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Capítulo Nove

O Aparecimento do Demônio Vṛtrāsura

Como se descreve neste capítulo, Indra, o rei dos céus, matou Viśvarūpa. Em consequência disso, o pai de Viśvarūpa executou um yajña para matar Indra. Quando, devido a esse yajña, Vṛtrāsura apareceu, os semideuses, com medo, buscaram refúgio na Suprema Persona­lidade de Deus e glorificaram-nO.

Devido à afeição que sentia pelos demônios, Viśvarūpa lhes fornecia secretamente os restos deixados no yajña. Ao tomar conhecimento disso, Indra decapitou Viśvarūpa; em seguida, porém, lamentou-se de ter matado Viśvarūpa, haja vista que Viśvarūpa era um brāhmaṇa. Embora pudesse anular as reações pecaminosas a que se sujeita aquele que mata um brāhmaṇa, Indra não tomou nenhuma medida para isso. Muito pelo contrário, preferiu aceitar as reações. Mais tarde, distribuiu as reações com a terra, a água, as árvores e as mulheres em geral. Como a terra aceitou um quarto das reações pecaminosas, uma parte da terra transformou-se em deserto. As árvores também receberam um quarto das reações pecaminosas, de modo que elas go­tejam seiva, a qual não se deve beber. Como aceitaram um quarto das reações pecaminosas, as mulheres são intocáveis durante o pe­ríodo menstrual. Uma vez que a água também foi infestada por reações pecaminosas, quando aparecem bolhas na água, ela não pode ser usada para nenhum propósito.

Depois que Viśvarūpa foi morto, Tvaṣṭā, seu pai, executou um sacrifício para matar o rei Indra. Infelizmente, se os mantras são can­tados de maneira irregular, produzem o resultado oposto. Foi isso o que aconteceu quando Tvaṣṭā executou esse yajña. Enquanto executava o sacrifício para matar Indra, Tvaṣṭā cantou um mantra para que os inimigos de Indra se tornassem mais numerosos, mas, como cantou o mantra de maneira errada, o sacrifício produziu um asura chamado Vṛtrāsura, de quem Indra era inimigo. Quando Vṛtrāsura foi gerado do sacrifício, seu aspecto feroz fez o mundo inteiro ficar amedrontado, e sua refulgência pessoal diminuiu até mesmo o poder dos semideuses. Não encontrando nenhum outro meio de proteção, os semideuses passaram a adorar a Suprema Personalidade de Deus, o desfrutador de todos os resultados dos sacrifícios e que é supremo em toda a extensão do universo. Todos os semideuses o adoraram porque, afinal, Ele, e nenhuma outra pessoa, pode proteger a entidade viva e livrá-la do medo e do perigo. Alguém que busca refúgio nos semideuses em vez de adorar a Suprema Personalidade de Deus fica em uma situação equivalente a tentar cruzar o oceano agarrando-se à cauda de um cachorro. Um cachorro pode nadar, mas isso não significa que alguém possa cruzar o oceano agarrando-se à cauda do animal.

Estando satisfeito com os semideuses, a Suprema Personalidade de Deus os aconselhou a se aproximarem de Dadhīci para lhe pedir os ossos de seu corpo. Dadhīci atenderia ao pedido dos semideuses, e, com a ajuda dos seus ossos, Vṛtrāsura poderia ser morto.

Texto

śrī-śuka uvāca
tasyāsan viśvarūpasya
śirāṁsi trīṇi bhārata
soma-pīthaṁ surā-pītham
annādam iti śuśruma

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; tasya — dele; āsan — havia; viśvarūpasya — de Viśvarūpa, o sacerdote dos semideuses; śirāṁsi — cabeças; trīṇi — três; bhārata — ó Mahārāja Parīkṣit; soma-­pītham — usada para tomar a bebida soma; surā-pītham — usada para beber vinho; anna-adam — usada para comer; iti — assim; śuśruma — eu ouvi através do sistema paramparā.

Tradução

Śrī Śukadeva Gosvāmī continuou: Viśvarūpa, que estava ocupado como sacerdote dos semideuses, tinha três cabeças. Usava uma para tomar a bebida soma-rasa, a outra para beber vinho e a terceira para ingerir alimentos. Ó rei Parīkṣit, foi isso o que as autoridades me falaram.

Comentário

SIGNIFICADO—Ninguém pode conhecer diretamente o reino do céu, seu rei e outros habitantes, ou como eles executam suas várias atividades, pois ninguém tem acesso aos planetas celestiais. Embora tenham inventado um grande número de poderosos veículos espaciais, os cientistas modernos não conseguem sequer ir à Lua, o que dizer, então, de irem a outros planetas? Através da experiência direta, ninguém pode aprender nada que ultrapasse o limite da percepção humana. Devem-­se ouvir as autoridades. Portanto, Śukadeva Gosvāmī, uma grande personalidade, diz: “O que estou te descrevendo, ó rei, é o que ouvi de fontes autorizadas.” Esse é o sistema védico. O conhecimento védico se chama śruti porque tem que ser recebido pelo processo através do qual se ouvem as autoridades. Ele ultrapassa o âmbito de nosso falso conhecimento experimental.

Texto

sa vai barhiṣi devebhyo
bhāgaṁ pratyakṣam uccakaiḥ
adadad yasya pitaro
devāḥ sapraśrayaṁ nṛpa

Sinônimos

saḥ — ele (Viśvarūpa); vai — na verdade; barhiṣi — no fogo de sacrifício; devebhyaḥ — aos semideuses específicos; bhāgam — a respec­tiva partilha; pratyakṣam — visivelmente; uccakaiḥ — pelo canto alto dos mantras; adadat — oferecia; yasya — de quem; pitaraḥ — os pais; devāḥ — semideuses; sa-praśrayam — muito humildemente, com voz gentil; nṛpa — ó rei Parīkṣit.

Tradução

Ó Mahārāja Parīkṣit, o vínculo que existia entre Viśvarūpa e os semideuses advinha do pai dele, e, portanto, ele visivelmente oferecia manteiga clarificada no fogo enquanto cantava mantras, tais como indrāya idaṁ svāhā [“isto se destina ao rei Indra”] e idam agnaye [“isto é para o semideus do fogo”]. Ele cantava esses mantras bem alto, e oferecia a cada um dos semideuses a parte que a esse tocava.

Texto

sa eva hi dadau bhāgaṁ
parokṣam asurān prati
yajamāno ’vahad bhāgaṁ
mātṛ-sneha-vaśānugaḥ

Sinônimos

saḥ — ele (Viśvarūpa); eva — na verdade; hi — com certeza; dadau — oferecia; bhāgam — partilhas; parokṣam — sem que os semideuses estivessem sabendo; asurān — demônios; prati — aos; yajamānaḥ — executando sacrifícios; avahat — oferecia; bhāgam — partilhas; mātṛ-­sneḥa — pela afeição à sua mãe; vaśa-anugaḥ — sendo impelido.

Tradução

Embora oferecesse manteiga clarificada no fogo do sacrifício em nome dos semideuses, ele também oferecia oblações aos demônios sem que os semideuses soubessem disso. Ele o fazia porque eram seus parentes por parte de mãe.

Comentário

SIGNIFICADO—Devido à afeição que sentia pelas famílias dos semideuses e dos demônios, Viśvarūpa, em nome de ambas as dinastias, aplacou o Senhor Supremo. Quando oferecia no fogo oblações em benefício dos asuras, ele agia em segredo, sem que os semideuses tomassem conhecimento.

Texto

tad deva-helanaṁ tasya
dharmālīkaṁ sureśvaraḥ
ālakṣya tarasā bhītas
tac-chīrṣāṇy acchinad ruṣā

Sinônimos

tat — esta; deva-helanam — ofensa aos semideuses; tasya — dele (Viśvarūpa); dharma-alīkam — enganando com base em princípios religiosos (fingindo ser o sacerdote dos semideuses, mas secreta­mente também agindo como sacerdote dos demônios); sura-īśvaraḥ — o rei dos semideuses; ālakṣya — observando; tarasā — bem depressa; bhītaḥ — tendo medo (de que os demônios ganhassem força ao receberem as bênçãos de Viśvarūpa); tat — suas (de Viśvarūpa); śīrṣāni — cabeças; acchinat — decepou; ruṣā — com grande ira.

Tradução

Certa vez, entretanto, Indra, o rei dos céus, percebeu que Viśvarūpa estava enganando os semideuses, secretamente oferecendo obla­ções em benefício dos demônios. Ele ficou com muito medo de ser derrotado pelos demônios e, com grande ira contra Viśvarūpa, dece­pou suas três cabeças.

Texto

soma-pīthaṁ tu yat tasya
śira āsīt kapiñjalaḥ
kalaviṅkaḥ surā-pītham
annādaṁ yat sa tittiriḥ

Sinônimos

soma pītham — usada para beber soma-rasa; tu — contudo; yat — a qual; tasya — dele (Viśvarūpa); śiraḥ — a cabeça; āsīt — tornou-se; ka­piñjalaḥ — um francolim; kalaviṅkaḥ — um pardal; surā­-pītham — usada para beber vinho; anna-adam — usada para ingerir alimentos; yat — a qual; saḥ — esta; tittiriḥ — uma perdiz comum.

Tradução

Depois disso, a cabeça própria para beber soma-rasa foi transformada em kapiñjala [francolim]. Igualmente, a cabeça própria para beber vinho e transformou em um kalaviṅka [pardal], e a cabeça própria para ingerir alimentos se tornou um tittiri [perdiz comum].

Texto

brahma-hatyām añjalinā
jagrāha yad apīśvaraḥ
saṁvatsarānte tad aghaṁ
bhūtānāṁ sa viśuddhaye
bhūmy-ambu-druma-yoṣidbhyaś
caturdhā vyabhajad dhariḥ

Sinônimos

brahma-hatyām — a reação pecaminosa sofrida por alguém que mata um brāhmaṇa; añjalinā — de mãos postas; jagrāha — assumiu a responsabilidade de; yat api — embora; īśvaraḥ — muito poderoso; saṁvatsara-ante — após um ano; tat agham — essa reação pecamino­sa; bhūtānām — dos elementos materiais; saḥ — ele; viśuddhaye — para a purificação; bhūmi — à terra; ambu — à água; druma — às árvores; yoṣidbhyaḥ — e às mulheres; caturdhā — em quatro divisões; vyabha­jat — repartiu; hariḥ — o rei Indra.

Tradução

Embora fosse tão poderoso a ponto de poder neutralizar as reações pecaminosas a que se submete alguém que mata um brāhmaṇa, Indra, arrependido e de mãos postas, aceitou a carga dessas reações. Ele sofreu por um ano e, então, de maneira a se purificar, distribuiu entre a terra, a água, as árvores e as mulheres as reações desse assassinato pecaminoso.

Texto

bhūmis turīyaṁ jagrāha
khāta-pūra-vareṇa vai
īriṇaṁ brahma-hatyāyā
rūpaṁ bhūmau pradṛśyate

Sinônimos

bhūmiḥ — a terra; turīyam — um quarto; jagrāha — aceitou; khāta-­pūra — do preenchimento de buracos; vareṇa — por causa da bênção; vai — na verdade; īriṇam — os desertos; brahma-hatyāyāḥ — da reação decorrente do assassinato de um brāhmaṇa; rūpam — forma; bhūmau — na Terra; pradṛśyate — é visível.

Tradução

Em reconhecimento à bênção do rei Indra de que os buracos na terra se encheriam automaticamente, a terra aceitou um quarto das reações pecaminosas decorrentes do assassinato de um brāhmaṇa. De­vido a essas reações pecaminosas, encontramos muitos desertos na superfície da Terra.

Comentário

SIGNIFICADO—Porque os desertos são manifestações da condição doentia da Terra, nenhuma cerimônia ritualística auspiciosa pode ser executada no deserto. Compreende-se que as pessoas destinadas a viver no deserto estão partilhando das reações do pecado de brahma-hatyā, o assassinato de um brāhmaṇa.

Texto

turyaṁ cheda-viroheṇa
vareṇa jagṛhur drumāḥ
teṣāṁ niryāsa-rūpeṇa
brahma-hatyā pradṛśyate

Sinônimos

turyam — um quarto; cheda — embora sendo cortadas; viroheṇa — de voltar a crescer; vareṇa — por causa da bênção; jagṛhuḥ — aceitaram; drumāḥ — as árvores; teṣām — delas; niryāsa-rūpeṇa — pelo líquido que escorre das árvores; brahma-hatyā — a reação decorrente do assassinato de um brāhmaṇa; pradṛśyate — é visível.

Tradução

Como sinal de gratidão à bênção de Indra de que seus galhos e brotos voltariam a crescer quando podados, as árvores aceitaram um quarto das reações decorrentes do assassinato de um brāhmaṇa. Essas reações são visíveis no fluxo de seiva das árvores. [Portanto, proíbe-se que se beba essa seiva.]

Texto

śaśvat-kāma-vareṇāṁhas
turīyaṁ jagṛhuḥ striyaḥ
rajo-rūpeṇa tāsv aṁho
māsi māsi pradṛśyate

Sinônimos

śaśvat — perpétuo; kāma — do desejo sexual; vareṇa — por causa da bênção; aṁhaḥ — a reação pecaminosa devido à matança de um brāhmaṇa; turīyam — um quarto; jagṛhuḥ — aceitaram; striyaḥ — mulhe­res; rajaḥ-rūpeṇa — sob a forma do período menstrual; tāsu — nelas; aṁhaḥ — a reação pecaminosa; māsi māsi — a cada mês; pradṛśyate — é visível.

Tradução

Em retribuição à bênção do senhor Indra de que seriam capazes de desfrutar de desejos luxuriosos continuamente, mesmo durante a gravidez, contanto que o ato sexual não prejudique o embrião, as mulheres aceitaram um quarto das reações pecaminosas. Como resultado dessas reações, a cada mês as mulheres manifestam os sinais da menstruação.

Comentário

SIGNIFICADO—As mulheres, como classe, são muito luxuriosas, e, ao que parece, seus contínuos desejos luxuriosos nunca são satisfeitos. Em retribuição à bênção do senhor Indra de que não haveria interrupção a seus desejos luxuriosos, as mulheres aceitaram um quarto das reações pecaminosas decorrentes do assassinato de um brāhmaṇa.

Texto

dravya-bhūyo-vareṇāpas
turīyaṁ jagṛhur malam
tāsu budbuda-phenābhyāṁ
dṛṣṭaṁ tad dharati kṣipan

Sinônimos

dravya — outras coisas; bhūyaḥ — de aumentar; vareṇa — pela bênção; āpaḥ — água; turīyam — um quarto; jagṛhuḥ — aceitou; malam — a reação pecaminosa; tāsu — na água; budbuda-phenābhyām — pelas bolhas e espumas; dṛṣṭam — visível; tat — isto; harati — uma pessoa recolhe; kṣipan — prescindindo de.

Tradução

E em sinal de agradecimento pela bênção do rei Indra de que a água aumentaria o volume das outras substâncias com que se misturasse, a água aceitou um quarto das reações pecaminosas. Por­tanto, aparecem bolhas e espumas na água. Quando alguém recolhe água, deve rejeitar as bolhas e espumas.

Comentário

SIGNIFICADO—Se a água é misturada com leite, suco de frutas ou outras subs­tâncias semelhantes, ela aumenta o seu volume, e ninguém consegue distinguir qual foi o item que aumentou. Em sinal de agradecimento por essa bênção, a água aceitou um quarto das reações pecaminosas de Indra. Essas reações pecaminosas são visíveis nas espumas e nas bolhas. Portanto, ao recolher a água, devem-se evitar as espumas e as bolhas.

Texto

hata-putras tatas tvaṣṭā
juhāvendrāya śatrave
indra-śatro vivardhasva
mā ciraṁ jahi vidviṣam

Sinônimos

hata-putraḥ — que perdeu seu filho; tataḥ — depois disso; tvaṣṭā — Tvaṣṭā; juhāva — executou um sacrifício; indrāya — de Indra; śatra­ve — para criar um inimigo; indra-śatro — ó inimigo de Indra; vivar­dhasva — aumenta; — não; ciram — após um longo tempo; jahi — mata; vidviṣam — teu inimigo.

Tradução

Depois que Viśvarūpa foi morto, Tvaṣṭā, seu pai, executou ceri­mônias ritualísticas para matar Indra. Ofereceu oblações no fogo de sacrifício, dizendo: “Ó inimigo de Indra, cresce para matar o teu inimigo sem demora.”

Comentário

SIGNIFICADO—Houve alguma falha na maneira como Tvaṣṭā cantou o mantra, porque ele o cantou longo em vez de curto, em virtude do que o significado mudou. Tvaṣṭā pretendia cantar a palavra indra-śatro, significando: “Ó inimigo de Indra.” Nesse mantra, a palavra indra está no genitivo (ṣaṣṭhī), e a palavra indra-śatro é chamada de composto tat-­puruṣa (tatpuruṣa-samāsa). Infelizmente, em vez de cantar o mantra curto, Tvaṣṭā o cantou longo, e seu significado mudou de “o inimi­go de Indra” para “Indra, que é um inimigo”. Em consequência disso, em vez de um inimigo de Indra, surgiu o corpo de Vṛtrāsura, de quem Indra era o inimigo.

Texto

athānvāhārya-pacanād
utthito ghora-darśanaḥ
kṛtānta iva lokānāṁ
yugānta-samaye yathā

Sinônimos

atha — depois disso; anvāhārya-pacanāt — do fogo conhecido como Anvāhārya; utthitaḥ — surgiu; ghora-darśanaḥ — parecendo muito sinistro; kṛtāntaḥ — aniquilação personificada; iva — como; lokānām — de todos os planetas; yuga-anta — do final do milênio; samaye — no momento; yathā — assim como.

Tradução

Depois disso, do lado sul do fogo de sacrifício conhecido como Anvāhārya, surgiu uma personalidade sinistra, que parecia o destrui­dor de toda a criação no final do milênio.

Texto

viṣvag vivardhamānaṁ tam
iṣu-mātraṁ dine dine
dagdha-śaila-pratīkāśaṁ
sandhyābhrānīka-varcasam
tapta-tāmra-śikhā-śmaśruṁ
madhyāhnārkogra-locanam
dedīpyamāne tri-śikhe
śūla āropya rodasī
nṛtyantam unnadantaṁ ca
cālayantaṁ padā mahīm
darī-gambhīra-vaktreṇa
pibatā ca nabhastalam
lihatā jihvayarkṣāṇi
grasatā bhuvana-trayam
mahatā raudra-daṁṣṭreṇa
jṛmbhamāṇaṁ muhur muhuḥ
vitrastā dudruvur lokā
vīkṣya sarve diśo daśa

Sinônimos

viṣvak — por toda parte; vivardhamānam — aumentando; tam — a ele; iṣu-mātram — o voo de uma flecha; dine dine — dia após dia; dagdha — chamuscada; śaila — montanha; pratīkāśam — parecendo; sandhyā — à tardinha; abhra-anīka — como um agrupamento de nuvens; varcasam — tendo uma refulgência; tapta — derretido; tāmra — como cobre; śikhā — pelos; śmaśrum — bigode e barba; madhyāhna — ao meio-dia; arka — como o sol; ugra-locanam — tendo olhos poderosos; dedīpyamāne — incandescente; tri-śikhe — de três pontas; śūle — em sua lança; āropya — mantendo; rodasī — céu e terra; nṛtyantam — dançan­do; unnadantam — gritando alto; ca — e; cālayantam — balançando; padā — com seu pé; mahīm — a Terra; darī-gambhīra — tão profunda como uma caverna; vaktreṇa — com a boca; pibatā — bebendo; ca — também; nabhastalam — o céu; lihatā — lambendo; jihvayā — com a língua; ṛkṣāṇi — as estrelas; grasatā — engolindo; bhuvana-trayam — os três mundos; mahatā — enormes; raudra-daṁṣṭreṇa — com dentes medonhos; jṛmbhamāṇam — bocejando; muhuḥ muhuḥ — repetidas vezes; vitrastāḥ — temerosas; dudruvuḥ — corriam; lokāḥ — as pessoas; vīkṣya — vendo; sarve — todas; diśaḥ daśa — as dez direções.

Tradução

Como flechas disparadas aos quatro ventos, o corpo do demônio crescia a cada dia que passava. Alto e enegrecido, ele parecia uma co­lina chamuscada e era tão fúlgido como um resplandecente agrupa­mento de nuvens ao fim da tarde. O pelo do corpo do demônio e sua barba e bigode tinham a cor do cobre derretido, e seus olhos eram pe­netrantes como o sol do meio-dia. Ele parecia invencível, como se estivesse segurando os três mundos nas pontas do seu tridente em chamas. Dançando e gritando, ele fazia toda a superfície da Terra tremer, como se ela estivesse sendo abalada por um terremoto. À medida que bocejava repetidas vezes, parecia tentar engolir todo o céu com sua boca, que era tão profunda como uma caverna. Parecia estar lambendo todas as estrelas do céu com sua língua e comendo todo o universo com seus dentes longos e afiados. Vendo esse demônio gigantesco, todos, com grande medo, corriam de um lado para outro, em todas as direções.

Texto

yenāvṛtā ime lokās
tapasā tvāṣṭra-mūrtinā
sa vai vṛtra iti proktaḥ
pāpaḥ parama-dāruṇaḥ

Sinônimos

yena — por quem; āvṛtāḥ — cobertos; ime — todos esses; lokāḥ — planetas; tapasā — pela austeridade; tvāṣṭra-mūrtinā — sob a forma do filho de Tvaṣṭā; saḥ — ele; vai — na verdade; vṛtraḥ — Vṛtra; iti — assim; proktaḥ — chamado; pāpaḥ — pecado personificado; parama-dāru­ṇaḥ — muito temível.

Tradução

Por força de sua austeridade, aquele temível demônio, que, em verdade, era o filho de Tvaṣṭā, cobriu todos os sistemas planetários. Portanto, ele foi chamado de Vṛtra, ou aquele que tudo encobre.

Comentário

SIGNIFICADO—Nos Vedas, afirma-se que sa imāl lokān āvṛṇot tad vṛtrasya vṛtra­tvam: porque o demônio cobriu todos os sistemas planetários, seu nome era Vṛtrāsura.

Texto

taṁ nijaghnur abhidrutya
sagaṇā vibudharṣabhāḥ
svaiḥ svair divyāstra-śastraughaiḥ
so ’grasat tāni kṛtsnaśaḥ

Sinônimos

tam — a ele; nijaghnuḥ — golpearam; abhidrutya — arremessando-se contra; sa-gaṇāḥ — com soldados; vibudha-ṛṣabhāḥ — todos os grandes semideuses; svaiḥ svaiḥ — com seus respectivos; divya — sobrenaturais; astra — arcos e flechas; śastra-oghaiḥ — diferentes armas; saḥ — ele (Vṛtra); agrasat — engoliu; tāni — a elas (as armas); kṛtsnaśaḥ — em conjunto.

Tradução

Com seus soldados, os semideuses, encabeçados por Indra, investiram contra o demônio, atacando-o com seus arcos, flechas e outras armas sobrenaturais, mas Vṛtrāsura engoliu todas essas armas.

Texto

tatas te vismitāḥ sarve
viṣaṇṇā grasta-tejasaḥ
pratyañcam ādi-puruṣam
upatasthuḥ samāhitāḥ

Sinônimos

tataḥ — depois disso; te — eles (os semideuses); vismitāḥ — pegos de surpresa; sarve — todos; viṣaṇṇāḥ — ficando muito melancólicos; grasta-tejasaḥ — tendo perdido toda a sua força pessoal; pratyañ­cam — à Superalma; ādi-puruṣam — a pessoa original; upatasthuḥ — oraram; samāhitāḥ — todos reunidos.

Tradução

Pegos de surpresa e decepcionados ao verem a força do demônio, os semideuses perderam sua própria força. Por isso, todos eles se reuniram para tentar satisfazer a Superalma, a Suprema Personalidade de Deus, Nārāyaṇa, prestando-Lhe adoração.

Texto

śrī-devā ūcuḥ
vāyv-ambarāgny-ap-kṣitayas tri-lokā
brahmādayo ye vayam udvijantaḥ
harāma yasmai balim antako ’sau
bibheti yasmād araṇaṁ tato naḥ

Sinônimos

śrī-devāḥ ūcuḥ — os semideuses disseram; vāyu — compostos de ar; ambara — céu; agni — fogo; ap — água; kṣitayaḥ — e terra; tri-lokāḥ — os três mundos; brahma-ādayaḥ — começando com o senhor Brahmā; ye — quem; vayam — nós; udvijantaḥ — tendo muito medo; harāma — oferecemos; yasmai — a quem; balim — presentes; antakaḥ — o destruidor, a morte; asau — isto; bibheti — teme; yasmāt — de quem; araṇam — refúgio; tataḥ — portanto; naḥ — nosso.

Tradução

Os semideuses disseram: Os três mundos foram criados pelos cinco elementos – a saber, éter, ar, fogo, água e terra –, os quais são controlados por vários semideuses, começando com o senhor Brahmā. Tendo muito medo de que o fator tempo acabe com a nossa existência, oferecemos dádivas ao tempo, executando o trabalho que o tempo nos impõe. Contudo, o próprio fator tempo teme a Suprema Personalidade de Deus. Portanto, adoremos esse Senhor Supremo, pois apenas Ele pode conceder-nos completa proteção.

Comentário

SIGNIFICADO—Quando alguém teme ser morto, deve refugiar-se na Suprema Personalidade de Deus. Ele é adorado por todos os semideuses, começando com Brahmā, embora eles estejam encarregados dos vários elementos deste mundo material. As palavras bibheti yasmāt indicam que todos os demônios, não importando quão grandes e poderosos sejam, temem a Suprema Personalidade de Deus. Receando a morte, os semideuses se refugiaram no Senhor e Lhe ofereceram essas orações. Embora o fator tempo amedronte todos, o medo personificado teme o Senhor Supremo, que, portanto, é conhecido como abhaya, o destemido. Refugiar-se no Senhor Supremo traz verdadeiro destemor, daí os semideuses terem-se decidido pelo refúgio no Senhor.

Texto

avismitaṁ taṁ paripūrṇa-kāmaṁ
svenaiva lābhena samaṁ praśāntam
vinopasarpaty aparaṁ hi bāliśaḥ
śva-lāṅgulenātititarti sindhum

Sinônimos

avismitam — que nunca se espanta; tam — Ele; paripūrṇa­-kāmam — que é plenamente satisfeito; svena — com Suas próprias; eva — na verdade; lābhena — conquistas; samam — equânime; pra­śāntam — muito estável; vinā — sem; upasarpati — aproxima-se de; aparam — outrem; hi — na verdade; bāliśaḥ — um tolo; śva — de um cachorro; lāṅgulena — pela cauda; atititarti — quer cruzar; sindhum — o oceano.

Tradução

Livre de todas as concepções da existência material e nunca Se deixando espantar por coisa alguma, o Senhor é sempre alegre e ple­namente satisfeito com Sua própria perfeição espiritual. Ele não tem designações materiais e, portanto, é estável e desapegado. Essa Su­prema Personalidade de Deus é o único refúgio de todos. Quem deseja ser protegido por outrem decerto é um grande tolo que pensa em cruzar o oceano se agarrando à cauda de um cachorro.

Comentário

SIGNIFICADO—Um cachorro pode nadar na água, mas, se ele mergulha no oceano e alguém quer cruzar o oceano se agarrando à cauda do animal, tal pessoa é certamente o tolo número um. Um cachorro não pode cruzar o oceano, tampouco alguém pode cruzar o oceano se agarrando­ à cauda de um cão. Do mesmo modo, quem deseja cruzar o oceano de ignorância não deve buscar o refúgio de algum semi­deus ou de qualquer outra pessoa que não seja a Suprema Persona­lidade de Deus, cujo refúgio produz destemor. O Śrīmad-Bhāgavatam (10.14.58), portanto, diz:

samāśritā ye pada-pallava-plavaṁ
mahat-padaṁ puṇya-yaśo-murāreḥ
bhavāmbudhir vatsa-padaṁ paraṁ padaṁ
padaṁ padaṁ yad vipadāṁ na teṣām

Os pés de lótus do Senhor são um barco indestrutível, e, se alguém se refugia nesse barco, pode facilmente cruzar o oceano de ignorân­cia. Por conseguinte, não há perigo para o devoto, embora ele viva dentro deste mundo material, que é repleto de peri­gos a cada passo. As pessoas devem buscar o refúgio do todo-poderoso em vez de tentar se protegerem através de suas próprias ideias inventadas.

Texto

yasyoru-śṛṅge jagatīṁ sva-nāvaṁ
manur yathābadhya tatāra durgam
sa eva nas tvāṣṭra-bhayād durantāt
trātāśritān vāricaro ’pi nūnam

Sinônimos

yasya — de quem; uru — muito forte e destacado; śṛṅge — no chifre; jagatīm — sob a forma do mundo; sva-nāvam — seu próprio barco; manuḥ — Manu, o rei Satyavrata; yathā — assim como; ābadhya — amarrando; tatāra — cruzou; durgam — (a inundação) dificílima de atravessar; saḥ — Ele (a Suprema Personalidade de Deus); eva — decerto; naḥ — a nós; tvāṣṭra-bhayāt — do medo do filho de Tvaṣṭā; du­rantāt — interminável; trātā — libertador; āśritān — dependentes (como nós); vāri-caraḥ api — embora assumindo a forma de peixe; nūnam — na verdade.

Tradução

O Manu chamado rei Satyavrata se salvou outrora ao amarrar ao chifre do avatāra Matsya, a encarnação de peixe, o pequeno bote do mundo inteiro. Pela graça do avatāra Matsya, Manu se salvou do grande perigo da inundação. Que essa mesma encarnação de peixe nos salve do grande e terrível perigo causado pelo filho de Tvaṣṭā.

Texto

purā svayambhūr api saṁyamāmbhasy
udīrṇa-vātormi-ravaiḥ karāle
eko ’ravindāt patitas tatāra
tasmād bhayād yena sa no ’stu pāraḥ

Sinônimos

purā — outrora (durante a época da criação); svayambhūḥ — o senhor Brahmā; api — também; saṁyama-ambhasi — na água da inun­dação; udīrṇa — muito forte; vata — do vento; ūrmi — e das ondas; ravaiḥ — pelos sons; karāle — muito horripilantes; ekaḥ — sozinho; aravindāt — do assento de lótus; patitaḥ — quase caindo; tatāra — es­capou; tasmāt — dessa; bhayāt — situação temerária; yena — por quem (o Senhor); saḥ — Ele; naḥ — nossa; astu — que haja; pāraḥ — salvação.

Tradução

No começo da criação, um vento formidável provocou incontroláveis ondas de água inundante. As grandes ondas produziram um som tão horripilante que o senhor Brahmā, sentado no lótus, quase caiu na água da devastação, mas foi salvo pelo socorro do Senhor. Assim também, esperamos que o Senhor nos proteja desta condição perigosa.

Texto

ya eka īśo nija-māyayā naḥ
sasarja yenānusṛjāma viśvam
vayaṁ na yasyāpi puraḥ samīhataḥ
paśyāma liṅgaṁ pṛthag īśa-māninaḥ

Sinônimos

yaḥ — Ele que; ekaḥ — um; īśaḥ — controlador; nija-māyayā — através de Sua potência transcendental; naḥ — a nós; sasarja — criou; yena — por quem (por cuja misericórdia); anusṛjāma — também criamos; viśvam — o universo; vayam — nós; na — não; yasya — de quem; api — embora; puraḥ — diante de nós; samīhataḥ — daquele que está agindo; paśyāma — vemos; liṅgam — a forma; pṛthak — separados; īśa — como controladores; māninaḥ — pensando em nós.

Tradução

A Suprema Personalidade de Deus, que nos criou através de Sua potência externa e por cuja misericórdia expandimos a criação do universo, sempre está situado diante de nós como a Superalma, mas não podemos ver Sua forma. Somos incapazes de vê-lO porque todos nós pensamos que somos deuses separados e independentes.

Comentário

SIGNIFICADO—Eis uma explicação que demonstra por que a alma condicionada não pode ver a Suprema Personalidade de Deus face a face. Muito em­bora o Senhor apareça diante de nós como o Senhor Kṛṣṇa ou o Senhor Rāmacandra e viva na sociedade humana como um líder ou rei, a alma condicionada não pode entendê-lO. Avajānanti māṁ mūḍhā mānuṣīṁ tanum āśritam: os patifes (mūdhas) zombam da Su­prema Personalidade de Deus, pensando que Ele é um ser humano comum. Por mais insignificantes que sejamos, pensamos que também somos Deus, que podemos criar um universo ou que podemos criar outro Deus. É por isso que não podemos ver ou entender a Suprema Personalidade de Deus. Com relação a isso, Śrīla Madhvācārya diz:

liṅgam eva paśyāmaḥ
kadācid abhimānas tu
devānām api sann iva
prāyaḥ kāleṣu nāsty eva
tāratamyena so ’pi tu

Todos nós temos diversos graus de condicionamento, mas pensamos que somos Deus. É devido a isso que não podemos entender quem é Deus ou vê-lO face a face.

Texto

yo naḥ sapatnair bhṛśam ardyamānān
devarṣi-tiryaṅ-nṛṣu nitya eva
kṛtāvatāras tanubhiḥ sva-māyayā
kṛtvātmasāt pāti yuge yuge ca
tam eva devaṁ vayam ātma-daivataṁ
paraṁ pradhānaṁ puruṣaṁ viśvam anyam
vrajāma sarve śaraṇaṁ śaraṇyaṁ
svānāṁ sa no dhāsyati śaṁ mahātmā

Sinônimos

yaḥ — aquele que; naḥ — a nós; sapatnaiḥ — por nossos inimigos, os demônios; bhṛśam — quase sempre; ardyamānān — sendo perseguidos; deva — entre os semideuses; ṛṣi — as pessoas santas; tiryak — os animais; nṛṣu — e os homens; nityaḥ — sempre; eva — decerto; kṛta-avatāraḥ — aparecendo como encarnação; tanubhiḥ — com diferentes formas; sva-māyayā — através de Sua potência interna; kṛtvā ātmasāt — considerando muito próximos e queridos dEle; pāti — protege; yuge yuge — em todo milênio; ca — e; tam — Ele; eva — na verdade; devam — o Senhor Supremo; vayam — todos nós; ātma-daivatam — o Senhor de todas as entidades vivas; param — transcendental; pradhānam — a causa que origina a totalidade da energia material; puruṣam — o des­frutador supremo; viśvam — cuja energia constitui este universo; anyam — separadamente situado; vrajāma — aproximamo-nos de; sarve — todos; śaraṇam — refúgio; śaraṇyam — adequado como abrigo; svānām — aos Seus próprios devotos; saḥ — Ele; naḥ — a nós; dhāsya­ti — dará; śam — boa fortuna; mahātmā — a Superalma.

Tradução

Através de Sua inconcebível potência interna, a Suprema Personalidade de Deus assume vários corpos transcendentais e se expande como Vāmanadeva, a encarnação da força entre os semideuses; Paraśurāma, a encarnação entre os santos; Nṛsiṁhadeva e Varāha, encarnações entre os animais; e Matsya e Kūrma, encarnações entre os seres aquáticos. Entre todas as classes de entidades vivas, Ele aceita vários corpos transcendentais e, entre os seres humanos, Ele aparece especialmente como o Senhor Kṛṣṇa e o Senhor Rāma. Por Sua misericórdia imotivada, Ele protege os semideuses, que sempre são hostilizados pelos demônios. Ele é a Deidade suprema e digna da adoração de todas as entidades vivas. Ele é a causa suprema, repre­sentado como as energias criativas masculina e feminina. Embora diferente deste universo, Ele existe sob Sua forma universal [virāṭ­-rūpa]. Em nossa condição temerária, refugiemo-nos nEle, pois es­tamos certos de que o Senhor Supremo, a Alma Suprema, conferirá Sua proteção a nós.

Comentário

SIGNIFICADO—Neste verso, define-se Viṣṇu, a Suprema Personalidade de Deus, como a causa a partir da qual se origina a criação. Śrīdhara Svāmī, em seu comentário Bhāvārtha-dīpikā, responde à ideia de que prakṛti e puruṣa são as causas da manifestação cósmica. Como se afirma aqui, paraṁ pradhānaṁ puruṣaṁ viśvam anyam: “Ele é a causa suprema, representado como as energias criativas masculina e feminina. Em­bora diferente deste universo, Ele existe sob Sua forma universal [virāṭ-rūpa].” A palavra prakṛti, usada para indicar a fonte da ge­ração, refere-se à energia material do Senhor Supremo, e a palavra puruṣa se refere às entidades vivas, que são a energia superior do Senhor. Tanto prakṛti quanto puruṣa, em última análise, entram no Senhor Supremo, como se afirma na Bhagavad-gītā (prakṛtiṁ yānti māmikām)

Embora prakṛti e puruṣa pareçam superficialmente as causas da manifestação material, ambas são emanações das diferentes energias do Senhor Supremo. Portanto, o Senhor Supremo é a causa de prakṛti e de puruṣa. Ele é a causa original (sarva-kāraṇa-kāraṇam). O Nāradīya Purāṇa diz:

avikāro ’pi paramaḥ
prakṛtis tu vikāriṇī
anupraviśya govindaḥ
prakṛtiś cābhidhīyate

Tanto prakṛti quanto puruṣa, as energias inferior e superior, são emanações da Suprema Personalidade de Deus. Como se explica na Bhagavad-gītā (gām āviśya), o Senhor entra na prakṛti, após o que a prakṛti cria diferentes manifestações. A prakṛti não é independente de Suas energias nem as excede. Vāsudeva, o Senhor Śrī Kṛṣṇa, é a causa que origina tudo. Portanto, o Senhor diz na Bhagavad-gītā (10.8):

ahaṁ sarvasya prabhavo
mattaḥ sarvaṁ pravartate
iti matvā bhajante māṁ
budhā bhāva-samanvitāḥ

“Eu sou a fonte de todos os mundos materiais e espirituais. Tudo emana de Mim. Os sábios que conhecem isso perfeitamente ocupam-se no Meu serviço devocional e adoram-Me de todo o coração.” No Śrīmad-Bhāgavatam (2.9.33), o Senhor também diz que aham evāsam evāgre: “Somente Eu existia antes da criação.” O Brahmāṇḍa Purāṇa confirma isso da seguinte maneira:

smṛtir avyavadhānena
prakṛtitvam iti sthitiḥ
ubhayātmaka-sūtitvād
vāsudevaḥ paraḥ pumān
prakṛtiḥ puruṣaś ceti
śabdair eko ’bhidhīyate

Para produzir este universo, o Senhor age indiretamente como o puruṣa e, diretamente, como a prakṛti. Porque ambas as energias emanam do Senhor Vāsudeva, a onipenetrante Suprema Personali­dade de Deus, Ele é conhecido como prakṛti e puruṣa. Portanto, Vāsudeva é a causa de tudo (sarva-kāraṇa-kāraṇam).

Texto

śrī-śuka uvāca
iti teṣāṁ mahārāja
surāṇām upatiṣṭhatām
pratīcyāṁ diśy abhūd āviḥ
śaṅkha-cakra-gadā-dharaḥ

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; iti — assim; teṣām — deles; mahārāja — ó rei; surāṇām — dos semideuses; upatiṣṭhatām — orações; pratīcyām — interna; diśi — na direção; abhūt — ficou; āviḥ — visível; śaṅkha-cakra-gadā-dharaḥ — portando as armas transcenden­tais: o búzio, o disco e a maça.

Tradução

Śrī Śukadeva Gosvāmī disse: Meu querido rei, quando todos os semideuses Lhe ofereceram suas orações, o Senhor Hari, a Supre­ma Personalidade de Deus, portando Suas armas, o búzio, o disco e a maça, apareceu primeiramente dentro de seus corações e, em seguida, diante deles.

Texto

ātma-tulyaiḥ ṣoḍaśabhir
vinā śrīvatsa-kaustubhau
paryupāsitam unnidra-
śarad-amburuhekṣaṇam
dṛṣṭvā tam avanau sarva
īkṣaṇāhlāda-viklavāḥ
daṇḍavat patitā rājañ
chanair utthāya tuṣṭuvuḥ

Sinônimos

ātma-tulyaiḥ — quase iguais a Ele mesmo; ṣoḍaśabhiḥ — por dezesseis (servos); vinā — sem; śrīvatsa-kaustubhau — a marca de Śrīvatsa e a joia Kaustubha; paryupāsitam — sendo escoltado de todos os lados; unnidra — vicejando; śarat — outonais; amburuha — como flores de lótus; īkṣaṇam — tendo olhos; dṛṣṭvā — vendo; tam — a Ele (Nārāya­ṇa, a Suprema Personalidade de Deus); avanau — ao chão; sarve­ — todos eles; īkṣaṇa — de verem diretamente; āhlāda — de felicidade; viklavāḥ — estando inundados; daṇḍa-vat — como uma vara; patitāḥ — caíram; rājan — o rei; śanaiḥ — de lentamente; utthāya — levantando-se; tuṣṭuvuḥ — ofereceram orações.

Tradução

Cercando e servindo a Suprema Personalidade de Deus, Nārāyaṇa, havia dezesseis atendentes pessoais, decorados com ornamentos e com uma aparência idêntica à dEle, com a diferença de que lhes faltavam a marca de Śrīvatsa e a joia Kaustubha. Ó rei, ao verem o Senhor Supremo naquela postura, sorrindo com olhos que lembra­vam pétalas de lótus crescidas no outono, todos os semideuses fica­ram inundados de felicidade e, oferecendo daṇḍavats, imediatamente caíram como varas. Depois, levantaram-se lentamente e agradaram o Senhor oferecendo-Lhe orações.

Comentário

SIGNIFICADO—Em Vaikuṇṭhaloka, a Suprema Personalidade de Deus possui quatro braços e decorações, tais como a marca Śrīvatsa sobre Seu peito e a joia conhecida como Kaustubha. Esses são os distintivos especiais da Suprema Personalidade de Deus. Os assistentes pessoais do Senhor e outros devotos de Vaikuṇṭha possuem os mesmos traços, excetuando que lhes faltam a marca Śrīvatsa e a joia Kaustubha.

Texto

śrī-devā ūcuḥ
namas te yajña-vīryāya
vayase uta te namaḥ
namas te hy asta-cakrāya
namaḥ supuru-hūtaye

Sinônimos

śrī-devāḥ ūcuḥ — os semideuses disseram; namaḥ — reverências; te — a Vós; yajña-vīryāya — à Suprema Personalidade de Deus, que podeis dar os resultados dos sacrifícios; vayase — que sois o fator tempo, que põe termo aos resultados do yajña; uta — embora; te — a Vós; namaḥ — reverências; namaḥ — reverências; te — a Vós; hi — na verdade; asta-cakrāya — que lançais o disco; namaḥ — respeitosas reverências; supuru-hūtaye — tendo muitas variedades de nomes transcendentais.

Tradução

Os semideuses disseram: Ó Suprema Personalidade de Deus, sois competente para outorgar os resultados dos sacrifícios, e também sois o fator tempo que, chegado o momento, destrói todos esses re­sultados. Sois aquele que lançais o cakra para matar os demônios. Ó Senhor, possuidor de muitas variedades de nomes, nós Vos oferecemos respeitosas reverências.

Texto

yat te gatīnāṁ tisṛṇām
īśituḥ paramaṁ padam
nārvācīno visargasya
dhātar veditum arhati

Sinônimos

yat — a qual; te — Vossa; gatīnām tisṛṇām — dos três destinos (os planetas celestiais, os planetas terrestres e o inferno); īśituḥ — que sois o controlador; paramam padam — a morada suprema, Vaikuṇṭhaloka; na — não; arvācīnaḥ — uma pessoa aparecendo após; visargasya — a criação; dhātaḥ — ó controlador supremo; veditum — de entender; arhati — é capaz.

Tradução

Ó controlador supremo, controlais os três destinos [promoção rumo aos planetas celestiais, nascimento como ser humano e condenação rumo ao inferno], e, ao mesmo tempo, Vossa morada suprema é o Vaikuṇṭha-dhāma. Como aparecemos apenas depois que criastes esta manifestação cósmica, é-nos impossível entender Vossas atividades. Portanto, tudo o que nos resta é oferecer-Vos nossas humildes reverências.

Comentário

SIGNIFICADO—É comum um homem inexperiente não saber o que pedir à Su­prema Personalidade de Deus. Todos estão sob a jurisdição do mundo material criado, e, ao orar ao Senhor Supremo, ninguém sabe a bênção que deve pedir. De um modo geral, as pessoas oram para serem promovidas aos planetas celestiais, pois não têm infor­mação alguma acerca de Vaikuṇṭhaloka. Śrīla Madhvācārya cita o seguinte verso:

deva-lokāt pitṛ-lokāt
nirayāc cāpi yat param
tisṛbhyaḥ paramaṁ sthānaṁ
vaiṣṇavaṁ viduṣāṁ gatiḥ

Existem diferentes sistemas planetários, conhecidos como Devaloka (os planetas dos semideuses), Pitṛloka (o planeta dos Pitās) e Niraya (os planetas infernais). Quando alguém transcende esses vários sistemas planetários e entra em Vaikuṇṭhaloka, ele alcança o local que é o refúgio último dos vaiṣṇavas. Os vaiṣṇavas não possuem qualquer ligação com os outros sistemas planetários.

Texto

oṁ namas te ’stu bhagavan nārāyaṇa vāsudevādi-puruṣa mahā-puruṣa mahānubhāva parama-maṅgala parama-kalyāṇa parama-kāruṇika kevala jagad-ādhāra lokaika-nātha sarveśvara lakṣmī-nātha paramahaṁsa-parivrājakaiḥ parameṇātma-yoga-samādhinā paribhāvita-parisphuṭa-pāramahaṁsya-dharmeṇodghāṭita-tamaḥ-kapāṭa-dvāre citte ’pāvṛta ātma-loke svayam upalabdha-nija-sukhānubhavo bhavān.

Sinônimos

oṁ — ó Senhor; namaḥ — respeitosas reverências; te — a Vós; astu — que assim o seja; bhagavan — ó Suprema Personalidade de Deus; nārāyaṇa — Nārāyaṇa, o abrigo de todas as entidades vivas; vāsu­deva — Senhor Vāsudeva, Śrī Kṛṣṇa; ādi-puruṣa — a pessoa original; mahā-puruṣa — a personalidade mais insigne; mahā-anubhāva — o supremamente opulento; parama-maṅgala — o mais auspicioso; parama-­kalyāṇa — a bênção suprema; parama-kāruṇika — o supremamente misericordioso; kevala — imutável; jagat-ādhāra — o alicerce da ma­nifestação cósmica; loka-eka-nātha — o proprietário único de todos os sistemas planetários; sarva-īśvara — o controlador supremo; lakṣmī­-nātha — o esposo da deusa da fortuna; paramahaṁsa-parivrājakaiḥ — pelos sannyāsīs mais elevados, que vagam mundo afora; parameṇa — por suprema; ātma-yoga-samādhinā — absorção em bhakti-yoga; paribhāvita — plenamente purificado; parisphuṭa — e plenamente manifesto; pāramahaṁsya-dharmeṇa — por executar o processo trans­cendental de serviço devocional; udghāṭita — escancarada; tamaḥ — ­da existência ilusória; kapāṭa — no qual a porta; dvāre — existindo como entrada; citte — na mente; apāvṛte — sem contaminação; ātma-­loke — no mundo espiritual; svayam — pessoalmente; upalabdha — experimentando; nija — própria; sukha-anubhavaḥ — percepção de felicidade; bhavān — Vossa Onipotência.

Tradução

Ó Suprema Personalidade de Deus, ó Nārāyaṇa, ó Vāsudeva, a pessoa original! Ó personalidade insigne, experiência suprema, bem-estar personificado! Ó bênção suprema, que tendes misericór­dia suprema e sois imutável! Ó alicerce da manifestação cósmica, proprietário único de todos os sistemas planetários, mestre de tudo e esposo da deusa da fortuna! Vossa Onipotência é depreendido pelos sannyāsīs mais elevados, que vagam mundo afora para pregar a cons­ciência de Kṛṣṇa, absortos em pleno samādhi através de bhakti-yoga. Porque suas mentes estão concentradas em Vós, seus corações ple­namente purificados podem acolher o conceito atinente à Vossa personalidade. Quando a escuridão em seus corações é erradicada por completo e Vós Vos revelais a eles, a bem-aventurança transcendental de que eles desfrutam é a forma transcendental de Vossa Onipotên­cia. Ninguém além dessas pessoas pode compreender-Vos. Portan­to, tudo o que fazemos é oferecer-Vos nossas respeitosas reverências.

Comentário

SIGNIFICADO—A Suprema Personalidade de Deus tem numerosos nomes transcendentais, que correspondem a diferentes graus de revelação a várias categorias de devotos e transcendentalistas. Ao ser compreendido sob Sua forma impessoal, Ele é chamado de Brahman Supremo; quando compreendido como Paramātmā, Ele é chamado de antaryā­mī, e, ao expandir-Se em diferentes formas para executar a criação material, Ele Se chama Kṣīrodakaśāyī Viṣṇu, Garbhodakaśāyī Viṣṇu e Kāraṇodakaśāyī Viṣṇu. Ao ser compreendido como Vāsudeva, Saṅkarṣaṇa, Pradyumna e Aniruddha – o Caturvyūha, que está além das três formas de Viṣṇu –, Ele é o Nārāyaṇa de Vaikuṇṭha. Acima da capacidade de perceber Nārāyaṇa, está a capacidade de perceber Baladeva e, acima desta, fica a etapa em que se compreende Kṛṣṇa. Todas essas percepções são possíveis àquele que se ocupa em serviço devocional pleno. O coração hermético, então, escancara-se para receber a capacidade de compreender as várias formas da Suprema Personalidade de Deus.

Texto

duravabodha iva tavāyaṁ vihāra-yogo yad aśaraṇo ’śarīra idam anavekṣitāsmat-samavāya ātmanaivāvikriyamāṇena saguṇam aguṇaḥ sṛjasi pāsi harasi.

Sinônimos

duravabodhaḥ — difícil de entender; iva — bastante; tava — Vossa; ayam — essa; vihāra-yogaḥ — ocupação nos passatempos da criação, manutenção e aniquilação materiais; yat — o qual; aśaraṇaḥ — não dependeis de algum outro auxílio; aśarīraḥ — sem terdes um corpo material; idam — isto; anavekṣita — sem esperar por; asmat — nossa; samavāyaḥ — cooperação; ātmanā — mediante Vosso próprio eu; eva — na verdade; avikriyamāṇena — sem sofrerdes mudança; sa-­guṇam — os modos da natureza material; aguṇaḥ — embora transcen­dental a essas qualidades materiais; sṛjasi — criais; pāsi — mantendes; harasi — aniquilais.

Tradução

Ó Senhor, não precisais de auxílio algum e, embora não tenhais um corpo material, não precisais da nossa cooperação. Uma vez que sois a causa da manifestação cósmica e, sem sofrerdes nenhuma mudança, forneceis os seus ingredientes materiais, sozinho, Vós criais, mantendes e aniquilais esta manifestação cósmica. Entretanto, em­bora pareçais ocupado em atividades materiais, sois transcendental a todas as qualidades materiais. Em consequência disso, é extremamente difícil entender essas Vossas atividades transcendentais.

Comentário

SIGNIFICADO—A Brahma-saṁhitā (5.37) diz que goloka eva nivasaty akhilātma-­bhūtaḥ: Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, sempre Se encontra em Goloka Vṛndāvana. Também se diz que vṛndāvanaṁ parityajya padam ekaṁ na gacchati: Kṛṣṇa jamais dá sequer um passo para fora dos limites de Vṛndāvana. Entretanto, embora esteja situa­do em Sua própria morada, Goloka Vṛndāvana, Kṛṣṇa é, ao mesmo tempo, onipenetrante e, portanto, está presente em toda parte. Isso é muito difícil para uma alma condicionada entender, mas os devo­tos podem compreender como Kṛṣṇa, sem se submeter a quaisquer mudanças, pode, simultaneamente, estar em Sua morada e ser onipenetrante. Os semideuses são tidos como os vários membros do corpo do Senhor Supremo, embora o Senhor não tenha corpo material e não precise da ajuda de ninguém. Ele Se expande por toda parte (mayā tatam idaṁ sarvaṁ jagad avyakta-mūrtinā). Entretanto, Ele não está presente em toda parte em Sua forma espiritual. De acordo com a filosofia māyāvāda, a Verdade Suprema, sendo onipenetran­te, não necessita de uma forma transcendental. Os māyāvādīs supõem que, como Sua forma se distribui por toda parte, Ele não tem forma. Isso não é verdade. O Senhor mantém Sua forma transcendental e, ao mesmo tempo, expande-Se por toda e cada parte da criação material.

Texto

atha tatra bhavān kiṁ devadattavad iha guṇa-visarga-patitaḥ pāratantryeṇa sva-kṛta-kuśalākuśalaṁ phalam upādadāty āhosvid ātmārāma upaśama-śīlaḥ samañjasa-darśana udāsta iti ha vāva na vidāmaḥ.

Sinônimos

atha — portanto; tatra — nessa; bhavān — Vossa Onipotência; kim — se; deva-datta-vat — como um ser humano comum, forçado pelos frutos de suas atividades; iha — neste mundo material; guṇa-visarga-­patitaḥ — caído em um corpo material, impelido pelos modos da natureza material; pāratantryeṇa — na dependência das condições de tempo, espaço, atividade e natureza; sva-kṛta — executada por alguém; kuśala — auspiciosa; akuśalam — inauspiciosa; phalam — resultados da ação; upādadāti — aceitais; āhosvit — ou; ātmārāmaḥ — inteiramente autossatisfeito; upaśama-śīlaḥ — autocontrolado por natureza; samañ­jasa-darśanaḥ — que não sois desprovido de potências espirituais plenas; udāste — permaneceis neutro como testemunha; iti — assim; ha vāva — com certeza; na vidāmaḥ — não compreendemos.

Tradução

Estas são nossas perguntas. A alma condicionada comum está su­jeita às leis materiais e, dessa maneira, recebe os frutos de suas ações. Vossa Onipotência, assim como acontece ao ser humano comum, existe dentro deste mundo material em um corpo produzido pelos modos materiais? Desfrutais ou sofreis os resul­tados positivos ou negativos das ações executadas sob a influência do tempo ou os resulta­dos das atividades passadas e assim por diante? Ou, em vez disso, estais presente aqui apenas como uma testemunha neutra que é autossuficiente, livre de todos os desejos materiais e sempre plena de potência espiritual? É certo que não podemos entender Vossa verdadeira posição.

Comentário

SIGNIFICADO—Na Bhagavad-gītā, Kṛṣṇa diz que, ao vir a este mundo material, Ele tem dois propósitos, a saber, paritrāṇāya sādhūnāṁ vināśāya ca duṣkṛtām – libertar os devotos e matar os demônios ou não-devotos. Para a Verdade Absoluta, essas duas classes de atividades são a mesma coisa. Ao vir castigar os demônios, o Senhor lhes outorga o Seu favor, e, igualmente, ao libertar os Seus devotos e lhes trazer alívio, Ele também outorga o Seu favor. Assim, o Senhor favorece as almas condicionadas indistintamente. Ao trazer alívio para outrem, a alma condicionada age piedosamente, e, ao lhe causar problemas, age impiedosamente, mas o Senhor não é piedoso nem impiedoso; Ele sempre é completo em Sua potência espiritual, através da qual demonstra a mesma misericórdia para quem é digno de punição e para quem é digno de proteção. O Senhor é apāpa-viddham; Ele nunca Se contamina com as reações das atividades aparentemente pecamino­sas. Quando esteve presente nesta Terra, Kṛṣṇa matou muitos inimigos não-devotos, mas todos eles receberam sārūpya, em outras palavras, obtiveram seus corpos espirituais originais. Aquele que não conhece a posição do Senhor diz que Deus é ingrato para com ele, mas é misericordioso com os outros. Na verdade, na Bhagavad-gītā (9.29), o Senhor diz que samo ’haṁ sarva-bhūteṣu na me dveṣyo ’sti na priyaḥ: “Eu sou igual com todos. Ninguém é Meu inimigo, e ninguém é Meu amigo.” Mas Ele também diz que ye bhajanti tu māṁ bhaktyā mayi te teṣu cāpy aham: “Se alguém se torna Meu devoto e se rende completamente a Mim, Eu lhe dou atenção especial.”

Texto

na hi virodha ubhayaṁ bhagavaty aparimita-guṇa-gaṇa īśvare ’navagāhya-māhātmye ’rvācīna-vikalpa-vitarka-vicāra-pramāṇābhāsa-kutarka-śāstra-kalilāntaḥkaraṇāśraya-duravagraha-vādināṁ vivādānavasara uparata-samasta-māyāmaye kevala evātma-māyām antardhāya ko nv artho durghaṭa iva bhavati svarūpa-dvayābhāvāt.

Sinônimos

na — não; hi — decerto; virodhaḥ — contradição; ubhayam — ambas; bhagavati — na Suprema Personalidade de Deus; aparimita — ilimitados; guṇa-gaṇe — cujos atributos transcendentais; īśvare — no controlador supremo; anavagāhya — possuindo; māhātmye — habilidade e glórias incomensuráveis; arvācīna — recentes; vikalpa — cheios de cálculos equivocados; vitarka — argumentos contraditórios; vicāra — julgamentos; pramāṇa-ābhāsa — evidência imperfeita; kutarka — argumentos inúteis; śāstra — pelas escrituras desautorizadas; kalila — agitadas; antaḥ-karaṇa — mentes; āśraya — cujo abrigo; duravagraha — com obstinações viciosas; vādinām — dos teóricos; vivāda — das controvérsias; anavasare — fora do âmbito; uparata — afastada; sa­masta — de todos os quais; māyā-maye — energia ilusória; kevale — sem rival; eva — na verdade; ātma-māyām — a energia ilusória, que pode fazer e desfazer o inconcebível; antardhāya — pondo entre; kaḥ — o que; nu — na verdade; arthaḥ — significado; durghaṭaḥ — impossível; iva — como se fosse; bhavati — é; sva-rūpa — naturezas; dvaya — de duas; abhāvāt — devido à ausência.

Tradução

Ó Suprema Personalidade de Deus, todas as contradições podem ser dirimidas em Vós. Ó Senhor, como sois a Pessoa Suprema, o reservatório de ilimitadas qualidades espirituais, o controlador supremo, Vossas glórias ilimitadas são inconcebíveis para as almas condicionadas. Sem conhecer precisamente o certo, muitos teólogos modernos argumentam sobre o certo e o errado. Esses argumentos sempre são falsos e os julgamentos inconsistentes porque tais in­divíduos não têm a evidência autorizada de como proceder para conhecer-Vos. Porque suas mentes são agitadas pelas escrituras que contêm conclusões falsas, eles são incapazes de entender a verdade referente a Vós. Ademais, em razão de sua ansiedade poluída, às custas da qual querem chegar à conclusão certa, suas teorias são incapazes de revelar quem sois, Vós que transcendeis todas essas concepções ma­teriais. Ninguém se compara a Vós, e, portanto, em Vós, contradições tais como fazer e não fazer, felicidade e tristeza, não são contraditórias. Vossa potência é tamanha que pode fazer e desfazer qualquer coisa como bem quiserdes. Com a ajuda dessa potência, o que é impossível para Vós? Como em Vossa posição consti­tucional não há dualidade, podeis fazer tudo mediante a influência de Vossa energia.

Comentário

SIGNIFICADO—A Suprema Personalidade de Deus, sendo autossuficiente, é plena de bem-aventurança transcendental (ātmārāma). Há duas maneiras como Ele desfruta de bem-aventurança – quando parece feliz e quando parece infeliz. As distinções e contradições são impossíveis nEle porque somente dEle elas emanaram. A Suprema Personalidade de Deus é o reservatório de todo o conhecimento, toda a potência, toda a força, opulência e influência. Não há limite para Seus pode­res. Uma vez que Ele é pleno de todos os atributos transcendentais, nada de abominável que se vê no mundo material pode existir nEle. Ele é transcendental e espiritual, daí os conceitos de felici­dade e infelicidade materiais não se aplicarem a Ele.

Não devemos nos espantar se encontramos contradições na Supre­ma Personalidade de Deus. Na verdade, não existem contradições. Esse é o significado de Ele ser supremo. Porque Ele é todo-poderoso, Ele não está sujeito aos argumentos das almas condicionadas que questionam a Sua existência. Ele fica satisfeito em proteger Seu devoto, matando os seus inimigos. Para Ele, causar essa morte e dar essa proteção são motivos de muita satisfação.

Essa liberdade de dualidades se aplica não apenas ao Senhor, mas também aos Seus devotos. Em Vṛndāvana, as donzelas de Vrajabhūmi desfrutam de bem-aventurança transcendental na companhia de Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, e, em separação, quando Kṛṣṇa e Balarāma Se ausentam de Vṛndāvana e partem rumo a Mathurā, sentem a mesma bem-aventurança transcendental. Está fora de cogitação a existência de dores ou prazeres materiais na Suprema Personalidade de Deus ou em Seus devotos puros, embora, algumas vezes, possa-se dizer superficialmente que eles estão aflitos ou felizes. O ātmārāma é bem-aventurado em ambas as condições.

Os não-devotos não podem entender as contradições presentes no Senhor Supremo ou em Seus devotos. Portanto, na Bhagavad-gītā, o Senhor diz que bhaktyā mām abhijānāti: os passatempos transcendentais podem ser compreendidos através do serviço devocional; para os não-devotos, eles são inconcebíveis. Acintyāḥ khalu ye bhāvā na tāṁs tarkeṇa yojayet: o Senhor Supremo e Sua forma, nome, pas­satempos e parafernália são inconcebíveis para os não-devotos, e não é através de simples argumentos lógicos que alguém deve tentar compreender essas realidades. Com esses argumentos, ninguém chegará à conclusão certa sobre a Verdade Absoluta.

Texto

sama-viṣama-matīnāṁ matam anusarasi yathā rajju-khaṇḍaḥ sarpādi-dhiyām.

Sinônimos

sama — equilibrada ou apropriada; viṣama — e desigual ou errônea; matīnām — daqueles que têm inteligência; matam — conclusão; anu­sarasi — seguis; yathā — assim como; rajju-khaṇḍaḥ — um pedaço de corda; sarpa-ādi — uma serpente etc.; dhiyām — daqueles que percebem.

Tradução

Uma corda causa medo a uma pessoa que, confusa, pensa estar diante de uma serpente, mas não a outrem que, com inteligência ade­quada, sabe que se trata apenas de uma corda. Do mesmo modo, Vós, como a Superalma no coração de todos, infundis temor ou destemor de acordo com a inteligência da pessoa, mas não há dualidade em Vós.

Comentário

SIGNIFICADO—Na Bhagavad-gītā (4.11), o Senhor diz que ye yathā māṁ prapadyante tāṁs tathaiva bhajāmy aham: “Na medida em que alguém se rende a Mim, Eu o recompenso proporcionalmente.” A Supre­ma Personalidade de Deus é o reservatório de tudo, incluindo todo o conhecimento, toda a verdade e todas as contradições. O exemplo citado aqui é muito apropriado. Uma corda é uma verdade, mas alguns a tomam por uma serpente, ao passo que outros sabem que se trata de uma corda. Do mesmo modo, os devotos que conhecem a Suprema Personalidade de Deus não veem contradições nEle, mas, para os não-devotos, Ele, parecendo uma cobra, é a fonte de todo o temor. Por exemplo, quando Nṛsiṁhadeva apareceu, Prahlāda Mahārāja viu no Senhor a consolação suprema, ao passo que seu pai, um demônio, viu nEle a morte derradeira. Como se afirma no Śrīmad-Bhāgavatam (11.2.37), bhayaṁ dvitīyābhiniveśataḥ syāt: o temor decorre da absorção na dualidade. Quando alguém conhece a dualidade, sabe o que é medo ou bem­aventurança. Esse mesmo Senhor Supremo causa bem-aventurança aos devotos e medo aos não-devotos que têm um pobre fundo de conhe­cimento. Deus é apenas um, mas as pessoas compreendem a Verdade Absoluta de diferentes pontos de vista. As pessoas sem inteligência veem contradições nEle, mas os devotos sóbrios não enxergam con­tradições nEle.

Texto

sa eva hi punaḥ sarva-vastuni vastu-svarūpaḥ sarveśvaraḥ sakala-jagat-kāraṇa-kāraṇa-bhūtaḥ sarva-pratyag-ātmatvāt sarva-guṇābhāsopalakṣita eka eva paryavaśeṣitaḥ.

Sinônimos

saḥ — Ele (a Suprema Personalidade de Deus); eva — na verdade; hi — decerto; punaḥ — novamente; sarva-vastuni — em todas as coisas, materiais e espirituais; vastu-svarūpaḥ — a substância; sarva-īśvaraḥ — o controlador de tudo; sakala-jagat — de todo o universo; kāraṇa — das causas; kāraṇa-bhūtaḥ — existindo como a causa; sarva-pratyak­-ātmatvāt — porque sois a Superalma de todos os seres vivos, ou estais presente em tudo, mesmo no átomo; sarva-guṇa — de todos os efeitos dos modos da natureza material (tais como inteligência e sentidos); ābhāsa — através das manifestações; upalakṣitaḥ — percebido; ekaḥ — sozinho; eva — na verdade; paryavaśeṣitaḥ — o que restastes.

Tradução

Com discernimento, é possível ver que a Alma Suprema, em­bora manifesta de diferentes maneiras, é, de fato, o princípio básico de tudo. A totalidade da energia material é a causa da manifestação material, mas a energia material é causada por Ele. Portanto, Ele é a causa de todas as causas, aquele que manifesta a inteligência e os sentidos. Ele é percebido como a Superalma de tudo. Sem Ele, tudo estaria morto. Vós, como essa Superalma, o controlador supremo, sois tudo o que resta.

Comentário

SIGNIFICADO—As palavras sarva-vastuni vastu-svarūpaḥ denotam que o Senhor Supremo é o princípio ativo de tudo. Como se descreve na Brahma-­saṁhitā (5.35):

eko ’py asau racayituṁ jagad-aṇḍa-koṭiṁ
yac-chaktir asti jagad-aṇḍa-cayā yad-antaḥ
aṇḍāntara-stha-paramāṇu-cayāntara-sthaṁ
govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi

“Adoro Govinda, a Personalidade de Deus que, através de uma de Suas porções plenárias, penetra na existência de todo universo e de todo átomo e, assim, manifesta Sua energia infinita ao longo de toda a criação material.” Através de uma porção plenária Sua, Paramātmā, ou antaryāmī, o Senhor é onipenetrante através dos universos ilimitados. Ele é o pratyak, ou o antaryāmī, de todas as enti­dades vivas. Na Bhagavad-gītā (13.3), o Senhor diz que kṣetra-jñaṁ cāpi māṁ viddhi sarva-kṣetreṣu bhārata: “Ó descendente de Bharata, deves compreender que, em todos os corpos, também sou Eu o co­nhecedor.” Porque é a Superalma, o Senhor é o princípio ativo de todas as entidades vivas e, inclusive, do átomo (aṇḍāntara-stha-pa­ramāṇu-cayāntara-stham). Ele é a realidade incontestável. De acordo com as várias etapas de inteligência, compreende-se que, através das manifestações de Sua energia, o Senhor Supremo está presente em tudo. O mundo inteiro é permeado pelos três guṇas, e é possível entender Sua presença de acordo com os modos da natureza mate­rial em o observador está situado.

Texto

atha ha vāva tava mahimāmṛta-rasa-samudra-vipruṣā sakṛd avalīḍhayā sva-manasi niṣyandamānānavarata-sukhena vismārita-dṛṣṭa-śruta-viṣaya-sukha-leśābhāsāḥ parama-bhāgavatā ekāntino bhagavati sarva-bhūta-priya-suhṛdi sarvātmani nitarāṁ nirantaraṁ nirvṛta-manasaḥ katham u ha vā ete madhumathana punaḥ svārtha-kuśalā hy ātma-priya-suhṛdaḥ sādhavas tvac-caraṇāmbujānusevāṁ visṛjanti na yatra punar ayaṁ saṁsāra-paryāvartaḥ.

Sinônimos

atha ha — portanto; vāva — na verdade; tava — Vossas; mahima — das glórias; amṛta — do néctar; rasa — da doçura; samudra — do ocea­no; vipruṣā — mediante uma gota; sakṛt — uma única vez; avalī­ḍhayā — saboreada; sva-manasi — em sua mente; niṣyandamāna — fluindo; anavarata — o tempo todo; sukhena — pela bem-aventurança transcendental; vismārita — esqueceu-se; dṛṣṭa — da visão material; śruta — e do som; viṣaya-sukha — da felicidade material; leśa-ābhā­sāḥ — o tênue reflexo de uma porção delgada; parama-bhāgavatāḥ — devotos grandiosos e sublimes; ekāntinaḥ — que têm fé apenas no Senhor Supremo e em nada mais; bhagavati — na Suprema Persona­lidade de Deus; sarva-bhūta — de todas as entidades vivas; priya — que é muito querido; suhṛdi — o amigo; sarva-ātmani — a Superalma de todos; nitarām — por completo; nirantaram — sem cessar; nirvṛta — com felicidade; manasaḥ — aqueles cujas mentes; katham — como; u ha — então; — ou; ete — esses; madhu-mathana — ó matador do de­mônio Madhu; punaḥ — de novo; sva-artha-kuśalāḥ — que conhecem muito bem o interesse da vida; hi — na verdade; ātma-priya-suhṛdaḥ — que Vos aceitaram como a Superalma, o mais querido amante e amigo; sādhavaḥ — os devotos; tvat-caraṇa-ambuja-anusevām — ser­viço aos pés de lótus de Vossa Onipotência; visṛjanti — podem aban­donar; na — não; yatra — onde; punaḥ — novamente; ayam — esta; saṁsāra-paryāvartaḥ — repetição de nascimentos e mortes dentro do mundo material.

Tradução

Portanto, ó matador do demônio Madhu, incessante bem-aven­turança transcendental flui nas mentes daqueles que pelo menos uma vez saborearam uma simples gota do néctar do oceano de Vossas glórias. Tais devotos sublimes se esquecem do tênue reflexo emitido pela aparente felicidade material produzida pelos sentidos materiais de visão e audição. Livres de todos os desejos, esses devotos são os verdadeiros amigos de todas as entidades vivas. Oferecendo-Vos suas mentes e desfrutando de bem-aventurança transcendental, eles sabem muito bem como alcançar a verdadeira meta da vida. Ó Senhor, sois a alma e o querido amigo desses devotos, que nunca precisam regressar a este mundo material. Como eles poderiam deixar de ocupar­-se em Vosso serviço devocional?

Comentário

SIGNIFICADO—Embora os não-devotos, devido ao seu escasso conhecimento e hábitos especulativos, não possam entender a verdadeira natureza do Senhor, o devoto que uma só vez saboreou o néctar dos pés de lótus do Senhor pode compreender o prazer transcendental que existe no serviço devocional ao Senhor. O devoto sabe que, simplesmente prestando serviço ao Senhor, ele serve a todos. Portanto, os devotos são os verdadeiros amigos de todas as entidades vivas. Somente um devoto puro pode pregar as glórias do Senhor para o benefício de todas as almas condicionadas.

Texto

tri-bhuvanātma-bhavana trivikrama tri-nayana tri-loka-manoharānubhāva tavaiva vibhūtayo ditija-danujādayaś cāpi teṣām upakrama-samayo ’yam iti svātma-māyayā sura-nara-mṛga-miśrita-jalacarākṛtibhir yathāparādhaṁ daṇḍaṁ daṇḍa-dhara dadhartha evam enam api bhagavañ jahi tvāṣṭram uta yadi manyase.

Sinônimos

tri-bhuvana-ātma-bhavana — ó Senhor, sois o refúgio dos três mundos porque sois a Superalma dos três mundos; tri-vikrama — ó Senhor, que assumis a forma de Vāmana, Vossos poder e opulência distribuem-se por todos os três mundos; tri-nayana — ó mantenedor e supervisor dos três mundos; tri-loka-manohara-anubhāva — ó Vós que sois percebido como o mais belo dentro dos três mundos; tava — Vossa; eva — com certeza; vibhūtayaḥ — as expansões de energia; diti­-ja-danu-ja-ādayaḥ — os filhos demoníacos de Diti, e os Dānavas, outra classe de demônios; ca — e; api — também (os seres humanos); teṣām — de todos eles; upakrama-samayaḥ — a hora de empreendimen­to; ayam — esta; iti — assim; sva-ātma-māyayā — através de Vossa própria energia; sura-nara-mṛga-miśrita-jalacara-ākṛtibhiḥ — com dife­rentes formas, tais como as dos semideuses, seres humanos, animais, formas mescladas e seres aquáticos (as encarnações Vāmana, Senhor Rāmacandra, Kṛṣṇa, Varāha, Hayagrīva, Nṛsiṁha, Matsya e Kūrma); yathā-aparādham — de acordo com as ofensas deles; daṇḍam — punição; daṇḍa-dhara — ó castigador supremo; dadhartha — concedestes; evam — assim; enam — este (Vṛtrāsura); api — também; bhagavan — ó Suprema Personalidade de Deus; jahi — matai; tvāṣṭram — o filho de Tvaṣṭā; uta — na verdade; yadi manyase — se julgardes adequado.

Tradução

Ó Senhor, ó três mundos personificados, pai dos três mundos! Ó força dos três mundos, sob a forma da encarnação Vāmana! Ó Senhor sob a forma do Nṛsiṁhadeva de três olhos! Ó belíssima pessoa dentro dos três mundos! Tudo e todos, incluindo os seres humanos e até mesmo os demônios Daitya e os Dānavas, são mera expansão de Vossa energia. Ó pessoa supremamente poderosa, sempre apare­ceis sob as formas de várias encarnações para punir os demônios logo que eles se tornam muito poderosos. Apareceis como o Senhor Vāmanadeva, o Senhor Rāma e o Senhor Kṛṣṇa. Às vezes, assumis uma forma de animal, como o Senhor Javali, às vezes, uma encarnação mista, como o Senhor Nṛsiṁhadeva e o Senhor Hayagrīva, e, outras vezes, a forma de um ser aquático, tal qual o Senhor Peixe e a encarnação de Tartaruga. Assumindo essas várias formas, sempre punistes os demônios e os Dānavas. Portanto, oramos a Vossa Onipotência que, se assim o desejardes, apareçais hoje como outra encarnação para matar o grande demônio Vṛtrāsura.

Comentário

SIGNIFICADO—Existem duas classes de devotos, conhecidos como sakāma e akāma. Os devotos puros são akāma, ao passo que os devotos nos sistemas planetários superiores, tais como os semideuses, são cha­mados sakāma porque ainda querem desfrutar de opulência material. Devido a suas atividades piedosas, os devotos sakāma são promovidos aos sistemas planetários superiores, mas, no fundo do coração, ainda desejam assenhorear-se dos recursos materiais. Algumas vezes, os devotos sakāma são perturbados pelos demônios e Rākṣasas, mas o Senhor é tão bondoso que sempre os salva, apare­cendo como uma encarnação. As encarnações do Senhor são tão pode­rosas que o Senhor Vāmanadeva cobriu todo o universo com dois passos e, portanto, não achou lugar para Seu terceiro passo. O Senhor é chamado Trivikrama porque mostrou Sua força ao libertar todo o universo dando apenas três passos.

A diferença entre os devotos sakāma e akāma é que, quando os devotos sakāma, como os semideuses, veem-se em dificuldade, aproximam-se da Suprema Personalidade de Deus em busca de alívio, ao passo que os devotos akāma nem mesmo no maior perigo per­turbam o Senhor com pedidos de benefícios materiais. Mesmo que um devoto akāma esteja sofrendo, ele sabe que isso se deve a suas atividades impiedosas passadas e aceita sofrer as consequências, sem nunca perturbar o Senhor. Logo que estão em dificuldade, os devo­tos sakāma oram ao Senhor, mas são considerados piedosos porque se colocam na completa dependência da misericórdia do Senhor. Como se afirma no Śrīmad-Bhāgavatam (10.14.8):

tat te ’nukampāṁ susamīkṣamāṇo
bhuñjāna evātma-kṛtaṁ vipākam
hṛd-vāg-vapurbhir vidadhan namas te
jīveta yo mukti-pade sa dāya-bhāk

Mesmo enquanto sofrem em meio a dificuldades, os devotos, com maior ímpeto, simplesmente oferecem suas orações e serviços. Dessa maneira, tornam-se muito fixos no serviço devocional e aptos a regressar ao lar, regressar ao Supremo, sem dúvida alguma. Os devo­tos sakāma, é evidente, obtêm do Senhor os resultados que dese­jam com suas orações, mas não se tornam imediatamente aptos a regressar ao Supremo. Nesta passagem, fica bem claro que o Senhor Viṣṇu, sob Suas várias encarnações, sempre é o protetor de Seus de­votos. Śrīla Madhvācārya diz: vividhaṁ bhāva-pātratvāt sarve viṣṇor vibhūtayaḥ. Kṛṣṇa é a Personalidade de Deus original (kṛṣṇas tu bhagavān svayam). Todas as outras encarnações procedem do Senhor Viṣṇu.

Texto

asmākaṁ tāvakānāṁ tatatata natānāṁ hare tava caraṇa-nalina-yugala-dhyānānubaddha-hṛdaya-nigaḍānāṁ sva-liṅga-vivaraṇenātmasāt-kṛtānām anukampānurañjita-viśada-rucira-śiśira-smitāvalokena vigalita-madhura-mukha-rasāmṛta-kalayā cāntas tāpam anaghārhasi śamayitum.

Sinônimos

asmākam — de nós; tāvakānām — que dependemos única e exclusivamente de Vós; tata-tata — ó avô, pai do pai; natānām — que somos inteiramente rendidos a Vós; hare — ó Senhor Hari; tava — Vossos; caraṇa — aos pés; nalina-yugala — como duas flores de lótus azuis; dhyāna — pela meditação; anubaddha — atados; hṛdaya — no coração; nigaḍānām — cujas correntes; sva-liṅga-vivaraṇena — manifestando Vossa própria forma; ātmasāt-kṛtānām — daqueles que aceitastes como sendo Vossos; anukampā — pela compaixão; anurañjita — deixando-Vos levar; viśada — radiante; rucira — muito agradável; śiśira — refrescante; smita — com um sorriso; avalokena — por Vosso olhar; vigalita — derretido com compaixão; madhura-mukharasa – das dul­císsimas palavras de Vossa boca; amṛta-kalayā — pelas gotas de néctar; ca — e; antaḥ — no âmago de nossos corações; tāpam — a grande dor; anagha — ó pureza suprema; arhasi — mereceis; śamayitum — reprimir.

Tradução

Ó protetor supremo, ó avô, ó pureza suprema, ó Senhor! Todos nós somos almas rendidas a Vossos pés de lótus. Com efeito, em meditação, nossas mentes estão atadas aos Vossos pés de lótus através da corrente do amor. Agora, por favor, manifestai Vossa encarna­ção. Aceitando-nos como Vossos próprios servos e devotos eternos, ficai satisfeito conosco e tende misericórdia de nós. Através de Vosso olhar cheio de amor, com seu refrescante e agradável sorriso misericordioso, bem como através das doces e nectáreas palavras que emanam de Vosso belo rosto, libertai-nos da ansiedade causada por este Vṛtrāsura, que sempre fere o âmago de nosso coração.

Comentário

SIGNIFICADO—O senhor Brahmā é considerado o pai dos semideuses, mas Kṛṣṇa, ou o Senhor Viṣṇu, é o pai de Brahmā, porque esse nasceu da flor de lótus que brota do abdômen do Senhor.

Texto

atha bhagavaṁs tavāsmābhir akhila-jagad-utpatti-sthiti-laya-nimittāyamāna-divya-māyā-vinodasya sakala-jīva-nikāyānām antar-hṛdayeṣu bahir api ca brahma-pratyag-ātma-svarūpeṇa pradhāna-rūpeṇa ca yathā-deśa-kāla-dehāvasthāna-viśeṣaṁ tad-upādānopalambhakatayānubhavataḥ sarva-pratyaya-sākṣiṇa ākāśa-śarīrasya sākṣāt para-brahmaṇaḥ paramātmanaḥ kiyān iha vārtha-viśeṣo vijñāpanīyaḥ syād visphuliṅgādibhir iva hiraṇya-retasaḥ.

Sinônimos

atha — portanto; bhagavan — ó Senhor; tava — de Vós; asmābhiḥ — por nós; akhila — totalidade; jagat — do mundo material; utpatti — da criação; sthiti — manutenção; laya — e aniquilação; nimittāyamā­na — sendo a causa; divya-māyā — com a energia espiritual; vinoda­sya — Vossa, que Vos divertis; sakala — todas; jīva-nikāyānām — das hostes de entidades vivas; antaḥ-hṛdayeṣu — no âmago dos corações; bahiḥ api — também externamente; ca — e; brahma — do Brahman impessoal, ou da Verdade Absoluta; pratyak-ātma — da Superalma; sva­-rūpeṇa — por Vossas formas; pradhāna-rūpeṇa — por Vossa forma como os ingredientes externos; ca — também; yathā — de acordo com; deśa-kāla-deha-avasthāna — de região, tempo, corpo e posição; viśeṣam — as singularidades; tat — deles; upādāna — das causas materiais; upalambhakatayā — sendo o manifestador; anubhavataḥ — testemunhando; sarva-pratyaya-sākṣiṇaḥ — a testemunha de todas as diferen­tes atividades; ākāśa-śarīrasya — a Superalma de todo o universo; sākṣāt — diretamente; para-brahmaṇaḥ — a Suprema Verdade Abso­luta; paramātmanaḥ — a Superalma; kiyān — até que ponto; iha — aqui; — ou; artha-viśeṣaḥ — necessidade especial; vijñāpanīyaḥ — de serdes informado; syāt — podeis ser; visphuliṅga-ādibhiḥ — pelas centelhas de fogo; iva — como; hiraṇya-retasaḥ — ao fogo original.

Tradução

Ó Senhor, assim como as pequenas centelhas de fogo não podem executar as ações de todo o fogo, nós, centelhas de Vossa Onipotência, não podemos informar-Vos sobre as necessidades de nossas vidas. Sois o todo completo. Portanto, o que precisamos informar-Vos? Vós já conheceis tudo porque sois a causa da qual se origina a manifestação cósmica, sois o mantenedor e aniquilador de toda a criação universal. Com Vossas energias espiritual e mate­rial, sempre Vos ocupais em Vossos passatempos, pois sois o controlador de todas essas várias energias. Existis dentro de todas as entidades vivas, dentro da manifestação cósmica e também além delas. Existis internamente como o Parabrahman e, externamente, como os ingredientes da criação material. Portanto, embora mani­festo em várias etapas, em diferentes épocas e lugares e em vários corpos, Vós, a Personalidade de Deus, sois a causa que origina todas as causas. Na verdade, sois o elemento original. Sois a testemunha de todas as atividades, mas, como sois tão grande como o céu, nenhuma delas jamais Vos influencia. Como o Parabrahman e o Paramātmā, sois a testemunha de tudo. Ó Suprema Personalidade de Deus, nada escapa ao Vosso saber.

Comentário

SIGNIFICADO—A Verdade Absoluta existe em três fases de compreensão espiri­tual – Brahman, Paramātmā e Bhagavān (brahmeti paramātmeti bhagavān iti śabdyate). Bhagavān, a Suprema Personalidade de Deus, é a causa do Brahman e do Paramātmā. O Brahman, a Verdade Ab­soluta impessoal, é onipenetrante, e o Paramātmā está situado no coração de todos, mas Bhagavān, a quem os devotos têm como ado­rável, é a causa que origina todas as causas. O devoto puro está ciente de que, como nada é desconhecido por parte da Suprema Personalidade de Deus, não é preciso que o devoto Lhe atraia a atenção para as suas conveniências ou inconveniências. O devoto puro sabe que não é necessário pedir à Verdade Absoluta a satisfação de quaisquer necessidades materiais. Portanto, enquanto informavam ao Senhor Supremo sua aflição decorrente de serem atacados por Vṛtrāsura, os semideu­ses se desculparam pelo fato de estarem oferecendo orações a fim de obterem segurança. É óbvio que o devoto neófito se aproxima do Senhor Supremo em busca de alívio de suas aflições ou pobreza, ou na tentativa de obter conhecimento especulativo acerca do Senhor. A Bhagavad-gītā (7.16) menciona quatro espécies de homens piedo­sos que passam a prestar serviço devocional ao Senhor – o aflito (ārta), o carente de dinheiro (arthārthī), o indagador (jijñāsu) e o que busca a Verdade Absoluta (jñānī). O devoto puro, entretanto, sabe que, como o Senhor é onipresente e onisciente, não há necessidade de oferecer-Lhe orações ou adorá-lO em troca de algum benefício pessoal. Sem exigir nada, o devoto puro sempre se ocupa em servir ao Senhor. O Senhor está presente em toda parte e conhece as neces­sidades de Seus devotos. Por conseguinte, não é necessário perturbá­-lo, pedindo-Lhe benefícios materiais.

Texto

ata eva svayaṁ tad upakalpayāsmākaṁ bhagavataḥ parama-guros tava caraṇa-śata-palāśac-chāyāṁ vividha-vṛjina-saṁsāra-pariśramopaśamanīm upasṛtānāṁ vayaṁ yat-kāmenopasāditāḥ.

Sinônimos

ata eva — portanto; svayam — Vós mesmo; tat — isto; upakalpaya — por favor, providenciai; asmākam — nosso; bhagavataḥ — da Supre­ma Personalidade de Deus; parama-guroḥ — o mestre espiritual su­premo; tava — Vossos; caraṇa — dos pés; śata-palāśat — como flores de lótus com centenas de pétalas; chāyām — a sombra; vividha — várias; vṛjina — com as posições perigosas; saṁsāra — desta vida condicionada; pariśrama — a dor; upaśamanīm — aliviando; upasṛtānām — os devotos que se refugiaram a Vossos pés de lótus; vayam­ — nós; yat — pelos quais; kāmena — pelos desejos; upasāditāḥ — fize­ram com que viéssemos para perto (do refúgio dos Vossos pés de lótus).

Tradução

Querido Senhor, sois onisciente e, portanto, sabeis precisamente o motivo pelo qual nos refugiamos a Vossos pés de lótus, que proveem a sombra que nos alivia de todas as perturbações materiais. Já que sois o mestre espiritual supremo e conheceis tudo, buscamos o refúgio dos Vossos pés de lótus para recebermos instruções. Por favor, aliviai-nos, encerrando nossa atual aflição. Vossos pés de lótus são o único refúgio para um devoto plenamente rendido e são o único meio de superar todas as tribulações deste mundo material.

Comentário

SIGNIFICADO—Tudo o que alguém precisa é buscar o refúgio à sombra dos pés de lótus do Senhor. Então, todas as tribulações materiais que o perturbam serão subjugadas, da mesma forma que, ao se colocar à sombra de uma grande árvore, a pessoa se alivia imediatamente das perturbações causadas pelo calor do sol escaldante, sem que precise pedir alívio. Portanto, todo o interesse da alma condicio­nada deve ser os pés de lótus do Senhor. A alma condicionada que sofre com as várias tribulações inerentes a este mundo material pode aliviar-se somente quando busca refúgio aos pés de lótus do Senhor.

Texto

atho īśa jahi tvāṣṭraṁ
grasantaṁ bhuvana-trayam
grastāni yena naḥ kṛṣṇa
tejāṁsy astrāyudhāni ca

Sinônimos

atho — portanto; īśa — ó controlador supremo; jahi — matai; tvāṣ­ṭram — o demônio Vṛtrāsura, filho de Tvaṣṭā; grasantam — que está devorando; bhuvana-trayam — os três mundos; grastāni — devorada; yena — por quem; naḥ — nossa; kṛṣṇa — ó Senhor Kṛṣṇa; tejāṁsi — toda a força e poder; astra — flechas; āyudhāni — e outras armas; ca — também.

Tradução

Portanto, ó Senhor, ó controlador supremo, ó Senhor Kṛṣṇa, por favor, aniquilai este perigoso demônio Vṛtrāsura, filho de Tvaṣṭā, que já engoliu todas as nossas armas, nossos artigos de combate, bem como nossa força e influência.

Comentário

SIGNIFICADO—O Senhor diz na Bhagavad-gītā (7.15-16):

na māṁ duṣkṛtino mūḍhāḥ
prapadyante narādhamāḥ
māyayāpahṛta-jñānā
āsuraṁ bhāvam āśritāḥ
catur-vidhā bhajante māṁ
janāḥ sukṛtino ’rjuna
ārto jijñāsur arthārthī
jñānī ca bharatarṣabha

“Os canalhas que são grosseiramente tolos, que são os mais baixos da humanidade, cujo conhecimento é roubado pela ilusão e que compartilham da natureza ateísta dos demônios, não se rendem a Mim. Ó melhor entre os Bhāratas [Arjuna], quatro classes de homens piedosos passam a Me prestar serviço devocional – o aflito, o que deseja riquezas, o inquisitivo e o que busca conhecer o Absoluto.”

As quatro classes de devotos neófitos que se aproximam da Su­prema Personalidade de Deus para oferecer-Lhe serviço devocional impelidos por motivos materiais não são constituídas de devotos puros, mas a vantagem desses devotos materialistas é que, algumas vezes, eles abandonam seus desejos materiais e se tornam puros. Ao se senti­rem visivelmente desamparados, os semideuses, em meio ao pesar e com lágrimas nos olhos, aproximam-se da Suprema Personalida­de de Deus, orando ao Senhor, e, dessa maneira, tornam-se devotos quase puros, livres dos desejos materiais. Admitindo que se esqueceram do serviço devocional puro devido às abundantes facilidades mate­riais, eles se rendem plenamente ao Senhor, deixando a Seu critério mantê-los ou aniquilá-los. Essa rendição é necessária. Bhaktivinoda Ṭhākura canta que mārabi rākhabi — yo icchā tohārā: “Ó Senhor, rendo-me plenamente a Vossos pés de lótus. Agora, conforme for o Vosso desejo, podeis proteger-me ou aniquilar-me. Tendes todo o direito de tomar qualquer uma dessas atitudes.”

Texto

haṁsāya dahra-nilayāya nirīkṣakāya
kṛṣṇāya mṛṣṭa-yaśase nirupakramāya
sat-saṅgrahāya bhava-pāntha-nijāśramāptāv
ante parīṣṭa-gataye haraye namas te

Sinônimos

haṁsāya — ao mais elevado e puro (pavitraṁ paramam, a pureza suprema); dahra — no âmago do coração; nilayāya — cuja morada; nirīkṣakāya — supervisionando as atividades da alma individual; kṛṣṇāya — à Superalma, que é uma manifestação parcial de Kṛṣṇa; mṛṣṭa-yaśase — cuja reputação brilha imensamente; nirupakramāya — que não tem começo; sat-saṁgrahāya — compreendido apenas pelos devotos puros; bhava-pāntha-nija-āśrama-āptau — sendo a obtenção do refú­gio de Kṛṣṇa reservada às pessoas que vivem dentro deste mundo material; ante — no fim definitivo; parīṣṭa-gataye — a Ele, que é a meta última, o sucesso máximo da vida; haraye — à Suprema Personalidade de Deus; namaḥ — respeitosas reverências; te — a Vós.

Tradução

Ó Senhor, ó pureza suprema, viveis no âmago do coração de todos e observais todos os desejos e atividades das almas condicio­nadas. Ó Suprema Personalidade de Deus, conhecida como o Senhor Kṛṣṇa, Vossa reputação é brilhante e luminosa. Não tendes come­ço, pois sois o começo de tudo. Os devotos puros compreendem isso, porque sois facilmente acessível a quem é puro e veraz. Ao libertarem-se e, então, refugiarem-se em Vossos pés de lótus após terem divagado muitos milhões de anos por todo o mundo material, as almas condicionadas alcançam o sucesso máximo da vida. Portan­to, ó Senhor, ó Suprema Personalidade de Deus, oferecemos nossas respeitosas reverências a Vossos pés de lótus.

Comentário

SIGNIFICADO—Os semideuses decerto queriam que o Senhor Viṣṇu aliviasse sua ansiedade, mas agora eles se aproximam diretamente do Senhor Kṛṣṇa, pois, embora não haja diferença entre o Senhor Kṛṣṇa e o Senhor Viṣṇu, Kṛṣṇa, sob a Sua forma de Vāsudeva, desce a este planeta com o propósito de paritrāṇāya sādhūnāṁ vināśāya ca duṣkṛtām – proteger Seus devotos e aniquilar os canalhas. Os demô­nios, ou ateístas, estão sempre perturbando os semideuses, ou devotos, daí Kṛṣṇa fazer Seu advento para punir os ateístas e demônios e satisfa­zer o desejo de Seus devotos. Kṛṣṇa, sendo a causa da qual tudo se origina, é a Pessoa Suprema, e está situado acima até mesmo de Viṣṇu e Nārāyaṇa, embora não haja diferença entre essas diversas formas do Senhor. Como se explica na Brahma-saṁhitā (5.46):

dīpārcir eva hi daśāntaram abhyupetya
dīpāyate vivṛta-hetu-samāna-dharmā
yas tādṛg eva hi ca viṣṇutayā vibhāti
govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi

Kṛṣṇa expande-Se como Viṣṇu, da mesma forma que a chama de uma vela acende outra. Embora não haja diferença entre o poder de uma ou outra vela, Kṛṣṇa é comparado à vela original.

Nesta passagem, a palavra mṛṣṭa yaśase é significativa porque Kṛṣṇa sempre é famoso por libertar do perigo o Seu devoto. O de­voto que sacrificou tudo para servir a Kṛṣṇa e cuja única fonte de alívio é o Senhor é conhecido como akiñcana.

Como demonstram as orações oferecidas pela rainha Kuntī, o Senhor é akiñcana-vitta, ou seja, tal devoto é Seu proprietário. Aqueles que estão livres do cativeiro da vida condicionada são ele­vados ao mundo espiritual, onde alcançam cinco espécies de libe­ração – sāyujya, sālokya, sārūpya, sārṣṭi e sāmīpya. Associam-se pessoalmente com o Senhor em cinco doçuras – śānta, dāsya, sakhya, vātsalya e mādhurya. Todas essas rasas emanam de Kṛṣṇa. Como descreve Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura, a doçura original, ādi-rasa, é o amor conjugal. Kṛṣṇa é a origem do amor conjugal puro e espiritual.

Texto

śrī-śuka uvāca
athaivam īḍito rājan
sādaraṁ tri-daśair hariḥ
svam upasthānam ākarṇya
prāha tān abhinanditaḥ

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; atha — depois disso; evam — dessa maneira; īḍitaḥ — sendo adorado e tratado com reverências; rājan — ó rei; sa-ādaram — com o devido respeito; tri-daśaiḥ — por todos os semideuses dos sistemas planetários superiores; hariḥ — a Suprema Personalidade de Deus; svam upasthānam — suas orações glorificando-O; ākarṇya — ouvindo; prāha — respondeu; tān — a eles (os semideuses); abhinanditaḥ — estando satisfeito.

Tradução

Śrī Śukadeva Gosvāmī continuou: Ó rei Parīkṣit, quando os semi­deuses ofereceram essas suas sinceras orações ao Senhor, Ele as ouviu por causa de Sua misericórdia imotivada. Estando satisfeito, Ele respondeu, então, aos semideuses.

Texto

śrī-bhagavān uvāca
prīto ’haṁ vaḥ sura-śreṣṭhā
mad-upasthāna-vidyayā
ātmaiśvarya-smṛtiḥ puṁsāṁ
bhaktiś caiva yayā mayi

Sinônimos

śrī-bhagavān uvāca — a Suprema Personalidade de Deus disse; prītaḥ — satisfeito; aham — Eu; vaḥ — vosso; sura-śreṣṭhāḥ — ó melho­res entre os semideuses; mat-upasthāna-vidyayā — com o conheci­mento altamente avançado e com as orações oferecidas a Mim; ātma-aiśvarya-smṛtiḥ — lembrança da Minha elevada posição trans­cendental de Suprema Personalidade de Deus; puṁsām — dos homens; bhaktiḥ — serviço devocional; ca — e; eva — decerto; yayā — pelo qual; mayi — a Mim.

Tradução

A Suprema Personalidade de Deus disse: Ó amados semideuses, foi com grande conhecimento que Me oferecestes vossas orações, e decerto estou muito satisfeito convosco. A pessoa se liberta através desse conhecimento, e assim ela se lembra de minha posição elevada, que está acima das condições da vida material. Semelhante devoto se purifica por completo ao oferecer orações com pleno conhecimen­to. Essa é a fonte do serviço devocional a Mim.

Comentário

SIGNIFICADO—Outro nome da Suprema Personalidade de Deus é Uttamaśloka, que quer dizer “aquele a quem se oferecem orações com versos seletos”. Bhakti significa śravaṇaṁ kīrtanaṁ viṣṇoḥ, “cantar e ouvir a respei­to do Senhor Viṣṇu”. Os impersonalistas não podem purificar-se, pois não oferecem orações pessoais à Suprema Personalidade de Deus. Muito embora às vezes eles ofereçam orações, estas não se dirigem à Pessoa Suprema. Os impersonalistas, às vezes, mostram seu conhecimento incompleto ao se dirigirem ao Senhor como se Ele não tivesse nome. Eles sempre oferecem orações indiretamente, dizendo: “És isto, és aquilo”, mas eles não sabem a quem estão orando. O devoto, entretanto, sempre oferece orações pessoais. O devoto diz que govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi: “Ofereço minhas respeitosas reverências a Govinda, a Kṛṣṇa.” É esse o processo como se oferecem orações. Quem continua a oferecer à Suprema Perso­nalidade de Deus essas orações pessoais qualifica-se para se tornar um devoto puro e retornar ao lar, retornar ao Supremo.

Texto

kiṁ durāpaṁ mayi prīte
tathāpi vibudharṣabhāḥ
mayy ekānta-matir nānyan
matto vāñchati tattva-vit

Sinônimos

kim — que; durāpam — difícil de obter; mayi — quando Eu; prīte — satisfeito; tathāpi — mesmo assim; vibudha-ṛṣabhāḥ — ó melhores entre os semideuses inteligentes; mayi — em Mim; ekānta — fixa exclusivamente; matiḥ — cuja atenção; na anyat — nenhuma outra coisa; mattaḥ — além de Mim; vāñchati — deseja; tattva-vit — aquele que conhece a verdade.

Tradução

Ó melhores entre os semideuses inteligentes, embora seja verdade que aquele com quem estou satisfeito não tenha dificuldades para obter tudo o que deseje, o devoto puro, cuja mente está unicamente fixa em Mim, não Me pede nada além da oportunidade de se ocupar­ em Meu serviço devocional.

Comentário

SIGNIFICADO—Ao concluírem suas orações, os semideuses esperavam ansiosamente que seu inimigo Vṛtrāsura fosse morto. Isso demonstra que os semideuses não são devotos puros. Embora não haja dificul­dades para que alguém obtenha qualquer coisa que deseje caso o Senhor esteja satisfeito, os semideuses aspiram a ganhos materiais depois de agradarem o Senhor. O Senhor queria que os semideuses orassem para que lhes fosse dado o serviço devocional puro, mas, em vez disso, eles oraram para receber a oportunidade de matar seu inimigo. Essa é a diferença entre um devoto puro e um devoto na plataforma material. Indiretamente, o Senhor lamentou-Se diante do fato de que os semideuses não estivessem pedindo pelo serviço devocional puro.

Texto

na veda kṛpaṇaḥ śreya
ātmano guṇa-vastu-dṛk
tasya tān icchato yacched
yadi so ’pi tathā-vidhaḥ

Sinônimos

na — não; veda — conhece; kṛpanaḥ — uma entidade viva mesquinha; śreyaḥ — a necessidade última; ātmanaḥ — da alma; guṇa-vastu-dṛk — que se sente atraída à criação efetuada pelos modos da natureza material; tasya — dela; tān — coisas criadas pela energia material; iccha­taḥ — desejando; yacchet — alguém concede; yadi — se; saḥ api — ele também; tathā-vidhaḥ — da categoria (um kṛpaṇa tolo que não co­nhece seu verdadeiro interesse próprio).

Tradução

Aqueles que pensam que os bens materiais são tudo o que existe ou que são a meta última da vida são chamados de avaros [kṛpaṇas]. Eles não conhecem a principal necessidade da alma. Ademais, se alguém favorece os desejos desses tolos, também deve ser conside­rado um tolo.

Comentário

SIGNIFICADO—Existem duas classes de homens – a saber, o kṛpaṇa e o brāhmaṇa. Brāhmaṇa é aquele que conhece o Brahman, a Verdade Absoluta, e que, portanto, sabe qual é o seu verdadeiro interesse. Kṛpaṇa, em contraste, é aquele que tem um conceito de vida material, corpórea. Desconhecendo como utilizar sua vida humana ou sua vida como semideus, o kṛpaṇa se deixa atrair por coisas criadas pelos modos da natureza material. Os kṛpaṇas, que estão sempre desejando benefícios materiais, são tolos, ao passo que os brāhmaṇa, que sempre desejam benefícios espirituais, são inteligentes. Se um kṛpaṇa, desconhecen­do seu interesse pessoal, comete a tolice de pedir algo material, aquele que lhe dá isso também é um tolo. Kṛṣṇa, entretanto, não é tolo; Ele possui a inteligência suprema. Se uma pessoa se dirige a Kṛṣṇa e pede benefícios materiais, Kṛṣṇa não lhe confere as coisas materiais por ela desejadas. Ao contrário, o Senhor lhe outorga inteligência, a fim de que ela se esqueça de seus desejos materiais e se apegue aos pés de lótus do Senhor. Nesses casos, embora o kṛpaṇa ofereça orações ao Senhor Kṛṣṇa em troca de favores materiais, o Senhor o priva de todas as posses materiais e lhe dá o entendimento necessário para se tornar um devoto. Como o Senhor afirma no Caitanya-caritāmṛta (Madhya 22.39):

āmi-vijña, ei mūrkhe ‘viṣaya’ kene diba?
sva-caraṇāmṛta diyā ‘viṣaya’ bhulāiba

“Como sou muito inteligente, por que Eu deveria conceder prosperidades ma­teriais a esse tolo? Em vez disso, Eu o farei beber o néctar do refúgio de Meus pés de lótus para que, somente assim, ele se esqueça do gozo material ilusório.” Caso alguém sinceramente ore a Deus em busca de posses materiais em troca do serviço devocional, o Senhor que, ao contrário desse devoto sem inteligência, não é tolo, mostra-lhe Seu favor especial, privando-o de todas as posses materiais e lhe dando, aos poucos, a inteligência através da qual somente o serviço aos pés de lótus de Kṛṣṇa será do seu agrado. A propósito, Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura comenta que, se uma criança tola pede que sua mãe lhe dê veneno, a mãe, sendo inteligente, decerto não lhe dará veneno, apesar da insistência do filho. O materialista não sabe que aceitar posses materiais é o mesmo que aceitar veneno, ou repetidos nascimentos e mortes. A pessoa inteligente, o brāhmaṇa, deseja libertar-se do cativeiro material. É esse o verdadeiro interesse do ser humano.

Texto

svayaṁ niḥśreyasaṁ vidvān
na vakty ajñāya karma hi
na rāti rogiṇo ’pathyaṁ
vāñchato ’pi bhiṣaktamaḥ

Sinônimos

svayam — pessoalmente; niḥśreyasam — a suprema meta da vida, a saber, os meios de se obter amor extático pela Suprema Personali­dade de Deus; vit-vān — aquele que é entendido em serviço devocio­nal; na — não; vakti — ensina; ajñāya — a uma pessoa tola e que não é versada na meta última da vida; karma — atividades fruitivas; hi — ­na verdade; na — não; rāti — administra; rogiṇaḥ — ao paciente; apa­thyam — algo não consumível; vāñchataḥ — desejando; api — embora; bhiṣak-tamaḥ — um médico experiente.

Tradução

O devoto puro, plenamente versado na ciência do serviço de­vocional, jamais instruirá um tolo a ocupar-se em atividades fruiti­vas que propiciam o gozo material, e, muito menos, iria ajudá-lo a executar semelhantes atividades. Tal devoto é como um médico experiente que jamais encoraja um paciente a comer alimentos pre­judiciais à sua saúde, mesmo que este os deseje.

Comentário

SIGNIFICADO—Eis a diferença entre as bênçãos concedidas pelos semideuses e as concedidas por Viṣṇu, a Suprema Personalidade de Deus. Os devo­tos dos semideuses pedem bênçãos com o simples fim de obter gozo dos sentidos, daí a Bhagavad-gītā (7.20) os descrever como sendo desprovidos de inteligência.

kāmais tais tair hṛta-jñānāḥ
prapadyante ’nya-devatāḥ
taṁ taṁ niyamam āsthāya
prakṛtyā niyatāḥ svayā

“Aqueles cujas mentes estão distorcidas por desejos materiais se rendem aos semideuses e, de acordo com suas próprias naturezas, seguem determinadas regras e regulações de adoração.”­

Devido a profundos desejos de gozo dos sentidos, as almas condicionadas, em geral, são desprovidas de inteligência. Elas não sabem que bênçãos pedir. Portanto, os śāstras aconselham os não-devotos a adorarem vários semideuses para alcançarem benefícios materiais. Por exemplo, se alguém quer uma bela esposa, é aconselhado a adorar Umā, ou a deusa Durgā. Se alguém deseja se curar de uma doença, é aconselhado a adorar o deus do Sol. Entretanto, todos os pedidos de bênçãos aos semideuses se devem à luxúria material. No fim da manifestação cósmica, as bênçãos e aqueles que as outorgam estarão todos terminados. Se alguém se aproxima do Senhor Viṣṇu em busca de bênçãos, o Senhor lhe dará a bênção que o ajudará a voltar ao lar, voltar ao Supremo. Na Bhagavad-gītā (10.10), o próprio Senhor também confirma isso:

teṣāṁ satata-yuktānāṁ
bhajatāṁ prīti-pūrvakam
dadāmi buddhi-yogaṁ taṁ
yena mām upayānti te

O Senhor Viṣṇu, ou o Senhor Kṛṣṇa, instrui como é que o devoto que constantemente se ocupa em Seu serviço deve proceder para que, chegado o fim deste seu atual corpo material, possa aproximar-se do Senhor, que diz na Bhagavad-gītā (4.9):

janma karma ca me divyam
evaṁ yo vetti tattvataḥ
tyaktvā dehaṁ punar janma
naiti mām eti so ’rjuna

“Aquele que conhece a natureza transcendental do Meu aparecimento e atividades, ao deixar o corpo, não volta a nascer neste mundo material, senão que alcança Minha morada eterna, ó Arjuna.” Esta é a bênção do Senhor Viṣṇu, Kṛṣṇa. Após abandonar seu corpo, o de­voto retorna ao lar, retorna ao Supremo.

O devoto pode cometer a tolice de pedir bênçãos materiais, mas, apesar das orações do devoto, o Senhor Kṛṣṇa não lhe outorga essas bênçãos. Portanto, as pessoas que são muito apegadas à vida material de modo geral não se tornam devotos de Kṛṣṇa ou Viṣṇu. Em vez disso, tornam-se devotos dos semideuses (kāmais tais tair hṛta jñānāḥ prapadyante ’nya-devatāḥ). Contudo, a Bhagavad-gītā não aprova as bênçãos dos semideuses. Antavat tu phalaṁ teṣāṁ tad bhavaty alpa-medhasām: “Os homens de inteligência escassa adoram os semideuses, e os frutos obtidos são limitados e temporários.” Um não ­vaiṣṇava, isto é, alguém que não está ocupado a serviço da Suprema Personalidade de Deus, é considerado um tolo com uma irrelevante quantidade de massa cinzenta.

Texto

maghavan yāta bhadraṁ vo
dadhyañcam ṛṣi-sattamam
vidyā-vrata-tapaḥ-sāraṁ
gātraṁ yācata mā ciram

Sinônimos

maghavan — ó Indra; yāta — vai; bhadram — boa fortuna; vaḥ — a todos vós; dadhyañcam — até Dadhyañca; ṛṣi-sat-tamam — a mais elevada pessoa santa; vidyā — da educação; vrata — dos votos; tapaḥ — e da austeridade; sāram — a essência; gātram — seu corpo; yācata — pede; tiram — sem demora.

Tradução

Ó Maghavan [Indra], desejo-te toda a boa fortuna. Aconselho­-te que te aproximes do grandioso santo Dadhyañca [Dadhīci]. Ele se aperfeiçoou imensamente em conhecimento e em cumprir votos e aus­teridades, e seu corpo é muito forte. Sem demora, vai até ele e lhe pede o seu corpo.

Comentário

SIGNIFICADO—Neste mundo material, todos, desde o senhor Brahmā até a for­miga, estão ansiosos por manterem seus corpos saudáveis. Um de­voto puro também pode ser saudável, mas ele não está ansioso por essa bênção. Uma vez que Maghavan, o rei dos céus, ainda aspirava a uma situação corpórea confortável, o Senhor Viṣṇu o aconselhou a se dirigir a Dadhyañca e lhe pedir seu corpo, que, devido a seu conhecimento, votos e austeridades, era muito forte.

Texto

sa vā adhigato dadhyaṅṅ
aśvibhyāṁ brahma niṣkalam
yad vā aśvaśiro nāma
tayor amaratāṁ vyadhāt

Sinônimos

saḥ — ele; — decerto; adhigataḥ — tendo obtido; dadhyaṅ — Dadhyañca; aśvibhyām — aos dois Aśvinī-kumāras; brahma — conhecimento espiritual; niṣkalam — puro; yat — através do qual; aśvaśiraḥ — Aśvaśira; nāma — chamado; tayoḥ — dos dois; amara­tām — liberação durante a vida; vyadhāt — concedeu.

Tradução

Esse santo Dadhyañca, também conhecido como Dadhīci, assimilou pessoalmente a ciência espiritual e depois a transmitiu aos Aśvinī-kumāras. Afirma-se que Dadhyañca lhes deu mantras através da cabeça de um cavalo. Portanto, os mantras se chamam Aśvaśira. Após obterem de Dadhīci os mantras da ciência espiritual, os Aśvinī-kumāras se tornaram jīvan-muktas, liberados mesmo nesta vida.

Comentário

SIGNIFICADO—Em seus comentários, muitos ācāryas narram a seguinte história:

niśamyātharvaṇaṁ dakṣaṁ pravargya-brahmavidyayoḥ; dadhyañcaṁ samupāgamya tam ūcatur athāśvinau; bhagavan dehi nau vidyām iti śrutvā sa cābravīt; karmaṇy avasthito ’dyāhaṁ paścād vakṣyāmi gacchatam; tayor nirgatayor eva śakra āgatya taṁ munim; uvāca bhiṣajor vidyāṁ mā vādīr aśvinor mune; yadi mad-vākyam ullaṅghya bravīṣi sahasaiva te; śiraś-chindyāṁ na sandeha ity uktvā sa yayau hariḥ; indre gate tathābhyetya nāsatyāv ūcatur dvijam; tan-mukhād indra-gaditaṁ śrutvā tāv ūcatuḥ punaḥ; āvāṁ tava śiraś chittvā pūrvam aśvasya mastakam; sandhāsyāvas tato brūhi tena vidyāṁ ca nau dvija; tasminn indreṇa sañchinne punaḥ sandhāya mastakam; nijaṁ te dakṣiṇāṁ dattvā gamiṣyāvo yathāgatam; etac chrutvā tadovāca dadhyaṅṅ ātharvaṇas tayoḥ pravargyaṁ brahma-vidyāṁ ca sat-kṛto ’satya-śaṅkitaḥ.

O grande santo Dadhīci tinha perfeito conhecimento de como exe­cutar atividades fruitivas, e tinha também conhecimento espiritual avançado. Sabendo disso, os Aśvinī-kumāras, certa vez, aproximaram­-se dele e lhe pediram que os instruísse na ciência espiritual (brahma-­vidyā). Dadhīci Muni respondeu: “No momento, estou ocupado em organizar sacrifícios para atividades fruitivas. Vinde em outra oportunidade.” Quando os Aśvinī-kumāras partiram, Indra, o rei dos céus, foi ter com Dadhīci e disse: “Meu querido Muni, os Aśvinī­-kumāras são apenas médicos. Por favor, não os instruas na ciência espiritual. Se, apesar de minha advertência, transmitires aos Aśvinī-kumāras a ciência espiritual, eu te punirei decepando a tua cabeça.” Após advertir Dadhīci dessa maneira, Indra retornou aos céus. Os Aśvinī-kumāras, que compreenderam os desejos de Indra, retornaram e pediram brahma-vidyā a Dadhīci. Quando o grande santo Dadhīci os informou da ameaça de Indra, os Aśvinī-kumāras retorquiram: “Primeiramen­te, deixa-nos cortar a tua cabeça e, no lugar dela, colocar uma cabeça de cavalo. Podes instruir brahma-vidyā através da cabeça de cavalo, e, quando Indra voltar e cortar essa cabeça, nós te recompensaremos, colocando de volta a tua cabeça original.” Como prometera trans­mitir brahma-vidyā aos Aśvinī-kumāras, Dadhīci concordou com essa proposta deles. Portanto, porque Dadhīci transmitiu brahma-vidyā através da boca de um cavalo, esse brahma-vidyā também é co­nhecido como Aśvaśira.

Texto

dadhyaṅṅ ātharvaṇas tvaṣṭre
varmābhedyaṁ mad-ātmakam
viśvarūpāya yat prādāt
tvaṣṭā yat tvam adhās tataḥ

Sinônimos

dadhyaṇ — Dadhyañca; ātharvaṇaḥ — o filho de Atharvā; tvaṣṭre — a Tvaṣṭā; varma — a cobertura protetora conhecida como Nārāyaṇa-­kavaca; abhedyam — invencível; mat-ātmakam — consistindo em Mim mesmo; viśvarūpāya — a Viśvarūpa; yat — a qual; prādāt — entregou; tvaṣṭā — Tvaṣṭā; yat — a qual; tvam — tu; adhāḥ — recebeste; tataḥ — dele.

Tradução

A invencível cobertura protetora de Dadhyañca, conhecida como Nārāyaṇa-kavaca, foi dada a Tvaṣṭā, que a entregou a seu filho Viśvarūpa, de quem a recebeste. Devido a esse Nārāyaṇa-kavaca, o corpo de Dadhīci agora é muito forte. Portanto, deves pedir-lhe o seu corpo.

Texto

yuṣmabhyaṁ yācito ’śvibhyāṁ
dharma-jño ’ṅgāni dāsyati
tatas tair āyudha-śreṣṭho
viśvakarma-vinirmitaḥ
yena vṛtra-śiro hartā
mat-teja-upabṛṁhitaḥ

Sinônimos

yuṣmabhyam — em prol de todos vós; yācitaḥ — sendo solicitado; aśvibhyām — pelos Aśvinī-kumāras; dharma-jñaḥ — Dadhīci, que conhece os princípios da religião; aṅgāni — seus membros; dāsyati — dará; tataḥ — depois disso; taiḥ — com aqueles ossos; āyudha — das armas; śreṣṭhaḥ — a mais poderosa (o raio); viśvakarma-vinirmitaḥ — produzido por Viśvakarmā; yena — através do qual; vṛtra-śiraḥ — a cabeça de Vṛtrāsura; hartā — será decepada; mat-tejaḥ — pela Minha força; upabṛṁhitaḥ — intensificado.

Tradução

Quando, em prol de vós, os Aśvinī-kumāras pedirem o corpo de Dadhyañca, é evidente que, devido à afeição, ele o dará. Não duvideis disso, pois Dadhyañca é muito avançado em compreensão religiosa. Quando Dadhyañca vos der seu corpo, Viśvakarmā preparará um raio a partir dos ossos. É certo que esse raio matará Vṛtrāsura, pois estará revestido de Meu poder.

Texto

tasmin vinihate yūyaṁ
tejo-’strāyudha-sampadaḥ
bhūyaḥ prāpsyatha bhadraṁ vo
na hiṁsanti ca mat-parān

Sinônimos

tasmin — quando ele (Vṛtrāsura); vinihate — for morto; yūyam — todos vós; tejaḥ — poder; astra — flechas; āyudha — outras armas; sampadaḥ — e opulência; bhūyaḥ — novamente; prāpsyatha — obtereis; bhadram — toda a boa fortuna; vaḥ — para vós; na — não; hiṁsanti — afligirá; ca — também; mat-parān — Meus devotos.

Tradução

Quando Vṛtrāsura for morto devido à Minha força espiritual, re­conquistareis vossa força, armas e riqueza. Assim, haverá toda a boa fortuna para todos vós. Embora Vṛtrāsura possa destruir todos os três mundos, não fiqueis com medo, pensando que ele vos ator­mentará. Afinal, ele também é um devoto e nunca vos invejará.

Comentário

SIGNIFICADO—O devoto do Senhor nunca inveja ninguém, e muito menos in­vejaria outros devotos. Como ficará patente, Vṛtrāsura também era um devoto. Portanto, era natural que ele não invejasse os semi­deuses. Na verdade, por sua própria iniciativa, ele tentaria benefi­ciar os semideuses. O devoto não hesita em abandonar seu próprio corpo em prol de uma causa melhor. Cāṇakya Paṇḍita disse: san-nimitte varaṁ tyāgo vināśe niyate sati. Afinal, todas as nossas posses materiais, incluindo o corpo, serão destruídos no decorrer do tempo. Portanto, se o corpo e outras posses puderem ser utilizados em uma causa melhor, o devoto se prontificará a abandonar até mesmo seu próprio corpo. Porque o Senhor Viṣṇu queria salvar os semideuses, Vṛtrāsura, muito embora fosse capaz de en­golir os três mundos, concordaria em ser morto pelos semideuses: Para o devoto, não há diferença entre viver e morrer, pois, nessa vida, ele se ocupa em serviço devocional, e, após abandonar seu corpo, ele se ocupará no mesmo serviço no mundo espiritual. Não há nada que detenha o seu serviço devocional.

Neste ponto, encerram-se os Significados Bhaktivedanta do sexto canto, nono capítulo, do Śrīmād-Bhāgavatam, intitulado “O Aparecimento do Demônio Vṛtrāsura”.