ
yajñeśvaraṁ viśva-sṛjāṁ paraṁ gurum
sunanda-nandādy-anugair vṛtaṁ mudā
gṛṇan prapede prayataḥ kṛtāñjaliḥ

Sinônimos

dakṣaḥ — Dakṣa; gṛhīta — aceitou; arhaṇa — verdadeiro; sādana-uttamam — vaso de sacrifício; yajña-īśvaram — ao senhor de todos os sacrifícios; viśva-sṛjām — de todos os Prajāpatis; param — o supremo; gurum — preceptor; sunanda-nanda-ādianugaiḥ – por associados como Sunanda e Nanda; vṛtam — cercado; mudā — com grande prazer; gṛṇan — oferecendo respeitosas orações; prapede — refugiou-se; prayataḥ — tendo a mente subjugada; kṛta-añjaliḥ — de mãos postas.

Tradução

Quando o Senhor Viṣṇu aceitou as oblações oferecidas no sacrifício, Dakṣa, o Prajāpati, começou com grande prazer a oferecer-Lhe respeitosas orações. A Suprema Personalidade de Deus é, na verdade, o senhor de todos os sacrifícios e o preceptor de todos os Prajāpatis, e é servido até mesmo por personalidades como Nanda e Sunanda.

Texto

dakṣa uvāca
śuddhaṁ sva-dhāmny uparatākhila-buddhy-avasthaṁ
cin-mātram ekam abhayaṁ pratiṣidhya māyām
tiṣṭhaṁs tayaiva puruṣatvam upetya tasyām
āste bhavān apariśuddha ivātma-tantraḥ

Sinônimos

dakṣaḥ — Dakṣa; uvāca — disse; śuddham — puro; sva-dhāmni — em Vossa própria morada; uparata-akhila — inteiramente repelida; buddhi-avastham — posição de especulação mental; cit-mātram — inteiramente espiritual; ekam — único e inigualável; abhayam — destemido; pratiṣidhya — controlando; māyām — energia material; tiṣṭhan — estando situado; tayā — com ela (Māyā); eva — certamente; puruṣatvam — supervisor; upetya — entrando em; tasyām — nela; āste — está presente; bhavān — Vossa Onipotência; apariśuddhaḥ — impura; iva — como que; ātma-tantraḥ — autossuficiente.

Tradução

Dakṣa disse à Suprema Personalidade de Deus: Meu querido Senhor, sois transcendental a todas as posições especulativas. Sois inteiramente espiritual, desprovido de todo o temor, e sempre mantendes a energia material sob controle. Apesar de aparecerdes na energia material, estais situado transcendentalmente. Vós estais sempre livre da contaminação material por serdes inteiramente autossuficiente.

Texto

ṛtvija ūcuḥ
tattvaṁ na te vayam anañjana rudra-śāpāt
karmaṇy avagraha-dhiyo bhagavan vidāmaḥ
dharmopalakṣaṇam idaṁ trivṛd adhvarākhyaṁ
jñātaṁ yad-artham adhidaivam ado vyavasthāḥ

Sinônimos

ṛtvijaḥ — os sacerdotes; ūcuḥ — começaram a dizer; tattvam — verdade; na — não; te — de Vossa Onipotência; vayam — todos nós; anañjana — sem contaminação material; rudra — senhor Śiva; śāpāt — por sua maldição; karmaṇi — em atividades fruitivas; avagraha — estando demasiadamente apegados; dhiyaḥ — de tal inteligência; bhagavan — ó Senhor; vidāmaḥ — saber; dharma — religião; upalakṣaṇam — simbolizada; idam — esta; tri-vṛt — os três departamentos de conhecimento dos Vedas; adhvara — sacrifício; ākhyam — chamado; jñātam — conhecido por nós; yat — isto; artham — quanto a; adhidaivam — para adorar os semideuses; adaḥ — este; vyavasthāḥ — arranjo.

Tradução

Os sacerdotes dirigiram-se ao Senhor, dizendo: Ó Senhor, transcendental à contaminação material, através da maldição lançada pelos homens do senhor Śiva, ficamos apegados a atividades fruitivas, de modo que agora estamos caídos e por isso nada sabemos sobre Vós. Pelo contrário, estamos agora envolvidos nos preceitos dos três departamentos do conhecimento védico sob o pretexto de executar rituais em nome de yajña. Sabemos que fizestes arranjos para distribuir os respectivos quinhões dos semideuses.

Comentário

SIGNIFICADO—Os Vedas são conhecidos como traiguṇya-viṣayā vedāḥ (Bhagavad-gītā 2.45). Aqueles que são estudantes sérios dos Vedas são demasiadamente apegados às cerimônias ritualísticas mencionadas nos Vedas, daí esses veda-vādis não poderem compreender que a meta última dos Vedas é compreender o Senhor Kṛṣṇa, ou Viṣṇu. Aqueles que transcendem as atrações qualitativas védicas, contudo, podem compreender Kṛṣṇa, quem nunca é contaminado pelas qualidades materiais. Portanto, o Senhor Viṣṇu é chamado aqui de anañjana (livre da contaminação material). Na Bhagavad-gītā (2.42), Kṛṣṇa censura os eruditos védicos imaturos da seguinte maneira:

yām imāṁ puṣpitāṁ vācaṁ
pravadanty avipaścitaḥ
veda-vāda-ratāḥ pārtha
nānyad astīti vādinaḥ

“Os homens de pouco conhecimento são muito apegados às palavras floridas dos Vedas, e dizem que não há nada além disso.”

Texto

sadasyā ūcuḥ
utpatty-adhvany aśaraṇa uru-kleśa-durge ’ntakogra-
vyālānviṣṭe viṣaya-mṛga-tṛṣy ātma-gehoru-bhāraḥ
dvandva-śvabhre khala-mṛga-bhaye śoka-dāve ’jña-sārthaḥ
pādaukas te śaraṇada kadā yāti kāmopasṛṣṭaḥ

Sinônimos

sadasyāḥ — os membros da assembleia; ūcuḥ — disseram; utpatti — repetidos nascimentos e mortes; adhvani — no caminho de; aśaraṇe — não tendo lugar para se refugiar; uru — grande; kleśa — problemática; durge — na formidável fortaleza; antaka — término; ugra — ferozes; vyāla — serpentes; anviṣṭe — estando infestadas com; viṣaya — felicidade material; mṛga-tṛṣi — miragem; ātma — corpo; geha — lar; uru — pesado; bhāraḥ — fardo; dvandva — dual; śvabhre — buracos, fossos das ditas felicidade e aflição; khala — ferozes; mṛga — animais; bhaye — tendo medo de; śoka-dāve — o fogo florestal da lamentação; ajña-sa-arthaḥ — para o interesse dos patifes; pāda-okaḥ — abrigo de Vossos pés de lótus; te — a Vós; śaraṇada – dando abrigo; kadā — quando; yāti — foram; kāma-upasṛṣṭaḥ — estando atormentadas por toda espécie de desejos.

Tradução

Os membros da assembleia disseram ao Senhor: Ó refúgio único para todos em uma vida problemática, nesta formidável fortaleza da existência condicionada, o elemento tempo, como uma serpente, está sempre procurando uma oportunidade de atacar. Este mundo é cheio de fossos das ditas aflição e felicidade, e há muitos animais ferozes sempre prontos a atacar. O fogo da lamentação arde continuamente, e a miragem da falsa felicidade vive enfeitiçando, mas não há abrigo contra eles. Assim, as pessoas tolas vivem no ciclo de nascimentos e mortes, sempre acabrunhadas no desempenho de seus ditos deveres, e nós não sabemos quando elas aceitarão o abrigo de Vossos pés de lótus.

Comentário

SIGNIFICADO—As pessoas que não são conscientes de Kṛṣṇa vivem uma vida muito precária, como se descreve neste verso, mas todas essas condições circunstanciais devem-se ao esquecimento de Kṛṣṇa. O movimento para a consciência de Kṛṣṇa destina-se a aliviar todas essas pessoas confusas e aflitas; portanto, esta é a maior obra beneficente para o alívio de toda a sociedade humana, e aqueles que trabalham em prol desta causa são os maiores benquerentes, pois seguem os passos do Senhor Caitanya, que é o maior amigo de todas as entidades vivas.

Texto

rudra uvāca
tava varada varāṅghrāv āśiṣehākhilārthe
hy api munibhir asaktair ādareṇārhaṇīye
yadi racita-dhiyaṁ māvidya-loko ’paviddhaṁ
japati na gaṇaye tat tvat-parānugraheṇa

Sinônimos

rudraḥ uvāca — o senhor Śiva disse; tava — Vossos; vara-da — ó benfeitor supremo; vara-aṅghrau — preciosos pés de lótus; āśiṣā — por desejo; iha — no mundo material; akhila-arthe — para a satisfação; hi api — certamente; munibhiḥ — pelos sábios; asaktaiḥ — liberados; ādareṇa — com cuidado; arhaṇīye — adorável; yadi — se; racita-dhiyam — mente fixa; — a mim; avidya-lokaḥ — as pessoas ignorantes; apaviddham — atividade impura; japati — profere; na gaṇaye — não dou valor; tat — a isto; tvat-para-anugraheṇa — por compaixão como a Vossa.

Tradução

O senhor Śiva disse: Meu querido Senhor, minha mente e minha consciência estão sempre fixas em Vossos pés de lótus, os quais, sendo a fonte de todas as bênçãos e da satisfação de todos os desejos, são adorados por todos os grandes sábios liberados, porque Vossos pés de lótus são dignos de adoração. Com minha mente fixa em Vossos pés de lótus, já não me perturbam mais as pessoas que me blasfemam, alegando que minhas atividades não são puras. Não me importo com suas acusações, e perdoo-as por compaixão, assim como Vós demonstrais compaixão para com todas as entidades vivas.

Comentário

SIGNIFICADO—O senhor Śiva expressa nesta passagem seu arrependimento por ter-se irritado e ter perturbado as atividades sacrificatórias de Dakṣa. O rei Dakṣa o insultara de muitas maneiras, de modo que ele ficara irado e frustrara toda a cerimônia sacrificatória. Mais tarde, quando o satisfizeram, a realização do yajña foi restabelecida, e por isso ele se arrependeu de suas atividades. Agora, diz ele, devido à sua mente estar fixa nos pés de lótus do Senhor Supremo, Viṣṇu, ele já não se perturba com críticas ordinárias contra seu modo de vida. Esta afirmação do senhor Śiva indica que, enquanto estivermos na plataforma material, seremos afetados pelos três modos da natureza material. Tão logo nos estabeleçamos em consciência de Kṛṣṇa, entretanto, tais atividades materiais deixarão de nos afetar. Devemos, portanto, estar sempre fixos em consciência de Kṛṣṇa, ocupados com o transcendental serviço amoroso ao Senhor. Garante-se que um devoto assim jamais será afetado pelas ações e reações dos três modos da natureza material. Este fato também é corroborado na Bhagavad-gītā: qualquer pessoa que se fixe no transcendental serviço ao Senhor supera todas as qualidades materiais e situa-se no status de compreensão do Brahman, no qual o anseio por objetos materiais não a aflige. A recomendação do Śrīmad-Bhāgavatam é de que devemos ser sempre conscientes de Kṛṣṇa, não nos esquecendo jamais de nossa relação transcendental com o Senhor. Todos devem seguir este programa estritamente. A afirmação do senhor Śiva indica que ele sempre estava em consciência de Kṛṣṇa, e assim mantinha-se livre de toda a aflição material. O único remédio, portanto, é perseverar rigidamente na consciência de Kṛṣṇa, a fim de escapar da contaminação dos modos materiais.

Texto

bhṛgur uvāca
yan māyayā gahanayāpahṛtātma-bodhā
brahmādayas tanu-bhṛtas tamasi svapantaḥ
nātman-śritaṁ tava vidanty adhunāpi tattvaṁ
so ’yaṁ prasīdatu bhavān praṇatātma-bandhuḥ

Sinônimos

bhṛguḥ uvāca — Śrī Bhṛgu disse; yat — quem; māyayā — pela energia ilusória; gahanayā — insuperável; apahṛta — roubado; ātma-bodhāḥ — conhecimento da posição constitucional; brahma-ādayaḥ — senhor Brahmā etc.; tanu-bhṛtaḥ — entidades vivas corporificadas; tamasi — na escuridão da ilusão; svapantaḥ — jazendo; na — não; ātman — na entidade viva; śritam — situado em; tava — Vossa; vidanti — entendem; adhunā — agora; api — certamente; tattvam — posição absoluta; saḥ — Vós; ayam — esta; prasīdatu — sede bondoso; bhavān — Vossa Onipotência; praṇata-ātma — alma rendida; bandhuḥ — amigo.

Tradução

Śrī Bhṛgu disse: Meu querido Senhor, todas as entidades vivas, começando da mais elevada, ou seja, o senhor Brahmā, descendo até a formiga comum, estão sob a influência do insuperável encanto da energia ilusória, e assim elas ignoram sua posição constitucional. Todos creem no conceito corporal, e todos estão assim submersos na escuridão da ilusão. Na verdade, eles não conseguem compreender como Vós viveis em toda entidade viva como a Superalma, tampouco conseguem compreender Vossa posição absoluta. Vós, porém, sois o eterno amigo e protetor de todas as almas rendidas. Portanto, por favor, sede bondoso conosco e perdoai todas as nossas ofensas.

Comentário

SIGNIFICADO—Bhṛgu Muni estava consciente do comportamento escandaloso demonstrado por todo e cada um deles, incluindo Brahmā e o senhor Śiva, na cerimônia sacrificatória de Dakṣa. Mencionando Brahmā, a principal de todas as entidades vivas dentro deste mundo material, ele quis declarar que todos, incluindo também Brahmā e o senhor Śiva, estão sob o conceito corporal e sob o encanto da energia material – todos exceto Viṣṇu. Esta é a versão de Bhṛgu. Enquanto mantivermos o conceito de que o corpo é o eu, será muito difícil compreendermos a Superalma ou a Suprema Personalidade de Deus. Consciente de que não era superior a Brahmā, Bhṛgu se incluiu na lista de ofensores. Personalidades ignorantes, ou almas condicionadas, não têm escolha além de aceitar sua condição precária sob a influência da natureza material. O único remédio é se render a Viṣṇu e sempre orar para ser perdoado. Devemos depender unicamente da misericórdia imotivada do Senhor para nossa liberação, e não depender nem mesmo levemente de nossa própria força. Esta é a posição perfeita de uma pessoa consciente de Kṛṣṇa. O Senhor é o amigo de todos, mas Ele é especialmente amigável com as almas rendidas. O simples processo, portanto, é que a alma condicionada deve permanecer rendida ao Senhor, e o Senhor lhe dará toda a proteção para mantê-la afastada das garras da contaminação material.

Texto

brahmovāca
naitat svarūpaṁ bhavato ’sau padārtha-
bheda-grahaiḥ puruṣo yāvad īkṣet
jñānasya cārthasya guṇasya cāśrayo
māyāmayād vyatirikto matas tvam

Sinônimos

brahmā uvāca — o senhor Brahmā disse; na — não; etat — esta; svarūpam — forma eterna; bhavataḥ — Vossa; asau — esta outra; pada-artha — conhecimento; bheda — diferente; grahaiḥ — pela aquisição; puruṣaḥ — pessoa; yāvat — enquanto; īkṣet — quer ver; jñānasya — de conhecimento; ca — também; arthasya — do objetivo; guṇasya — dos instrumentos de conhecimento; ca — também; āśrayaḥ — a base; māyā-mayāt — de ser feita de energia material; vyatiriktaḥ — distinta; mataḥ — considerada; tvam — Vós.

Tradução

O senhor Brahmā disse: Meu querido Senhor, Vossa personalidade e Vossa forma eterna não podem ser compreendidas por ninguém que esteja tentando conhecer-Vos através dos diferentes processos de aquisição de conhecimento. Vossa posição é sempre transcendental à criação material, ao passo que a tentativa empírica de Vos compreender é material, assim como o são seus objetivos e instrumentos.

Comentário

SIGNIFICADO—Declara-se que o nome, as qualidades, as atividades, a parafernália etc. transcendentais da Suprema Personalidade de Deus não podem ser entendidos com nossos sentidos materiais. A tentativa dos filósofos empíricos de compreender a Verdade Absoluta através da especulação é sempre infrutífera, pois seu processo de entendimento, seu objetivo e os instrumentos com os quais eles tentam compreender a Verdade Absoluta são todos materiais. O Senhor é aprākṛta, ou seja, está além da criação do mundo material. Este fato também é aceito pelo grande impersonalista Śaṅkarācārya: nārāyaṇaḥ paro ’vvaktād aṇḍam avyakta-sambhavam. Avyakta, ou a causa material original, está além desta manifestação material e é a causa do mundo material. Como Nārāyaṇa, a Suprema Personalidade de Deus, está além do mundo material, não se pode especular sobre Ele por meio de qualquer método material. Deve-se compreender a Suprema Personalidade de Deus simplesmente pelo método transcendental da consciência de Kṛṣṇa. Confirma-se isso na Bhagavad-gītā (18.55). Bhaktyā mām abhijānāti: somente através do serviço devocional é que podemos compreender a forma transcendental do Senhor. A diferença entre os impersonalistas e os personalistas é que os impersonalistas, limitados por seus processos especulativos, não podem sequer aproximar-se da Suprema Personalidade de Deus, ao passo que os devotos agradam a Suprema Personalidade de Deus através de Seu transcendental serviço amoroso. Sevonmukhe hi: devido à atitude de serviço do devoto, o Senhor Se revela a ele. Os materialistas não podem compreender o Senhor Supremo, mesmo que Ele Se apresente diante delas. Na Bhagavad-gītā, portanto, o Senhor Kṛṣṇa condena tais materialistas, chamando-os de mūḍhas. Mūḍha significa “patife”. Na Gītā, afirma-se: “Somente patifes pensam que o Senhor Kṛṣṇa é uma pessoa comum. Eles não sabem qual é a posição do Senhor Kṛṣṇa ou o que são Suas potências transcendentais.” Ignorantes das potências transcendentais do Senhor, os impersonalistas zombam da pessoa do Senhor Kṛṣṇa, ao passo que os devotos, em virtude de sua atitude de serviço, podem compreendê-lO como a Personalidade de Deus. No décimo capítulo da Bhagavad-gītā, Arjuna também confirmou que é muito difícil compreender a personalidade do Senhor.

Texto

indra uvāca
idam apy acyuta viśva-bhāvanaṁ
vapur ānanda-karaṁ mano-dṛśām
sura-vidviṭ-kṣapaṇair udāyudhair
bhuja-daṇḍair upapannam aṣṭabhiḥ

Sinônimos

indraḥ uvāca — o rei Indra disse; idam — isto; api — certamente; acyuta — ó infalível; viśva-bhāvanam — para o bem-estar do universo; vapuḥ — forma transcendental; ānanda-karam — uma causa de prazer; manaḥ-dṛśām — para a mente e os olhos; sura-vidviṭ — invejosos de Vossos devotos; kṣapaṇaiḥ — pelo castigo; ud-āyudhaiḥ — com armas erguidas; bhuja-daṇḍaiḥ — com braços; upapannam — possuídos de; aṣṭabhiḥ — com oito.

Tradução

O rei Indra disse: Meu querido Senhor, Vossa forma transcendental com oito mãos e armas em cada uma delas aparece para o bem-estar de todo o universo, e é muito agradável para a mente e os olhos. Em tal forma, Vossa Onipotência está sempre preparado para castigar os demônios, que têm inveja de Vossos devotos.

Comentário

SIGNIFICADO—Compreende-se geralmente, a partir das escrituras reveladas, que o Senhor Viṣṇu aparece com quatro mãos, mas o Senhor Viṣṇu chegou a essa arena sacrificatória em particular com oito mãos. O rei Indra disse: “Apesar de estarmos acostumados a ver Vossa forma como o Viṣṇu de quatro mãos, este aparecimento com oito mãos é tão real quanto o da forma de quatro mãos.” Como o senhor Brahmā havia dito, compreender a forma transcendental do Senhor está além da capacidade dos sentidos. Em resposta a essa afirmação de Brahmā, o rei Indra disse que, embora a forma transcendental do Senhor não seja perceptível pelos sentidos materiais, é possível compreender Suas atividades e Sua forma transcendental. Mesmo um homem comum pode perceber os aspectos incomuns do Senhor, Suas atividades incomuns e beleza incomum. Por exemplo, quando o Senhor Kṛṣṇa apareceu tal qual um menino de seis ou sete anos de idade em Vṛndāvana, os habitantes dali refugiaram-se nEle. Certa vez, caíram torrentes de chuva, ao que o Senhor salvou os habitantes de Vṛndāvana, erguendo a colina Govardhana e fazendo-a repousar sobre o dedo mindinho de Sua mão esquerda por sete dias. Este aspecto incomum do Senhor deveria convencer inclusive pessoas materialistas que querem especular até o limite de capacidade de seus sentidos materiais. As atividades do Senhor também são agradáveis para a visão experimental, mas os impersonalistas não acreditarão em Sua identidade porque estudam a personalidade do Senhor comparando suas personalidades com a dEle. Como os homens neste mundo material não podem erguer uma colina, eles não acreditam que o Senhor possa fazê-lo. Eles aceitam as afirmações do Śrīmad-Bhāgavatam como alegóricas e tentam interpretá-las a seu próprio modo. De fato, contudo, o Senhor ergueu a colina na presença de todos os habitantes de Vṛndāvana, como corroboram grandes ācāryas e autores como Vyāsadeva e Nārada. Tudo sobre o Senhor – Suas atividades, passatempos e aspectos incomuns – deve ser aceito como é, e, dessa maneira, mesmo em nossa presente condição, poderemos compreender o Senhor. No caso deste verso, o rei Indra confirmou: “Vossa presença com oito mãos é tão boa quanto Vossa presença com quatro mãos.” Quanto a isto, não há dúvida.

Texto

patnya ūcuḥ
yajño ’yaṁ tava yajanāya kena sṛṣṭo
vidhvastaḥ paśupatinādya dakṣa-kopāt
taṁ nas tvaṁ śava-śayanābha-śānta-medhaṁ
yajñātman nalina-rucā dṛśā punīhi

Sinônimos

patnyaḥ ūcuḥ — as esposas dos realizadores do sacrifício disseram; yajñaḥ — o sacrifício; ayam — este; tava — Vosso; yajanāya — adorando; kena — por Brahmā; sṛṣṭaḥ — organizado; vidhvastaḥ — devastado; paśupatinā — pelo senhor Śiva; adya — hoje; dakṣakopāt – da ira contra Dakṣa; tam — isto; naḥ — nosso; tvam — Vós; śava-śayana — corpos mortos; ābha — como; śānta-medham — os animais do sacrifício que jazem mortos; yajña-ātman — ó Senhor do sacrifício; nalina — lótus; rucā — belos; dṛśā — pela visão de Vossos olhos; punīhi — santificai.

Tradução

As esposas dos realizadores do sacrifício disseram: Meu querido Senhor, este sacrifício foi organizado sob a instrução de Brahmā, mas, infelizmente, o senhor Śiva, irritando-se com Dakṣa, devastou todo o cenário, e, devido à sua ira, os animais destinados ao sacrifício jazem mortos. Portanto, as preparações do yajña foram perdidas. Agora, pelo olhar de Vossos olhos de lótus, a santidade desta arena sacrificatória poderá ser novamente invocada.

Comentário

SIGNIFICADO—Quando ofereciam animais em sacrifício, davam-lhes vida nova: era esse o propósito de haver animais ali. Oferecer um animal em sacrifício e dar-lhe o rejuvenescimento era a evidência da força de se entoar mantras. Infelizmente, quando o sacrifício de Dakṣa foi devastado pelo senhor Śiva, alguns dos animais foram mortos. (Um deles foi morto justamente para substituir a cabeça de Dakṣa.) Seus corpos jaziam ali, e a arena sacrificatória se transformara num crematório. Assim, o verdadeiro propósito do yajña se perdeu.

O Senhor Viṣṇu, sendo o objetivo final de tais cerimônias sacrificatórias, foi solicitado pelas esposas dos sacerdotes a lançar Seu olhar sobre a arena de yajña com Sua misericórdia imotivada para que o trabalho rotineiro do yajña pudesse continuar. Isso significa que não se deve matar animais desnecessariamente. Eles eram usados para provar a força dos mantras e deveriam ser rejuvenescidos pelo uso dos mantras. Não deveriam ser mortos, como o foram pelo senhor Śiva, para substituir a cabeça de Dakṣa pela cabeça de um animal. Era agradável ver um animal sacrificado e rejuvenescido, e essa atmosfera agradável se perdera. As esposas dos sacerdotes pediram que os animais fossem ressuscitados pelo olhar do Senhor Viṣṇu para tornar o yajña agradável.

Texto

ṛṣaya ūcuḥ
ananvitaṁ te bhagavan viceṣṭitaṁ
yad ātmanā carasi hi karma nājyase
vibhūtaye yata upasedur īśvarīṁ
na manyate svayam anuvartatīṁ bhavān

Sinônimos

ṛṣayaḥ — os sábios; ūcuḥ — oraram; ananvitam — admiráveis; te — Vossas; bhagavan — ó possuidor de todas as opulências; viceṣṭitam — atividades; yat — as quais; ātmanā — através de Vossas potências; carasi — Vós executais; hi — certamente; karma — a tais atividades; na ajyase — não estais apegado; vibhūtaye — pela misericórdia dela; yataḥ — de quem; upaseduḥ — adorada; īśvarīm — Lakṣmī, a deusa da fortuna; na manyate — não estais apegado; svayam — Vós em pessoa; anuvartatīm — a Vossa serva obediente (Lakṣmī); bhavān — Vossa Onipotência.

Tradução

Os sábios oraram: Querido Senhor, Vossas atividades são admirabilíssimas, e, embora façais tudo através de Vossas diferentes potências, não estais apegado de modo algum a tais atividades. Não estais sequer apegado à deusa da fortuna, que é adorada pelos grandes semideuses como Brahmā, que oram para obter a misericórdia dela.

Comentário

SIGNIFICADO—Declara-se na Bhagavad-gītā que o Senhor não deseja obter resultado algum a partir de Suas maravilhosas atividades, tampouco tem necessidade de executá-las. De qualquer modo, todavia, para dar exemplo às pessoas em geral, Ele às vezes age, e essas atividades são muito admiráveis. Ele não está apegado a nada. Na māṁ karmāṇi limpanti: embora aja de forma muito admirável, Ele não está nem um pouco apegado a nada (Bhagavad-gītā 4.14). Ele é autossuficiente. O exemplo dado aqui é que a deusa da fortuna, Lakṣmī, está sempre ocupada a serviço do Senhor, mas, ainda assim, Ele não está apegado a ela. Mesmo grandes semideuses como Brahmā adoram a deusa da fortuna para ganhar seus favores, mas, embora o Senhor seja adorado por muitas centenas e milhares de deusas da fortuna, Ele não é de modo algum apegado a nenhuma delas. Esta distinção a respeito da elevada posição transcendental do Senhor é especificamente mencionada pelos grandes sábios: Ele não é como a entidade viva comum, que está apegada aos resultados de atividades piedosas.

Texto

siddhā ūcuḥ
ayaṁ tvat-kathā-mṛṣṭa-pīyūṣa-nadyāṁ
mano-vāraṇaḥ kleśa-dāvāgni-dagdhaḥ
tṛṣārto ’vagāḍho na sasmāra dāvaṁ
na niṣkrāmati brahma-sampannavan naḥ

Sinônimos

siddhāḥ — os Siddhas; ūcuḥ — oraram; ayam — isto; tvat-kathā — Vossos passatempos; mṛṣṭa — puros; pīyūṣa — de néctar; nadyām — no rio; manaḥ — da mente; vāraṇaḥ — o elefante; kleśa — sofrimentos; dāva-agni — pelo incêndio florestal; dagdhaḥ — queimado; tṛṣā — sede; ārtaḥ — aflito; avagāḍhaḥ — estando mergulhadas; na sasmāra — não se lembra; dāvam — o incêndio florestal ou os sofrimentos; na niṣkrāmati — não saído; brahma — o Absoluto; sampanna-vat — como tendo mergulhado; naḥ — nossa.

Tradução

Os Siddhas oraram: Assim como um elefante que sofreu em um incêndio florestal pode esquecer-se de todos os seus incômodos entrando num rio, nossas mentes, ó Senhor, sempre mergulham no rio nectáreo de Vossos passatempos transcendentais, sem que jamais desejem deixar tal bem-aventurança transcendental, que é tão boa como o prazer de mergulhar no Absoluto.

Comentário

SIGNIFICADO—Esta afirmação é dos Siddhas, os habitantes de Siddhaloka, onde as oito classes de perfeições materiais são completas. Os habitantes de Siddhaloka têm pleno controle sobre as oito espécies de perfeições do yoga, mas a afirmação deles indica que são devotos puros. Eles sempre mergulham no rio nectáreo de ouvir os passatempos do Senhor. Ouvir os passatempos do Senhor chama-se kṛṣṇa-kathā. De modo semelhante, Prahlāda Mahārāja afirma que aqueles que estão sempre imersos no oceano do néctar da descrição dos passatempos do Senhor são liberados e não têm medo da condição material de vida. Os Siddhas dizem que a mente de uma pessoa comum é cheia de ansiedades. Apresenta-se aqui o exemplo do elefante que sofreu em um incêndio florestal e que entra num rio em busca de alívio. Se as pessoas que sofrem no fogo florestal desta existência material simplesmente entrassem no rio nectáreo da descrição dos passatempos do Senhor, elas se esqueceriam de todos os incômodos da dolorosa existência material. Os Siddhas não se importam com atividades fruitivas, tais como execuções de sacrifícios e obtenção de bons resultados. Eles simplesmente mergulham nas discussões transcendentais dos passatempos do Senhor. Isso os faz inteiramente felizes, sem se importarem com atividades piedosas ou impiedosas. Aqueles que estão sempre em consciência de Kṛṣṇa não necessitam executar nenhuma espécie de sacrifícios, ou atividades, de natureza piedosa ou ímpia. A consciência de Kṛṣṇa é por si só completa, pois inclui todos os processos louvados nas escrituras védicas.

Texto

yajamāny uvāca
svāgataṁ te prasīdeśa tubhyaṁ namaḥ
śrīnivāsa śriyā kāntayā trāhi naḥ
tvām ṛte ’dhīśa nāṅgair makhaḥ śobhate
śīrṣa-hīnaḥ ka-bandho yathā puruṣaḥ

Sinônimos

yajamānī — a esposa de Dakṣa; uvāca — orou; su-āgatam — aparecimento auspicioso; te — Vosso; prasīda — ficai satisfeito; īśa — meu querido Senhor; tubhyam — a Vós; namaḥ — respeitosas reverências; śrīnivāsa — ó morada da deusa da fortuna; śriyā — com Lakṣmi; kāntayā — Vossa esposa; trāhi — protegei; naḥ — a nós; tvām — Vós; ṛte — sem; adhīśa — ó controlador supremo; na — não; aṅgaiḥ — com os membros do corpo; makhaḥ — a arena de sacrifício; śobhate — é bela; śīrṣa- hīnaḥ — sem a cabeça; ka-bandhaḥ — que possui somente um corpo; yathā — como; puruṣaḥ — uma pessoa.

Tradução

A esposa de Dakṣa orou da seguinte maneira: Meu querido Senhor, é uma imensa fortuna que tenhais aparecido nesta arena de sacrifício. Ofereço-Vos minhas respeitosas reverências e peço-Vos que fiqueis satisfeito nesta ocasião. A arena de sacrifício não é bela sem Vós, assim como um corpo não é belo sem a cabeça.

Comentário

SIGNIFICADO—Outro nome do Senhor Viṣṇu é Yajñeśvara. Na Bhagavad-gītā, afirma-se que todas as atividades devem executar-se como viṣṇu-yajña, para o prazer do Senhor Viṣṇu. A menos que O satisfaçamos, tudo o que fizermos será causa de nosso cativeiro no mundo material. A esposa de Dakṣa confirma isso aqui: “Sem Vossa presença, a grandeza desta cerimônia sacrificatória é inútil, assim como um corpo sem a cabeça, por mais decorado que esteja, é inútil.” A comparação é igualmente aplicável ao corpo social. A civilização material se orgulha muito de ser avançada, mas, na verdade, é o tronco inútil de um corpo sem cabeça. Sem consciência de Kṛṣṇa, sem um entendimento de Viṣṇu, a Suprema Personalidade de Deus, qualquer avanço numa civilização, não importa quão sofisticado seja, não tem valor algum. Encontramos a seguinte afirmação no Hari-bhakti-sudhodaya (3.11):

bhagavad-bhakti-hīnasya
jātiḥ śāstraṁ japas tapaḥ
aprāṇasyaiva dehasya
maṇḍanaṁ loka-rañjanam

Isto quer dizer que, às vezes, quando um amigo ou parente morre, especialmente entre homens de classe inferior, o corpo morto é enfeitado. Vestido e adornado, o corpo é levado em procissão. Esse tipo de decoração do cadáver não tem valor real porque a força viva já se foi. De modo semelhante, qualquer aristocracia, qualquer prestígio social ou qualquer avanço de civilização material sem consciência de Kṛṣṇa não valem mais do que a decoração de um corpo morto. A esposa de Dakṣa chamava-se Prasūti, e era filha de Svāyambhuva Manu. Sua irmã, Devahūti, casara-se com Kardama Muni, e Kapiladeva, a Personalidade de Deus, tornara-Se seu filho. Prasūti, então, era tia do Senhor Viṣṇu. Ela pediu o favor do Senhor Viṣṇu de maneira afetuosa; uma vez que era tia dEle, ela buscava um favor especial. Outro pormenor significativo deste verso é que o Senhor é louvado com a deusa da fortuna. Sempre que se adora o Senhor Viṣṇu, naturalmente consegue-se o favor da deusa da fortuna. O Senhor Viṣṇu é chamado de amṛta, transcendental. Os semideuses, incluindo Brahmā e o senhor Śiva, foram produzidos após a criação, mas o Senhor Viṣṇu existia antes da criação. Portanto, Ele é chamado de amṛta. O Senhor Viṣṇu é adorado com Sua energia interna pelos vaiṣṇavas. Prasūti, a esposa de Dakṣa, implorou ao Senhor que transformasse os sacerdotes em vaiṣṇavas ao invés de simples trabalhadores fruitivos que executam sacrifícios em troca de benefícios materiais.

Texto

lokapālā ūcuḥ
dṛṣṭaḥ kiṁ no dṛgbhir asad-grahais tvaṁ
pratyag-draṣṭā dṛśyate yena viśvam
māyā hy eṣā bhavadīyā hi bhūman
yas tvaṁ ṣaṣṭhaḥ pañcabhir bhāsi bhūtaiḥ

Sinônimos

loka pālāḥ — os governantes dos diversos planetas; ūcuḥ — disseram; dṛṣṭaḥ — visto; kim — se; naḥ — por nós; dṛgbhiḥ — pelos sentidos materiais; asat-grahaiḥ — revelando a manifestação cósmica; tvam — Vós; pratyak-draṣṭā — testemunha interior; dṛśyate — é visto; yena — por quem; viśvam — o universo; māyā — mundo material; hi — porque; eṣā — este; bhavadīyā — Vosso; hi — certamente; bhūman — ó possuidor do universo; yaḥ — porque; tvam — Vós; ṣaṣṭhaḥ — o sexto; pañcabhiḥ — com os cinco; bhāsi — apareceis; bhūtaiḥ — com os elementos.

Tradução

Os governantes de vários planetas falaram como segue: Querido Senhor, acreditamos somente em nossa percepção direta. Nós Vos vemos, portanto, como uma criação do mundo material. Mas, nas atuais circunstâncias, não sabemos se realmente Vos estamos vendo com nossos sentidos materiais. Com nossos sentidos materiais podemos apenas perceber a manifestação cósmica, mas Vós estais além dos cinco elementos. Vós sois o sexto.

Comentário

SIGNIFICADO—Os governantes dos diversos planetas são decerto materialmente opulentos e muito arrogantes. Tais pessoas não conseguem compreender a eterna forma transcendental do Senhor. Na Brahma-saṁhitā, afirma-se que somente pessoas cujos olhos são ungidos com o amor a Deus podem ver a Personalidade de Deus a cada passo de suas atividades. Também nas orações de Kuntī (Śrīmad-Bhāgavatam 1.8.26), afirma-se que somente aqueles que são akiñcana-gocaram, que não são envaidecidos materialmente, podem ver a Suprema Personalidade de Deus; os demais se confundem e não podem sequer pensar na Verdade Absoluta.

Texto

yogeśvarā ūcuḥ
preyān na te ’nyo ’sty amutas tvayi prabho
viśvātmanīkṣen na pṛthag ya ātmanaḥ
athāpi bhaktyeśa tayopadhāvatām
ananya-vṛttyānugṛhāṇa vatsala

Sinônimos

yoga-īśvarāḥ — os grandes místicos; ūcuḥ — disseram; preyān — muito queridas; na — não; te — de Vós; anyaḥ — outro; asti — há; amutaḥ — disto; tvayi — em Vós; prabho — querido Senhor; viśva-ātmani — na Superalma de todas as entidades vivas; īkṣet — veem; na — não; pṛthak — diferente; yaḥ — quem; ātmanaḥ — as entidades vivas; atha api — tanto mais; bhaktyā — com devoção; īśa — ó Senhor; tayā — com isto; upadhāvatām — daqueles que adoram; ananya-vṛttyā — infalível; anugṛhāṇa — favor; vatsala — ó Senhor favorável.

Tradução

Os grandes místicos disseram: Querido Senhor, as pessoas que Vos veem como não diferente delas próprias, sabendo que sois a Superalma de todas as entidades vivas, certamente são muitíssimo queridas para Vós. Sois muito favorável àqueles que se ocupam em serviço devocional, aceitando-Vos como o Senhor e a eles próprios como servos. Por Vossa misericórdia, estais sempre inclinado a favor deles.

Comentário

SIGNIFICADO—Indica-se neste verso que os monistas e os grandes místicos conhecem a Suprema Personalidade de Deus como o Uno. Esta unidade não é a falsa compreensão de que uma entidade viva é igual sob todos os aspectos à Suprema Personalidade de Deus. Este monismo baseia-se em conhecimento puro, como se descreve e confirma na Bhagavad-gītā (7.17): priyo hi jñānino ’tyartham ahaṁ sa ca mama priyaḥ. O Senhor diz que aqueles que são avançados em conhecimento transcendental e conhecem a ciência da consciência de Kṛṣṇa são-Lhe muito queridos, e Ele também lhes é muito querido. Aqueles que realmente têm conhecimento perfeito da ciência de Deus sabem que as entidades vivas são a energia superior do Senhor Supremo. Afirma-se isso na Bhagavad-gītā, sétimo capítulo: a energia material é inferior, e as entidades vivas são a energia superior. A energia e o energético não são diferentes; portanto, as energias possuem as mesmas qualidades que o energético. Pessoas que têm pleno conhecimento da Personalidade de Deus, analisando Suas diferentes energias e conhecendo suas próprias posições constitucionais, certamente são muitíssimo queridas pelo Senhor. Entretanto, as pessoas que talvez nem sejam versadas no conhecimento da Personalidade Suprema, mas que sempre pensam no Senhor com amor e fé, sentindo que Ele é grande e que elas são Suas partes integrantes, eternamente Seus servidores, são ainda mais favorecidas por Ele. A importância específica deste verso é que o Senhor é chamado de vatsala. Vatsala significa “sempre disposto favoravelmente”. O Senhor é chamado de bhakta-vatsala. O Senhor é famoso como bhakta-vatsala, o que significa que Ele está sempre favoravelmente inclinado aos devotos, ao passo que nunca é chamado de jñāni-vatsala em nenhum trecho da literatura védica.

Texto

jagad-udbhava-sthiti-layeṣu daivato
bahu-bhidyamāna-guṇayātma-māyayā
racitātma-bheda-mataye sva-saṁsthayā
vinivartita-bhrama-guṇātmane namaḥ

Sinônimos

jagat — o mundo material; udbhava — criação; sthiti — manutenção; layeṣu — em aniquilação; daivataḥ — destino; bahu — muitos; bhidyamāna — sendo variadas; guṇayā — pelas qualidades materiais; ātma-māyayā — por Sua energia material; racita — produzido; ātma — nas entidades vivas; bheda-mataye — que produziu diferentes inclinações; sva-saṁsthayā — por Sua potência interna; vinivartita — fez com que parasse; bhrama — interação; guṇa — dos modos materiais; ātmane — a Ele sob Sua forma pessoal; namaḥ — reverências.

Tradução

Oferecemos nossas respeitosas reverências ao Supremo, que cria variedades de manifestações e as põe sob o encanto das três qualidades do mundo material a fim de criá-las, mantê-las e aniquilá-las. Ele próprio não está sob o controle da energia externa; sob Seu aspecto pessoal, Ele é inteiramente desprovido da manifestação variada de qualidades materiais, não estando sob a ilusão da falsa identificação.

Comentário

SIGNIFICADO—Descrevem-se duas situações neste verso. Uma é a criação, manutenção e aniquilação do mundo material, e a outra é a própria morada do Senhor. Também existe qualidade na própria morada do Senhor, o reino de Deus. Aqui se afirma que Goloka é a Sua situação pessoal. Também há qualidades em Goloka, mas essas qualidades não são divididas em criação, manutenção e aniquilação. Na energia externa, a interação das três qualidades possibilita que as coisas sejam criadas, mantidas e aniquiladas. Porém, no mundo espiritual, ou no reino de Deus, tal interação não se manifesta, uma vez que tudo é eterno, senciente e bem-aventurado. Há uma classe de filósofos que interpretam erroneamente o aparecimento da Personalidade de Deus dentro deste mundo material. Eles têm a ideia de que, quando a Suprema Personalidade de Deus aparece, Ele está sob o encanto das três qualidades, como todas as demais entidades vivas que aparecem neste mundo material. Esse é o engano deles; como se afirma claramente aqui (sva-saṁsthayā), Ele é transcendental a todas essas qualidades materiais através de Sua potência interna. De modo semelhante, na Bhagavad-gītā, o Senhor diz: “Eu apareço através de Minha potência interna.” As potências interna e externa estão sob o controle do Supremo, de modo que Ele não fica sob o controle de nenhuma dessas potências. Ao contrário, tudo está sob Seu controle. A fim de manifestar Seu nome, forma, qualidade, passatempos e parafernália transcendentais, Ele faz Sua energia interna agir. Devido à variedade da potência externa, manifestam-se muitos semideuses qualitativos, começando com Brahmā e o senhor Śiva, e as pessoas sentem-se atraídas por esses semideuses de acordo com suas próprias qualidades materiais. Contudo, quando alguém é transcendental ou supera as qualidades materiais, ele simplesmente se fixa na adoração à Personalidade Suprema. Explica-se esse fato na Bhagavad-gītā: qualquer pessoa ocupada em serviço ao Senhor já é transcendental à variedade e à interação das três qualidades materiais. Em suma, as almas condicionadas estão sendo empurradas pelas ações e reações das qualidades materiais, que criam uma diferenciação de energias. No mundo espiritual, porém, a pessoa adorável é o Senhor Supremo, e ninguém mais.

Texto

brahmovāca
namas te śrita-sattvāya
dharmādīnāṁ ca sūtaye
nirguṇāya ca yat-kāṣṭhāṁ
nāhaṁ vedāpare ’pi ca

Sinônimos

brahma — os Vedas personificados; uvāca — disseram; namaḥ — respeitosas reverências; te — a Vós; śrita-sattvāya — o abrigo da qualidade da bondade; dharma-ādīnām — de toda a religião, austeridade e penitência; ca — e; sūtaye — a fonte; nirguṇāya — transcendental às qualidades materiais; ca — e; yat — de quem (do Senhor Supremo); kāṣṭhām — a situação; na — não; aham — eu; veda — conheço; apare — outros; api — certamente; ca — e.

Tradução

Os Vedas personificados disseram: Oferecemos nossas respeitosas reverências a Vós, o Senhor, o abrigo da qualidade da bondade e, portanto, a fonte de toda a religião, austeridade e penitência, pois sois transcendental a todas as qualidades materiais e ninguém Vos conhece ou conhece a Vossa verdadeira situação.

Comentário

SIGNIFICADO—No mundo material, existe a tríade das três qualidades materiais. O Senhor Viṣṇu aceita a superintendência da qualidade da bondade, que é a fonte da religião, conhecimento, austeridade, renúncia, opulência etc. Por causa disso, paz, prosperidade, conhecimento e religião verdadeiros podem ser obtidos quando as entidades vivas estão sob o controle da qualidade da bondade no mundo material. Logo que elas caem sob o controle das outras duas qualidades, a saber, paixão e ignorância, suas precárias vidas condicionadas tornam-se intoleráveis. Mas o Senhor Viṣṇu, em Sua posição original, é sempre nirguṇa, que significa que Ele é transcendental a essas qualidades materiais. Guṇa significa “qualidade”, e nir, “negação”. Isso não indica, entretanto, que Ele não tenha qualidades; Ele tem qualidades transcendentais pelas quais aparece e manifesta Seus passatempos. Os estudantes dos Vedas bem como os grandes e poderosos semideuses, como Brahmā e Śiva, desconhecem a manifestação qualitativa, transcendental e positiva. Na verdade, as qualidades transcendentais manifestam-se somente para os devotos. Como se confirma na Bhagavad-gītā, simplesmente desempenhando serviço devocional, pode-se entender a posição transcendental do Senhor Supremo. Aqueles que estão no modo da bondade podem entrar parcialmente na compreensão transcendental, mas, segundo aconselha a Bhagavad-gītā, é preciso superar isso. Os princípios védicos se baseiam nas três qualidades dos modos materiais. Devemos transcender as três qualidades, após o que poderemos situar-nos em vida espiritual pura e simples.

Texto

agnir uvāca
yat-tejasāhaṁ susamiddha-tejā
havyaṁ vahe svadhvara ājya-siktam
taṁ yajñiyaṁ pañca-vidhaṁ ca pañcabhiḥ
sviṣṭaṁ yajurbhiḥ praṇato ’smi yajñam

Sinônimos

agniḥ — o deus do fogo; uvāca — disse; yat-tejasā — por cuja refulgência; aham — eu; su-samiddha-tejāḥ — tão luminoso como o fogo abrasador; havyam — oferendas; vahe — estou aceitando; su-adhvare — no sacrifício; ājya-siktam — misturadas com manteiga; tam — isto; yajñiyam — o protetor do sacrifício; pañca-vidham — cinco; ca — e; pañcabhiḥ — por cinco; su-iṣṭam — adorado; yajurbhiḥ — hinos védicos; praṇataḥ — ofereço respeitosas reverências; asmi — eu; yajñam — a Yajña (Viṣṇu).

Tradução

O deus do fogo disse: Meu querido Senhor, ofereço-Vos minhas respeitosas reverências porque, através de Vosso favor, sou tão luminoso como o fogo abrasador e aceito as oferendas misturadas com manteiga e oferecidas em sacrifício. Os cinco tipos de oferendas de acordo com o Yajur Veda são todos Vossas diferentes energias, e sois adorado por cinco espécies de hinos védicos. Sacrifício quer dizer Vossa Suprema Personalidade de Deus.

Comentário

SIGNIFICADO—A Bhagavad-gītā diz claramente que se deve executar yajña para o Senhor Viṣṇu. O Senhor Viṣṇu tem mil nomes transcendentais que são populares, um dos quais é Yajña. Afirma-se claramente que tudo deve ser feito para a satisfação de Yajña, ou Viṣṇu. Todas as outras ações que uma pessoa possa executar são apenas causas de seu cativeiro. Todos devem executar yajña de acordo com os hinos védicos. Como se afirma nas Upaniṣads, o fogo, o altar, a auspiciosa lua cheia, o período de quatro meses chamado cāturmāsya, o animal sacrificatório e a bebida chamada soma são requisitos necessários, bem como o são os hinos específicos mencionados nos Vedas e compostos de quatro letras. Um desses hinos é o seguinte: āśrāvayeti catur-akṣaraṁ astu śrauṣaḍ iti catur-akṣaraṁ yajeti dvābhyāṁ ye yajāmahaḥ. Estes mantras, cantados de acordo com as literaturas śruti e smṛti, destinam-se unicamente a satisfazer o Senhor Viṣṇu. Para a liberação daqueles que são materialmente condicionados e apegados ao gozo material, recomenda-se a execução de yajñas e a observância das regras e regulações das quatro divisões da sociedade e da vida espiritual. O Viṣṇu Purāṇa diz que, oferecendo sacrifício a Viṣṇu, podemos libertar-nos gradualmente. Toda a meta da vida, portanto, é satisfazer o Senhor Viṣṇu. Isto é yajña. Qualquer pessoa que esteja em consciência de Kṛṣṇa dedica sua vida à satisfação de Kṛṣṇa, a origem de todas as formas de Viṣṇu, e, oferecendo adoração e prasāda diariamente, torna-se o melhor executor de yajña. No Śrīmad-Bhāgavatam, afirma-se claramente que, nesta era de Kali, a única realização bem-sucedida de yajña, ou sacrifício, é yajñaiḥ saṅkīrtana prāyaiḥ: o melhor tipo de sacrifício é simplesmente cantar Hare Kṛṣṇa, Hare Kṛṣṇa, Kṛṣṇa Kṛṣṇa, Hare Hare/ Hare Rāma, Hare Rāma, Rāma Rāma, Hare Hare. Este yajña é oferecido diante da forma do Senhor Caitanya, assim como outros yajñas são oferecidos diante da forma do Senhor Viṣṇu. Estas recomendações encontram-se no décimo primeiro canto do Śrīmad-Bhāgavatam. Além disso, essa realização de yajña confirma que o Senhor Caitanya Mahāprabhu é o próprio Viṣṇu. Assim como o Senhor Viṣṇu apareceu no yajña de Dakṣa muitíssimo tempo atrás, o Senhor Caitanya apareceu nesta era para aceitar nosso saṅkīrtana-yajña.

Texto

devā ūcuḥ
purā kalpāpāye sva-kṛtam udarī-kṛtya vikṛtaṁ
tvam evādyas tasmin salila uragendrādhiśayane
pumān śeṣe siddhair hṛdi vimṛśitādhyātma-padaviḥ
sa evādyākṣṇor yaḥ pathi carasi bhṛtyān avasi naḥ

Sinônimos

devāḥ — os semideuses; ūcuḥ — disseram; purā — anteriormente; kalpa-apāye — na devastação do kalpa; sva-kṛtam — autoproduzida; udarī-kṛtya — tendo recolhido dentro de Vosso abdômen; vikṛtam — efeito; tvam — Vós; eva — certamente; ādyaḥ — original; tasmin — naquela; salile — água; uraga-indra — sobre Śeṣa; adhiśayane — no leito; pumān — personalidade; śeṣe — repousando; siddhaiḥ — pelas almas liberadas (como Sanaka etc.); hṛdi — no coração; vimṛśita — meditavam em; adhyātma-padaviḥ — o caminho da especulação filosófica; saḥ — Ele; eva — certamente; adya — agora; akṣṇoḥ — de ambos os olhos; yaḥ — quem; pathi — no caminho; carasi — Vós Vos moveis; bhṛtyān — servos; avasi — protegei; naḥ — a nós.

Tradução

Os semideuses disseram: Querido Senhor, anteriormente, quando houve uma devastação, Vós conservastes todas as diferentes energias da manifestação material. Naquela ocasião, todos os habitantes dos planetas superiores, representados por almas liberadas tais como Sanaka, meditavam em Vós mediante a especulação filosófica. Vós sois, portanto, a pessoa original, e repousais na água da devastação sobre o leito da serpente Śeṣa. Agora, hoje, Vós sois visível a nós, que somos todos Vossos servos. Por favor, protegei-nos.

Comentário

SIGNIFICADO—A devastação indicada neste verso é a devastação parcial dos planetas inferiores dentro do universo, durante o sono de Brahmā. Os sistemas planetários superiores, começando com Maharloka, Janaloka e Tapoloka, não são inundados no momento desta devastação. O Senhor é o criador, como se indica neste verso, porque as energias da criação manifestam-se através de Seu corpo, e, após a aniquilação, Ele conserva toda a energia dentro de Seu abdômen.

Outro ponto significativo neste verso é que os semideuses disseram: “Todos nós somos Vossos servos (bhṛtyān). Dai-nos Vossa proteção.” Os semideuses dependem da proteção de Viṣṇu – eles não são independentes. A Bhagavad-gītā, portanto, condena a adoração a semideuses por esta não ser necessária e afirma claramente que somente aqueles que perderam a razão pedem favores aos semideuses. De um modo geral, se alguém tiver desejos materiais a serem satisfeitos, poderá pedir a Viṣṇu ao invés de recorrer aos semideuses. Aqueles que adoram os semideuses não são muito inteligentes. Além disso, os semideuses dizem: “Somos Vossos servos eternos.” Deste modo, aqueles que são servos, ou devotos do Senhor, não estão muito interessados em atividades fruitivas, na execução dos yajñas prescritos, ou em especulação mental. Eles apenas servem à Suprema Personalidade de Deus sinceramente, com amor e fé, realizando tudo com essa atitude de serviço amoroso, e o Senhor dá proteção direta a devotos assim. Na Bhagavad-gītā, o Senhor Kṛṣṇa diz: “Simplesmente rende-te a Mim e Eu te livrarei de todas as reações às atividades pecaminosas.” Este mundo material é criado de tal forma que somos forçados a agir pecaminosamente, consciente ou inconscientemente, e, a não ser que dediquemos nossa vida a Viṣṇu, somos obrigados a sofrer todas as reações de atividades pecaminosas. Uma pessoa, porém, que se rende e dedica sua vida ao serviço do Senhor recebe proteção direta do Senhor. Ela não teme sofrer por causa de atividades pecaminosas, tampouco deseja, voluntária ou involuntariamente, fazer algo que seja pecaminoso.

Texto

gandharvā ūcuḥ
aṁśāṁśās te deva marīcy-ādaya ete
brahmendrādyā deva-gaṇā rudra-purogāḥ
krīḍā-bhāṇḍaṁ viśvam idaṁ yasya vibhūman
tasmai nityaṁ nātha namas te karavāma

Sinônimos

gandharvāḥ — os Gandharvas; ūcuḥ — disseram; aṁśa-aṁśāḥ — partes integrantes de Vosso corpo; te — Vosso; deva — querido Senhor; marīci-ādayaḥ — Marīci e os grandes sábios; ete — esses; brahma-indra-ādyāḥ — encabeçados por Brahmā e Indra; deva-gaṇāḥ — os semideuses; rudra-purogāḥ — tendo o senhor Śiva como seu líder; krīḍā-bhāṇḍam — um brinquedo; viśvam — toda a criação; idam — esta; yasya — de quem; vibhūman — o Supremo, o Grande, o Poderoso; tasmai — a Ele; nityam — sempre; nātha — ó Senhor; namaḥ — respeitosas reverências; te — a Vós; karavāma — oferecemos.

Tradução

Os Gandharvas disseram: Querido Senhor, todos os semideuses, incluindo o senhor Śiva, o senhor Brahmā, Indra e Marīci e os grandes sábios, são apenas partes integrantes diferenciadas de Vosso corpo. Vós sois o Supremo, o Grande, o Poderoso; toda a criação é como um brinquedo para Vós. Nós sempre Vos aceitamos como a Suprema Personalidade de Deus, e Vos oferecemos nossas respeitosas reverências.

Comentário

SIGNIFICADO—Na Brahma-saṁhitā, declara-se que Kṛṣṇa é a Suprema Personalidade de Deus. Pode haver muitos deuses, desde Brahmā, o senhor Śiva, Indra e Candra, até os governantes dos sistemas planetários inferiores, os presidentes, ministros, secretários e reis. De fato, qualquer pessoa pode pensar que é Deus. Essa é a falsa e arrogante convicção da vida material. Na verdade, Viṣṇu é o Senhor Supremo, mas ainda existe alguém acima de Viṣṇu, pois Viṣṇu é também a porção plenária de uma parte de Kṛṣṇa. Este verso se refere a isso através da palavra aṁśāṁśāḥ, que diz respeito à parte integrante de uma parte integrante. Existem versos semelhantes no Caitanya-caritāmṛta que indicam que as partes integrantes do Senhor Supremo se expandem novamente em outras partes integrantes. Como se descreve no Śrīmad-Bhāgavatam, há muitas manifestações de Viṣṇu e muitas manifestações de entidades vivas. As manifestações de Viṣṇu chamam-se svāṁśa, manifestações parciais, e as entidades vivas são chamadas vibhinnāṁśa. Os semideuses como Brahmā e Indra são promovidos a tão elevadas posições através de atividades piedosas e austeridades, mas, na verdade, Viṣṇu, ou Kṛṣṇa, é o mestre de todos. No Caitanya-caritāmṛta, afirma-se que ekale īśvara kṛṣṇa, āra saba, bhṛtya. Isso significa que somente Kṛṣṇa é a Suprema Personalidade de Deus, e todos os demais, mesmo o viṣṇu-tattva e certamente as entidades vivas, são Seus servos. Baladeva é a expansão imediata de Kṛṣṇa. Ele também Se ocupa a serviço de Kṛṣṇa, e certamente as entidades vivas comuns estão servindo-O. Todos são criados, constitucionalmente, para servir a Kṛṣṇa. Nesta passagem, os Gandharvas reconhecem que, embora os semideuses possam apresentar-se como o Supremo, eles não são supremos de verdade. A real supremacia pertence a Kṛṣṇa. Kṛṣṇas tu bhagavān svayam é a afirmação do Śrīmad-Bhāgavatam: “Kṛṣṇa é o único Senhor Supremo.” Somente a adoração a Kṛṣṇa, portanto, inclui a adoração a todas as partes integrantes, assim como regar a raiz de uma árvore também faz com que todos os galhos, folhas e flores sejam regados.

Texto

vidyādharā ūcuḥ
tvan-māyayārtham abhipadya kalevare ’smin
kṛtvā mamāham iti durmatir utpathaiḥ svaiḥ
kṣipto ’py asad-viṣaya-lālasa ātma-mohaṁ
yuṣmat-kathāmṛta-niṣevaka udvyudasyet

Sinônimos

vidyādharāḥ — os Vidyādharas; ūcuḥ — disseram; tvat-māyayā — por Vossa potência externa; artham — o corpo humano; abhipadya — após obter; kalevare — no corpo; asmin — neste; kṛtvā — tendo se identificado falsamente; mama — meu; aham — eu; iti — assim; durmatiḥ — a pessoa ignorante; utpathaiḥ — por caminhos errados; svaiḥ — por seus próprios pertences; kṣiptaḥ — distraída; api — mesmo; asat — temporária; viṣaya-lālasaḥ — tendo sua felicidade em objetos dos sentidos; ātma-moham — a ilusão de pensar que o corpo é o eu; yuṣmat — Vosso; kathā — temas; amṛta — néctar; niṣevakaḥ — saboreando; ut — à longa distância; vyudasyet — pode libertar-se.

Tradução

Os Vidyādharas disseram: Querido Senhor, esta forma de corpo humano destina-se a alcançar o mais elevado objetivo de perfeição, mas, impelida por Vossa energia externa, a entidade viva identifica-se falsamente com seu corpo e com a energia material e, em razão disso, influenciada por māyā, ela deseja ser feliz através do gozo material. Ela se desorienta e sempre se sente atraída pela temporária felicidade ilusória. Porém, Vossas atividades transcendentais são tão poderosas que, se alguém se dedica a ouvir e cantar tais temas, pode libertar-se da ilusão.

Comentário

SIGNIFICADO—A forma humana de vida chama-se arthada por proporcionar um corpo que pode muito bem ajudar a alma corporificada a alcançar a perfeição máxima. Prahlāda Mahārāja disse que, apesar de ser temporário, o corpo pode dar-nos a mais elevada conquista de perfeição. No processo de evolução do grau inferior ao superior de vida, a forma humana de vida é uma grande dádiva. Contudo, māyā é tão forte que, apesar de recebermos esta grande dádiva da forma humana de vida, somos influenciados pela temporária felicidade material, esquecendo-nos de nossa meta de vida. Deixamo-nos atrair por coisas que deixarão de existir. O início de semelhante atração é o corpo temporário. Nesta horrível condição de vida, existe apenas um meio de liberação: nós nos ocuparmos nas atividades de canto e audição transcendentais do santo nome do Senhor Supremo: Hare Kṛṣṇa, Hare Kṛṣṇa, Kṛṣṇa Kṛṣṇa, Hare Hare/ Hare Rāma, Hare Rāma, Rāma Rāma, Hare Hare. As palavras yuṣmat-kathāmṛta-niṣevakaḥ significam “aqueles que se ocupam em saborear o néctar dos temas de Vossa Onipotência.” Dois são os livros narrativos que relatam especialmente as palavras e atividades de Kṛṣṇa: a Bhagavad-gītā, a instrução dada por Kṛṣṇa, e o Śrīmad-Bhāgavatam, o livro que contém temas exclusivamente sobre Kṛṣṇa e Seus devotos. Esses dois livros são o néctar especial das palavras de Kṛṣṇa. Para aqueles que se dedicam a pregar essas duas obras védicas, é muito fácil escapar da ilusória vida condicionada imposta a nós por māyā. A ilusão é que a alma condicionada não procura entender sua identidade espiritual. Ela está mais interessada em seu corpo externo, que não passa de um clarão e que se acabará logo que o tempo assim o designar. Toda a atmosfera mudará quando a entidade viva tiver que transmigrar de um corpo a outro. Sob o encanto de māyā, ela ficará novamente satisfeita em uma atmosfera diferente. Esse encanto de māyā se chama āvaraṇātmikā śakti, pois é tão forte que a entidade viva se contenta com qualquer condição abominável. Mesmo que nasça como um verme, vivendo dentro do intestino ou do abdômen, no meio de urina e excremento, ainda assim ela fica satisfeita. Essa é a influência encobridora de māyā. Mas a forma humana de vida é uma oportunidade de entender isso, e, se alguém perde essa oportunidade, é muito desventurado. O modo de escapar da māyā ilusória é absorver-se nos temas de Kṛṣṇa. O Senhor Caitanya advogou um processo pelo qual todos podem permanecer em sua atual posição, sem mudar, tendo apenas que ouvir sobre Kṛṣṇa das devidas fontes autorizadas. O Senhor Caitanya aconselhou a todos que divulguem a palavra de Kṛṣṇa. Ele aconselhou: “Tornem-se todos mestres espirituais. Seu dever é simplesmente falar a quem quer que encontrem sobre Kṛṣṇa ou sobre as instruções dadas por Kṛṣṇa.” A Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna funciona com esse propósito. Não pedimos a ninguém que primeiramente mude sua posição e, só então, venha até nós. Ao contrário, convidamos a todos que venham conosco e simplesmente cantem Hare Kṛṣṇa, Hare Kṛṣṇa, Kṛṣṇa Kṛṣṇa, Hare Hare/ Hare Rāma, Hare Rāma, Rāma Rāma, Hare Hare, porque sabemos que, se alguém simplesmente cantar e ouvir os temas de Kṛṣṇa, sua vida mudará; tal pessoa verá uma nova luz, e sua vida será exitosa.

Texto

brāhmaṇā ūcuḥ
tvaṁ kratus tvaṁ havis tvaṁ hutāśaḥ svayaṁ
tvaṁ hi mantraḥ samid-darbha-pātrāṇi ca
tvaṁ sadasyartvijo dampatī devatā
agnihotraṁ svadhā soma ājyaṁ paśuḥ

Sinônimos

brāhmaṇāḥ — os brāhmaṇas; ūcuḥ — disseram; tvam — Vós; kratuḥ — sacrifício; tvam — Vós; haviḥ — oferecimento de manteiga clarificada; tvam — Vós; huta-āśaḥ — fogo; svayam — personificado; tvam — Vós; hi — para; mantraḥ — os hinos védicos; samit-darbha-pātrāṇi — o combustível, a grama kuśa e os potes de sacrifício; ca — e; tvam — Vós; sadasya — os membros da assembleia; ṛtvijaḥ — os sacerdotes; dampatī — a pessoa principal do sacrifício e sua esposa; devatā — semideuses; agni-hotram — a sagrada cerimônia de fogo; svadhā — a oferenda aos antepassados; somaḥ — a planta soma; ājyam — a manteiga clarificada; paśuḥ — o animal do sacrifício.

Tradução

Os brāhmaṇas disseram: Querido Senhor, sois o sacrifício personificado. Sois a oferenda de manteiga clarificada, sois o fogo, sois o canto de hinos védicos pelos quais se conduz o sacrifício, sois o combustível, a chama, a grama kuśa e os potes de sacrifício. Vós sois os sacerdotes que executam o yajña, sois os semideuses encabeçados por Indra, e sois o animal sacrificatório. Tudo o que é sacrificado sois Vós ou Vossa energia.

Comentário

SIGNIFICADO—Nesta afirmação, explica-se parcialmente a onipenetrância do Senhor Viṣṇu. O Viṣṇu Purāṇa diz que, assim como o fogo situado num lugar, irradia seu calor e luz por toda parte, do mesmo modo, qualquer coisa que vejamos dentro dos mundos material e espiritual nada mais é que uma manifestação de diferentes energias que emanam da Suprema Personalidade de Deus. Os brāhmaṇas estão afirmando que o Senhor Viṣṇu é tudo – o fogo, a oferenda, a manteiga clarificada, os utensílios, o lugar de sacrifício e a kuśa. Ele é tudo. Confirma-se nesta passagem que a execução de saṅkīrtana-yajña nesta era é tão boa como todos os demais yajñas em todas as outras eras. Quem executa saṅkīrtana-yajña, cantando Hare Kṛṣṇa, Hare Kṛṣṇa, Kṛṣṇa Kṛṣṇa, Hare Hare/ Hare Rāma, Hare Rāma, Rāma Rāma, Hare Hare, não precisa providenciar uma parafernália elaborada para as cerimônias sacrificatórias prescritas, recomendadas nos Vedas. No canto dos santos nomes, Hare e Kṛṣṇa, Hare significa a energia de Kṛṣṇa, e Kṛṣṇa é o viṣṇu-tattva. Combinados, eles são tudo. Nesta era, as pessoas são perseguidas pela influência de Kali-yuga e não podem providenciar toda a parafernália necessária para executar sacrifícios, tal como se recomenda nos Vedas. Contudo, se alguém simplesmente canta Hare Kṛṣṇa, deve-se compreender que ele está executando todos os tipos de yajña, porque não há nada dentro de nossa visão exceto Hare (energia de Kṛṣṇa) e Kṛṣṇa. Não há diferença entre Kṛṣṇa e Suas energias. Assim, uma vez que tudo é manifestação de Sua energia, deve-se compreender que tudo é Kṛṣṇa. Basta apenas aceitarmos tudo em consciência de Kṛṣṇa para alcançarmos a liberação. Não devemos pensar erroneamente que, porque tudo é Kṛṣṇa, Kṛṣṇa não tem identidade pessoal. Kṛṣṇa é tão completo que, apesar de manter-Se separado de tudo através de Sua energia, Ele é tudo. Confirma-se isso no nono capítulo da Bhagavad-gītā. Ele está espalhado por toda a criação como tudo, mas, ainda assim, Ele não é tudo. A filosofia recomendada pelo Senhor Caitanya é que Ele é simultaneamente uno e diferente.

Texto

tvaṁ purā gāṁ rasāyā mahā-sūkaro
daṁṣṭrayā padminīṁ vāraṇendro yathā
stūyamāno nadal līlayā yogibhir
vyujjahartha trayī-gātra yajña-kratuḥ

Sinônimos

tvam — Vós; purā — no passado; gām — a Terra; rasāyāḥ — de dentro da água; mahā-sūkaraḥ — a encarnação do grande javali; daṁṣṭrayā — com Vossa presa; padminīm — um lótus; vāraṇa-indraḥ — um elefante; yathā — como; stūyamānaḥ — recebendo orações; nadan — vibrando; līlayā — muito facilmente; yogibhiḥ — por grandes sábios, como Sanaka etc.; vvujjahartha — tirada; trayī-gātra — ó conhecimento védico personificado; yajña-kratuḥ — tendo a forma de sacrifício.

Tradução

Querido Senhor, ó conhecimento védico personificado, no milênio passado, muitíssimo tempo atrás, quando aparecestes como a encarnação do grande javali, tirastes o mundo da água, assim como um elefante tira uma flor de lótus de um lago. Quando vibrastes o som transcendental naquela gigantesca forma de javali, o som foi aceito como um hino sacrificatório, e grandes sábios, como Sanaka, meditaram nele e ofereceram orações para Vossa glorificação.

Comentário

SIGNIFICADO—Uma palavra significativa usada neste verso é trayī-gātra, que significa que a forma transcendental do Senhor são os Vedas. Qualquer pessoa que se ocupe na adoração à Deidade, ou seja, a forma do Senhor no templo, é tida como alguém que estuda todos os Vedas vinte e quatro horas por dia. Simplesmente decorando as Deidades do Senhor, Rādhā e Kṛṣṇa, no templo, estuda-se muito minuciosamente os preceitos dos Vedas. Mesmo um devoto neófito que simplesmente se ocupa na adoração à Deidade é tido como alguém em contato direto com o significado do conhecimento védico. Como se confirma na Bhagavad-gītā (15.15), vedaiś ca sarvair aham eva vedyaḥ: o propósito dos Vedas é compreendê-lO, compreender Kṛṣṇa. Quem adora e serve a Kṛṣṇa diretamente compreendeu as verdades dos Vedas.

Texto

sa prasīda tvam asmākam ākāṅkṣatāṁ
darśanaṁ te paribhraṣṭa-sat-karmaṇām
kīrtyamāne nṛbhir nāmni yajñeśa te
yajña-vighnāḥ kṣayaṁ yānti tasmai namaḥ

Sinônimos

saḥ — essa mesma pessoa; prasīda — ficai satisfeito; tvam — Vós; asmākam — conosco; ākāṅkṣatām — esperando; darśanam — audiência; te — Vossa; paribhraṣṭa — caídos; sat-karmaṇām — cuja execução de sacrifício; kīrtyamāne — sendo cantado; nṛbhiḥ — pelas pessoas; nāmni — Vosso santo nome; yajña-īśa — ó Senhor do sacrifício; te — Vosso; yajña-vighnāḥ — obstáculos; kṣayam — destruição; yānti — alcançam; tasmai — a Vós; namaḥ — respeitosas reverências.

Tradução

Querido Senhor, estávamos esperando Vossa audiência, pois não conseguimos executar os yajñas de acordo com os rituais védicos. Oramos a Vós, portanto, que fiqueis satisfeito conosco. Simplesmente cantando Vosso santo nome, pode-se superar todos os obstáculos. Oferecemos nossas respeitosas reverências em Vossa presença.

Comentário

SIGNIFICADO—Os sacerdotes brāhmaṇas estavam muito esperançosos de que seu sacrifício seria executado sem obstáculos agora que o Senhor Viṣṇu estava presente. É significativo, neste verso, que os brāhmaṇas digam: “Simplesmente cantando Vosso santo nome podemos superar os obstáculos, mas agora Vós estais presente pessoalmente.” A execução de yajña por parte de Dakṣa fora obstruída pelos discípulos e seguidores do senhor Śiva. Os brāhmaṇas criticaram indiretamente os seguidores do senhor Śiva, mas, como os brāhmaṇas estavam sempre protegidos pelo Senhor Viṣṇu, os seguidores de Śiva não puderam prejudicar o prosseguimento do processo de sacrifício. Como diz o ditado, quando Kṛṣṇa protege alguém, ninguém pode fazer-lhe mal e, quando Kṛṣṇa quer matar alguém, ninguém pode protegê-lo. Exemplo vívido disso foi Rāvaṇa. Rāvaṇa era um grande devoto do senhor Śiva, mas, quando o Senhor Rāmacandra quis matá-lo, o senhor Śiva não o pôde proteger. Se algum semideus, mesmo o senhor Śiva ou o senhor Brahmā, quiser prejudicar um devoto, Kṛṣṇa protegerá o devoto. Contudo, quando Kṛṣṇa quiser matar alguém, tal como Rāvaṇa ou Hiraṇyakaśipu, nenhum semideus poderá protegê-lo.

Texto

maitreya uvāca
iti dakṣaḥ kavir yajñaṁ
bhadra rudrābhimarśitam
kīrtyamāne hṛṣīkeśe
sanninye yajña-bhāvane

Sinônimos

maitreyaḥ — Maitreya; uvāca — disse; iti — assim; dakṣaḥ — Dakṣa; kaviḥ — estando com a consciência purificada; yajñam — o sacrifício; bhadra — ó Vidura; rudra-abhimarśitam — devastado por Virabhadra; kīrtya-māne — sendo glorificado; hṛṣīkeśe — Hṛṣikeśa (Senhor Viṣṇu); sanninye — providenciou o reinício; yajña-bhāvane — o protetor do sacrifício.

Tradução

Śrī Maitreya disse: Após o Senhor Viṣṇu ter sido glorificado por todos os presentes, Dakṣa, com sua consciência purificada, providenciou o reinício do yajña que fora devastado pelos seguidores do senhor Śiva.

Texto

bhagavān svena bhāgena
sarvātmā sarva-bhāga-bhuk
dakṣaṁ babhāṣa ābhāṣya
prīyamāṇa ivānagha

Sinônimos

bhagavān — o Senhor Viṣṇu; svena — com Seu próprio; bhāgena — com o quinhão; sarva-ātmā — a Superalma de todas as entidades vivas; sarva-bhāga-bhuk — o desfrutador dos resultados de todos os sacrifícios; dakṣam — Dakṣa; babhāṣe — disse; ābhāṣya — dirigindo-Se; prīyamāṇaḥ — estando satisfeito; iva — como; anagha — ó impecável Vidura.

Tradução

Maitreya continuou: Meu querido e impecável Vidura, o Senhor Viṣṇu é, na verdade, o desfrutador dos resultados de todos os sacrifícios. Todavia, por ser a Superalma de todas as entidades vivas, Ele ficou satisfeito simplesmente com Seu quinhão das oferendas do sacrifício. Portanto, dirigiu-Se a Dakṣa em uma atitude amável.

Comentário

SIGNIFICADO—A Bhagavad-gītā (5.29) diz que bhoktāraṁ yajña-tapasām: o Senhor Viṣṇu, ou Kṛṣṇa, é o desfrutador supremo de todos os resultados de sacrifícios, austeridades e penitências; a meta última de qualquer atividade que se execute é Viṣṇu. Se uma pessoa não sabe disso, ela está desencaminhada. Como a Suprema Personalidade de Deus, Viṣṇu nada tem a exigir de ninguém. Ele é autossatisfeito, autossuficiente, mas aceita as oferendas de yajña devido à Sua atitude amistosa com todas as entidades vivas. Quando Lhe ofereceram o Seu quinhão dos resultados do sacrifício, Ele pareceu ficar muito satisfeito. Como diz a Bhagavad-gītā (9.26), patraṁ puṣpaṁ phalaṁ toyaṁ yo me bhaktyā prayacchati: se algum devoto Lhe oferecer mesmo uma pequena folha, ou uma flor, ou água, e se as oferecer com amor e afeição, o Senhor aceitará e ficará satisfeito. Embora seja autossuficiente e não precise de nada de ninguém, Ele aceita tais oferendas porque, como a Superalma, tem uma atitude amistosa com todas as entidades vivas. Outro ponto apresentado aqui é que Ele não usurpa o quinhão alheio. No yajña, há um quinhão para os semideuses, para o senhor Śiva e para o senhor Brahmā, e um quinhão para o Senhor Viṣṇu. Ele fica satisfeito com Seu próprio quinhão e não usurpa o dos outros. Indiretamente, Ele indicou que não ficou satisfeito com a tentativa de Dakṣa de negar o quinhão do senhor Śiva. Maitreya chamou Vidura de “impecável” porque Vidura era um vaiṣṇava puro e jamais cometera qualquer ofensa contra qualquer semideus. Embora os vaiṣṇavas aceitem o Senhor Viṣṇu como o Supremo, eles não têm a tendência de ofender os semideuses. Eles oferecem aos semideuses o devido respeito. Os vaiṣṇavas aceitam o senhor Śiva como o melhor vaiṣṇava. Para um vaiṣṇava, não há possibilidade de ofender nenhum semideus, e os semideuses também ficam satisfeitos com os vaiṣṇava por estes serem devotos impecáveis do Senhor Viṣṇu.

Texto

śrī-bhagavān uvāca
ahaṁ brahmā ca śarvaś ca
jagataḥ kāraṇaṁ param
ātmeśvara upadraṣṭā
svayan-dṛg aviśeṣaṇaḥ

Sinônimos

śrī-bhagavān — o Senhor Viṣṇu; uvāca — disse; aham — Eu; brahmā — Brahmā; ca — e; śarvaḥ — o senhor Śiva; ca — e; jagataḥ — da manifestação material; kāraṇam — causa; param — suprema; ātma-īśvaraḥ — a Superalma; upadraṣṭā — a testemunha; svayam-dṛk — autossuficiente; aviśeṣaṇaḥ — não há diferença.

Tradução

O Senhor Viṣṇu respondeu: Brahmā, o senhor Śiva e Eu somos a causa suprema da manifestação material. Eu sou a Superalma, a testemunha autossuficiente. Porém, do ponto de vista impessoal, não há diferença entre Eu, Brahmā e o senhor Śiva.

Comentário

SIGNIFICADO—O senhor Brahmā nasceu do corpo transcendental do Senhor Viṣṇu, e o senhor Śiva nasceu do corpo de Brahmā. Portanto, o Senhor Viṣṇu é a causa suprema. Nos Vedas, afirma-se também que, no início, existia somente Viṣṇu, Nārāyaṇa; não existia Brahmā ou Śiva. De modo semelhante, Śaṅkarācārya confirmou isto: nārāyaṇaḥ paraḥ. Nārāyaṇa, ou o Senhor Viṣṇu, é a origem, e Brahmā e Śiva manifestam-se após a criação. O Senhor Viṣṇu também é ātmeśvara, a Superalma em todos. Sob Sua orientação, tudo é incitado a partir de dentro. Por exemplo, no começo do Śrīmad-Bhāgavatam, afirma-se que tene brahma hṛdā: primeiramente Ele educou o senhor Brahmā internamente, no coração.

Na Bhagavad-gītā (10.2), o Senhor Kṛṣṇa afirma que aham ādir hi devānām: o Senhor Viṣṇu, ou Kṛṣṇa, é a origem de todos os semideuses, incluindo o senhor Brahmā e o senhor Śiva. Em outra passagem da Bhagavad-gītā (10.8), Kṛṣṇa afirma que ahaṁ sarvasya prabhavaḥ: “Tudo é gerado por Mim.” Isso inclui todos os semideuses. Do mesmo modo, no Vedānta-sūtra: janmādy asya yataḥ. E nas Upaniṣads ocorre a afirmação yato imāni bhūtāni jāyante. Tudo procede do Senhor Viṣṇu, tudo é mantido por Ele e tudo é aniquilado por Sua energia. Portanto, através das ações e reações de Suas energias, essas energias que vêm dEle criam as manifestações cósmicas e também dissolvem toda a criação. Assim, o Senhor é a causa e também o efeito. Qualquer efeito que vejamos é a interação de Sua energia, e, como a energia procede dEle, Ele é tanto a causa quanto o efeito. Simultaneamente, tudo é diferente e igual. Afirma-se que tudo é Brahman: sarvaṁ khalv idaṁ brahma. No sentido superior, nada está além do Brahman, daí o senhor Brahmā e o senhor Śiva certamente não serem diferentes dEle.

Texto

ātma-māyāṁ samāviśya
so ’haṁ guṇamayīṁ dvija
sṛjan rakṣan haran viśvaṁ
dadhre saṁjñāṁ kriyocitām

Sinônimos

ātma-māyām — Minha energia; samāviśya — tendo entrado; saḥ — Eu próprio; aham — Eu; guṇa-mayīm — composta dos modos da natureza material; dvi-ja — ó Dakṣa duas vezes nascido; sṛjan — criando; rakṣan — mantendo; haran — aniquilando; viśvam — a manifestação cósmica; dadhre — faço com que nasça; saṁjñām — um nome; kriyā-ucitām — de acordo com a atividade.

Tradução

O Senhor continuou: Meu querido Dakṣa Dvija, Eu sou a original Personalidade de Deus, mas, a fim de criar, manter e aniquilar esta manifestação cósmica, ajo através de Minha energia material, e, de acordo com os diferentes graus de atividades, Minhas representações recebem diferentes nomes.

Comentário

SIGNIFICADO—Como se explica na Bhagavad-gītā (7.5), jīva-bhūtāṁ mahā-bāho: o mundo inteiro é uma energia liberada da fonte suprema, a Personalidade de Deus, a qual, como se afirma ainda na Bhagavad-gītā, atua nas energias superiores e nas energias inferiores. A energia superior é a entidade viva, que é parte integrante do Senhor Supremo. Como partes integrantes, as entidades vivas não são diferentes do Senhor Supremo; a energia que emana dEle não é diferente dEle. Todavia, na verdadeira atividade deste mundo material, a entidade viva está sob a influência das diferentes qualidades da energia material e sob formas diferentes. Existem 8.400.000 formas de vida. A mesma entidade viva age sob a influência das diferentes qualidades da natureza material. As entidades têm diferentes corpos, mas, originalmente, no início da criação, o Senhor Viṣṇu está sozinho. Para o propósito da criação, Brahmā se manifesta, e, para a aniquilação, existe o senhor Śiva. No que diz respeito à entrada de seres espirituais no mundo material, todos os seres são partes integrantes do Senhor Supremo, mas, sob a cobertura de diferentes qualidades materiais, recebem diferentes nomes. O senhor Brahmā e o senhor Śiva são encarnações qualitativas de Viṣṇu, como guṇa-avatāras, e Viṣṇu, com eles, aceita o controle da qualidade da bondade; portanto, Ele também é uma encarnação qualitativa, como o senhor Śiva e o senhor Brahmā. Na verdade, os diferentes nomes existem para diferentes direções; de outro modo, a origem é apenas uma.

Texto

tasmin brahmaṇy advitīye
kevale paramātmani
brahma-rudrau ca bhūtāni
bhedenājño ’nupaśyati

Sinônimos

tasmin — a Ele; brahmaṇi — o Brahman Supremo; advitīye — sem rival; kevale — sendo uno; parama-ātmani — a Superalma; brahma-rudrau — tanto Brahmā quanto Śiva; ca — e; bhūtāni — as entidades vivas; bhedena — com separação; ajñaḥ — quem não é devidamente versado; anupaśyati — pensa.

Tradução

O Senhor continuou: Quem não tem conhecimento adequado pensa que semideuses como Brahmā e Śiva são independentes, ou pensa até mesmo que as entidades vivas são independentes.

Comentário

SIGNIFICADO—As entidades vivas, incluindo Brahmā, não são independentemente separadas, senão que se incluem dentro da potência marginal do Senhor Supremo. O Senhor Supremo, sendo a Superalma em todas as entidades vivas, incluindo no senhor Brahmā e no senhor Śiva, orienta todos nas atividades dos modos da natureza material. Ninguém pode agir independentemente da sanção do Senhor, de modo que, indiretamente, ninguém é diferente da Pessoa Suprema – o que certamente se aplica a Brahmā e a Rudra, que são encarnações dos modos da paixão e ignorância da natureza material.

Texto

yathā pumān na svāṅgeṣu
śiraḥ-pāṇy-ādiṣu kvacit
pārakya-buddhiṁ kurute
evaṁ bhūteṣu mat-paraḥ

Sinônimos

yathā — como; pumān — uma pessoa; na — não; sva-aṅgeṣu — em seu próprio corpo; śiraḥ-pāṇi-ādiṣu — entre a cabeça e as mãos e outras partes do corpo; kvacit — às vezes; pārakya-buddhim — diferenciação; kurute — faz; evam — assim; bhūteṣu — entre entidades vivas; mat-paraḥ — Meu devoto.

Tradução

Uma pessoa com inteligência normal não pensa que a cabeça e outras partes do corpo são separadas. Do mesmo modo, Meu devoto não diferencia Viṣṇu, a onipenetrante Personalidade de Deus, de alguma coisa ou de alguma entidade viva.

Comentário

SIGNIFICADO—Sempre que alguma doença aparece em qualquer parte do corpo, todo o corpo cuida da parte doente. Analogamente, a unidade do devoto manifesta-se em sua compaixão por todas as almas condicionadas. A Bhagavad-gītā (5.18) diz que paṇḍitāḥ sama-darśinaḥ: aqueles que são eruditos veem com igualdade a vida condicionada de todos. Os devotos têm compaixão de todas as almas condicionadas, motivo pelo qual são conhecidos como apārakya-buddhi. Visto que os devotos são eruditos e sabem que todas as entidades vivas são partes integrantes do Senhor Supremo, eles pregam a consciência de Kṛṣṇa a todos para que todos possam ser felizes. Se uma parte específica do corpo adoece, toda a atenção do corpo se volta para aquela parte. Analogamente, os devotos se interessam por qualquer pessoa que esteja esquecida de Kṛṣṇa e, portanto, esteja em consciência material. A visão de igualdade do devoto é que ele trabalha para levar todas as entidades vivas de volta ao lar, de volta ao Supremo.

Texto

trayāṇām eka-bhāvānāṁ
yo na paśyati vai bhidām
sarva-bhūtātmanāṁ brahman
sa śāntim adhigacchati

Sinônimos

trayāṇām — dos três; eka-bhāvānām — tendo uma natureza; yaḥ — quem; na paśyati — não vê; vai — certamente; bhidām — separação; sarva-bhūta-ātmanām — da Superalma de todas as entidades vivas; brahman — ó Dakṣa; saḥ — ele; śāntim — paz; adhigacchati — obtém.

Tradução

O Senhor continuou: Aquele que não considera Brahmā, Viṣṇu, Śiva ou as entidades vivas em geral como sendo separados do Supremo, e que conhece o Brahman, realmente obtém paz; os outros não.

Comentário

SIGNIFICADO—Duas palavras são muito significativas neste verso. Trayāṇām indica “três”, ou seja, o senhor Brahmā, o senhor Śiva e o Senhor Viṣṇu. Bhidām significa “diferentes”. Eles são três, de modo que são separados, mas, ao mesmo tempo, são unos. Esta é a filosofia de igualdade e diferença simultâneas, chamada acintya-bhedābheda-tattva. O exemplo dado na Brahma-saṁhitā é que o leite e o iogurte são simultaneamente idênticos e diferentes; ambos são leite, mas o iogurte é um leite transformado. A fim de obter paz verdadeira, devem-se ver todas as coisas e toda entidade viva, incluindo o senhor Brahmā e o senhor Śiva, como não diferentes da Suprema Personalidade de Deus. Ninguém é independente. Cada um de nós é uma expansão da Suprema Personalidade de Deus. Isso explica a unidade na diversidade. Existem diversas manifestações, mas, ao mesmo tempo, elas são unas em Viṣṇu. Tudo é uma expansão da energia de Viṣṇu.

Texto

maitreya uvāca
evaṁ bhagavatādiṣṭaḥ
prajāpati-patir harim
arcitvā kratunā svena
devān ubhayato ’yajat

Sinônimos

maitreyaḥ — Maitreya; uvāca — disse; evam — assim; bhagavatā — pela Suprema Personalidade de Deus; ādiṣṭaḥ — tendo sido instruído; prajāpati-patiḥ — o líder de todos os Prajāpatis; harim — Hari; arcitvā — após adorar; kratunā — com as cerimônias de sacrifício; svena — suas próprias; devān — os semideuses; ubhayataḥ — separadamente; ayajat — adorou.

Tradução

O sábio Maitreya disse: Assim, Dakṣa, o líder de todos os Prajāpatis, tendo sido muito bem instruído pela Suprema Personalidade de Deus, adorou o Senhor Viṣṇu. Após adorá-lO, executando as cerimônias sacrificatórias prescritas, Dakṣa adorou separadamente o senhor Brahmā e o senhor Śiva.

Comentário

SIGNIFICADO—Deve-se oferecer tudo ao Senhor Viṣṇu, e Sua prasāda deve ser distribuída a todos os semideuses. Esta prática ainda é observada no templo de Jagannātha, em Puri. Há muitos templos de semideuses em volta do templo principal de Jagannātha, e a prasāda que é oferecida primeiramente a Jagannātha é distribuída a todos os semideuses. A deidade de Bhagālin é adorada com a prasāda de Viṣṇu, e também, no famoso templo do senhor Śiva de Bhuvaneśvara, a prasāda do Senhor Viṣṇu ou do Senhor Jagannātha é oferecida à deidade do senhor Śiva. É esse o princípio vaiṣṇava. O vaiṣṇava não zomba sequer de entidades vivas comuns, incluindo a pequena formiga; todos recebem o devido respeito de acordo com sua posição. A oferenda, entretanto, está relacionada com o centro, a Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa, ou Viṣṇu. O devoto que é altamente elevado vê a relação com Kṛṣṇa em tudo; segundo sua visão, nada é independente de Kṛṣṇa. Essa é sua visão de unidade.

Texto

rudraṁ ca svena bhāgena
hy upādhāvat samāhitaḥ
karmaṇodavasānena
somapān itarān api
udavasya sahartvigbhiḥ
sasnāv avabhṛthaṁ tataḥ

Sinônimos

rudram — o senhor Śiva; ca — e; svena — com seu próprio; bhāgena — quinhão; hi — desde que; upādhāvat — ele adorou; samāhitaḥ — com a mente concentrada; karmaṇā — pela realização; udavasānena — pelo ato de encerrar; soma-pān — semideuses; itarān — outros; api — mesmo; udavasya — após terminar; saha — juntamente com; ṛtvigbhiḥ — com os sacerdotes; sasnau — banhou-se; avabhṛtham — o banho avabhṛtha; tataḥ — depois.

Tradução

Com todo o respeito, Dakṣa adorou o senhor Śiva com seu quinhão dos restos do yajña. Após terminar as atividades ritualísticas sacrificatórias, ele satisfez todos os demais semideuses e as outras pessoas ali reunidas. Depois, encerrados todos esses deveres com os sacerdotes, ele se banhou e ficou plenamente satisfeito.

Comentário

SIGNIFICADO—O senhor Rudra, Śiva, foi devidamente adorado com seu quinhão dos restos do yajña. Yajña é Viṣṇu, e qualquer prasāda oferecida a Viṣṇu é oferecida a todos, mesmo ao senhor Śiva. Śrīdhara Svāmī também comenta a este respeito que svena bhāgena: os restos do yajña são oferecidos a todos os semideuses e aos outros.

Texto

tasmā apy anubhāvena
svenaivāvāpta-rādhase
dharma eva matiṁ dattvā
tridaśās te divaṁ yayuḥ

Sinônimos

tasmai — a ele (Dakṣa); api — mesmo; anubhāvena — adorando o Senhor Supremo; svena — por sua própria; eva — certamente; avāpta-rādhase — tendo alcançado a perfeição; dharme — em religião; eva — certamente; matim — inteligência; dattvā — tendo dado; tridaśāḥ — semideuses; te — aqueles; divam — aos planetas celestiais; yayuḥ — foram.

Tradução

Adorando assim o Supremo Senhor Viṣṇu mediante a realização ritualística do sacrifício, Dakṣa situou-se inteiramente no caminho religioso. Além disso, todos os semideuses que se reuniram para o sacrifício abençoaram-no para que sua piedade aumentasse, após o que eles partiram.

Comentário

SIGNIFICADO—Embora Dakṣa fosse consideravelmente avançado em princípios religiosos, ele esperava as bênçãos dos semideuses. Assim, o grande sacrifício conduzido por Dakṣa terminou em paz e harmonia.

Texto

evaṁ dākṣāyaṇī hitvā
satī pūrva-kalevaram
jajñe himavataḥ kṣetre
menāyām iti śuśruma

Sinônimos

evam — assim; dākṣāyaṇī — a filha de Dakṣa; hitvā — após abandonar; satī — Satī; pūrva-kalevaram — seu corpo anterior; jajñe — nasceu; himavataḥ — dos Himalaias; kṣetre — na esposa; menāyām — em Menā; iti — assim; śuśruma — eu ouvi.

Tradução

Maitreya disse: Contaram-me que, após abandonar o corpo que recebera de Dakṣa, Dākṣāyaṇī (sua filha) nasceu no reino dos Himalaias. Ela nasceu como filha de Menā. Isso eu ouvi de fontes autorizadas.

Comentário

SIGNIFICADO—Menā também é conhecida como Menakā e é esposa do rei dos Himalaias.

Texto

tam eva dayitaṁ bhūya
āvṛṅkte patim ambikā
ananya-bhāvaika-gatiṁ
śaktiḥ supteva pūruṣam

Sinônimos

tam — a ele (senhor Śiva); eva — certamente; dayitam — amada; bhūyaḥ — novamente; āvṛṅkte — aceitou; patim — como ο seu esposo; ambikā — Ambikā, ou Satī; ananya-bhāvā — sem apego aos outros; eka-gatim — a única meta; śaktiḥ — as energias femininas (marginal e externa); suptā — jazendo adormecida; iva — como; pūruṣam — ο masculino (o senhor Śiva, como representante do Senhor Supremo).

Tradução

Ambikā [a deusa Durgā], que era conhecida como Dākṣāyiṇī [Satī], novamente aceitou o senhor Śiva como seu esposo, assim como diferentes energias da Suprema Personalidade de Deus agem durante o decurso de uma nova criação.

Comentário

SIGNIFICADO—Segundo um verso dos mantras védicos, parāsya śāktir vividhaiva śrūyate: a Suprema Personalidade de Deus possui diferentes variedades de energias. A śakti é feminina, e o Senhor é puruṣa, masculino. É dever da fêmea servir ao supremo puruṣa. Como se afirma na Bhagavad-gītā, todas as entidades vivas são energias marginais do Senhor Supremo. Portanto, é dever de todas as entidades vivas servirem a esta Pessoa Suprema. Durgā é a representação no mundo material das energias externa e marginal, e ο senhor Śiva é a representação da Pessoa Suprema. A ligação do senhor Śiva e Ambikā, ou Durgā, é eterna. Satī não poderia aceitar nenhum esposo além do senhor Śiva. Como o senhor Śiva se casou novamente com Durgā na forma de Himavatī, a filha dos Himalaias, e como Kārttikeya nasceu – esses episódios formam toda uma longa história.

Texto

etad bhagavataḥ śambhoḥ
karma dakṣādhvara-druhaḥ
śrutaṁ bhāgavatāc chiṣyād
uddhavān me bṛhaspateḥ

Sinônimos

etat — esta; bhagavataḥ — daquele que possui todas as opulências; śambhoḥ — de Śambhu (senhor Śiva); karma — história; dakṣa-adhvara-druhaḥ — que devastou o sacrifício de Dakṣa; śrutam — foi ouvida; bhāgavatāt — de um grande devoto; śiṣyāt — do discípulo; uddhavāt — de Uddhava; me — por mim; bṛhaspateḥ — de Bṛhaspati.

Tradução

Maitreya disse: Meu querido Vidura, eu ouvi esta história do yajña de Dakṣa, que foi devastado pelo senhor Śiva, da parte de Uddhava, um grande devoto e discípulo de Bṛhaspati.

Texto

idaṁ pavitraṁ param īśa-ceṣṭitaṁ
yaśasyam āyuṣyam aghaugha-marṣaṇam
yo nityadākarṇya naro ’nukīrtayed
dhunoty aghaṁ kaurava bhakti-bhāvataḥ

Sinônimos

idam — este; pavitram — puro; param — supremo; īśa-ceṣṭitam — passatempo do Senhor Supremo; yaśasyam — fama; āyuṣyam — lοnga duração de vida; agha-ogha-marṣaṇam — destruindo pecados; yaḥ — quem; nityadā — sempre; ākarṇya — após ouvir; naraḥ — uma pessoa; anukīrtayet — deve narrar; dhunoti — limpa; agham — contaminação material; kaurava — ό descendente de Kuru; bhakti-bhāvataḥ — com fé e devoção.

Tradução

Ο grande sábio Maitreya concluiu: Se alguém ouve e reconta, com fé e devoção, esta história do yajña de Dakṣa, tal como ele foi conduzido pela Suprema Personalidade de Deus, Viṣṇu, então certamente se purifica de toda a contaminação da existência material, ό filho de Kuru.

Comentário

Neste ponto, encerram-se os Significados Bhaktivedanta do quarto canto, sétimo capítulo, do Śrīmad-Bhāgavatam, intitulado “O Sacrifício Executado por Dakṣa”.