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Capítulo Quatro

As Orações Haṁsa-guhya Oferecidas ao Senhor pelo Prajāpati Dakṣa

Depois que Mahārāja Parīkṣit solicitou a Śukadeva Gosvāmī que descrevesse de maneira mais pormenorizada a criação das entidades vivas dentro deste universo, Śukadeva Gosvāmī lhe informou que, quando os Pracetās, os dez filhos de Prācīnabarhi, entraram no mar para executar austeridades, o planeta Terra ficou negligenciado porque não havia rei para governá-lo. Naturalmente, muitas ervas daninhas e árvores desnecessárias cresceram, e não se produziram grãos alimentícios. Na verdade, toda a terra ficou parecendo uma floresta. Ao saírem do mar e ver o mundo inteiro repleto de árvores, os dez Pracetās ficaram muito irados contra as árvores e decidiram destruir todas elas para corrigir a irregularidade. Assim, os Pracetās criaram vento e fogo para reduzir as árvores a cinzas. Entretanto, Soma, o rei da Lua e o rei de toda a vegetação, proibiu os Pracetās de destruírem as árvores, já que elas são fonte de frutas e flores para todos os seres vivos. Simplesmente para satisfazer os Pracetās, Soma lhes deu uma bela moça nascida de Pramlocā Apsarā. Através do sêmen de todos os Pracetās, Dakṣa nasceu daquela moça.

No começo, Dakṣa criou todos os semideuses, demônios e seres humanos, mas, ao notar que a população não aumentava apropriadamente, ele aceitou sannyāsa e se dirigiu à montanha Vindhya, onde se submeteu a rigorosas austeridades e ofereceu ao Senhor Viṣṇu uma oração específica, conhecida como Haṁsa-guḥya, através da qual o Senhor Viṣṇu ficou muito satisfeito com ele. O conteúdo da oração era o seguinte.

“A Suprema Personalidade de Deus, a Superalma, o Senhor Hari, é o controlador tanto das entidades vivas quanto da natureza mate­rial. Ele é autossuficiente e autoiluminado. Assim como o tema da percepção não é a causa de nossos sentidos perceptivos, do mesmo modo, a entidade viva, embora situada dentro de seu próprio corpo, não é a causa de seu amigo eterno, a Superalma, que é a causa da criação de todos os sentidos. Devido à ignorância, a entidade viva ocupa seus sentidos em objetos materiais. Como tem vida, a entidade viva pode, até certo ponto, entender a criação deste mundo material, mas não pode entender a Suprema Personalidade de Deus, que está além do conceito de corpo, mente e inteligência. Contudo, os grandes sábios que sempre estão em meditação podem ver dentro de seus corações a forma pessoal do Senhor.”

“Dado que o ser vivo comum está materialmente contaminado, suas palavras e sua inteligência também são materiais. Portanto, não é se valendo de seus sentidos materiais que ele compreenderá a Suprema Personalidade de Deus. O conceito atinente a Deus a que se chega através dos sentidos materiais é impreciso porque o Senhor Supremo está além dos sentidos materiais, mas, quando alguém ocupa seus sentidos em serviço devocional, a eterna Suprema Personali­dade de Deus revela-Se na plataforma da alma. Quando essa Divindade Suprema torna-Se a meta da vida de alguém, afirma-se que ele alcançou o conhecimento espiritual.”

“O Brahman Supremo é a causa de todas as causas porque existia originalmente, antes da criação. Ele é a causa que origina todas as coisas, tanto materiais quanto espirituais, e Sua existência é independente. Entretanto, o Senhor tem uma potência chamada avidyā, a energia ilusória, que induz o falso argumentador a se julgar per­feito e que leva a energia ilusória a confundir a alma condicionada. Esse Brahman Supremo, a Superalma, é muito afetuoso com Seus devotos. Para lhes conceder misericórdia, Ele revela a Sua forma, nome, atributos e qualidades para serem adorados dentro deste mundo material.”

“Infelizmente, entretanto, aqueles que estão absortos na matéria adoram vários semideuses. Assim como, ao entrar em contato com uma flor de lótus, o ar transporta o perfume da flor, ou assim como o ar às vezes carrega poeira e, portanto, assume cores, a Suprema Personalidade de Deus aparece como os diversos semideuses de acordo com o desejo de vários de Seus adoradores que agem como tolos, mas, na realidade, Ele é a verdade suprema, o Senhor Viṣṇu. Para satisfazer os desejos dos Seus devotos, Ele aparece sob várias encarnações e, portanto, não se faz necessário adorar os semideuses.”

Ficando muito satisfeito com as orações de Dakṣa, o Senhor Viṣṇu, com oito braços, apareceu diante de Dakṣa. O Senhor vestia-Se com roupas amarelas e tinha uma tez enegrecida. Compreendendo que Dakṣa estava muito ansioso por seguir o caminho do desfrute, o Senhor lhe concedeu a potência de desfrutar da energia ilusória. O Senhor lhe ofereceu a filha de Pañcajana chamada Asiknī, que era apropriada para o desfrute sexual de Mahārāja Dakṣa. Na ver­dade, ele recebeu esse nome, Dakṣa, porque era muito hábil na vida sexual. Após conceder esta bênção, o Senhor Viṣṇu desapareceu.

Texto

śrī-rājovāca
devāsura-nṛṇāṁ sargo
nāgānāṁ mṛga-pakṣiṇām
sāmāsikas tvayā prokto
yas tu svāyambhuve ’ntare
tasyaiva vyāsam icchāmi
jñātuṁ te bhagavan yathā
anusargaṁ yayā śaktyā
sasarja bhagavān paraḥ

Sinônimos

śrī-rājā uvāca — o rei disse; deva-asura-nṛṇām — dos semideuses, dos demônios e dos seres humanos; sargaḥ — a criação; nāgānām — das Nāgas (entidades vivas serpentinas); mṛga-pakṣiṇām — das feras e dos pássaros; sāmāsikaḥ — brevemente; tvayā — por ti; proktaḥ — descrita; yaḥ — a qual; tu — contudo; svāyambhuve — de Svāyambhuva Manu; antare — dentro do período; tasya — disto; eva — na verdade; vyāsam — o relato pormenorizado; icchāmi — desejo; jñātum — conhecer; te — de ti; bhagavan — ó meu senhor; yathā — bem como; anusargam — a criação subsequente; yayā — através da qual; śaktyā — potência; sa­sarja — criou; bhagavān — a Suprema Personalidade de Deus; paraḥ — transcendental.

Tradução

O abençoado rei disse a Śukadeva Gosvāmī: Meu querido senhor, os semideuses, os demônios, os seres humanos, as Nāgas, as feras e os pássaros foram criados durante o reinado de Svāyambhuva Manu. Falaste brevemente sobre essa criação [no terceiro canto]. Agora, desejo saber sobre isso em pormenores. Também desejo saber sobre a potência da Suprema Personalidade de Deus através da qual Ele efetuou a criação secundária.

Texto

śrī-sūta uvāca
iti sampraśnam ākarṇya
rājarṣer bādarāyaṇiḥ
pratinandya mahā-yogī
jagāda muni-sattamāḥ

Sinônimos

śrī-sūtaḥ uvāca — Sūta Gosvāmī disse; iti — assim; sampraśnam — a pergunta; ākarṇya — ouvindo; rājarṣeḥ — do rei Parīkṣit; bādarāyaṇiḥ — Śukadeva Gosvāmī; pratinandya — louvando; mahā-yogī — o grande yogī; jagāda — respondeu; muni-sattamāḥ — ó melhores entre os sábios.

Tradução

Sūta Gosvāmī disse: Ó grandes sábios [reunidos em Naimiṣāraya], após ouvir a pergunta do rei Parīkṣit, o grande yogī Śukadeva Go­svāmī a louvou e respondeu da seguinte maneira.

Texto

śrī-śuka uvāca
yadā pracetasaḥ putrā
daśa prācīnabarhiṣaḥ
antaḥ-samudrād unmagnā
dadṛśur gāṁ drumair vṛtām

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śukadeva Gosvāmī disse; yadā — quando; pracetasaḥ — os Pracetās; putrāḥ — os filhos; daśa — dez; prācīnabarhi­ṣaḥ — do rei Prācīnabarhi; antaḥ-samudrāt — de dentro do oceano; unmagnāḥ — emergiram; dadṛśuḥ — eles viram; gām — todo o plane­ta; drumaiḥ vṛtām — coberto de árvores.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī disse: Ao emergirem das águas, nas quais estavam executando austeridades, os dez filhos de Prācīnabarhi viram que toda a superfície do mundo estava coberta de árvores.

Comentário

SIGNIFICADO—Quando o rei Prācīnabarhi estava realizando rituais védicos nos quais se recomendava a matança de animais, Nārada Muni, por compaixão, aconselhou-o a não continuar com essa atividade. Prācīna­barhi entendeu Nārada adequadamente e, então, deixou o reino para praticar austeridades na floresta. Entretanto, seus dez filhos estavam executando austeridades dentro da água e, por conseguinte, não havia rei para zelar pela administração do mundo. Quando os dez filhos, os Pracetās, saíram da água, viram que a terra estava abarrotada de árvores.

Quando o governo negligencia a agricultura, que é necessária para a produção de alimentos, a terra se cobre de árvores desnecessárias. Evidentemente, muitas árvores são úteis porque produzem frutas e flores, mas muitas outras são desnecessárias. Elas poderiam ser usadas como combustível e a terra ficaria limpa e adequada para o uso agrícola. Quando o governo é negligente, há menos produção de grãos. Como se afirma na Bhagavad-gītā (18.44), kṛṣi-go-rakṣya-vāṇijyaṁ vaiśya-karma svabhāva jam: as ocupações próprias para os vaiśyas, de acordo com a sua natureza, são a agricultura e a proteção às vacas. O dever do governo e dos katriyas é atentar para que os membros da terceira classe, os vaiśyas, que não são brāhmaṇas nem kṣatriyas, desempenhem essa sua devida ocupa­ção. Aos kṣatriyas, cabe proteger os seres humanos, ao passo que, aos vaiśyas, cabe proteger os animais úteis, especialmente as vacas.

Texto

drumebhyaḥ krudhyamānās te
tapo-dīpita-manyavaḥ
mukhato vāyum agniṁ ca
sasṛjus tad-didhakṣayā

Sinônimos

drumebhyaḥ — contra as árvores; krudhyamānāḥ — estando muito irados; te — eles (os dez filhos de Prācīnabarhi); tapaḥ-dīpita-manya­vaḥ — cuja ira estava acesa devido às longas austeridades; mukhataḥ — da boca; vāyum — vento; agnim — fogo; ca — e; sasṛjuḥ — eles produziram; tat — aquelas florestas; didhakṣayā — com o desejo de queimar.

Tradução

Por terem se submetido a demoradas austeridades na água, os Pracetās ficaram muito irritados de ver tantas árvores. Desejando reduzi-las a cinzas, produziram vento e fogo de suas bocas.

Comentário

SIGNIFICADO—Aqui, a palavra tapo-dīpita-manyavaḥ indica que as pessoas que se submeteram a rigorosas austeridades (tapasya) estão dotadas de grande poder místico, como se vê no exemplo dos Pracetās, que produziram fogo e vento a partir de suas bocas. Embora se submetam a um tipo severo de tapasya, os devotos são vimanyavaḥ, sādhavaḥ, o que significa que nunca ficam irados. Eles sempre estão decorados com boas qualidades. O Bhāgavatam (3.25.21) afirma:

titikṣavaḥ kāruṇikāḥ
suhṛdaḥ sarva-dehinām
ajāta-śatravaḥ śāntāḥ
sādhavaḥ sādhu-bhūṣaṇāḥ

Um sādhu, um devoto, jamais se ira. Na verdade, o verdadeiro aspecto dos devotos que se submetem a tapasya, austeridade, é sua capacidade de perdoar. Embora adquira suficiente poder ao realizar tapasya, o vaiṣṇava não se enraivece quando posto em dificuldades. Contudo, quem se submete a tapasya, mas não se torna vaiṣṇava, não desenvolve boas qualidades. Por exemplo, Hiraṇyakaśipu e Rāvaṇa também executaram grandes austeridades, mas com o propósito de demonstrar suas tendências demoníacas. Ao pregarem as glórias do Senhor, os vaiṣṇavas têm que se defrontar com muitos oponentes, mas Śrī Caitanya Mahāprabhu recomenda que não fiquem irados enquanto pregam. O Senhor Caitanya forneceu esta fórmula, tṛṇād api sunīcena taror api sahiṣṇunā/ amāninā mānadena kīrtanīyaḥ sadā hariḥ: “Deve-se cantar o santo nome do Senhor em um estado mental humilde, considerando-se inferior à palha na rua; é preciso ser mais tolerante do que uma árvore, desprovido de todo o sentido de falso pres­tígio e deve-se estar pronto para oferecer todo respeito aos outros. Nesse estado mental, pode-se cantar o santo nome do Senhor cons­tantemente.” Aqueles que estão ocupados em pregar as glórias do Senhor devem ser mais humildes do que a grama e mais tolerantes do que uma árvore; então, eles podem facilmente pregar as glórias do Senhor.

Texto

tābhyāṁ nirdahyamānāṁs tān
upalabhya kurūdvaha
rājovāca mahān somo
manyuṁ praśamayann iva

Sinônimos

tābhyām — pelo vento e pelo fogo; nirdahyamānān — sendo queimadas; tān — a elas (as árvores); upalabhya — vendo; kurūdvaha — ó Mahārāja Parīkṣit; rājā — o rei da floresta; uvāca — disse; mahān — o grande; somaḥ — Somadeva, a deidade que predomina a Lua; manyum — a ira; praśamayan — apaziguando; iva — como.

Tradução

Meu querido rei Parīkṣit, quando Soma, o rei das árvores e a dei­dade que predomina a Lua, viu o fogo e o vento reduzindo todas as árvores a cinzas, sentiu muita compaixão porque é o mantenedor de todas as ervas e árvores. Para apaziguar a ira dos Pracetās, Soma falou o seguinte.

Comentário

SIGNIFICADO—Compreende-se por meio deste verso que a deidade que predomina a Lua é o mantenedor de todas as árvores e plantas do universo inteiro. É devido ao luar que as árvores e plantas crescem com grande exuberância. Portanto, como podemos concordar com os pretensos cientistas cujas expedições lunares nos informam que não existem árvores nem vegetação na Lua? Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura diz que somo vṛkṣādhiṣṭhātā sa eva vṛkṣāṇāṁ rājā: Soma, a deidade que predomina a Lua, é o rei de toda a vegetação. Como podemos aceitar que o mantenedor da vegetação não tenha vegetação em seu próprio planeta?

Texto

na drumebhyo mahā-bhāgā
dīnebhyo drogdhum arhatha
vivardhayiṣavo yūyaṁ
prajānāṁ patayaḥ smṛtāḥ

Sinônimos

na — não; drumebhyaḥ — as árvores; mahā-bhāgāḥ — ó afortunadíssimos; dīnebhyaḥ — que são indefesas; drogdhum — reduzir a cinzas; arhatha — mereceis; vivardhayiṣavaḥ — desejando provocar um aumento; yūyam — vós; prajānām — de todas as entidades vivas que se refugiaram em vós; patayaḥ — os mestres ou protetores; smṛtāḥ — conhecidos como.

Tradução

Ó afortunadíssimos, não deveis matar essas pobres árvores reduzindo as mesmas a cinzas. Cabe a vós desejar a prosperidade de todos os cidadãos [prajās] e agir como seus protetores.

Comentário

SIGNIFICADO—Aqui se indica que o governante ou o rei têm o dever de proteger não apenas os seres humanos, mas todas as outras entidades vivas, incluindo os animais, as árvores e as plantas. Nenhuma entidade viva deve ser morta sem necessidade.

Texto

aho prajāpati-patir
bhagavān harir avyayaḥ
vanaspatīn oṣadhīś ca
sasarjorjam iṣaṁ vibhuḥ

Sinônimos

aho — oh; prajāpati-patiḥ — o Senhor de todos os senhores dos seres criados; bhagavān hariḥ — Hari, a Suprema Personalidade de Deus; avyayaḥ — indestrutível; vanaspatīn — as árvores e as plantas; oṣadhīḥ — as ervas; ca — e; sasarja — criou; ūrjam — revigorante; iṣam — alimento; vibhuḥ — o Ser Supremo.

Tradução

Śrī Hari, a Suprema Personalidade de Deus, é o mestre de todas as entidades vivas, incluindo todos os prajāpatis, tais como o senhor Brahmā. Porque Ele é o mestre onipenetrante e indestrutível, Ele criou todas essas árvores e vegetais para servirem de alimento a outras entidades vivas.

Comentário

SIGNIFICADO—Soma, a deidade que predomina a Lua, lembrou aos Pracetās que essa vegetação fora criada pelo Senhor dos senhores para fornecer alimentos a todos. Se os Pracetās decidissem matá-las, seus próprios súditos também sofreriam, pois as árvores também são necessárias para a alimentação.

Texto

annaṁ carāṇām acarā
hy apadaḥ pāda-cāriṇām
ahastā hasta-yuktānāṁ
dvi-padāṁ ca catuṣ-padaḥ

Sinônimos

annam — alimento; carāṇām — daqueles que se movem com asas; acarāḥ — os inertes (frutas e flores); hi — na verdade; apadaḥ — as entidades vivas destituídas de pés, como a grama; pāda-cāriṇām — dos animais que se movem sobre pernas, tais como as vacas e o búfalo; ahastāḥ — animais sem mãos; hasta-yuktānām — dos animais que têm garras, como os tigres; dvi-padām — dos seres humanos, que são bípedes; ca — e; catuḥ-padaḥ — os animais de quatro patas, como o veado.

Tradução

Pelo arranjo da natureza, as frutas e as flores são consideradas o alimento dos insetos e dos pássaros; a grama e outras entidades vivas destituídas de pés destinam-se à alimentação dos animais de quatro patas, tais como as vacas e o búfalo; os animais que não podem usar suas pernas dianteiras como mãos se destinam a servir de alimento aos animais como os tigres, que têm garras; e os animais que, como o veado e os bodes, têm quatro patas, bem como os grãos alimentícios, destinam-se à alimentação dos seres humanos.

Comentário

SIGNIFICADO—Pela lei da natureza, ou arranjo da Suprema Personalidade de Deus, uma espécie de entidade viva serve de alimento para outras entidades vivas. Como se menciona aqui, dvi-padāṁ ca catuṣ-padaḥ: os animais de quatro patas (catuṣ-padaḥ), bem como os grãos ali­mentícios, são os víveres dos seres humanos (dvi-padām). Esses animais de quatro patas são representados pelo veado e pelas cabras, e não pelas vacas, que devem ser protegidas. De um modo geral, os homens das classes superiores da sociedade – os brāhmaṇas, os kṣatriyas e os vaiśyas – não comem carne. Às vezes, para aprender a arte de matar, os kṣatriyas vão à floresta matar animais como o veado, e, algumas vezes vezes, eles também comem animais. Os śūdras, também, comem animais da espécie caprina. As vacas, entretanto, nunca devem ser mortas ou comidas pelos seres humanos. Todos os śāstras condenam peremptoriamente o abate de vacas. Na ver­dade, alguém que mata uma vaca tem que sofrer por tantos anos quantos são os números de pelos encontrados no corpo de uma vaca. A Manu-saṁhitā diz que pravṛttir eṣā bhūtānāṁ nivṛttis tu mahā­-phalā: neste mundo material, temos muitas tendências, mas, na vida humana, devemos aprender como controlar essas tendências. Aqueles que desejam comer carne podem satisfazer as exigências de suas línguas comendo animais inferiores, mas nunca devem matar vacas, que de fato são aceitas como mães da sociedade humana porque for­necem leite. Os śāstras recomendam especialmente que kṛṣi-go-rakṣya: a seção vaiśya da humanidade deve encarregar-se de providenciar alimento para toda a sociedade através de atividades agrícolas e deve dar completa proteção às vacas, que são os animais mais úteis, pois fornecem leite para a sociedade humana.

Texto

yūyaṁ ca pitrānvādiṣṭā
deva-devena cānaghāḥ
prajā-sargāya hi kathaṁ
vṛkṣān nirdagdhum arhatha

Sinônimos

yūyam — vós; ca — também; pitrā — por vosso pai; anvādiṣṭāḥ — ordenados; deva-devena — pela Suprema Personalidade de Deus, o mestre dos mestres; ca — também; anaghāḥ — ó pessoas desprovidas de pecado; prajā-sargāya — para gerar população; hi — na verdade; katham — como; vṛkṣān — as árvores; nirdagdhum — de reduzir a cinzas; arhatha — sois capazes.

Tradução

Ó pessoas de coração puro, Prācīnabarhi, vosso pai, e a Suprema Personalidade de Deus ordenaram-vos que gerásseis população. Portanto, como é que reduzis a cinzas essas árvores e ervas, neces­sárias à manutenção de vossos súditos e descendentes?

Texto

ātiṣṭhata satāṁ mārgaṁ
kopaṁ yacchata dīpitam
pitrā pitāmahenāpi
juṣṭaṁ vaḥ prapitāmahaiḥ

Sinônimos

ātiṣṭhata — simplesmente segui; satām mārgam — o caminho das grandes personalidades santas; kopam — a ira; yacchata — subjugai; dīpitam — que agora foi despertada; pitrā — pelo pai; pitāmahena api — e pelo avô; juṣṭam — trilhado; vaḥ — vossos; prapitāmahaiḥ — pelos bisavós.

Tradução

O caminho da bondade trilhado por vosso pai, avô e bisavós é aquele em que se zela pelos súditos [prajās], incluindo homens, animais e árvores. É esse o caminho que deveis seguir. A ira desnecessária contraria o vosso dever. Portanto, peço-vos que controleis vossa raiva.

Comentário

SIGNIFICADO—Aqui, as palavras pitrā pitāmahenāpi juṣṭaṁ vaḥ prapitāmahaiḥ retratam uma honesta família real, formada de reis, de seus pais, de seus avós e de seus bisavós. Semelhante família real possui uma posição prestigiosa porque mantém os cidadãos, ou prajās. A palavra prajā se refere a alguém que nasce dentro da jurisdição do governo. As nobres famílias reais eram cônscias de que todos os seres vivos, quer fossem pessoas, quer animais, quer entidades inferiores aos animais, deveriam receber proteção. O sistema democrático moderno não pode ser enaltecido dessa maneira, pois os líderes eleitos lutam apenas pelo poder e não têm senso de responsabilidade. Em uma monarquia, o rei que tem posição prestigiosa segue os grandes feitos de seus antepassados. Assim, Soma, o rei da Lua, aproveita para fazer com que os Pracetās se lembrem das glórias de seu pai, avô e bisavós.

Texto

tokānāṁ pitarau bandhū
dṛśaḥ pakṣma striyāḥ patiḥ
patiḥ prajānāṁ bhikṣūṇāṁ
gṛhy ajñānāṁ budhaḥ suhṛt

Sinônimos

tokānām — dos filhos; pitarau — ambos os progenitores; bandhū — os amigos; dṛśaḥ — do olho; pakṣma — a pálpebra; striyāḥ — da mulher; patiḥ — o esposo; patiḥ — o protetor; prajānām — dos súdi­tos; bhikṣūṇām — dos pedintes; gṛhī — o pai de família; ajñānām — dos ignorantes; budhaḥ — o sábio; su-hṛt — o amigo.

Tradução

Assim como o pai e a mãe são os amigos e mantenedores de seus filhos, assim como a pálpebra é a protetora dos olhos, assim como o esposo é o mantenedor e protetor da esposa, assim como o pai de família é o mantenedor e protetor dos pedintes, e assim como o sábio é amigo dos ignorantes, do mesmo modo, o rei é o protetor de todos os seus súditos, e é ele quem lhes dá vida. As árvores também são súditas do rei. Portanto, elas devem receber proteção.

Comentário

SIGNIFICADO—De acordo com a vontade suprema da Personalidade de Deus, existem vários protetores e mantenedores das entidades vivas desamparadas. As árvores também são consideradas prajās, súditas do rei, e se ao monarca cabe proteger inclusive as árvores, o que dizer, então, de ele ter que proteger os outros seres? O rei tem por obrigação proteger as entidades vivas que estão em seu reino. Assim, embora os pais sejam diretamente responsáveis pela proteção e manutenção dos seus filhos, cabe ao rei zelar para que todos os pais cumpram seu dever adequadamente. Do mesmo modo, o rei também deve super­visionar os outros protetores mencionados neste verso. Também convém atentar que os pedintes que devem ser mantidos pelos pais de família não são os pedintes profissionais, mas os sannyāsīs e brāhmaṇas, a quem os pais de família devem fornecer alimentos e roupas.

Texto

antar deheṣu bhūtānām
ātmāste harir īśvaraḥ
sarvaṁ tad-dhiṣṇyam īkṣadhvam
evaṁ vas toṣito hy asau

Sinônimos

antaḥ deheṣu — dentro dos corpos (no âmago dos corações); bhūtānām — de todas as entidades vivas; ātmā — a Superalma; āste — reside; hariḥ — a Suprema Personalidade de Deus; īśvaraḥ — o Senhor ou dirigente; sarvam — todos; tat-dhiṣṇyam — Sua residência; īkṣadhvam — procurai ver; evam — dessa maneira; vaḥ — convosco; toṣitaḥ — satisfeito; hi — na verdade; asau — essa Suprema Personalidade de Deus.

Tradução

Como Superalma, a Suprema Personalidade de Deus situa-Se no âmago do coração de todas as entidades vivas, móveis ou inertes, incluindo homens, pássaros, animais, árvores e, na verdade, todas as entidades vivas. Portanto, deveis considerar todos os corpos como residências ou templos do Senhor. Com essa visão, satisfareis o Senhor. Não deveis ficar irados e matar essas entidades vivas que estão sob a forma de árvores.

Comentário

SIGNIFICADO—Como afirma a Bhagavad-gītā e confirmam todas as escrituras védicas, īśvaraḥ sarva-bhūtānāṁ hṛd-deśe ’rjuna tiṣṭhati: a Superalma está situada dentro do coração de todos. Portanto, como todos os corpos são residências do Senhor Supremo, ninguém deve destruir o corpo somente por causa da inveja desnecessária. Esse comportamento traz insatisfação à Superalma. Soma disse aos Pracetās que, depois de terem tentado satisfazer a Superalma, não deveriam agora deixá-lA insatisfeita.

Texto

yaḥ samutpatitaṁ deha
ākāśān manyum ulbaṇam
ātma-jijñāsayā yacchet
sa guṇān ativartate

Sinônimos

yaḥ — qualquer pessoa que; samutpatitam — subitamente desper­tada; dehe — no corpo; ākāśāt — do céu; manyum — ira; ulbaṇam — poderosa; ātma-jijñāsayā — buscando realização espiritual ou autorrealização; yacchet — subjuga; saḥ — essa pessoa; guṇān — os modos da natureza material; ativartate — transcende.

Tradução

Aquele que busca autorrealização e, dessa maneira, subjuga sua poderosa ira – que costuma despertar subitamente no corpo como se caísse do céu – transcende a influência dos modos da natureza material.

Comentário

SIGNIFICADO—Quando alguém se ira, esquece-se de si mesmo e de sua situação, mas quem é sábio para ponderar sua situação, transcenderá a influência dos modos da natureza material. Todos estão sempre servindo aos desejos luxuriosos, a ira, a cobiça, a ilusão, a inveja e assim por diante, mas aquele que obtém forças suficientes para avançar espi­ritualmente pode controlar tudo isso. Aquele que obtém esse con­trole estará sempre situado transcendentalmente, imune aos modos da natureza material. Isso é possível apenas a quem se ocupa plena­mente a serviço do Senhor. Como o Senhor diz na Bhagavad-gītā (14.26):

māṁ ca yo ’vyabhicāreṇa
bhakti-yogena sevate
sa guṇān samatītyaitān
brahma-bhūyāya kalpate

“Aquele que se ocupa em serviço devocional pleno e não falha em circunstância alguma, transcende de imediato os modos da natureza material e chega, então, ao nível de Brahman.” Ocupando as pessoas em serviço devocional, o movimento da consciência de Kṛṣṇa as mantém sempre transcendentais à ira, à cobiça, à luxúria, à inveja e assim por diante. Devemos prestar serviço devocional, ou seremos vitimados pelos modos da natureza material.

Texto

alaṁ dagdhair drumair dīnaiḥ
khilānāṁ śivam astu vaḥ
vārkṣī hy eṣā varā kanyā
patnītve pratigṛhyatām

Sinônimos

alam — o bastante; dagdhaiḥ — com a queimada; drumaiḥ — as árvores; dīnaiḥ — indefesas; khilānām — das árvores sobreviventes; śivam — toda a boa fortuna; astu — que haja; vaḥ — de vós; vārkṣī — criada pelas árvores; hi — na verdade; eṣā — esta; varā — seleta; kanyā — filha; patnītve — como esposa; pratigṛhyatām — que ela seja aceita.

Tradução

Não há necessidade de continuardes incinerando essas pobres ár­vores. Deixai que todas as árvores sobreviventes sejam felizes. Na verdade, também deveis ser felizes. Portanto, tendes aqui uma jovem chamada Māriṣā, que é bela e muito bem qualificada e que as árvores criaram como sua própria filha. Deveis aceitar essa bela jovem como vossa esposa.

Texto

ity āmantrya varārohāṁ
kanyām āpsarasīṁ nṛpa
somo rājā yayau dattvā
te dharmeṇopayemire

Sinônimos

iti — assim; āmantrya — dirigindo-se; vara-ārohām — possuindo quadris belíssimos e elevados; kanyām — a jovem; āpsarasīm — nascida de uma Apsarā; nṛpa — ó rei; somaḥ — Soma, a deidade que predo­mina a Lua; rājā — o rei; yayau — regressou; dattvā — entregando; te — eles; dharmeṇa — de acordo com os princípios religiosos; upaye­mire — casaram-se com.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī continuou: Meu querido rei, após apaziguar assim os Pracetās, Soma, o rei da Lua, deu-lhes a bela jovem, nascida de Pramlocā Apsarā. Todos os Pracetās receberam a filha de Pramlocā, que tinha quadris belíssimos e elevados, e se casaram com ela de acordo com o sistema religioso.

Texto

tebhyas tasyāṁ samabhavad
dakṣaḥ prācetasaḥ kila
yasya prajā-visargeṇa
lokā āpūritās trayaḥ

Sinônimos

tebhyaḥ — de todos os Pracetās; tasyām — nela; samabhavat — foi gerado; dakṣaḥ — Dakṣa, perito em gerar filhos; prācetasaḥ — o filho dos Pracetās; kila — na verdade; yasya — cujo; prajā-visargeṇa — processo de gerar entidades vivas; lokāḥ — os mundos; āpūritāḥ — encheu; trayaḥ — três.

Tradução

No ventre daquela jovem, todos os Pracetās geraram um filho cha­mado Dakṣa, que encheu os três mundos com entidades vivas.

Comentário

SIGNIFICADO—Dakṣa nasceu primeiramente durante o reinado de Svāyambhuva Manu, mas, por ter ofendido o senhor Śiva, ele recebeu a punição de que, em vez de sua cabeça, ficaria com uma cabeça de bode. 
Com esse castigo, teve que abandonar esse corpo, e, no sexto manvantara, chamado manvantara Cākṣuṣa, ele nasceu do ventre de Māriṣā como Dakṣa. Com relação a isso, Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura cita este verso:

cākṣuṣe tv antare prāpte
prāk-sarge kāla-vidrute
yaḥ sasarja prajā iṣṭāḥ
sa dakṣo daiva-coditaḥ

“Seu corpo anterior fora destruído, mas ele, o mesmo Dakṣa, inspirado pela vontade suprema, criou, no manvantara Cākṣuṣa, todas as entidades vivas desejadas.” (Śrīmad-Bhāgavatam 4.30.49) Assim, Dakṣa conseguiu reaver sua opulência anterior e novamente gerou milhares e milhões de filhos para encherem os três mundos.

Texto

yathā sasarja bhūtāni
dakṣo duhitṛ-vatsalaḥ
retasā manasā caiva
tan mamāvahitaḥ śṛṇu

Sinônimos

yathā — como; sasarja — criou; bhūtāni — as entidades vivas; dakṣaḥ — Dakṣa; duhitṛ-vatsalaḥ — que é muito afetuoso com suas filhas; retasā — através do sêmen; manasā — através da mente; ca — também; eva — na verdade; tat — isto; mama — de mim; avahitaḥ — ficando atento; śṛṇu — por favor, ouve.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī prosseguiu: Por favor, ouve com muita atenção enquanto narro como foi que o Prajāpati Dakṣa, que tinha muita afeição por suas filhas, criou, através do seu sêmen e de sua mente, diferentes espécies de entidades vivas.

Comentário

SIGNIFICADO—A palavra duhitṛ-vatsalaḥ denota que todos os prajās nasceram das filhas de Dakṣa. Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura diz que, aparentemente, Dakṣa não teve nenhum filho.

Texto

manasaivāsṛjat pūrvaṁ
prajāpatir imāḥ prajāḥ
devāsura-manuṣyādīn
nabhaḥ-sthala-jalaukasaḥ

Sinônimos

manasā — com a mente; eva — na verdade; asṛjat — criou; pūrvam — no começo; prajāpatiḥ — o prajāpati (Dakṣa); imāḥ — essas; prajāḥ — entidades vivas; deva — os semideuses; asura — os demônios; manuṣya­-ādīn — e outras entidades vivas, encabeçadas pelos seres humanos; nabhaḥ — nos céus; sthala — na terra; jala — ou dentro da água; okasaḥ — que têm suas moradas.

Tradução

Com sua mente, o prajāpati Dakṣa primeiramente criou todas as classes de semideuses, demônios, seres humanos, pássaros, feras, seres aquáticos e assim por diante.

Texto

tam abṛṁhitam ālokya
prajā-sargaṁ prajāpatiḥ
vindhya-pādān upavrajya
so ’carad duṣkaraṁ tapaḥ

Sinônimos

tam — isto; abṛṁhitam — não aumentando; ālokya — vendo; prajā-­sargam — a criação das entidades vivas; prajāpatiḥ — Dakṣa, o gerador das entidades vivas; vindhya-pādān — as montanhas situadas perto da cordilheira Vindhya; upavrajya — indo para; saḥ — ele; acarat — executou; duṣkaram — dificílimas; tapaḥ — austeridades.

Tradução

Contudo, ao perceber que não estava gerando adequadamente todas as espécies de entidades vivas, o prajāpati Dakṣa se aproximou de uma montanha situada perto da cordilheira Vindhya, onde, então, executou austeridades dificílimas.

Texto

tatrāghamarṣaṇaṁ nāma
tīrthaṁ pāpa-haraṁ param
upaspṛśyānusavanaṁ
tapasātoṣayad dharim

Sinônimos

tatra — lá; aghamarṣaṇam — Aghamarṣaṇa; nāma — chamado; tīrtham — o lugar sagrado; pāpa-haram — adequado para destruir todas as reações pecaminosas; param — melhor; upaspṛśya — exe­cutando ācamana e se banhando; anusavanam — regularmente; tapa­sā — com a austeridade; atoṣayat — deu prazer; harim — à Suprema Personalidade de Deus.

Tradução

Perto dessa montanha, havia um lugar sacratíssimo, chamado Aghamarṣaṇa. Ali, o Prajāpati Dakṣa executou cerimônias ritualísticas e satisfez a Suprema Personalidade de Deus, ocupando-se em grandes austeridades para o prazer de Hari.

Texto

astauṣīd dhaṁsa-guhyena
bhagavantam adhokṣajam
tubhyaṁ tad abhidhāsyāmi
kasyātuṣyad yathā hariḥ

Sinônimos

astauṣīt — satisfeito; haṁsa-guhyena — pelas célebres orações conhecidas como Haṁsa-guhya; bhagavantam — a Suprema Personalida­de de Deus; adhokṣajam — que está além do alcance dos sentidos; tubhyam — a ti; tat — isto; abhidhāsyāmi — explicarei; kasya — com Dakṣa, o prajāpati; atuṣyat — ficou satisfeito; yathā — como; hariḥ — a Suprema Personalidade de Deus.

Tradução

Meu querido rei, eu te explicarei plenamente as orações Haṁsa-­guhya, que foram oferecidas à Suprema Personalidade de Deus por Dakṣa, e também te explicarei como o Senhor ficou satisfeito com ele devido a essas orações.

Comentário

SIGNIFICADO—Convém salientar que as orações Haṁsa-guḥya não foram compostas por Dakṣa, senão que já existiam na literatura védica.

Texto

śrī-prajāpatir uvāca
namaḥ parāyāvitathānubhūtaye
guṇa-trayābhāsa-nimitta-bandhave
adṛṣṭa-dhāmne guṇa-tattva-buddhibhir
nivṛtta-mānāya dadhe svayambhuve

Sinônimos

śrī prajāpatiḥ uvāca — o prajāpati Dakṣa disse; namaḥ — todas as respeitosas reverências; parāya — à Transcendência; avitatha — cor­reta; anubhūtaye — àquele cuja potência espiritual torna-O compreen­sível aos demais; guṇa-traya — dos três modos da natureza material; ābhāsa — das entidades vivas que têm o aspecto; nimitta — e da energia material; bandhave — ao controlador; adṛṣṭa-dhāmne — que não é percebido em Sua morada; guṇa-tattva-buddhibhiḥ — pelas almas condicionadas cuja inteligência rudimentar lhes impõe que a verdade insofismável encontra-se nas manifestações dos três modos da na­tureza material; nivṛtta-mānāya — que ultrapassou todas as mensurações e cálculos materiais; dadhe — ofereço; svayambhuve — ao Senhor Supremo, que Se manifesta sem precisar ser impelido por alguma causa.

Tradução

O prajāpati Dakṣa disse: A Suprema Personalidade de Deus é transcendental à energia ilusória e às categorias físicas que ela produz. Possui potência de conhecimento infalível e suprema força de von­tade, e Ele é o controlador das entidades vivas e da energia ilusória. As almas condicionadas que aceitaram esta manifestação material como tudo não podem vê-lO, pois Ele está acima do alcance do co­nhecimento experimental. Autoevidente e autossuficiente, nenhuma causa superior responde por Sua existência. Ofereço-Lhe minhas respeitosas reverências.

Comentário

SIGNIFICADO—Nesta passagem, explica-se a posição transcendental da Suprema Personalidade de Deus. Ele não é perceptível às almas condicionadas, que estão acostumadas à visão material e não conseguem compreen­der que a Suprema Personalidade de Deus existe em Sua morada, a qual está além dessa visão. Mesmo que pudesse contar todos os átomos do universo, o materialista seria incapaz de entender a Suprema Personalidade de Deus. Como se confirma na Brahma-saṁhitā (5.34):

panthās tu koṭi-śata-vatsara-saṁpragamyo
vāyor athāpi manaso muni-puṅgavānām
so ’py asti yat-prapada-sīmny avicintya-tattve
govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi

Através de sua especulação mental, viajando à velocidade da mente ou do vento, as almas condicionadas podem investir muitos bilhões de anos no processo de tentar entender a Suprema Personalidade de Deus, mas, mesmo assim, a Verdade Absoluta lhes permanecerá inconcebível porque nenhum materialista consegue medir o comprimento e a largura da ilimitada existência da Suprema Personalidade de Deus. Talvez alguém pergunte: se a Verdade Absoluta é incomen­surável, como seria possível compreendê-lA? A resposta é dada aqui através da palavra svayambhuve: quer alguém A entenda, quer não, Ela existe em Sua própria potência espiritual.

Texto

na yasya sakhyaṁ puruṣo ’vaiti sakhyuḥ
sakhā vasan saṁvasataḥ pure ’smin
guṇo yathā guṇino vyakta-dṛṣṭes
tasmai maheśāya namaskaromi

Sinônimos

na — não; yasya — cuja; sakhyam — fraternidade; puruṣaḥ — a entidade viva; avaiti — conhece; sakhyuḥ — do amigo supremo; sakhā — o amigo; vasan — morando; saṁvasataḥ — daquele com quem reside; pure — no corpo; asmin — isto; guṇaḥ — o objeto da percepção sen­sorial; yathā — assim como; guṇinaḥ — de seu respectivo órgão sen­sorial; vyakta-dṛṣṭeḥ — que supervisiona a manifestação material; tasmai — a Ele; mahā-īśāya — ao controlador supremo; namaskaromi — ofereço minhas reverências.

Tradução

Assim como os objetos dos sentidos [forma, paladar, tato, aroma e som] não podem compreender como os sentidos os percebem, do mesmo modo, a alma condicionada, embora resida em seu corpo juntamente com a Superalma, não pode entender como a suprema pessoa espiritual, o mestre da criação material, dirige-lhe os sentidos. Ofereço minhas respeitosas reverências a essa Pessoa Suprema, que é o controlador supremo.

Comentário

SIGNIFICADO—Juntas, a alma individual e a Alma Suprema vivem dentro do corpo. Isso é confirmado nas Upaniṣads através da analogia dos dois pássaros amigos que vivem em uma mesma árvore – um pássaro come o fruto da árvore e o outro simplesmente testemunha e dirige. Embora o ser vivo individual, que é comparado ao pássaro que está comendo, esteja sentado com seu amigo, a Alma Suprema, o ser vivo individual não pode vê-lo. Com efeito, a Superalma diri­ge o ser vivo para que, com as funções dos seus sentidos, obtenha o gozo dos objetos dos sentidos, mas, assim como os objetos dos sentidos não podem ver os sentidos, a alma condicionada não pode ver a alma dirigente. A alma condicionada tem desejos, e a Alma Suprema os satisfaz, mas a alma condicionada é incapaz de ver a Alma Suprema. Assim, embora incapaz de vê-lA, o prajāpati Dakṣa oferece suas reverências à Alma Suprema, à Superalma. Outro exem­plo que se apresenta é que, embora trabalhem sob a orientação do governo, os cidadãos comuns não entendem como estão sendo governados ou o que é o governo. Com relação a isso, Madhvācārya cita o seguinte verso do Skanda Purāṇa:

yathā rājñaḥ priyatvaṁ tu
bhṛtyā vedena cātmanaḥ
tathā jīvo na yat-sakhyaṁ
vetti tasmai namo ’stu te

“Assim como os vários servidores em diferentes departamentos de grandes estabelecimentos não podem ver o supremo diretor administrativo sob cuja supervisão estão trabalhando, as almas condicionadas não podem ver o amigo supremo que está sentado dentro de seus corpos. Ofereçamos, portanto, nossas respeitosas reverên­cias ao Supremo, que é invisível a nossos olhos materiais.”

Texto

deho ’savo ’kṣā manavo bhūta-mātrām
ātmānam anyaṁ ca viduḥ paraṁ yat
sarvaṁ pumān veda guṇāṁś ca taj-jño
na veda sarva-jñam anantam īḍe

Sinônimos

dehaḥ — este corpo; asavaḥ — os ares vitais; akṣāḥ — os diversos sentidos; manavaḥ — a mente, a compreensão, o intelecto e o ego; bhūta-­mātrām — os cinco elementos materiais grosseiros e os objetos dos sentidos (forma, paladar, som e assim por diante); ātmānam — eles próprios; anyam — nenhum outro; ca — e; viduḥ — conhecem; param — além de; yat — aquilo que; sarvam — tudo; pumān — o ser vivo; veda — conhece; guṇān — as qualidades da natureza material; ca — e; tat­-jñaḥ — conhecendo essas coisas; na — não; veda — conhece; sarva-­jñam — ao onisciente; anantam — ao ilimitado; īḍe — ofereço minhas respeitosas reverências.

Tradução

Porque são apenas matéria, o corpo, os ares vitais, os sentidos internos e externos, os cinco elementos grosseiros e os objetos senso­riais sutis [forma, paladar, aroma, som e tato] não podem conhecer sua própria natureza, a natureza dos outros sentidos ou a natureza de seus controladores. Mas o ser vivo, por causa de sua natureza espiritual, pode conhecer seu corpo, os ares vitais, os sentidos, os elementos e os objetos dos sentidos, e também pode conhecer as três qualidades que formam suas raízes. Entretanto, embora esteja in­teiramente a par deles, o ser vivo é incapaz de ver o Ser Supremo, que é onisciente e ilimitado. Portanto, ofereço-Lhe minhas respei­tosas reverências.

Comentário

SIGNIFICADO—Os cientistas materialistas podem fazer um estudo analítico dos elementos físicos, do corpo, dos sentidos, dos objetos dos sentidos e até mesmo do ar que controla a força vital, mas, ainda assim, não podem compreender que, acima de tudo isso, está a verdadeira alma espiritual. Em outras palavras, a entidade viva, devido ao fato de ser uma alma espiritual, pode entender todos os objetos materiais, ou, quando autorrealizada, pode entender o Paramātmā, em quem me­ditam os yogīs. Entretanto, o ser vivo, mesmo que seja avançado, não consegue entender o Ser Supremo, a Personalidade de Deus, pois, em todas as seis opulências, Ele é ananta, ilimitado.

Texto

yadoparāmo manaso nāma-rūpa-
rūpasya dṛṣṭa-smṛti-sampramoṣāt
ya īyate kevalayā sva-saṁsthayā
haṁsāya tasmai śuci-sadmane namaḥ

Sinônimos

yadā — quando em transe; uparāmaḥ — cessação completa; mana­saḥ — da mente; nāma-rūpa — nomes e formas materiais; rūpasya — daquilo pelo qual aparecem; dṛṣṭa — da visão material; smṛti — e da lembrança; sampramoṣāt — devido à destruição; yaḥ — quem (a Suprema Personalidade de Deus); īyate — é percebido; kevalayā — espiritual; sva-saṁsthayā — com Sua própria forma original; haṁsāya — à pureza suprema; tasmai — a Ele; śuci-sadmane — que é depreendido apenas no estado puro da existência espiritual; namaḥ — ofereço minhas respeitosas reverências.

Tradução

Quando a consciência de alguém está inteiramente purificada da contaminação da existência material, grosseira e sutil, sem se deixar envolver pela agitação dos estados trabalho e sonho, e quando a mente não se dissolve em situações que lembram suṣupti, o sono pro­fundo, o indivíduo chega à plataforma do transe. Então, sua visão material e as lembranças da mente, que manifestam nomes e formas, são sub­jugadas. Somente ao atingir esse transe é que Se revela a ele a Suprema Personalidade de Deus. Portanto, ofereçamos nossas respeitosas reverências à Suprema Personalidade de Deus, que é visível nesse estado transcendental e incontaminado.

Comentário

SIGNIFICADO—Existem duas fases em que se pode compreender Deus. Uma se chama sujñeyam, ou compreendido com grande facilidade (geralmente, através da especulação mental), e a outra se chama durjñeyam, compreendido apenas com dificuldade. Compreender o Paramātmā e o Brahman é considerado sujñeyam, mas depreender a Suprema Personalidade de Deus é algo classificado como durjñeyam. Como se descreve aqui, entende de maneira definitiva a Personalidade de Deus quem abandona as atividades da mente – pensar, sentir e desejar – ou, em outras palavras, quando a espe­culação mental é descontinuada. Essa compreensão transcendental está acima de suṣupti, sono profundo. Em nossa fase condicionada grosseira, percebemos as coisas através da experiência e da lembrança materiais, e, na etapa sutil, percebemos o mundo nos sonhos. O processo de percepção também envolve a lembrança, e também existe sob uma forma sutil. Acima da experiência grosseira e dos sonhos, está suṣupti, o sono profundo, e quando alguém chega à plataforma inteiramente espiri­tual, transcendendo o sono profundo, ele alcança o transe, viśuddha­-sattva, ou vasudeva-sattva, no qual a Personalidade de Deus revela-Se.

Ataḥ śrī-kṛṣṇa-nāmādi na bhaved grāhyam indriyaiḥ: enquanto alguém estiver situado em dualidade, na plataforma sensória, gros­seira ou sutil, não lhe será possível compreender a original Persona­lidade de Deus. Sevonmukhe hi jihvādau svayam eva sphuraty adaḥ: porém, quando ele ocupar seus sentidos a serviço do Senhor – especificamente, quando ocupar a língua em cantar o mantra Hare Kṛṣṇa e em saborear apenas kṛṣṇa-prasāda em uma atitude de serviço –, a Suprema Personalidade de Deus Se revelará. Indicam isso neste verso as palavras śuci-sadmane. Śuci significa purificado. Com o es­pírito de prestar serviço por meio de seus sentidos, a pessoa transfe­re toda a sua existência para śuci-sadma – a plataforma de pureza completa. Dakṣa, portanto, oferece suas respeitosas reverências à Suprema Personalidade de Deus, que Se revela na plataforma de śuci-sadma. Com relação a isso, Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura cita a seguinte oração que o senhor Brahmā profere no Śrīmad-­Bhāgavatam (10.14.6), tathāpi bhūman mahimāguṇasya te viboddhum arhaty amalāntar-ātmabhiḥ: “Ó meu Senhor, aquele cujo coração se purificou por completo pode entender as qualidades trans­cendentais de Vossa Onipotência e pode entender a grandeza de Vossas atividades.”

Texto

manīṣiṇo ’ntar-hṛdi sanniveśitaṁ
sva-śaktibhir navabhiś ca trivṛdbhiḥ
vahniṁ yathā dāruṇi pāñcadaśyaṁ
manīṣayā niṣkarṣanti gūḍham
sa vai mamāśeṣa-viśeṣa-māyā-
niṣedha-nirvāṇa-sukhānubhūtiḥ
sa sarva-nāmā sa ca viśva-rūpaḥ
prasīdatām aniruktātma-śaktiḥ

Sinônimos

manīṣiṇaḥ — grandes brāhmaṇas eruditos que executam cerimônias ritualísticas védicas e sacrifícios; antaḥ-hṛdi — no âmago do coração; sanniveśitam — estando situado; sva-śaktibhiḥ — com Suas próprias potências espirituais; navabhiḥ — também com nove diferentes potências materiais (natureza material, a totalidade da energia mate­rial, o ego, a mente e os cinco objetos dos sentidos); ca — e (os cinco elementos materiais grosseiros e os dez sentidos funcionais e cognoscitivos); trivṛdbhiḥ — pelos três modos materiais da natureza; vahnim — fogo; yathā — assim como; dāruṇi — da madeira; pāñca­daśyam — produzido pelo cantar de quinze hinos conhecidos como mantras Sāmidhenī; manīṣayā — com inteligência purificada; niṣkarṣanti — extraem; gūḍham — embora não manifeste; saḥ — essa Suprema Personalidade de Deus; vai — na verdade; mama — a mim; aśeṣa — todas; viśeṣa — variedades; māyā — da energia ilusória; niṣedha — através do processo de negação; nirvāṇa — da liberação; sukha-­anubhūtiḥ — que é percebida através da bem-aventurança transcendental; saḥ — essa Suprema Personalidade de Deus; sarva-nāmā — que é a fonte de todos os nomes; saḥ — essa Suprema Personalidade de Deus; ca — também; viśva-rūpaḥ — a gigantesca forma do universo; prasīdatām — que Ele seja misericordioso; anirukta — inconcebível; ātma-śaktiḥ — o reservatório de todas as potências espirituais.

Tradução

Assim como, ao cantarem os quinze mantras Sāmidhenī, os grandes brāhmaṇas eruditos, que são hábeis em executar cerimônias ritua­lísticas e sacrifícios, podem extrair da madeira comburente o fogo latente, provando, assim, a eficácia dos mantras védicos, do mesmo modo, aqueles que realmente são de consciência avançada – em outras palavras, aqueles que são conscientes de Kṛṣṇa – podem encontrar a Superalma que, por Sua própria potência espiritual, situa-­Se dentro do coração. O coração está coberto pelos três modos da natureza material e pelos nove elementos materiais [natureza ma­terial, a totalidade da energia material, o ego, a mente e os cinco objetos de gozo dos sentidos], e também pelos cinco elementos materiais e pelos dez sentidos. Esses vinte e sete elementos constituem a energia externa do Senhor. Os grandes yogīs meditam no Senhor, que, como Superalma, Paramātmā, está situado no âmago do coração. Que essa Superalma Se satisfaça comigo. A Superalma é compreendida por aquele que está ansioso por se libertar das ilimi­tadas variedades da vida material. Alcança realmente essa liberação quem se ocupa no transcendental serviço amoroso ao Senhor, e ele pode, então, compreender o Senhor devido à sua atitude de serviço. Alguém pode dirigir-se ao Senhor através de vários nomes espiri­tuais, que são inconcebíveis aos sentidos materiais. Quando essa Su­prema Personalidade de Deus ficará satisfeita comigo?

Comentário

SIGNIFICADO—Ao comentar este verso, Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura usa a palavra durvijñeyam, a qual significa “muito difícil de compreen­der”. A fase de existência pura está descrita na Bhagavad-gītā (7.28), onde Kṛṣṇa diz:

yeṣāṁ tv anta-gataṁ pāpaṁ
janānāṁ puṇya-karmaṇām
te dvandva-moha-nirmuktā
bhajante māṁ dṛḍha-vratāḥ

“Aqueles que agiram piedosamente tanto nesta vida quanto em vidas passadas, e cujas ações pecaminosas se erradicaram por completo, livram-se da ilusão manifesta sob a forma das dualidades, e se ocupam em servir-Me com determinação.”

Em outra passagem da Bhagavad-gītā (9.14), o Senhor diz:

satataṁ kīrtayanto māṁ
yatantaś ca dṛḍha-vratāḥ
namasyantaś ca māṁ bhaktyā
nitya-yuktā upāsate

“Sempre cantando Minhas glórias, esforçando-se com muita determinação, prostrando-se diante de Mim, essas grandes almas adoram-Me perpetuamente com devoção.”

Pode compreender a Suprema Personalidade de Deus quem transcende todos os impedimentos materiais. Portanto, o Senhor Kṛṣṇa também diz na Gītā (7.3):

manuṣyāṇāṁ sahasreṣu
kaścid yatati siddhaye
yatatām api siddhānāṁ
kaścin māṁ vetti tattvataḥ

“Dentre muitos milhares de homens, talvez haja um que se esforce para obter a perfeição, e dentre aqueles que alcançaram a perfeição, é difícil encontrar um que Me conheça de verdade.”

Para compreender Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, a pessoa deve submeter-se a rigorosas penitências e austeridades, mas, como o caminho do serviço devocional é perfeito, seguindo este processo pode-se chegar muito facilmente à plataforma espiritual e compreender o Senhor. Também se confirma isso na Bhagavad-gītā (18.55), onde Kṛṣṇa diz:

bhaktyā mām abhijānāti
yāvān yaś cāsmi tattvataḥ
tato māṁ tattvato jñātvā
viśate tad-anantaram

“É unicamente através do serviço devocional que alguém pode compreender-Me como sou, como a Suprema Personalidade de Deus. E quando, mediante tal devoção, ele se absorve em plena consciência de Mim, ele pode entrar no reino de Deus.”

Assim, embora o tema seja durvijñeyam, extremamente difícil de ser entendido, torna-se fácil se a pessoa segue o método prescrito. Entrar em contato com a Suprema Personalidade de Deus é pos­sível através do serviço devocional puro, que começa com śravaṇaṁ kīrtanaṁ viṣṇoḥ. Com relação a isso, Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura cita um verso do Śrīmad-Bhāgavatam (2.8.5): praviṣṭaḥ karṇa-randhreṇa svānāṁ bhāva-saroruham. O processo de ouvir e cantar penetra o âmago do coração, e, dessa maneira, a pessoa se torna um devoto puro. Continuando esse processo, ela chega à etapa do amor transcendental e, então, aprecia o nome, a forma, as qualida­des e os passatempos transcendentais da Suprema Personalidade de Deus. Em outras palavras, através do serviço devocional, o devoto puro é capaz de ver a Suprema Personalidade de Deus, apesar de muitos impedimentos materiais, todos os quais são diversas energias da Suprema Personalidade de Deus. Atravessando facilmente esses impedimentos, o devoto entra em contato direto com a Suprema Personalidade de Deus. Afinal, os impedimentos materiais descritos nestes versos são meramente várias energias do Senhor. Estando ansioso por ver a Suprema Personalidade de Deus, o devoto ora ao Senhor:

ayi nanda-tanuja kiṅkaraṁ
patitaṁ māṁ viṣame bhavāmbudhau
kṛpayā tava pāda-paṅkaja-
sthita-dhūlī-sadṛśaṁ vicintaya

“Ó filho de Mahārāja Nanda [Kṛṣṇa], sou Teu servo eterno, mas, de alguma forma, caí no oceano de nascimentos e mortes. Por favor, tira-me deste oceano de mortes e me coloca como um dos átomos a Teus pés de lótus.” Estando satisfeito com o devoto, o Senhor transforma em serviço espiritual todos os seus impedimentos mate­riais. Com relação a isso, Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura cita um verso do Viṣṇu Purāṇa:

hlādinī sandhinī samvit
tvayy ekā sarva-saṁsthitau
hlāda-tāpa-karī miśrā
tvayi no guṇa-varjite

No mundo material, a energia espiritual da Suprema Personalidade de Deus se manifesta como tāpa-karī, que significa “causadora de sofrimentos”. Todos anseiam por felicidade, mas, embora a felicidade originalmente venha da potência de prazer da Suprema Personali­dade de Deus, no mundo material, devido às atividades materiais, a potência de prazer do Senhor se torna fonte de sofrimentos (hlāda-­tāpa-karī). A falsa felicidade do mundo material é uma fonte de sofrimentos, mas, quando voltamos a investir na satisfação da Suprema Personalidade de Deus, os nossos esforços de busca de felicidade, o fator tāpa-karī, que responde pela existência da sofrimentos, é eliminado. Com relação a isso, apresenta-se o exemplo de que decerto é muito difícil extrair fogo da madeira, mas, ao irromper, o fogo reduz a madeira a cinzas. Em outras palavras, sentir a Suprema Personalidade de Deus é extremamente difícil para aqueles que não praticam o serviço devocional, mas tudo se torna mais fácil para o devoto, e, dessa maneira, ele pode encontrar-se com o Senhor Supremo muito facilmente.

Aqui, as orações afirmam que a forma do Senhor está além da jurisdição da forma material e, portanto, é inconcebível. Entre­tanto, o devoto ora: “Meu querido Senhor, ficai satisfeito comigo para que eu possa muito facilmente ver Vossa forma e potência trans­cendentais.” Os não-devotos tentam entender o Brahman Supremo através de discussões de neti neti. Niṣedha-nirvāṇa-sukhānubhūtiḥ: o devoto, contudo, simplesmente cantando o santo nome do Senhor, evita essas especulações fastidiosas e compreende muito facilmente a existência do Senhor.

Texto

yad yan niruktaṁ vacasā nirūpitaṁ
dhiyākṣabhir vā manasota yasya
mā bhūt svarūpaṁ guṇa-rūpaṁ hi tat tat
sa vai guṇāpāya-visarga-lakṣaṇaḥ

Sinônimos

yat yat — tudo o que; niruktam — expresso; vacasā — por palavras; nirūpitam — comprovado; dhiyā — pela assim chamada meditação ou inteligência; akṣabhiḥ — pelos sentidos; — ou; manasā — pela mente; uta — decerto; yasya — de quem; bhūt — pode não ser; sva-rūpam — a verdadeira forma do Senhor; guṇa-rūpam — consistindo nas três qualidades; hi — na verdade; tat tat — isto; saḥ — essa Suprema Personalidade de Deus; vai — na verdade; guṇa-apāya — a causa da aniquilação de tudo que é formado através dos modos da natureza material; visarga — e a criação; lakṣaṇaḥ — aparecendo como.

Tradução

Qualquer coisa expressa pelas vibrações materiais, qualquer coisa comprovada pela inteligência material e qualquer coisa experimen­tada pelos sentidos materiais ou inventada pela mente material não passa de uma resultante dos modos da natureza material e, portanto, nada tem a ver com a verdadeira natureza da Suprema Personalida­de de Deus. O Senhor Supremo está além da criação deste mundo material, pois Ele é a fonte das qualidades e da criação materiais. Como a causa de todas as causas, Ele existe antes e depois da criação. Desejo oferecer-Lhe minhas respeitosas reverências.

Comentário

SIGNIFICADO—A pessoa que fabrica nomes, formas, qualidades ou parafernália atinentes à Suprema Personalidade de Deus não pode compreendê­-lO, pois Ele está além da criação. O Senhor Supremo é o criador de tudo, e isso significa que Ele existia mesmo quando não havia criação alguma. Em outras palavras, Seu nome, Sua forma e Suas qualidades não são entidades materialmente criadas; são sempre transcen­dentais. Portanto, através de nossas invenções, vibrações e pensamentos materiais não conseguiremos comprovar a existência do Senhor Supremo. Explica isso o verso ataḥ śrī-kṛṣṇa-nāmādi na bhaved grāhyam indriyaiḥ.

Prācetasa, Dakṣa, oferece aqui orações à Transcendência, e não a qualquer pessoa que esteja dentro da criação material. Somente os tolos e os patifes pensam que Deus é uma criação material. Na Bhagavad-gītā (9.11), o próprio Senhor confirma isso:

avajānanti māṁ mūḍhā
mānuṣīṁ tanum āśritam
paraṁ bhāvam ajānanto
mama bhūta-maheśvaram

“Os tolos zombam de Mim quando venho sob a forma humana. Eles não conhecem Minha natureza transcendental como o Supremo Senhor de tudo o que existe.” Portanto, deve-se receber conhecimento de alguém a quem o Senhor tenha Se revelado; não há valor algum em criar um nome ou forma imaginários para o Senhor. Embora fosse impersonalista, Śrīpāda Śaṅkarācārya disse que nārāyaṇaḥ paro ’vyaktāt: Nārāyaṇa, a Suprema Personalidade de Deus, não é uma pessoa do mundo material. Não podemos atribuir a Nārāyaṇa designações materiais, como é característica dos tolos quando mencionam daridra-nārāyaṇa (Nārāyaṇa indigente). Nārāyaṇa é sempre transcendental, estando situado além desta criação material. Como Ele pode tornar-Se daridra-nārāyaṇa? A pobreza é encontrada dentro deste mundo material, mas não há essa coisa chamada pobreza no mundo espiritual. Portanto, daridra-nārāyaṇa é mera invenção.

Dakṣa aponta muito cuidadosamente que as designações materiais não Se aplicam ao Senhor adorável: yad yan niruktaṁ vacasā nirūpitam. Nirukta se refere ao dicionário védico. Não é através da mera referência a expressões de um dicionário que alguém entenderá apropriadamente a Suprema Personalidade de Deus. Ao orar ao Senhor, Dakṣa não deseja que nomes e formas materiais sejam obje­tos de sua adoração; ao contrário, ele quer adorar o Senhor, que existia antes da criação dos dicionários e nomes materiais. Como confirmam os Vedas, yato vāco nivartante/ aprāpya manasā saha: o nome, a forma, os atributos e a parafernália do Senhor não podem ser determinados através de um dicionário material. Entretanto, quem alcança a plataforma transcendental, onde compreende a Suprema Personalidade de Deus, torna-se bem familiarizado com todas as coisas, materiais e espirituais. Confirma isso outro mantra védico: tam eva viditvāti mṛtyum eti. A pessoa que, pela graça do Senhor, entende a posição transcendental do Senhor, torna-se eterna. Na Bhagavad-gītā (4.9), o próprio Senhor apresenta maiores confirmações disso:

janma karma ca me divyam
evaṁ yo vetti tattvataḥ
tyaktvā dehaṁ punar janma
naiti mām eti so ’rjuna

“Aquele que conhece a natureza transcendental do Meu aparecimento e atividades, ao deixar o corpo não volta a nascer neste mundo material, senão que alcança Minha morada eterna, ó Arjuna.” Pelo simples fato de compreender o Senhor Supremo, a pessoa suplanta o nascimento, a morte, a velhice e a doença. Portanto, no Śrīmad­-Bhāgavatam (2.1.5), Śrīla Śukadeva Gosvāmī aconselha Mahārāja Parīkṣit:

tasmād bhārata sarvātmā
bhagavān īśvaro hariḥ
śrotavyaḥ kīrtitavyaś ca
smartavyaś cecchatābhayam

“Ó descendente do rei Bharata, aquele que deseja livrar-se de todos os sofrimentos deve ouvir, glorificar, bem como lembrar a Personalidade de Deus, a Superalma, que controla e afasta todos os sofrimentos.”

Texto

yasmin yato yena ca yasya yasmai
yad yo yathā kurute kāryate ca
parāvareṣāṁ paramaṁ prāk prasiddhaṁ
tad brahma tad dhetur ananyad ekam

Sinônimos

yasmin — em quem (a Suprema Personalidade de Deus ou o su­premo lugar de repouso); yataḥ — de quem (tudo emana); yena — por quem (tudo é decretado); ca — também; yasya — a quem tudo perten­ce; yasmai — a quem (tudo é oferecido); yat — o qual; yaḥ — quem; yathā — como; kurute — executa; kāryate — realiza-se; ca — também; para-avareṣām — tanto na existência material quanto na espiritual; paramam — o supremo; prāk — a origem; prasiddham — que todos conhecem perfeitamente bem; tat — isto; brahma — o Brahman Supremo; tat hetuḥ — a causa de todas as causas; ananyat — não tendo nenhuma outra causa; ekam — único e inigualável.

Tradução

Kṛṣṇa, o Brahman Supremo, é o definitivo lugar de repouso e fonte de tudo. Tudo é feito por Ele, tudo Lhe pertence e tudo Lhe é ofe­recido. Ele é o objetivo último, e, quer agindo, quer fazendo os outros agirem, Ele é o autor final. Existem muitas causas, superiores e infe­riores, mas, como Ele é a causa de todas as causas, é conhecido como o Brahman Supremo, que existia antes de todas as atividades. Ele é único e inigualável e não tem outra causa. Portanto, ofereço-Lhe meus respeitos.

Comentário

SIGNIFICADO—A Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa, é a causa original, como se confirma na Bhagavad-gītā (ahaṁ sarvasya prabhavaḥ). Inclu­sive a causa deste mundo material, que é conduzido sob os modos da natureza material, é a Suprema Personalidade de Deus, que, por­tanto, também tem uma íntima relação com o mundo material. Se o mundo material não fosse uma parte de Seu corpo, o Senhor Su­premo, a causa suprema, seria incompleto. Portanto, ouvimos que vāsudevaḥ sarvam iti sa mahātmā su-durlabhaḥ: se alguém sabe que Vāsudeva é a causa da qual se originam todas as causas, torna-se um mahātmā perfeito.

A Brahma-saṁhitā (5.1) declara:

īśvaraḥ paramaḥ kṛṣṇaḥ
sac-cid-ānanda-vigrahaḥ
anādir ādir govindaḥ
sarva-kāraṇa-kāraṇam

“Kṛṣṇa, conhecido como Govinda, é o controlador Supremo. Ele tem um corpo espiritual eterno e bem-aventurado. Ele é a origem de tudo. Ele não tem outra origem, pois Ele é a causa primordial de todas as causas.” O Brahman Supremo (tad brahma) é a causa de todas as causas, mas Ele não tem nenhuma causa. Anādir ādir govindaḥ sarva-kāraṇa-kāraṇam: Govinda, Kṛṣṇa, é a causa que origina todas as causas, mas não é devido a alguma causa que Ele aparece como Govinda. Govinda expande-Se em formas multifárias, as quais, entretanto, são apenas uma. Como confirma Madhvācārya, ananyaḥ sadṛśābhāvād eko rūpādy-abhedataḥ: Kṛṣṇa não tem causa alguma, tampouco alguém se compara a Ele, e Ele é único porque Suas várias formas, tais como svāṁśa e vibhinnāṁśa, não são diferentes dEle próprio.

Texto

yac-chaktayo vadatāṁ vādināṁ vai
vivāda-saṁvāda-bhuvo bhavanti
kurvanti caiṣāṁ muhur ātma-mohaṁ
tasmai namo ’nanta-guṇāya bhūmne

Sinônimos

yat-śaktayaḥ — cujas potências multifárias; vadatām — falando diferentes filosofias; vādinām — dos oradores; vai — na verdade; vivāda — da contestação; saṁvāda — e do acordo; bhuvaḥ — as causas; bhavan­ti — são; kurvanti — criam; ca — e; eṣām — deles (os teóricos); muhuḥ — continuamente; ātma-moham — perplexidade quanto à existência da alma; tasmai — a Ele; namaḥ — minhas respeitosas reverências; ananta — ilimitados; guṇāya — que possui atributos transcendentais; bhūmne — a divindade onipenetrante.

Tradução

Ofereço minhas respeitosas reverências à onipenetrante Suprema Personalidade de Deus, que possui ilimitadas qualidades transcendentais. Agindo no âmago do coração de todos os filóso­fos, que defendem vários pontos de vista, Ele faz com que se es­queçam de suas próprias almas enquanto ora concordam em suas opiniões, ora discordam entre si. Assim, Ele cria dentro deste mundo material uma situação na qual eles são incapazes de chegar a uma conclusão. Ofereço-Lhe minhas reverências.

Comentário

SIGNIFICADO—Desde tempos imemoriais, ou desde a criação da manifestação cósmica, as almas condicionadas formaram vários grupos de especulação filosófica, mas isso não se aplica aos devotos. No que diz respeito à criação, manutenção e aniquilação, os não-devotos têm diferentes ideias e, portanto, são chamados vādīs e prativādīs – proponentes e contraproponentes. Depreende-se da afirmação do Mahā­bhārata que existem muitos munis, ou especuladores:

tarko ’pratiṣṭhaḥ śrutayo vibhinnā
nāsāv ṛṣir yasya mataṁ na bhinnam

Cada especulador tem que discordar de outros especuladores; caso contrário, não haveria tantos grupos opositores, interessados em determinar a causa suprema.

Filosofia significa encontrar a causa definitiva. Como o Vedānta-­sūtra diz muito sensatamente, athāto brahma jijñāsā: a vida humana se destina a que se compreenda a causa última. Os devotos aceitam que a causa última é Kṛṣṇa, porque essa conclusão é apoiada por toda a literatura védica e também pelo próprio Kṛṣṇa, o qual afirma que ahaṁ sarvasya prabhavaḥ: “Eu sou a fonte de tudo.” Os devotos não têm nenhuma dificuldade de entender a causa final de tudo, mas os não-devotos têm que se defrontar com muita oposição, pois todo aquele que deseja ser um filósofo proeminente in­venta seu próprio processo. Na Índia, existem muitos grupos de filósofos, tais como os dvaita-vādīs, os advaita-vādīs, os vaiśeṣikas, os mīmāṁsakas, os māyāvādīs e os svabhāva-vādīs, e cada um deles se opõe aos demais. Do mesmo modo, nos países ocidentais, existem muitos filósofos com diferentes pontos de vista quanto à criação, à vida, à manutenção e à aniquilação. Assim, é um fato incontestá­vel que, em todo o mundo, existem inúmeros filósofos, e cada um deles refuta os demais.

Então, talvez alguém pergunte como existem tantos filóso­fos se a meta última da filosofia é apenas uma. Sem dúvidas, a causa definitiva é única – o Brahman Supremo. Como Arjuna disse a Kṛṣṇa na Bhagavad-gītā (10.12):

paraṁ brahma paraṁ dhāma
pavitraṁ paramaṁ bhavān
puruṣaṁ śāśvataṁ divyam
ādi-devam ajaṁ vibhum

“És o Brahman Supremo, o definitivo, a morada e o purificador supremos, a Verdade Absoluta e a eterna pessoa divina. És o Deus primordial, transcendental e original, e és a beleza não-nascida e onipenetrante.” Entretanto, os não-devotos especuladores não aceitam uma causa definitiva (sarva-kāraṇa-kāraṇam). Porque eles são ignorantes e ficam confusos quanto à realidade da alma e suas atividades, muito embora alguns deles tenham uma vaga ideia do que é a alma, surgem muitas controvérsias, e os especuladores filo­sóficos nunca conseguem chegar a uma conclusão. Todos esses especuladores invejam a Suprema Personalidade de Deus, e, como Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā (16.19-20):

tān ahaṁ dviṣataḥ krūrān
saṁsāreṣu narādhamān
kṣipāmy ajasram aśubhān
āsurīṣv eva yoniṣu
āsurīṁ yonim āpannā
mūḍhā janmani janmani
mām aprāpyaiva kaunteya
tato yānty adhamāṁ gatim

“Aqueles que são invejosos e maliciosos, os mais baixos entre os homens, Eu os lanço perpetuamente no oceano da existência material, em várias espécies de vida demoníaca. Submetendo-se a repetidos nascimentos entre as espécies de vida demoníaca, ó filho de Kuntī, tais pessoas jamais conseguem aproximar-se de Mim. Aos poucos, elas afundam-se na mais abominável condição de existência.” Devido a invejarem a Suprema Personalidade de Deus, os não-devotos, vida após vida, nascem em famílias demoníacas. Eles são grandes ofensores, e, devido a suas ofensas, o Senhor Supremo os mantém sempre per­plexos. Kurvanti caiṣāṁ muhur ātma-moham: o Senhor, a Suprema Personalidade de Deus, propositalmente os mantém na escuridão (ātma-moham).

A grande autoridade Parāśara, o pai de Vyāsadeva, explica a Suprema Personalidade de Deus desta maneira:

jñāna-śakti-balaiśvarya-
vīrya-tejāṁsy aśeṣataḥ
bhagavac-chabda-vācyāni
vinā heyair guṇādibhiḥ

Os especuladores demoníacos não conseguem entender as qualidades, forma, passatempos, força, conhecimento e opulências transcen­dentais da Suprema Personalidade de Deus, que estão todos imunes à contaminação material (vinā heyair guṇādibhiḥ). Esses especula­dores invejam a existência do Senhor. Jagad āhur anīśvaram: a conclusão deles é que, em toda a sua extensão, a manifestação cósmica não tem controlador, senão que simplesmente funciona de maneira espon­tânea. Assim, nascimento após nascimento, eles são mantidos em constante escuridão e não podem entender a verdadeira causa de todas as causas. Essa é a razão pela qual existem tantas escolas de especulação filosófica.

Texto

astīti nāstīti ca vastu-niṣṭhayor
eka-sthayor bhinna-viruddha-dharmaṇoḥ
avekṣitaṁ kiñcana yoga-sāṅkhyayoḥ
samaṁ paraṁ hy anukūlaṁ bṛhat tat

Sinônimos

asti — existe; iti — assim; na — não; asti — existe; iti — assim; ca­ — e; vastu-niṣṭhayoḥ — que professa conhecer a causa última; eka­-sthayoḥ — com um único e mesmo tema: estabelecer o Brahman; bhinna — demonstrando diferentemente; viruddha-dharmaṇoḥ — e características opostas; avekṣitam — percebidas; kiñcana — algo que; yoga-sāṅkhyayoḥ — do yoga místico e da filosofia sāṅkhya (análise dos processos da natureza); samam — a mesma; param — transcen­dental; hi — na verdade; anukūlam — residência; bṛhat tat — essa causa última.

Tradução

Existem dois grupos – a saber, os teístas e os ateístas. O teísta, que aceita a Superalma, encontra a causa espiritual através do yoga místico. O sāṅkhyite, entretanto, que meramente analisa os elementos materiais, chega a uma conclusão impersonalista e não aceita uma causa suprema – quer seja Bhagavān, quer Paramātmā, quer mesmo Brahman. Ao contrário, interessam-lhe as supérfluas atividades externas vistas na natureza material. Em última análise, contudo, ambos os grupos demonstram a Verdade Absoluta porque, embora ofereçam argumentos opostos, seu objetivo se concentra na mesmís­sima causa definitiva. Ambos estão se aproximando do mesmo Brahman Supremo, a quem ofereço minhas respeitosas reverências.

Comentário

SIGNIFICADO—Na verdade, pode-se ver esse argumento de dois ângulos. Alguns dizem que o Absoluto não tem forma (nirākāra), e outros afirmam que o Absoluto tem forma (sākāra). Portanto, a palavra “forma” é o fator comum, embora alguns aceitem-na (asti ou astika), enquanto outros tentam negá-la (nāsti ou nāstika). Já que considera a palavra “forma” (ākāra) o fator comum, o devoto oferece suas res­peitosas reverências à forma, embora outros possam continuar du­vidando se o Absoluto tem uma forma ou não.

Neste verso, a palavra yoga-sāṅkhyayoḥ é muito importante. Yoga significa bhakti-yoga porque os yogīs também aceitam a existência da onipenetrante Alma Suprema e tentam vê-lA dentro de seus corações. Como afirma o Śrīmad-Bhāgavatam (12.13.1): dhyānāvasthita-tad-gatena manasā paśyanti yaṁ yoginaḥ. O devoto tenta entrar em contato direto com a Suprema Personalidade de Deus, ao passo que, através da meditação, o yogī tenta encontrar a Superalma dentro do coração. Assim, tanto direta quanto indiretamente, yoga significa bhakti-yoga. Sāṅkhya, contudo, significa estudo físico da situação cósmica através do conhecimento especulativo. Geralmente, isso é conhecido como jñāna-śāstra. Os sāṅkhyites estão apegados ao Brahman impessoal, mas a Verdade Absoluta é conhecida de três maneiras. Brahmeti paramātmeti bhagavān iti śabdyate: embora a Verdade Absoluta seja apenas uma, alguns A aceitam como o Brahman impessoal, outros como a Superalma que existe em toda parte, e alguns outros como Bhagavān, a Suprema Personalidade de Deus. O ponto central é a Verdade Absoluta.

Embora briguem entre si, os impersonalistas e os personalistas focalizam o mesmo Parabrahman, a mesma Verdade Absoluta. Nos yoga-­śāstras, Kṛṣṇa é descrito da seguinte maneira: kṛṣṇaṁ piśaṅgāmbaram ambujekṣaṇaṁ catur-bhujaṁ śaṅkha-gadādy-udāyudham. Assim, descreve-se o agradável aspecto do porte físico, dos membros e das vestes da Suprema Personalidade de Deus. Entretanto, o sāṅkhya-śāstra nega a existência da forma transcendental do Senhor. O sāṅkhya-śāstra afirma que a Suprema Verdade Absoluta não possui mãos, pernas ou nome: hy anāma-rūpa-guṇa-pāṇi-pādam acakṣur aśrotram ekam advitīyam api nāma-rūpādikaṁ nāsti. Os mantras védicos dizem que apāṇi-pādo javano grahītā: o Senhor Supremo não tem pernas nem mãos, mas pode aceitar tudo o que Lhe é oferecido. Na verdade, essas afirmações aceitam o fato de que o Supremo tem mãos e pernas, mas rejeitam a proposição de que Ele tenha mãos e pernas materiais. É por isso que o Absoluto recebe o nome de aprākṛta. Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, possui um sac-cid-ānanda-vigraha, uma forma de eternidade, conhecimento e bem-aventurança, e não uma forma material. Os sāṅkhyites, ou jñānīs, negam existir a forma material, e os devotos também sabem perfeitamente que Bhagavān, a Verdade Absoluta, não tem forma material.

īśvaraḥ paramaḥ kṛṣṇaḥ
sac-cid-ānanda-vigrahaḥ
anādir ādir govindaḥ
sarva-kāraṇa-kāraṇam

“Kṛṣṇa, conhecido como Govinda, é o controlador Supremo. Ele tem um corpo espiritual eterno e bem-aventurado. Ele é a origem de tudo. Ele não tem outra origem, pois Ele é a causa primordial de todas as causas.” A concepção de que o Absoluto não tem mãos e pernas e a concepção de que o Absoluto tem mãos e pernas são aparentemente contraditórias, mas ambas estão de acordo com a mesma verdade sobre a Suprema Pessoa Absoluta. Portan­to, a palavra vastu- niṣṭhayoḥ, utilizada aqui, deixa entrever que tanto os yogīs quanto os sāṅkhyites possuem fé na realidade, mas estão argu­mentando sobre ela a partir de diferentes pontos de vista atinentes às identidades espiritual e material. O Parabrahman, ou bṛhat, é o ponto comum. Os sāṅkhyites e os yogīs estão situados nesse mesmo Brahman, mas discordam entre si devido aos diferentes pontos de vista.

As orientações dadas pelo bhakti-śāstra encaminham todos para a direção perfeita porque, na Bhagavad-gītā, a Suprema Personali­dade de Deus diz que bhaktyā mām abhijānāti: “Somente através do serviço devocional é que Eu posso ser conhecido.” Os bhaktas sabem que a Pessoa Suprema não tem forma material, ao passo que os jñānīs simplesmente negam a forma material. Portanto, todos devem refugiar-se em bhakti-mārga, o caminho da devoção; então, tudo ficará claro. Os jñānīs se concentram no virāṭ-rūpa, a gigan­tesca forma universal do Senhor. No começo, este é um bom sistema para aqueles que são extremamente materialistas, mas não é preciso que alguém fique continuamente pensando no virāṭ-rūpa. Quando Arjuna viu o virāṭ-rūpa de Kṛṣṇa, ele não quis continuar vendo-a perpetuamente. Portanto, pediu ao Senhor que retornasse à Sua forma original, como o Kṛṣṇa de dois braços. Em conclusão, os estudiosos eruditos não encontram contradições no fato de os devotos se concen­trarem na forma espiritual do Senhor (īśvaraḥ paramaḥ kṛṣṇaḥ sac-cid-ānanda-vigrahaḥ). Com relação a isso, Śrīla Madhvācārya diz que os não-devotos, que são menos inteligentes, pensam que sua con­clusão é definitiva, mas porque são inteiramente eruditos, os devo­tos podem entender que a Suprema Personalidade de Deus é a meta última.

Texto

yo ’nugrahārthaṁ bhajatāṁ pāda-mūlam
anāma-rūpo bhagavān anantaḥ
nāmāni rūpāṇi ca janma-karmabhir
bheje sa mahyaṁ paramaḥ prasīdatu

Sinônimos

yaḥ — quem (a Suprema Personalidade de Deus); anugraha-artham — para mostrar sua misericórdia imotivada; bhajatām — aos devotos que sempre prestam serviço devocional; pāda-mūlam — aos seus pés de lótus transcendentais; anāma — sem nenhum nome material; rūpaḥ — ou forma material; bhagavān — a Suprema Personalidade de Deus; anantaḥ — ilimitado, onipenetrante e que existe eternamente; nāmāni — santos nomes transcendentais; rūpāṇi — Suas formas transcendentais; ca — também; janma-karmabhiḥ — com Seu nascimento e atividades transcendentais; bheje — manifesta; saḥ — Ele; mahyam — comigo; paramaḥ — o Supremo; prasīdatu — que Ele seja misericordioso.

Tradução

A Suprema Personalidade de Deus, que é inconcebivelmente opu­lento, que é desprovido de todos os nomes, formas e passatempos materiais, e que é onipenetrante, é especialmente misericordioso com os devotos que adoram Seus pés de lótus. Assim, em Seus diferentes passatempos, Ele manifesta formas e nomes transcenden­tais. Que essa Suprema Personalidade de Deus, cuja forma é eterna e plena de conhecimento e bem-aventurança, tenha misericórdia de mim.

Comentário

SIGNIFICADO—Em relação à significativa palavra anāma-rūpaḥ, Śrī Śrīdhara Svāmī diz que prākṛta-nāma-rūpa-rahito ’pi. A palavra anāma, que significa “não tendo nenhum nome”, indica que a Suprema Perso­nalidade de Deus não possui um nome material. Simplesmente cantando o nome de Nārāyaṇa para chamar seu filho, Ajāmila alcançou a sal­vação. Isso significa que Nārāyaṇa não é um nome mundano ou comum; ele não é material. Portanto, a palavra anāma deixa bem claro que os nomes do Senhor Supremo não pertencem a este mundo material. A vibração do mahā-mantra Hare Kṛṣṇa não é um som material, e, do mesmo modo, a forma, o aparecimento e as atividades do Senhor não são materiais. Para mostrar Sua imotivada misericórdia para com os devotos, bem como para com os não-devotos, Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, aparece com nomes, formas e passatempos neste mundo material – todos eles transcendentais. Os homens ininteligentes, incapazes de compreender isso, pensam que esses nomes, formas e passatempos são materiais e, portanto, negam que Ele tenha um nome ou uma forma.

Consideradas minuciosamente, a conclusão dos não-devotos, que dizem que Deus não tem nome, e a conclusão dos devotos, que dizem que Seu nome não é material, são praticamente as mesmas. A Suprema Personalidade de Deus não tem nome, forma, nascimento, aparecimento ou desaparecimento materiais, mas Ele nasce (janma). Como se afirma na Bhagavad-gītā (4.6):

ajo ’pi sann avyayātmā
bhūtānām īśvaro ’pi san
prakṛtiṁ svām adhiṣṭhāya
sambhavāmy ātma-māyayā

Muito embora seja não-nascido (aja) e Seu corpo jamais passe por mudanças materiais, o Senhor aparece como uma encarnação, mantendo-Se sempre na fase transcendental (śuddha-sattva). Assim, Ele manifesta Suas formas, nomes e atividades transcendentais. Esta é a Sua misericórdia especial para com os Seus devotos. Talvez outros indivíduos continuem meramente argumentando se a Verdade Absoluta possui ou não possui forma, mas quando, pela graça do Senhor, o devoto vê o Senhor pessoalmente, ele fica em êxtase espiritual.

As pessoas ininteligentes dizem que o Senhor nada faz. De fato, Ele nada tem a fazer, mas Ele tem de fazer tudo, porque, sem a Sua sanção, ninguém pode fazer nada. Todavia, as pessoas sem inteligência não conseguem ver como Ele está trabalhando e como toda a natureza material funciona sob a Sua direção. Suas diferentes potências funcionam perfeitamente.

na tasya kāryaṁ karaṇaṁ ca vidyate
na tat-samaś cābhyadhikaś ca dṛśyate
parāsya śaktir vividhaiva śrūyate
svābhāvikī jñāna-bala-kriyā ca

(Śvetāśvatara Upaniṣad 6.8)

Ele não precisa fazer nada pessoalmente, pois, como Suas potên­cias são perfeitas, tudo imediatamente se faz de acordo com a Sua vontade. Aqueles a quem a Suprema Personalidade de Deus não Se revela não conseguem ver como é que Ele está trabalhando, de modo que pensam que, mesmo que Deus exista, Ele nada tem a fazer ou Ele não tem um nome que Lhe é próprio.

Na verdade, devido a Suas atividades transcendentais, o nome do Senhor já existe. Às vezes, o Senhor é chamado guṇa-karma-nāma porque Ele é denominado de acordo com Suas atividades transcendentais. Por exemplo, Kṛṣṇa significa “o todo-atrativo”. Esse é o nome do Senhor, porque Suas qualidades transcendentais O tornam muito atrativo. Quando era um menininho, Ele ergueu a colina Govardhana, e, em Sua infância, matou muitos demônios. Essas atividades são muito atrativas e, portanto, Ele é às vezes chamado de Giridhārī, Madhusūdana, Agha-niṣūdana e assim por diante. Porque agiu como filho de Nanda Mahārāja, Ele é chamado de Nanda-­tanuja. Esses nomes já existem, mas, como os não-devotos não con­seguem compreender os nomes do Senhor, às vezes Ele é chamado de anāma, ou anônimo. Isso significa que Ele não tem nomes mate­riais. Todas as Suas atividades são espirituais, daí Ele ter nomes espirituais.

Geralmente, os homens menos inteligentes têm a impressão de que o Senhor não tem forma. Portanto, sob Sua forma original, Ele apa­rece como Kṛṣṇa, sac-cid-ānanda-vigraha, para cumprir a Sua missão de participar na Guerra de Kurukṣetra e executar passatempos em que protege os devotos e aniquila os demônios (paritrāṇāya sādhūnāṁ vināśāya ca duṣkṛtām). É essa a Sua misericórdia. Para aqueles que pensam que Ele não tem forma alguma e nenhum trabalho a fazer, Kṛṣṇa vem para mostrar que, de fato, Ele trabalha. Seu trabalho é tão glorioso que nenhuma outra pessoa pode executar atos tão in­comuns. Embora tivesse aparecido como um ser humano, Ele Se casou com 16.108 esposas, e essa tarefa é impossível para qualquer ser hu­mano. O Senhor executa essas atividades para mostrar às pessoas quão grande, afetuoso e misericordioso Ele é. Embora Seu nome original seja Kṛṣṇa (kṛṣṇas tu bhagavān svayam), Ele age de maneiras ilimitadas, e, portanto, de acordo com a Sua atividade, Ele tem mui­tíssimos milhares de nomes.

Texto

yaḥ prākṛtair jñāna-pathair janānāṁ
yathāśayaṁ deha-gato vibhāti
yathānilaḥ pārthivam āśrito guṇaṁ
sa īśvaro me kurutāṁ manoratham

Sinônimos

yaḥ — quem; prākṛtaiḥ — de grau inferior; jñāna-pathaiḥ — pelos caminhos de adoração; janānām — de todas as entidades vivas; yathā-āśayam — de acordo com o desejo; deha-gataḥ — situado no âmago do coração; vibhāti — manifesta; yathā — assim como; anilaḥ — o ar; pārthivam — terrestre; āśritaḥ — recebendo; guṇam — a qualidade (como aroma e cor); saḥ — Ele; īśvaraḥ — a Suprema Personalidade de Deus; me — meu; kurutām — que Ele satisfaça; manoratham — desejo (de serviço devocional).

Tradução

Assim como o ar transporta várias características dos elementos físicos, tais como o aroma de uma flor ou as cores resultantes da mistura de poeira no ar, o Senhor, de acordo com os desejos de alguém, aparece através dos sistemas inferiores de adoração, embo­ra Ele apareça como os semideuses e não sob Sua forma original. De que adiantam essas outras formas? Que a original Suprema Perso­nalidade de Deus seja bondoso e realize os meus desejos.

Comentário

SIGNIFICADO—Os impersonalistas imaginam os vários semideuses como formas do Senhor. Por exemplo, os māyāvādīs adoram cinco semideuses (pañcopāsanā). Na verdade, eles não acreditam na forma do Senhor, mas, com o propósito de adorar, imaginam que Deus é alguma forma. Em geral, eles imaginam uma forma de Viṣṇu, uma forma de Śiva, e as formas de Gaṇeśa, do deus do Sol e de Durgā. Isso se chama pañcopāsanā. Dakṣa, entretanto, não queria adorar uma forma imaginária, mas a suprema forma do Senhor Kṛṣṇa.

Com relação a isso, Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura descre­ve a diferença entre a Suprema Personalidade de Deus e o ser vivo comum. Como assinala o verso anterior, sarvaṁ pumān veda guṇāṁś ca taj-jño na veda sarva jñam anantam īḍe: o onipotente Senhor Su­premo conhece tudo, mas o ser vivo, na verdade, não conhece a Su­prema Personalidade de Deus. Como Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā: “Eu conheço tudo, e ninguém Me conhece.” É essa a diferença entre o Senhor Supremo e o ser vivo comum. Em uma oração proferida no Śrīmad-Bhāgavatam, a rainha Kuntī diz: “Meu querido Senhor, existis interna e externamente, mas ninguém Vos pode ver.”

Não é através do conhecimento especulativo ou da imaginação que a alma condicionada entenderá a Suprema Personalidade de Deus. É, portanto, pela graça da Suprema Personalidade de Deus que se deve conhecê-lO. Ele Se revela, mas não pode ser compreendido através da especulação. Como se afirma no Śrīmad-Bhāgavatam (10.14.29):

athāpi te deva padāmbuja-dvaya-
prasāda-leśānugṛhīta eva hi
jānāti tattvaṁ bhagavan-mahimno
na cānya eko ’pi ciraṁ vicinvan

“Meu Senhor, se alguém é favorecido ao menos por um vestígio da misericórdia dos Vossos pés de lótus, pode entender a grandeza de Vossa Personalidade. Mas aqueles que, na tentativa de entender a Suprema Personalidade de Deus, especulam, não são capazes de Vos conhecer, muito embora continuem a estudar os Vedas por muitos anos.”

Este é o veredito dos śāstras. Talvez um homem comum seja um grande filósofo e especule sobre o que é a Verdade Absoluta, qual a Sua forma e onde Ela vive, mas tal homem não consegue entender essas verdades. Sevonmukhe hi jihvādau svayam eva sphuraty adaḥ: é unicamente através do serviço devocional que se pode entender a Suprema Personalidade de Deus. A Suprema Personalidade de Deus em pessoa também explica isso na Bhagavad-gītā (18.55). Bhaktyā mām abhijānāti yāvān yaś cāsmi tattvataḥ: “Somente através do serviço devocional é que alguém pode entender a Suprema Personalidade de Deus como Ela é.” As pessoas sem inteligência procuram imaginar ou inventar uma forma da Suprema Personalidade de Deus, mas os devotos procuram adorar a verdadeira Personalidade de Deus. Portanto, Dakṣa ora: “Talvez alguém pense que sois pessoal, impessoal ou imaginário, mas desejo orar a Vossa Onipotência para que satisfaçais meus desejos de Vos ver como realmente sois.”

Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura comenta que este verso é dirigido especialmente ao impersonalista, que julga ser o Supremo porque não há diferença entre o ser vivo e Deus, segundo sua concepção. O filósofo māyā­vādī julga que existe apenas uma Verdade Suprema e que ele também é essa Verdade Suprema. Com efeito, isso não é conhecimento, mas uma tolice, e este verso se destina especialmente a esses tolos, cujo conhecimento foi roubado pela ilusão (māyayāpahṛta-jñānāḥ). Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura diz que, embora tais pessoas, jñāni­māninaḥ, julguem-se muito avançadas, elas, na verdade, não têm inteligência.

Com relação a esse verso, Śrīla Madhvācārya diz:

svadeha-sthaṁ hariṁ prāhur
adhamā jīvam eva tu
madhyamāś cāpy anirṇītaṁ
jīvād bhinnaṁ janārdanam

Existem três classes de homens – os inferiores (adhama), os que estão em uma plataforma intermediária (madhyama) e os melhores (uttama). Os inferiores (adhama) pensam que não há diferença entre Deus e a entidade viva, excetuando que a entidade viva está sob designações, ao passo que a Verdade Absoluta não tem designações. Na opinião deles, logo que se desfazem as designações do corpo material, a jīva, a entidade viva, imerge no Supremo. Eles apresentam o argumento de ghaṭākāśa-paṭākāśa, segundo o qual o corpo é comparado a um pote em que o céu se localiza tanto interna quanto externamente. Quando o pote se quebra, o céu interno se torna uno com o céu externo; dessa maneira, os impersonalistas dizem que o ser vivo se torna uno com o Supremo. Esse é o argumento deles, mas Śrīla Madhvācārya diz que tal argumento é apresentado pela classe de homens inferiores. Outra classe de homens não pode determinar qual é a verdadeira forma do Supremo, mas concorda que existe um Supremo que controla as atividades do ser vivo comum. Esses filósofos são tidos como medianos. Os melhores, entretanto, são aqueles que compreendem o Senhor Supremo (sac-cid-ānanda-vigraha). Pūrṇānandādi-guṇakaṁ sarva jīva-vilakṣaṇam: Ele tem uma forma inteiramente espiritual, cheia de bem-aventurança e totalmente dis­tinta da forma da alma condicionada ou de qualquer outra entidade viva. Uttamās tu hariṁ prāhus tāratamyena teṣu ca: esses filósofos são os melhores porque sabem que a Suprema Personalidade de Deus revela-Se diferentemente àqueles que praticam adoração de acordo com os vários modos da natureza material. Eles sabem que existem trinta e três milhões de semideuses cuja função é convencer a alma condicionada de que há um poder supremo e induzi-la a concordar em adorar um desses semideuses para que, através da associação com os devotos, ela se torne capaz de compreender que Kṛṣṇa é a Suprema Personalidade de Deus. Como o Senhor Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā, mattaḥ parataraṁ nānyat kiñcid asti dhanañjaya: “Não há verdade superior a Mim.” Aham ādir hi devānām: “Eu sou a origem de todos os semideuses.” Ahaṁ sarvasya prabhavaḥ: “Eu sou superior a todos; sou inclusive superior ao senhor Brahmā, ao senhor Śiva e aos outros semideuses.” Essas são as conclusões do śāstra, e aquele que aceita essas conclusões deve ser considerado um filósofo de primeira classe. Semelhante filósofo sabe que a Suprema Personalidade de Deus é o Senhor dos semideuses (deva-deveśvaraṁ sūtram ānandaṁ prāṇa-vedinaḥ).

Texto

śrī-śuka uvāca
iti stutaḥ saṁstuvataḥ
sa tasminn aghamarṣaṇe
prādurāsīt kuru-śreṣṭha
bhagavān bhakta-vatsalaḥ
kṛta-pādaḥ suparṇāṁse
pralambāṣṭa-mahā-bhujaḥ
cakra-śaṅkhāsi-carmeṣu-
dhanuḥ-pāśa-gadā-dharaḥ
pīta-vāsā ghana-śyāmaḥ
prasanna-vadanekṣaṇaḥ
vana-mālā-nivītāṅgo
lasac-chrīvatsa-kaustubhaḥ
mahā-kirīṭa-kaṭakaḥ
sphuran-makara-kuṇḍalaḥ
kāñcy-aṅgulīya-valaya-
nūpurāṅgada-bhūṣitaḥ
trailokya-mohanaṁ rūpaṁ
bibhrat tribhuvaneśvaraḥ
vṛto nārada-nandādyaiḥ
pārṣadaiḥ sura-yūthapaiḥ
stūyamāno ’nugāyadbhiḥ
siddha-gandharva-cāraṇaiḥ

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; iti — assim; stu­taḥ — sendo louvado; saṁstuvataḥ — de Dakṣa, que oferecia orações; saḥ — essa Suprema Personalidade de Deus; tasmin — naquele; agha­marṣane — lugar sagrado, conhecido como Aghamarṣaṇa; prādurā­sīt — apareceu; kuru-śreṣṭha — ó melhor da dinastia Kuru; bhagavān — a Suprema Personalidade de Deus; bhakta-vatsalaḥ — que é muito bondoso com Seus devotos; kṛta pādaḥ — cujos pés de lótus descansavam; suparṇa-aṁse — nos ombros do Seu carregador, Garuḍa; pralamba — muito longos; aṣṭa-mahā-bhujaḥ — possuindo oito braços poderosos; cakra — disco; śaṅkha — búzio; asi — espada; carma — escudo; iṣu — flecha; dhanuḥ — arco; pāśa — corda; gadā — maça; dharaḥ — portando; pīta-vāsāḥ — com roupas amarelas; ghana-śyāmaḥ — cuja tez corpórea era de um azul intenso e escuro; prasanna — muito encantadores; vadana — cujo rosto; īkṣaṇaḥ — e olhar; vana-mālā — por uma guirlanda de flores silvestres; nivīta-aṅgaḥ — cujo corpo es­tava adornado desde o pescoço até os pés; lasat — reluzente; śrīvatsa-­kaustubhaḥ — a joia conhecida como Kaustubha e a marca de śrīvatsa; mahā-kirīṭa — de um elmo grande e esplêndido; kaṭakaḥ — um círculo; sphurat — cintilantes; makara-kuṇḍalaḥ — brincos em forma de tubarões; kāñcī — com um cinto; aṅgulīya — anéis; valaya — braceletes; nūpura — sinos de tornozelo; aṅgada — braceletes que se usam na parte superior do braço; bhūṣitaḥ — decorado; trai-lokya­-mohanam — cativando os três mundos; rūpam — Seus aspectos físicos; bibhrat — resplandecentes; tri-bhuvana — dos três mundos; īśvaraḥ — o Senhor Supremo; vṛtaḥ — cercado; nārada — de devotos magnânimos, encabeçados por Nārada; nanda-ādyaiḥ — e outros, como Nanda; pārṣadaiḥ — que são todos associados eternos; sura-yūthapaiḥ — bem como pelos líderes dos semideuses; stūyamānaḥ — sendo glorificado; anugāyadbhiḥ — cantando enquanto estavam situados atrás dEle; siddha-gandharva-cāraṇaiḥ — pelos Siddhas, Gandharvas e Cāraṇas.

Tradução

Śrī Śukadeva Gosvāmī disse: Hari, a Suprema Personalidade de Deus, que é extremamente afetuoso com Seus devotos, ficou muito satisfeito com as orações oferecidas por Dakṣa e, dessa maneira, apareceu naquele lugar sagrado conhecido como Aghamarṣaṇa. Ó Mahārāja Parīkṣit, melhor da dinastia Kuru, os pés de lótus do Senhor repousavam nos ombros do Seu carregador, Garuḍa, e Ele apareceu com Seus oito longos braços poderosos e belíssimos. Em Suas mãos, portava um disco, um búzio, uma espada, um escudo, uma flecha, um arco, uma corda e uma maça – em cada mão, uma arma dife­rente, todas estas reluzindo com imenso esplendor. Suas roupas eram amarelas, e a tez de Seu corpo era azul escura. Seus olhos e Seu rosto eram muito encantadores, e, de Seu pescoço até Seus pés, pendia uma enorme guirlanda de flores. Seu peito estava decorado com a joia Kaustubha e com a marca Śrīvatsa. Sobre Sua cabeça, havia um esplêndido elmo arredondado, e Suas orelhas estavam ornadas com brincos em forma de tubarões. Todos esses adornos tinham uma be­leza incomum. O Senhor usava um cinto de ouro, braceletes, anéis e sinos de tornozelo. Decorado, então, com esses vários adornos, o Senhor Hari, que é atrativo para todas as entidades vivas dos três mundos, é conhecido como Puruṣottama, a melhor entre todas as personalidades. Acompanhavam-nO grandes devotos, tais como Nārada, Nanda e todos os principais semideuses, encabeçados por Indra, o rei celes­tial, e os habitantes de vários sistemas planetários superiores, tais como Siddhaloka, Gandharvaloka e Cāraṇaloka. Ficando de ambos os lados do Senhor e atrás dEle também, esses devotos não paravam de oferecer-Lhe orações.

Texto

rūpaṁ tan mahad-āścaryaṁ
vicakṣyāgata-sādhvasaḥ
nanāma daṇḍavad bhūmau
prahṛṣṭātmā prajāpatiḥ

Sinônimos

rūpam — forma transcendental; tat — essa; mahat-āścaryam — grandemente maravilhosa; vicakṣya — vendo; āgata-sādhvasaḥ — no come­ço, ficou com medo; nanāma — prestou reverências; daṇḍa-vat — como uma vara; bhūmau — no chão; prahṛṣṭa-ātmā — com corpo, mente e alma satisfeitos; prajāpatiḥ — o prajāpati conhecido como Dakṣa.

Tradução

Vendo essa maravilhosa e refulgente forma da Suprema Personalidade de Deus, Prajāpati Dakṣa primeiramente ficou um pouco amedrontado, mas depois se mostrou muito satisfeito de ver o Senhor e, como uma vara, caiu ao solo para ofere­cer seus respeitos ao Senhor.

Texto

na kiñcanodīrayitum
aśakat tīvrayā mudā
āpūrita-manodvārair
hradinya iva nirjharaiḥ

Sinônimos

na — não; kiñcana — nada; udīrayitum — de falar; aśakat — ele foi capaz; tīvrayā — devido à imensa; mudā — felicidade; āpūrita — repletos; manaḥ-dvāraiḥ — pelos sentidos; hradinyaḥ — os rios; iva — como; nirjharaiḥ — pelas torrentes da montanha.

Tradução

Assim como os rios ficam repletos de água que corre de uma mon­tanha, todos os sentidos de Dakṣa se encheram de prazer. Devido à sua felicidade imensa, Dakṣa nada podia dizer, senão que simplesmente permanecia estendido no solo.

Comentário

SIGNIFICADO—Quando alguém realmente compreende ou vê a Suprema Personalidade de Deus, enche-se de completa felicidade. Por exemplo, ao ver o Senhor em sua presença, Dhruva Mahārāja disse que svāmin kṛtārtho ’smi varaṁ na yāce: “Meu querido Senhor, nada tenho para Vos pedir. Agora, estou completamente satisfeito.” Do mesmo modo, ao ver o Senhor Supremo em sua presença, o prajāpati Dakṣa simplesmente caiu esticado, incapaz de falar ou pedir-Lhe qualquer coisa.

Texto

taṁ tathāvanataṁ bhaktaṁ
prajā-kāmaṁ prajāpatim
citta-jñaḥ sarva-bhūtānām
idam āha janārdanaḥ

Sinônimos

tam — a ele (o prajāpati Dakṣa); tathā — dessa maneira; avanatam — prostrado diante dEle; bhaktam — um grande devoto; prajā-kāmam — desejando aumentar a população; prajāpatim — ao prajāpati (Dakṣa); citta-jñaḥ — que pode entender os corações; sarva-bhūtānām — de todas as entidades vivas; idam — isto; āha — disse; janārdanaḥ — a Suprema Personalidade de Deus, que pode satisfazer os desejos de todos.

Tradução

Embora o Prajāpati Dakṣa não conseguisse dizer nada, quando o Senhor, que conhece o coração de todos, viu Seu devoto prostrado daquela maneira, dirigiu-lhe as seguintes palavras, pois este desejava aumentar a população.

Texto

śrī-bhagavān uvāca
prācetasa mahā-bhāga
saṁsiddhas tapasā bhavān
yac chraddhayā mat-parayā
mayi bhāvaṁ paraṁ gataḥ

Sinônimos

śrī-bhagavān uvāca — a Suprema Personalidade de Deus disse; prācetasa — ó Meu querido Prācetasa; mahā-bhāga — ó tu que és tão afortunado; saṁsiddhaḥ — aperfeiçoaste; tapasā — com tuas austeridades; bhavān — a ti mesmo; yat — porque; śraddhayā — pela grande fé; mat-parayā — cujo objetivo sou Eu; mayi — em Mim; bhāvam — êxtase; param — supremo; gataḥ — alcançaste.

Tradução

A Suprema Personalidade de Deus disse: Ó afortunadíssimo Prā­cetasa, devido à tua grande fé em Mim, alcançaste o supremo êx­tase devocional. Na verdade, em razão de tuas austeridades, acrescidas da tua grande devoção, tua vida agora é exitosa. Atingiste a perfeição plena.

Comentário

SIGNIFICADO—Como o próprio Senhor confirma na Bhagavad-gītā (8.15), alcança a perfeição máxima aquele que tem a fortuna de compreender a Suprema Personalidade de Deus:

mām upetya punar janma
duḥkhālayam aśāśvatam
nāpnuvanti mahātmānaḥ
saṁsiddhiṁ paramāṁ gatāḥ

“Após Me alcançarem, as grandes almas, que são yogīs em devoção, jamais retornam a este mundo temporário e cheio de sofrimentos, porque eles obtiveram a perfeição máxima.” Portanto, o movimento da consciência de Kṛṣṇa nos ensina a seguirmos o caminho rumo à perfeição máxima, simplesmente prestando serviço devocional.

Texto

prīto ’haṁ te prajā-nātha
yat te ’syodbṛṁhaṇaṁ tapaḥ
mamaiṣa kāmo bhūtānāṁ
yad bhūyāsur vibhūtayaḥ

Sinônimos

prītaḥ — muitíssimo satisfeito; aham — Eu; te — contigo; prajā-­nātha — ó rei da população; yat — porque; te — tua; asya — deste mundo material; udbṛṁhaṇam — atitude de causar o aumento; tapaḥ — austeridade; mama — Meu; eṣaḥ — este; kāmaḥ — desejo; bhū­tānām — das entidades vivas; yat — as quais; bhūyāsuḥ — que haja; vibhūtayaḥ — avanço sob todos os aspectos.

Tradução

Meu querido prajāpati Dakṣa, para o bem-estar e progresso do mundo, executaste austeridades extremas. Também é Meu desejo que todos dentro deste mundo sejam felizes. Portanto, estou muito satisfeito contigo porque estás te esforçando para satisfazer Meu desejo de trazer bem-estar ao mundo inteiro.

Comentário

SIGNIFICADO—Sempre que ocorre a dissolução do cosmo material, todas as en­tidades vivas se refugiam no corpo de Kāraṇodakaśāyī Viṣṇu, e quando a criação se repete, elas, em suas várias espécies, surgem de Seu corpo para retomar suas atividades. Por que a criação ocorre de maneira tal que as entidades vivas são postas em uma vida condicionada para sofrer os três tipos de sofrimentos que lhe são infligidos pela natureza material? Aqui, o Senhor diz a Dakṣa: “Desejas beneficiar todas as entidades vivas, e esse também é o Meu desejo.” As entidades vivas que entram em contato com o mundo material devem ser corrigidas. Todas as entidades vivas dentro deste mundo material se revoltaram contra o serviço ao Senhor, e, por­tanto, sempre condicionadas, nitya-baddha, permanecem dentro deste mundo, nascendo repetidas vezes. É claro que elas recebem a oportunidade de se libertarem, mas as almas condiciona­das, rejeitando essa oportunidade, continuam uma vida de gozo dos sentidos e, dessa maneira, são punidas com repetidos nascimentos e mortes. Essa é a lei da natureza. Como o Senhor diz na Bhagavad-gītā (7.14):

daivī hy eṣā guṇa-mayī
mama māyā duratyayā
mām eva ye prapadyante
māyām etāṁ taranti te

“Esta Minha energia divina, que consiste nos três modos da natureza material, é difícil de ser suplantada. Mas aqueles que se renderam a Mim podem facilmente transpô-la.” Em outra passagem da Bhagavad-gītā (15.7), o Senhor diz:

mamaivāṁśo jīva-loke
jīva-bhūtaḥ sanātanaḥ
manaḥ ṣaṣṭhānīndriyāṇi
prakṛti-sthāni karṣati

“As entidades vivas neste mundo condicionado são Minhas eternas partes fragmentárias. Por força da vida condicionada, elas empreendem árdua luta com os seis sentidos, entre os quais se inclui a mente.” A luta que a entidade viva empreende para sobreviver dentro do mundo material deve-se à sua natureza rebelde. Enquanto não se render a Kṛṣṇa, a entidade viva deverá continuar sua vida de pelejas.

O movimento da consciência de Kṛṣṇa não é modismo. Trata-se de um movimento fidedigno que se propõe promover o bem-estar de todas as almas condicionadas, tentando elevar todas essas almas à plata­forma da consciência de Kṛṣṇa. Quem não chega a essa plataforma deve continuar perpetuamente na existência material, ora nos planetas superiores, ora nos planetas inferiores. Como confirma o Caitanya-caritāmṛta (Madhya 20.118), kabhu svarge uṭhāya, kabhu narake ḍubāya: a alma condicionada ora mergulha na ignorância, ora obtém algum alívio ficando relativamente livre desta. Assim é a vida da alma condicionada.

O prajāpati Dakṣa está tentando beneficiar as almas condicionadas, gerando-as para lhes dar vida com a oportunidade de se libertarem. Liberação significa render-se a Kṛṣṇa. Se alguém gera filhos com o propósito de treiná-los para que se rendam a Kṛṣṇa, esse tipo de pater­nidade é algo muito bom. Do mesmo modo, quando o mestre espiritual treina as almas condicionadas para se tornarem conscientes de Kṛṣṇa, a posição dele é exitosa. Se alguém confere às almas condicionadas a oportunidade de se tornarem conscientes de Kṛṣṇa, todas as suas ativi­dades são aprovadas pela Suprema Personalidade de Deus, que, como se afirma aqui (prīto ’ham), fica extremamente satisfeito. Se­guindo os exemplos dos ācāryas anteriores, todos os membros do movimento da consciência de Kṛṣṇa devem tentar beneficiar as almas condicionadas, induzindo-as a se tornarem conscientes de Kṛṣṇa e lhes dando todas as facilidades para que elas alcancem esse objetivo. Essas atividades constituem o verdadeiro trabalho beneficente. Com isso, um pregador ou qualquer pessoa que se esforce por espalhar a consciência de Kṛṣṇa tem o reconhecimento da Suprema Personalidade de Deus. Como o próprio Senhor confirma na Bhagavad-gītā (18.68-69):

ya idaṁ paramaṁ guhyaṁ
mad-bhakteṣv abhidhāsyati
bhaktiṁ mayi parāṁ kṛtvā
mām evaiṣyaty asaṁśayaḥ
na ca tasmān manuṣyeṣu
kaścin me priya-kṛttamaḥ
bhavitā na ca me tasmād
anyaḥ priyataro bhuvi

“Para aquele que explica aos devotos este segredo supremo, o serviço devocional puro está garantido, e, no final, ele voltará a Mim. Não há neste mundo servo que Me seja mais querido do que ele, tampouco em algum momento haverá alguém mais querido.”

Texto

brahmā bhavo bhavantaś ca
manavo vibudheśvarāḥ
vibhūtayo mama hy etā
bhūtānāṁ bhūti-hetavaḥ

Sinônimos

brahmā — senhor Brahmā; bhavaḥ — senhor Śiva; bhavantaḥ — todos vós, prajāpatis; ca — e; manavaḥ — os Manus; vibudha-īśvarāḥ — todos os diferentes semideuses (tais como o Sol, a Lua, Vênus, Marte e Júpiter, que estão encarregados de várias atividades para o bem-estar do mundo); vibhūtayaḥ — expansões de energia; mama — Minhas; hi — na verdade; etāḥ — todas essas; bhūtānām — de todas as entidades vivas; bhūti — do bem-estar; hetavaḥ — causas.

Tradução

O senhor Brahmā, o senhor Śiva, os Manus, todos os outros semideuses nos sistemas planetários superiores, e vós, os prajāpatis, que aumentais a população, estais trabalhando para o benefício de todas as entidades vivas. Assim, vós, expansões da Minha energia marginal, sois encarnações de Minhas várias qualidades.

Comentário

SIGNIFICADO—Existem várias espécies de encarnações e expansões da Suprema Personalidade de Deus. As expansões do Seu eu pessoal, ou viṣṇu­tattva, chamam-se expansões svāṁśa, ao passo que as entidades vivas, que não são viṣṇu-tattva, mas jīva-tattva, chamam-se vibhinnāṁśa, expansões distintas. Embora não esteja no mesmo nível do senhor Brahmā e do senhor Śiva, Prajāpati Dakṣa é comparado a eles porque se ocupa a serviço do Senhor. No serviço à Personalidade de Deus, não se deve pensar que o senhor Brahmā é considerado muito grande enquanto um ser humano comum que tenta pregar as glórias do Senhor é tido como insignificante. Não existem essas distinções. Quer seja materialmente elevado, quer seja baixo, todo aquele que se ocupa a serviço do Senhor Lhe é espiritualmente muito que­rido. Com relação a isso, Śrīla Madhvācārya menciona a seguinte citação do Tantra-nirṇaya:

viśeṣa-vyakti-pātratvād
brahmādyās tu vibhūtayaḥ
tad-antaryāmiṇaś caiva
matsyādyā vibhavāḥ smṛtāḥ

Começando do senhor Brahmā e descendo, todas as entidades vivas ocupadas a serviço do Senhor são extraordinárias e se chamam vibhūti. Como o Senhor diz na Bhagavad-gītā (10.41):

yad yad vibhūtimat sattvaṁ
śrīmad ūrjitam eva vā
tat tad evāvagaccha tvaṁ
mama tejo-’ṁśa-sambhavam

“Fica sabendo que todas as criações opulentas, belas e gloriosas emanam de uma mera centelha do Meu esplendor.” A entidade viva especialmente dotada de poder para agir em nome do Senhor chama­-se vibhūti, ao passo que as encarnações do Senhor, manifestas sob a forma de viṣṇu-tattva, tais como o avatāra Matsya (keśava dhṛta-mīna-śarīra jaya jagad-īśa hare), chamam-se vibhava.

Texto

tapo me hṛdayaṁ brahmaṁs
tanur vidyā kriyākṛtiḥ
aṅgāni kratavo jātā
dharma ātmāsavaḥ surāḥ

Sinônimos

tapaḥ — austeridades, tais como o controle da mente, yoga místico e meditação; me — Meu; hṛdayam — coração; brahman — ó brāhmaṇa; tanuḥ — o corpo; vidyā — o conhecimento proveniente da escritura védica; kriyā — atividades espirituais; ākṛtiḥ — forma; aṅgāni — os membros do corpo; kratavaḥ — as cerimônias ritualísticas e sacrifí­cios mencionados na literatura védica; jātāḥ — completos; dharmaḥ — os princípios religiosos mediante os quais se executam as cerimônias ritualísticas; ātmā — Minha alma; asavaḥ — ares vitais; surāḥ — os semideuses que, em diferentes departamentos do mundo material, executam as Minhas ordens.

Tradução

Meu querido brāhmana, a austeridade sob a forma de meditação é o Meu coração, o conhecimento védico sob a forma dos hinos e mantras constitui Meu corpo, e as atividades espirituais e emoções extáticas são Minha verdadeira forma. As cerimônias ritualísticas e sacrifícios, quando apropriadamente conduzidos, são os vários membros do Meu corpo, a invisível boa fortuna decorrente das atividades piedosas ou espirituais constitui Minha mente, e os semi­deuses que, em vários departamentos, executam Minhas ordens, são Minha vida e alma.

Comentário

SIGNIFICADO—Às vezes, os ateístas argumentam que, uma vez que Deus é invi­sível aos seus olhos, eles não acreditam em Deus. É para eles que o Senhor Supremo está descrevendo um método através do qual é possível ver Deus em Sua forma impessoal. Como afirmam os śāstras, as pessoas inteligentes podem ver Deus em Sua forma pessoal, mas, se alguém está muito ansioso por ver a Suprema Personalidade de Deus imediatamente, face a face, pode ver o Senhor Supremo através desta descrição, que retrata as várias partes internas e externas do Seu corpo.

Ocupar-se em tapasya, ou abstenção de atividades materiais, é o primeiro passo da vida espiritual. Depois, vêm as atividades espiri­tuais, tais como a realização de sacrifícios ritualísticos védicos, o estudo do conhecimento védico, a meditação na Suprema Persona­lidade de Deus e o cantar do mahā-mantra Hare Kṛṣṇa. Devem-se, também, respeitar os semideuses e compreender a sua posição, como agem e como administram as atividades dos vários departamentos deste mundo material. Dessa maneira, pode-se ver como Deus exis­te e como tudo é administrado perfeitamente devido à presença do Senhor Supremo. Como o Senhor diz na Bhagavad-gītā (9.10):

mayādhyakṣeṇa prakṛtiḥ
sūyate sa-carācaram
hetunānena kaunteya
jagad viparivartate

“Esta natureza material, que é uma das Minhas energias, funciona sob Minha direção, ó filho de Kuntī, produzindo todos os seres móveis e imóveis. Obedecendo-lhe ao comando, esta manifestação é criada e aniquilada repetidas vezes.” Se alguém é incapaz de ver o Senhor Supremo apesar de, em Suas várias encarnações, Ele estar presente como Kṛṣṇa, essa pessoa pode, de acordo com a orientação dos Vedas e através das atividades da natureza material, ver o aspecto impessoal do Senhor Supremo.

Tudo aquilo que é feito sob a orientação dos preceitos védicos se chama dharma, como descrevem os mensageiros de Yamarāja:

veda-praṇihito dharmo
hy adharmas tad-viparyayaḥ
vedo nārāyaṇaḥ sākṣāt
svayambhūr iti śuśruma

“Aquilo que está prescrito nos Vedas constitui dharma, os princípios religiosos, e o que se opõe a isso é irreligião. Os Vedas são direta­mente a Suprema Personalidade de Deus, Nārāyaṇa, e são autóge­nos. Foi Yamarāja quem nos disse isso.” (Śrīmad-Bhāgavatam 6.1.40)

A esse respeito, Śrīla Madhvācārya comenta:

tapo ’bhimānī rudras tu
viṣṇor hṛdayam āśritaḥ
vidyā rūpā tathaivomā
viṣṇos tanum upāśritā
śṛṅgārādy-ākṛti-gataḥ
kriyātmā pāka-śāsanaḥ
aṅgeṣu kratavaḥ sarve
madhya-dehe ca dharma-rāṭ
prāṇo vāyuś citta-gato
brahmādyāḥ sveṣu devatāḥ

Os vários semideuses estão agindo sob a proteção da Suprema Perso­nalidade de Deus, e, de acordo com suas diversas ações, eles recebem diferentes nomes.

Texto

aham evāsam evāgre
nānyat kiñcāntaraṁ bahiḥ
saṁjñāna-mātram avyaktaṁ
prasuptam iva viśvataḥ

Sinônimos

aham — Eu, a Suprema Personalidade de Deus; eva — somente; āsam — existia; eva — com certeza; agre — no começo, antes da criação; na — não; anyat — outra; kiñca — coisa alguma; antaram — além de Mim; bahiḥ — externa (uma vez que a manifestação cósmica é exter­na ao mundo espiritual, o mundo espiritual já existia antes do mundo material); saṁjñāna-mātram — apenas a consciência das entidades vivas; avyaktam — imanifesta; prasuptam — sono; iva — como; viśvataḥ — a todo momento.

Tradução

Antes da criação desta manifestação cósmica, Eu existia sozinho com Minhas potências espirituais. A consciência, então, estava imanifesta, assim como a consciência fica imanifesta durante o sono.

Comentário

SIGNIFICADO—A palavra aham indica uma pessoa. Como explicam os Vedas, nityo nityānāṁ cetanaś cetanānām (Kaṭha Upaniṣad 2.2.13): O Senhor é o eterno supremo entre inúmeros eternos e o ser vivo supremo entre inúmeros seres vivos. O Senhor é uma pessoa que também possui aspectos impes­soais. Como se afirma no Śrīmad-Bhāgavatam (1.2.11):

vadanti tat tattva-vidas
tattvaṁ yaj jñānam advayam
brahmeti paramātmeti
bhagavān iti śabdyate

“Transcendentalistas eruditos que conhecem a Verdade Absoluta chamam essa substância não-dual de Brahman, Paramātmā ou Bhagavān.” Somente após a criação é que se fez referência ao Paramātmā e ao Brahman impessoal; antes da criação, existia apenas a Suprema Personalidade de Deus. Como se declara firmemente na Bhagavad-gītā (18.55), o Senhor pode ser compreendido apenas através do bhakti-yoga. A causa última, a suprema causa da criação, é a Su­prema Personalidade de Deus, que pode ser compreendido apenas através de bhakti-yoga. Ele não pode ser compreendido mediante análise filosófica especulativa ou meditação, uma vez que todos esses processos passaram a existir após a criação material. As pondera­ções impessoal e localizada a respeito do Senhor Supremo são, até certo ponto, materialmente contaminadas. Portanto, o verdadeiro processo espiritual é o bhakti-yoga. Como o Senhor diz, bhaktyā mām abhijānāti: “Somente através do serviço devocional é que posso ser compreendido.” Conforme aqui indicado pela palavra aham, o Senhor existia como pessoa antes da criação. Ao vê-lO como uma pessoa que estava belamente vestida e ornamentada, o prajāpati Dakṣa, através do serviço devocional, pôde realmente experimentar o significado dessa palavra aham.

Toda pessoa é eterna. Porque o Senhor diz que antes da criação (agre) existia como pessoa e também continuará existindo após a aniquilação, Ele é eternamente uma pessoa. Portanto, Śrīla Viśva­nātha Cakravartī Ṭhākura cita esses versos do Śrīmad-Bhāgavatam (10.9.13-14):

na cāntar na bahir yasya
na pūrvaṁ nāpi cāparam
pūrvāparaṁ bahiś cāntar
jagato yo jagac ca yaḥ
taṁ matvātmajam avyaktaṁ
martya-liṅgam adhokṣajam
gopikolūkhale dāmnā
babandha prākṛtaṁ yathā

A Personalidade de Deus apareceu em Vṛndāvana como filho de mãe Yaśodā, que amarrou o Senhor com uma corda, assim como uma mãe comum amarra um filho material. De fato, a forma da Suprema Personalidade de Deus (sac-cid-ānanda-vigraha) não é constituída de divisões externa e interna, mas, quando Ele aparece sob Sua própria forma, as pessoas sem inteligência O consideram uma pessoa comum. Avajānanti māṁ mūḍhā mānuṣīṁ tanum āśritam: embora Ele advenha em Seu próprio corpo, que jamais passa por transformações, os mūḍhas, aqueles que não têm inteligência, pensam que, para vir sob a forma de uma pessoa, o Brahman impessoal assumiu um corpo material. Os seres vivos comuns aceitam corpos materiais, mas tal fenômeno não se aplica à Suprema Personalidade de Deus. Como a Suprema Personalidade de Deus é a consciência Suprema, afirma-se nesta passagem que saṁjñāna-mātram, a cons­ciência original, a consciência de Kṛṣṇa, estava imanifesta antes da criação, embora a consciên­cia da Suprema Personalidade de Deus seja a origem de tudo. Na Bhagavad-gītā (2.12), o Senhor diz: “Nunca houve um tempo em que Eu não existisse, nem você, nem todos esses reis; e no futuro nenhum de nós deixará de existir.” Assim, a pessoa do Senhor é a Verdade Absoluta no passado, no presente e no futuro.

A esse respeito, Madhvācārya cita dois versos do Matsya Purāṇa:

nānā-varṇo haris tv eko
bahu-śīrṣa-bhujo rūpāt
āsīl laye tad-anyat tu
sūkṣma-rūpaṁ śriyaṁ vinā
asuptaḥ supta iva ca
mīlitākṣo ’bhavad dhariḥ
anyatrānādarād viṣṇau
śrīś ca līneva kathyate
sūkṣmatvena harau sthānāl
līnam anyad apīṣyate

Após a aniquilação de tudo, o Senhor Supremo, devido ao Seu sac­-cid-ānanda-vigraha, permanece sob Sua forma original, mas, como as outras entidades vivas têm corpos materiais, a matéria imerge na matéria, e a forma sutil da alma espiritual permanece dentro do corpo do Senhor. O Senhor não dorme, mas as entidades vivas comuns ficam adormecidas até a próxima criação. Pessoas sem inteligência pensam que, após a aniquilação, a opulência do Senhor Supremo inexiste, mas isso não é verdade. No mundo espiritual, a opulência da Suprema Personalidade de Deus permanece incólume, mas, no mundo material é que tudo é dissolvido. Brahma-līna, a imersão no Brahman Supremo, não é verdadeira līna, ou aniquilação, visto que, após a criação material, a forma sutil que está imersa na refulgência Brahman regressará ao mundo material e reassumirá uma forma material. Descreve-se isso como bhūtvā bhūtvā pralīyate. Quando o corpo material é aniquilado, a alma espiritual permanece sob uma forma sutil, que mais tarde adquire outro corpo material. Isso é válido em relação às almas condicionadas, mas a Suprema Perso­nalidade de Deus continua eternamente em Sua consciência e corpo espiritual originais.

Texto

mayy ananta-guṇe ’nante
guṇato guṇa-vigrahaḥ
yadāsīt tata evādyaḥ
svayambhūḥ samabhūd ajaḥ

Sinônimos

mayi — em Mim; ananta-guṇe — possuindo potências ilimitadas; anante — ilimitada; guṇataḥ — de Minha potência conhecida como māyā; guṇa-vigrahaḥ — o universo, que é o resultado dos modos da natureza; yadā — quando; āsīt — ele passou a existir; tataḥ — então; eva — na verdade; ādyaḥ — o primeiro ser vivo; svayambhūḥ — o senhor Brahmā; samabhūt — nasceu; ajaḥ — embora não tivesse uma mãe material.

Tradução

Eu sou o reservatório de potência ilimitada e, portanto, sou conhecido como ilimitado ou onipenetrante. A partir de Minha energia material, a manifestação cósmica apareceu dentro de Mim, e, nessa manifestação universal, surgiu o ser principal, o senhor Brahmā, que é tua fonte e não nasce de uma mãe material.

Comentário

SIGNIFICADO—Esta é uma descrição da história da criação universal. A causa primordial é o próprio Senhor, a Pessoa Suprema. A partir dEle, Brahmā é criado, e Brahmā se encarrega dos afazeres universais. Os afaze­res universais da criação material dependem da energia material da Suprema Personalidade de Deus, que, portanto, é a causa da criação material. Toda a manifestação cósmica é descrita aqui como guṇa-­vigrahaḥ, a forma das qualidades do Senhor. A partir da forma cósmica universal, a primeira criatura é o senhor Brahmā, que é a causa de todas as entidades vivas. Com relação a isso, Śrīla Madhvācārya descreve os ilimitados atributos do Senhor:

praty-ekaśo guṇānāṁ tu
niḥsīmatvam udīryate
tadānantyaṁ tu guṇatas
te cānantā hi saṅkhyayā
ato ’nanta-guṇo viṣṇur
guṇato ’nanta eva ca

Parāsya śaktir vividhaiva śrūyate: o Senhor tem inúmeras potências, todas as quais são ilimitadas. Portanto, o próprio Senhor e todas as Suas qualidades, formas, passatempos e parafernália também são ilimitados. Porque tem atributos ilimitados, o Senhor Viṣṇu é conhecido como Ananta.

Texto

sa vai yadā mahādevo
mama vīryopabṛṁhitaḥ
mene khilam ivātmānam
udyataḥ svarga-karmaṇi
atha me ’bhihito devas
tapo ’tapyata dāruṇam
nava viśva-sṛjo yuṣmān
yenādāv asṛjad vibhuḥ

Sinônimos

saḥ — esse senhor Brahmā; vai — na verdade; yadā — quando; mahā­-devaḥ — o principal de todos os semideuses; mama — Minha; vīrya­upabṛṁhitaḥ — ganhando ímpeto com a potência; mene — considerou-se; khilam — incapaz; iva — como se; ātmānam — ele próprio; udyataḥ — tentando; svarga-karmaṇi — na criação dos afazeres universais; atha — naquele momento; me — por Mim; abhihitaḥ — aconselhado; devaḥ — esse senhor Brahmā; tapaḥ — austeridade; atapyata — reali­zou; dāruṇam — extremamente difícil; nava — nove; viśva-sṛjaḥ — importantes personalidades para criar o universo; yuṣmān — todos vós; yena — por quem; ādau — no começo; asṛjat — criou; vibhuḥ — o grande.

Tradução

Quando, inspirado por Minha energia, o principal senhor do universo, o senhor Brahmā [Svayambhū], tentava criar, viu-se in­capaz de fazê-lo. Portanto, ofereci-lhe alguns conselhos e, de acordo com as Minhas instruções, submeteu-se a austeridades extremamente di­fíceis. Devido a essas austeridades, o grande senhor Brahmā foi capaz de criar nove personalidades para ajudá-lo nas funções da criação, e estás incluído entre elas.

Comentário

SIGNIFICADO—Nada é possível sem tapasya. Entretanto, devido às suas austeridades, o senhor Brahmā recebeu o poder de criar todo este universo. Pela graça do Senhor, quanto mais nos ocupamos em austeridades, mais nos tornamos poderosos. Portanto, Ṛṣabhadeva aconse­lhou a Seus filhos que tapo divyaṁ putrakā yena sattvaṁ śuddhyed: “Para alcançar a divina posição de serviço devocional, a pessoa deve ocupar-se em penitências e austeridades. Através dessa atividade, seu coração se purifica.” (Śrīmad-Bhāgavatam 5.5.1) Em nossa existência mate­rial, somos impuros e, portanto, não podemos fazer nada maravi­lhoso, mas se, através de tapasya, purificarmos a nossa existência, poderemos, pela graça do Senhor, fazer coisas maravilhosas. Portanto, como se enfatiza neste verso, tapasya é algo muito importante.

Texto

eṣā pañcajanasyāṅga
duhitā vai prajāpateḥ
asiknī nāma patnītve
prajeśa pratigṛhyatām

Sinônimos

eṣā — isto; pañcajanasya — de Pañcajana; aṅga — ó Meu querido filho; duhitā — a filha; vai — na verdade; prajāpateḥ — outro prajāpati; asiknī nāma — chamada Asiknī; patnītve — como tua esposa; prajeśa — ó prajāpati; pratigṛhyatām — que ela seja aceita.

Tradução

Ó Meu querido filho Dakṣa, o Prajāpati Pañcajana tem uma filha chamada Asiknī, a qual te ofereço para que a aceites como tua esposa.

Texto

mithuna-vyavāya-dharmas tvaṁ
prajā-sargam imaṁ punaḥ
mithuna-vyavāya-dharmiṇyāṁ
bhūriśo bhāvayiṣyasi

Sinônimos

mithuna — de homem e mulher; vyavāya — atividades sexuais; dharmaḥ — quem aceita através da prática religiosa; tvam — tu; prajā­-sargam — criação de entidades vivas; imam — isto; punaḥ — novamen­te; mithuna — de homem e mulher unidos; vyavāya-dharmiṇyām — nela, tendo relação sexual de acordo com a prática religiosa; bhūriśaḥ — um grande número; bhāvayiṣyasi — trarás à existência.

Tradução

Portanto, como homem e mulher, uni-vos através da atividade sexual e, dessa maneira, através da relação sexual, serás capaz de gerar centenas de filhos no ventre dessa jovem para aumentar a população.

Comentário

SIGNIFICADO—Na Bhagavad-gītā (7.11), o Senhor diz que dharmāviruddho bhūteṣu kāmo ’smi: “Eu sou o sexo que não é contrário aos princípios religiosos.” O intercurso sexual ordenado pela Suprema Personali­dade de Deus é dharma, princípio religioso, mas não visa ao gozo dos sentidos. Os princípios védicos não permitem a prática do gozo dos sentidos através do intercurso sexual. Com o único propósito de gerar filhos é que alguém pode seguir a sua tendência natural à atividade sexual. Portanto, neste verso, o Senhor disse a Dakṣa: “Recebes esta jovem apenas para a atividade sexual destinada a gerar filhos, e não para algum outro propósito. Ela é muito fértil, de modo que serás capaz de ter tantos filhos quantos puderes gerar.”

A esse respeito, Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura assinala que Dakṣa recebeu facilidades para um intercurso sexual ilimitado. Em sua vida anterior, Dakṣa também era conhecido como Dakṣa, mas, enquanto executava sacrifícios, ele ofendeu o senhor Śiva, e assim sua cabeça foi substituída pela cabeça de um bode. Depois, devido à sua condição degradada, Dakṣa abandonou sua vida, mas, porque man­teve os mesmos desejos sexuais ilimitados, submeteu-se a rigorosas austeridades com as quais satisfez o Senhor Supremo, que lhe ofereceu, então, ilimitada potência para o intercurso sexual.

Deve-se notar que, embora seja obtida pela graça da Suprema Personalidade de Deus, essa facilidade para o intercurso sexual não é ofe­recida aos devotos avançados, que estão livres de desejos materiais (anyābhilāṣitā-śūnyam). Com relação a isso, é bom notar que, se os rapazes e moças americanos ocupados no movimento da consciência de Kṛṣṇa quiserem avançar em consciência de Kṛṣṇa para alcançar o benefício supremo de prestar serviço amoroso ao Senhor, deverão evitar de se entregar a essas condições favoráveis à prática sexual. Portanto, aconselhamos que a pessoa deve ao menos se abster do sexo ilícito. Mesmo que alguém tenha oportunidades para uma vida sexual ativa, ele deve aceitar voluntariamente restringir a atividade sexual apenas à procriação e esquivar-se de qualquer outro propósito. Kardama Muni também recebeu facilidades para as ativida­des sexuais, mas quase não tinha desejo de se envolver com isso. Portanto, após gerar filhos no ventre de Devahūti, Kardama Muni se tornou inteiramente renunciado. O ponto é que se alguém quer voltar ao lar, voltar ao Supremo, deve voluntariamente restringir sua vida sexual. O sexo deve ser aceito somente tanto quanto necessário, e não de modo ilimitado.

Ninguém deve pensar que, pelo fato de ter obtido facili­dades para o sexo ilimitado, Dakṣa tenha recebido o favor do Senhor. Os versos seguintes revelarão que Dakṣa voltou a cometer uma ofensa; desta vez, aos pés de lótus de Nārada. Portanto, embora a vida sexual seja o gozo máximo no mundo material, e embora, pela graça de Deus, alguém possa ter a oportunidade de gozo sexual, a pessoa corre o risco de cometer ofensas. Dakṣa estava exposto a esse risco de ofender e, portanto, falando estritamente, não foi favorecido de fato pelo Senhor Supremo. Ninguém deve buscar o Senhor em troca do favor de obter ilimitada potência para a vida sexual.

Texto

tvatto ’dhastāt prajāḥ sarvā
mithunī-bhūya māyayā
madīyayā bhaviṣyanti
hariṣyanti ca me balim

Sinônimos

tvattaḥ — tu; adhastāt — após; prajāḥ — as entidades vivas; sarvāḥ — todas; mithunī-bhūya — tendo vida sexual; māyayā — devido à influência ou facilidades da energia ilusória; madīyayā — Minha; bhaviṣyanti — eles se tornarão; hariṣyanti — eles oferecerão; ca — também; me — a Mim; balim — presentes.

Tradução

Após gerares muitas centenas e milhares de filhos, eles também se deixarão cativar por Minha energia ilusória e, como tu, eles se ocuparão em vida sexual ativa. Porém, devido à Minha misericórdia contigo e com eles, também serão capazes de trazer presentes em devoção a Mim.

Texto

śrī-śuka uvāca
ity uktvā miṣatas tasya
bhagavān viśva-bhāvanaḥ
svapnopalabdhārtha iva
tatraivāntardadhe hariḥ

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śukadeva Gosvāmī continuou a falar; iti — assim; uktvā — dizendo; miṣataḥ tasya — enquanto ele (Dakṣa) olhava pessoalmente; bhagavān — a Suprema Personalidade de Deus; viśva-­bhāvanaḥ — que cria os afazeres universais; svapna-upalabdha-arthaḥ — um objeto obtido em sonho; iva — como; tatra — lá; eva — com certeza; antardadhe — desapareceu; hariḥ — o Senhor, a Suprema Personali­dade de Deus.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī continuou: Depois que o criador de todo o universo, a Suprema Personalidade de Deus, Hari, falou dessa maneira na presença do prajāpati Dakṣa, desapareceu imediatamente, como se fosse um objeto experimentado em sonho.

Comentário

Neste ponto, encerram-se os Significados Bhaktivedanta do sexto canto, quarto capítulo do Śrīmad-Bhāgavatam, intitulado “As Orações Haṁsa-guḥya Oferecidas ao Senhor pelo Prajāpati Dakṣa”.