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Capítulo Um

A História de Ajāmila

Ao longo do Śrīmad-Bhāgavatam, descrevem-se dez temas, incluin­do a criação, a criação subsequente e os sistemas planetários. No terceiro, quarto e quinto cantos, Śukadeva Gosvāmī, o orador do Śrīmad-Bhāgavatam, já descreveu a criação, a criação subsequente e os sistemas planetários. Agora, neste sexto canto, que possui dezenove capítulos, ele descreverá poṣaṇa, ou a proteção dada pelo Senhor.

O primeiro capítulo relata a história de Ajāmila, que, embora considerado um homem muito pecaminoso, foi liberto quando quatro mensageiros de Viṣṇu vieram resgatá-lo das mãos dos mensageiros de Yamarāja. Neste capítulo, apresenta-se uma descrição completa de como ele foi liberto, conseguindo, então, eximir-se das reações de sua vida pecaminosa. As atividades pecaminosas são dolorosas, tanto nesta vida quanto na próxima. É importante nos conscientizarmos de que a causa de todo o sofrimento é a ação pecaminosa. Quem trilha o caminho das atividades fruitivas decerto comete atividades pecaminosas, e, por­tanto, de acordo com as orientações karma-kāṇḍa, recomendam-se vários processos de expiação. Entretanto, semelhantes métodos ex­piatórios não tiram ninguém da ignorância, que é a raiz da vida pecaminosa. Por conseguinte, mesmo após se submeterem à expiação, todos têm a tendência a cometer atividades pecaminosas, o que dificulta obter a purificação. Quem segue o caminho do conheci­mento especulativo liberta-se da vida pecaminosa, compreendendo as coisas como elas são. Portanto, a aquisição de conhecimento especulativo também é considerada um método expiatório. Enquanto executa atividades fruitivas, a pessoa pode livrar-se das ações da vida pecaminosa através da austeridade, penitência, celibato, controle da mente e dos sentidos, veracidade e prática de yoga místico. Desper­tando seu conhecimento, pode também neutralizar as reações pe­caminosas. Nenhum desses métodos, contudo, pode tirar da pessoa a tendência a cometer atividades pecaminosas.

Através de bhakti-yoga, pode-se evitar por completo a tendência a se entregar à vida pecaminosa; outros métodos não são exequíveis. Portanto, a literatura védica conclui que o serviço devocional é mais importante do que os métodos de karma-kāṇḍa e jñāna-kāṇḍa. Somente o caminho do serviço devocional é auspicioso para todos. As atividades fruitivas e o conhecimento especulativo, sem outro auxílio, não podem libertar ninguém, mas o serviço devocional, que não recebe influência alguma de karma e jñāna, é tão potente que, tendo fixado sua mente aos pés de lótus de Kṛṣṇa, a pessoa tem garantia de que nem mesmo em sonhos se defrontará com os Yamadūtas, os mensageiros de Yamarāja.

Para demonstrar a força do serviço devocional, Śukadeva Gosvāmī descreve a história de Ajāmila. Ajāmila era um habitante de Kānyakubja (a moderna Kanauj). Seus pais o treinaram de modo que, estudando os Vedas e seguindo os princípios reguladores, ele se tornasse um brāhmaṇa perfeito, porém, devido ao seu passado, esse jovem brāhmaṇa certa vez se sentiu atraído por uma prostituta, e, devido à associação com ela, tornou-se muito degenerado e aban­donou todos os princípios reguladores. Ajāmila gerou no ventre da prostituta dez filhos, o último dos quais se chamava Nārāyaṇa. Na hora da morte de Ajāmila, quando os mensageiros de Yamarāja foram buscá-lo, ele, com medo, bradou o nome de Nārāyaṇa, visto que estava muito apegado ao seu filho caçula. Esse grito fez com que se lembrasse do Nārāyaṇa original, o Senhor Viṣṇu. Muito embora esse cantar do santo nome de Nārāyaṇa não fosse completamente inofensivo, surtiu efeito. Logo que ele cantou o santo nome de Nārāyaṇa, os mensageiros do Senhor Viṣṇu imediatamente apareceram em cena. Seguiu-se, então, um debate entre os mensageiros do Senhor Viṣṇu e os de Yamarāja, e, ao ouvi-lo, Ajāmila foi liberado. Ele pôde, então, compreender o resultado negativo das atividades fruitivas e também pôde entender quão elevado é o processo do serviço devocional.

Texto

śrī-parīkṣid uvāca
nivṛtti-mārgaḥ kathita
ādau bhagavatā yathā
krama-yogopalabdhena
brahmaṇā yad asaṁsṛtiḥ

Sinônimos

śrī-parīkṣit uvāca — Mahārāja Parīkṣit disse; nivṛtti-mārgaḥ — o caminho da liberação; kathitaḥ — descrito; ādau — no início; bhagavatā — por Vossa Santidade; yathā — devidamente; karma — aos poucos; yoga-upalabdhena — obtido através do processo de yoga; brahmaṇā — juntamente com o senhor Brahmā (após alcançar Brahmaloka); yat — o caminho pelo qual; asaṁsṛtiḥ — cessação da repetição de nas­cimentos e mortes.

Tradução

Mahārāja Parīkṣit disse: Ó meu senhor, ó Śukadeva Gosvāmī, já descreveste [no segundo canto] o caminho da liberação [nivṛtti­-mārga]. Quem segue este caminho decerto se eleva gradualmente ao sistema planetário mais elevado, Brahmaloka, do qual, juntamente com o senhor Brahmā, é promovido ao mundo espiritual. Assim, ele não volta a se submeter a repetidos nascimentos e mortes do mundo material.

Comentário

SIGNIFICADO—Como Mahārāja Parīkṣit era um vaiṣṇava, ao ouvir, no final do quinto canto, as descrições das diferentes condições de vida infer­nal, ficou muito interessado em como poderia libertar das garras de māyā as almas condicionadas e levá-las de volta ao lar, de volta ao Supremo. Portanto, lembrou a seu mestre espiritual, Śukadeva Gosvāmī, o nivṛtti-mārga, ou o caminho da liberação, o qual este descrevera no segundo canto. Mahārāja Parīkṣit, que na hora da morte teve a boa fortuna de se encontrar com Śukadeva Gosvāmī, indagou-lhe, então, sobre o caminho da liberação. Śukadeva Gosvāmī apreciou muitíssimo a pergunta e se congratulou com ele, dizendo:

varīyān eṣa te praśnaḥ
kṛto loka-hitaṁ nṛpa
ātmavit-sammataḥ puṁsāṁ
śrotavyādiṣu yaḥ paraḥ

“Meu querido rei, tua pergunta é gloriosa, pois beneficia muito todas as classes de pessoas. A resposta a essa pergunta é o principal tema que deve ser ouvido, e é aprovada por todos os transcendentalistas.” (Śrīmad-Bhāgavatam 2.1.1)

Parīkṣit Mahārāja estava espantado diante do fato de que, no estado condi­cionado, as entidades vivas rejeitam o caminho da liberação, o serviço devocional, preferindo sofrer em tantas condições infernais. Isso caracteriza o vaiṣṇava. Vāñchā-kalpa-tarubhyaś ca kṛpā-sindhubhya eva ca: o vaiṣṇava é um oceano de misericórdia. Para-duḥkha-duḥkhī: ele fica infeliz ao ver a infelicidade alheia. Por­tanto, Parīkṣit Mahārāja, tendo compaixão de todas as almas condicionadas que sofrem uma vida infernal, sugeriu que Śukadeva Gosvāmī continuasse descrevendo o caminho da liberação, o qual ele expuse­ra já no início do Śrīmad-Bhāgavatam. Quanto a isso, a palavra asaṁsṛti é muito importante. Saṁsṛti se refere à persistência do ca­minho de nascimentos e mortes. Asaṁsṛti, ao contrário, refere-se a nivṛtti-mārga, ou o caminho da liberação, através do qual se deixa de nascer e morrer e, aos poucos, progride-se rumo a Brahmaloka. Todavia, caso se trate de um devoto puro, que não se importa de ir aos sistemas planetários superiores, poderá imediatamente retornar ao lar, retornar ao Supremo, executando serviço devocional (tyaktvā dehaṁ punar janma naiti). Portanto, Parīkṣit Mahārāja estava muito ansioso por ouvir Śukadeva Gosvāmī falar sobre o caminho através do qual a alma condicionada alcança a liberação.

De acordo com a opinião dos ācāryas, a palavra karma-yogopa­labdhena indica que, praticando primeiramente karma-yoga e depois jñāna-yoga e chegando, por fim, à plataforma de bhakti-yoga, qualquer pessoa pode alcançar a liberação. Bhakti-yoga, entretanto, é algo tão poderoso que independe de karma-yoga ou jñāna-yoga. Por si só, o bhakti-yoga é tão poderoso que mesmo um homem ímpio e sem os recursos de karma-yoga ou iletrado e sem os recursos de jñāna­-yoga pode, sem dúvida, elevar-se ao mundo espiritual simplesmente adotando o bhakti-yoga. Mām evaiṣyasy asaṁśayaḥ. Na Bhagavad-gītā (8.7), Kṛṣṇa diz que, mediante o processo de bhakti-yoga, qualquer pessoa pode indubitavelmente voltar ao Supremo, voltar ao lar no mundo espiritual. Os yogīs, entretanto, em vez de irem diretamente ao mundo espiritual, às vezes querem conhecer outros sistemas planetários, de modo que, como se indica aqui através da pa­lavra brahmaṇā, eles se elevam ao sistema planetário onde vive o senhor Brahmā. No momento da dissolução, o senhor Brahmā, juntamente com todos os habitantes de Brahmaloka, vai diretamente para o mundo espiritual. Os Vedas confirmam isso da seguinte maneira:

brahmaṇā saha te sarve
samprāpte pratisañcare
parasyānte kṛtātmānaḥ
praviśanti paraṁ padam

“Devido à sua elevada posição, aqueles que na hora da dissolução estão em Brahmaloka voltam diretamente ao lar, diretamente ao Supremo, junto do senhor Brahmā.”

Texto

pravṛtti-lakṣaṇaś caiva
traiguṇya-viṣayo mune
yo ’sāv alīna-prakṛter
guṇa-sargaḥ punaḥ punaḥ

Sinônimos

pravṛtti — pela inclinação; lakṣaṇaḥ — caracterizados; ca — também; eva — na verdade; trai-guṇya — os três modos da natureza; viṣayaḥ — possuindo como objetivos; mune — ó grande sábio; yaḥ — os quais; asau — isto; alīna-prakṛteḥ — daquele que não está livre das garras de māyā; guṇa-sargaḥ — nos quais existe a criação de corpos materiais; punaḥ punaḥ — repetidas vezes.

Tradução

Ó grande sábio Śukadeva Gosvāmī, enquanto não estiver livre da contaminação dos modos materiais da natureza, a entidade viva receberá diferentes espécies de corpos, nos quais desfruta ou sofre, e, de acordo com o corpo, ela adquire diferentes inclinações. Seguindo essas inclinações, ela atravessa o caminho chamado pravṛtti-mārga, mediante o qual pode elevar-se aos planetas celestiais, como já descreveste [no terceiro canto].

Comentário

SIGNIFICADO— Como o Senhor Kṛṣṇa explica na Bhagavad-gītā (9.25):

yānti deva-vratā devān
pitṝn yānti pitṛ-vratāḥ
bhūtāni yānti bhūtejyā
yānti mad-yājino ’pi mām

“Aqueles que adoram os semideuses nascerão entre os semideuses, aqueles que adoram os ancestrais irão ter com os ancestrais, aqueles que adoram os fantasmas e espíritos nascerão entre tais seres, e aqueles que Me adoram viverão coMigo.” Devido à influência dos vários modos da natureza, as entidades vivas têm várias tendências ou propensões, daí diferentes destinos serem reservados para cada uma delas. Enquanto alguém mantiver apegos materiais, ele desejará elevar-se aos planetas celestiais, pois sente atração pelo mundo material. Entretanto, a Suprema Personalidade de Deus declara: “Aqueles que Me adoram virão a Mim.” Se alguém não tem informações sobre o Senhor Supremo e Sua morada, tenta elevar-se apenas a uma posição material superior, mas, ao concluir que neste mundo material tudo não passa de repetidos nascimentos e mortes, ele procurará regressar ao lar, regressar ao Supremo. Se ele alcança esse destino, nunca mais precisará voltar a este mundo material (yad gatvā na nivartante tad dhāma paramaṁ mama). Como Śrī Caitanya Mahāprabhu diz no Caitanya-caritāmṛta (Madhya 19.151):

brahmāṇḍa bhramite kona bhāgyavān jīva
guru-kṛṣṇa-prasāde pāya bhakti-latā-bīja

“De acordo com seu karma, todas as entidades vivas vagueiam por todo o universo. Algumas delas se elevam aos sistemas planetários superiores, e outras mergulham em direção aos sistemas planetários inferiores. Entre muitos milhões de entidades vivas errantes, aquela que é muito afortunada recebe a oportunidade de, pela graça de Kṛṣṇa, associar-se com um mestre espiritual fidedigno. Pela miseri­córdia de Kṛṣṇa e do mestre espiritual, tal pessoa recebe a semente da trepadeira do serviço devocional.” Todas as entidades vivas estão divagando pelo universo, ora indo aos sistemas planetários superiores, ora descendo aos planetas inferiores. Essa é a doença material, conhecida como pravṛtti-mārga. Quando alguém se torna inteligente, adota nivṛtti-marga, o caminho da liberação, e assim, em vez de perambular por este mundo material, retorna ao lar, retorna ao Supremo. Isso é necessário.

Texto

adharma-lakṣaṇā nānā
narakāś cānuvarṇitāḥ
manvantaraś ca vyākhyāta
ādyaḥ svāyambhuvo yataḥ

Sinônimos

adharma-lakṣaṇāḥ — caracterizados por atividades ímpias; nānā — vários; narakāḥ — infernos; ca — também; anuvarṇitāḥ — foram descritos; manu-antaraḥ — a mudança de Manus [em um dia de Brahmā existem quatorze Manus]; ca — também; vyākhyātaḥ — foi descrito; ādyaḥ — o original; svāyambhuvaḥ — diretamente o filho do senhor Brahmā; yataḥ — onde.

Tradução

Também descreveste [no final do quinto canto] as variedades de vida infernal decorrentes de atividades ímpias, e descreveste [no quarto canto] o primeiro manvantara, ao qual Svāyambhuva Manu, filho do senhor Brahmā, presidiu.

Texto

priyavratottānapador
vaṁśas tac-caritāni ca
dvīpa-varṣa-samudrādri-
nady-udyāna-vanaspatīn
dharā-maṇḍala-saṁsthānaṁ
bhāga-lakṣaṇa-mānataḥ
jyotiṣāṁ vivarāṇāṁ ca
yathedam asṛjad vibhuḥ

Sinônimos

priyavrata — de Priyavrata; uttānapadoḥ — e de Uttānapāda; vaṁśaḥ — a dinastia; tat-caritāni — suas características; ca — também; dvīpa — diferentes planetas; varṣa — terras; samudra — oceanos e mares; adri — montanhas; nadī — rios; udyāna — jardins; vanaspatīn — e árvores; dharā-maṇḍala — do planeta Terra; saṁsthānam — situação; bhāga — de acordo com a distribuição; lakṣaṇa — diferentes caracte­rísticas; mānataḥ — e medidas; jyotiṣām — no Sol e outros luzeiros; vivarāṇām — dos sistemas planetários inferiores; ca — e; yathā — como; idam — isto; asṛjat — criou; vibhuḥ — a Suprema Personalidade de Deus.

Tradução

Meu querido senhor, descreveste as dinastias e características do rei Priyavrata e do rei Uttānapāda. Ao criar este mundo material, a Suprema Personalidade de Deus colocou nele vários universos, sistemas planetários, planetas e estrelas, terras variadas, mares, oceanos, montanhas, rios, jardins e árvores, todos com diferentes características. Tudo isso se distribui entre este planeta Terra, os luzeiros no céu e os sistemas planetários inferiores. Já descreveste muito claramente esses planetas e as entidades vivas que os habitam.

Comentário

SIGNIFICADO—Nesta passagem, as palavras yathedam asṛjad vibhuḥ indicam claramente que o Supremo, a grandiosa e onipotente Personalidade de Deus, criou todo este mundo material com suas diferentes varieda­des de planetas, estrelas e assim por diante. Os ateístas tentam es­conder a mão de Deus, presente em toda criação, mas não conseguem explicar como é que todas essas criações passaram a existir sem uma inteligência competente e uma autoridade onipotente para respon­der por elas. A simples imaginação ou especulação são desperdício de tempo. Na Bhagavad-gītā (10.8), o Senhor diz que ahaṁ sarvasya prabhavo: “Eu sou a origem de tudo.” Mattaḥ sarvaṁ pravartate: “Tudo o que existe na criação emana de Mim.” Iti matvā bhajante māṁ budhā bhāva-samanvitāḥ: “Quando alguém entende perfeitamente que Eu crio tudo através de Minha onipotência, situa-se firmemente em serviço devocional e rende-se por completo aos Meus pés de lótus.” Infelizmente, é muito difícil que pessoas sem inteligência compreendam a supremacia de Kṛṣṇa. Entretanto, caso se associem com devotos e leiam os livros autorizados, podem gradualmente chegar à compreensão adequada, embora isso possa levar muitos e muitos nascimentos. Como Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā (7.19):

bahūnāṁ janmanām ante
jñānavān māṁ prapadyate
vāsudevaḥ sarvam iti
sa mahātmā sudurlabhaḥ

“Após muitos nascimentos e mortes, aquele que tem verdadeiro conhecimento rende-se a Mim, sabendo que sou a causa de todas as causas e de tudo o que existe. É muito raro encontrar semelhante grande alma.” Vāsudeva, Kṛṣṇa, é o criador de tudo, e Sua energia se manifesta de várias maneiras. Como se explica na Bhagavad-gītā (7.4-5), uma combinação da energia material (bhūmir āpo ’nalo vāyuḥ) e da energia espiritual, a entidade viva, existe em toda criação. Portanto, o mesmo princípio, a combinação do espírito supremo e dos elemen­tos materiais, é a causa da manifestação cósmica.

Texto

adhuneha mahā-bhāga
yathaiva narakān naraḥ
nānogra-yātanān neyāt
tan me vyākhyātum arhasi

Sinônimos

adhunā — agora mesmo; iha — neste mundo material; mahā-­bhāga — ó opulentíssimo e afortunado Śukadeva Gosvāmī; yathā — de modo que; eva — na verdade; narakān — todas as condições infernais em que os ímpios são postos; naraḥ — seres humanos; nānā — variedades de; ugra — terríveis; yātanān — condições de sofri­mento; na īyāt — não precisem submeter-se a; tat — isto; me — a mim; vyākhyātum arhasi — por favor, descreve.

Tradução

Ó afortunadíssimo e opulento Śukadeva Gosvāmī, agora, por favor, dize-me como os seres humanos podem evitar condições infernais em que sofrem dores terríveis.

Comentário

SIGNIFICADO—No vigésimo sexto capítulo do quinto canto, Śukadeva Gosvāmī explica que as pessoas que cometem atos pecaminosos são forçadas a entrar nos planetas infernais para então sofrer. Agora, Mahārāja Parīkṣit, sendo um devoto, está interessado em como isso pode ser evitado. O vaiṣṇava é para-duḥkha-duḥkhī, em outras palavras, ele não tem contratempos pessoais, mas fica muito infeliz ao ver os outros em apuros. Prahlāda Mahārāja disse: “Meu Senhor, não tenho problemas pessoais, pois aprendi a glorificar Vossas qualida­des transcendentais e, em virtude disso, posso ficar em transe extático. Todavia, há um problema que me aflige, pois preocupo-me com esses tolos e patifes que, ocupados com māyā-sukha, a felicidade temporária, não prestam serviço devocional a Vós.” Esse é o problema com o qual o vaiṣṇava se defronta. Como se refugia por completo na Suprema Personalidade de Deus, o vaiṣṇava não tem problemas pessoais, mas, sendo muito compassivo com as almas caídas e condicionadas, ele sempre cogita planos para salvá-las de suas vidas infernais neste corpo e no próximo. Portanto, Parīkṣit Mahārāja anelava que Śukadeva Gosvāmī lhe revelasse como é que a humanidade poderia evitar de deslizar para o inferno. Śukadeva Gosvāmī já explicara como é que as pessoas entram na vida infernal, e também poderia explicar como elas poderiam salvar-se disso. Os homens inteligentes devem tirar proveito dessas instruções. Infelizmente, no entanto, o mundo inteiro carece de consciência de Kṛṣṇa, daí as pessoas sofrerem da mais crassa ignorância e nem mesmo acreditarem que exista vida após esta. Convencê-las de que sua próxima vida existe é muito difícil porque elas se tornaram quase loucas ao se entregarem à busca do gozo material. Entretanto, nosso dever, o dever de todo homem são, é salvá-las. Mahārāja Parīkṣit é o representante daquele que pode salvá-las.

Texto

śrī-śuka uvāca
na ced ihaivāpacitiṁ yathāṁhasaḥ
kṛtasya kuryān mana-ukta-pāṇibhiḥ
dhruvaṁ sa vai pretya narakān upaiti
ye kīrtitā me bhavatas tigma-yātanāḥ

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrīla Śukadeva Gosvāmī disse; na — não; cet — se; iha — dentro desta vida; eva — decerto; apacitim — anulação, expiação; yathā — necessária; aṁhasaḥ kṛtasya — quando alguém exe­cutou atividades pecaminosas; kuryāt — realiza; manaḥ — com a mente; ukta — palavras; pāṇibhiḥ — e com os sentidos; dhruvam — sem dúvidas; saḥ — essa pessoa; vai — na verdade; pretya — após a morte; narakān — diferentes variedades de condições infernais; upaiti — alcança; ye — as quais; kīrtitāḥ — já foram descritas; me — por mim; bhavataḥ — a ti; tigma-yātanāḥ — nas quais há sofrimentos muito terríveis.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī respondeu: Meu querido rei, se antes da próxima morte, a pessoa, através de expiação adequada conforme descrita na Manu-saṁhitā e em outros dharma-śāstras, não anula todos os atos impiedosos que, durante esta vida, tenha executado com sua mente, palavras e corpo, ela com certeza será admitida entre os planetas infernais após a morte, onde terá de se submeter a terríveis sofrimentos, como já te descrevi anteriormente.

Comentário

SIGNIFICADO—Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura menciona que, embora Mahārāja Parīkṣit fosse um devoto puro, Śukadeva Gosvāmī não lhe falou imediatamente a respeito da força do serviço devocional. Como se afirma na Bhagavad-gītā (14.26):

māṁ ca yo ’vyabhicāreṇa
bhakti-yogena sevate
sa guṇān samatītyaitān
brahma-bhūyāya kalpate

O serviço devocional é tão forte que, se alguém se rende por completo a Kṛṣṇa e adota irrestritamente o Seu serviço devocional, as reações de sua vida pecaminosa cessam de imediato.

Em outra passagem da Gītā (18.66), o Senhor Kṛṣṇa insta a pessoa a abandonar todos os outros deveres e a se render a Ele, e promete que ahaṁ tvāṁ sarva-pāpebhyo mokṣayiṣyāmi: “Eu te livrarei de todas as reações pecaminosas e te darei a liberação.” Portanto, em resposta às perguntas de Parīkṣit Mahārāja, Śukadeva Gosvāmī, seu guru, poderia imediatamente ter-lhe explicado os princípios de bhakti, mas, para testar a inteligência de Parīkṣit Mahārāja, ele descreveu por primeiro a expiação de acordo com karma-kāṇḍa, o caminho das atividades fruitivas. Existem oitenta escrituras autorizadas que tratam de karma-kāṇḍa, tais como a Manu-saṁhitā, as quais são co­nhecidas como dharma-śāstras. Essas escrituras aconselham a pessoa a anular seus atos pecaminosos executando outras espécies de ações fruitivas. Esse foi o primeiro caminho que Śukadeva Gosvāmī reco­mendou a Mahārāja Parīkṣit, e o fato é que quem não adota o ser­viço devocional deve seguir os preceitos dessas escrituras e executar atos piedosos para anular suas atividades ímpias. Isso é conhecido como expiação.

Texto

tasmāt puraivāśv iha pāpa-niṣkṛtau
yateta mṛtyor avipadyatātmanā
doṣasya dṛṣṭvā guru-lāghavaṁ yathā
bhiṣak cikitseta rujāṁ nidānavit

Sinônimos

tasmāt — portanto; purā — antes de; eva — na verdade; āśu — bem depressa; iha — nesta vida; pāpa-niṣkṛtau — livrar-se da reação das atividades pecaminosas; yateta — a pessoa deve esforçar-se por; mṛtyoḥ — morte; avipadyata — não afligido pela doença e pela velhice; ātmanā — com um corpo; doṣasya — das atividades pecaminosas; dṛṣṭvā — calculando; guru-lāghavam — pouco ou muito peso; yathā — assim como; bhiṣak — um médico; cikitseta — trataria; rujām — a doença; nidāna-vit — aquele que é hábil em fazer diagnóstico.

Tradução

Portanto, antes que a morte venha, enquanto o corpo é bastante forte, a pessoa deve rapidamente adotar o processo de expiação, conforme recomendado nos śāstras; caso contrário, perderá seu tempo, e as reações de seus pecados se agravarão. Assim como um médico hábil diagnostica e trata a doença de acordo com a gravidade desta, a pessoa deve submeter-se à expiação de acordo com a intensidade de seus pecados.

Comentário

SIGNIFICADO—Os dharma-śāstras, tais como a Manu-saṁhitā, prescrevem que o homem que tenha cometido assassinato deve ser enforcado para que sua própria vida seja sacrificada em expiação. Outrora, adotava-­se este sistema em todo o mundo, mas, como estão se tornando ateístas, as pessoas estão abolindo a pena capital. Isso não é sinal de inteligência. Aqui se declara que o médico que sabe diagnosticar uma doença prescreve remédios adequados. Se a doença é muito séria, o remédio tem que ser forte. O peso do pecado de um assassino é muito grande, de maneira que, de acordo com a Manu-saṁhitā, um as­sassino deve ser morto. Matando o assassino, o governo mostra ser misericordioso para com ele porque, se o assassino não for morto nesta vida, será morto e forçado a passar por muitos sofrimentos em vidas futuras. Como nada sabem sobre a próxima vida e os in­trincados processos da natureza, as pessoas inventam suas próprias leis, quando, na verdade, deveriam consultar apropriadamente os preceitos estabelecidos nos śāstras e agir com base nesse conhecimen­to. Na Índia, mesmo hoje em dia, a comunidade hindu frequente­mente recebe conselhos de hábeis eruditos, a respeito de como anular as atividades pecaminosas. No cristianismo, também existe o processo de confissão e expiação. Portanto, a expiação é necessária, e deve ser aplicada de acordo com a gravidade dos pecados.

Texto

śrī-rājovāca
dṛṣṭa-śrutābhyāṁ yat pāpaṁ
jānann apy ātmano ’hitam
karoti bhūyo vivaśaḥ
prāyaścittam atho katham

Sinônimos

śrī-rājā uvāca — Parīkṣit Mahārāja respondeu; dṛṣṭa — vendo; śru­tābhyām — também ouvindo (descrição das escrituras ou dos livros de leis); yat — uma vez que; pāpam — ação pecaminosa e criminosa; jānan — conhecendo; api — embora; ātmanaḥ — a seu eu; ahitam — prejudicial; karoti — ele age; bhūyaḥ — vezes e mais vezes; vivaśaḥ — incapaz de controlar-se; prāyaścittam — expiação; atho — portanto; katham — qual o valor de.

Tradução

Mahārāja Parīkṣit disse: Pode ser que alguém saiba que a atividade pecaminosa lhe é prejudicial, pois ele realmente vê que um criminoso é punido pelo governo e hostilizado pelas pessoas em geral e porque fica sabendo através das escrituras e dos sábios eruditos que quem comete atos pecaminosos é atirado em condições infernais na próxima vida. Entretanto, apesar de ter esse conhecimento, ele é impelido a cometer pecados vezes e mais vezes, mesmo após executar atos de expiação. Portanto, de que adianta tal expiação?

Comentário

SIGNIFICADO—Em algumas seitas religiosas, o homem pecaminoso procura o sacerdote e confessa seus atos pecaminosos e recebe uma penitência, mas depois ele volta a cometer os mesmos pecados e vai confessá-los outra vez. Esta prática define os pecadores profissionais. As observações de Mahārāja Parīkṣit denotam que, mesmo há cinco mil anos, os criminosos costumavam expiar seus crimes, mas depois voltavam a cometer os mesmos crimes, como se algo os impelisse a agir assim. Portanto, devido à sua experiência prática, Parīkṣit Mahārāja obser­vou que o processo de repetidamente pecar e expiar é descabido. Não importa quantas vezes alguém seja punido; se ele estiver apegado ao gozo dos sentidos, ficará cometendo atos pecaminosos até que seja treinado a se restringir de satisfazer seus sentidos. Utiliza-se aqui a palavra vivaśa, indicando que, por hábito, alguém é impelido a cometer atos pecaminosos, mesmo não querendo adotar esse comportamen­to. Portanto, Parīkṣit Mahārāja considerou que o processo de ex­piação tem pouco valor em livrar alguém da prática de atos pecaminosos. No verso seguinte, ele continua explicando por que rejeita esse processo.

Texto

kvacin nivartate ’bhadrāt
kvacic carati tat punaḥ
prāyaścittam atho ’pārthaṁ
manye kuñjara-śaucavat

Sinônimos

kvacit — às vezes; nivartate — cessa; abhadrāt — as atividades pecaminosas; kvacit — às vezes; carati — comete; tat — isso (atividades pecaminosas); punaḥ — novamente; prāyaścittam — o processo de expiação; atho — portanto; apārtham — inútil; manye — considero; kuñjara-śaucavat — exatamente como o banho do elefante.

Tradução

Às vezes, alguém que faz tudo para não cometer atos pecaminosos é novamente envolvido pela vida pecaminosa. Portanto, considero que esse processo de repetidos pecados e expiações é inútil. É como um banho de elefante, pois o elefante se limpa tomando um banho completo, porém, logo que retorna à terra, joga poeira sobre todo o seu corpo.

Comentário

SIGNIFICADO—Quando Parīkṣit Mahārāja perguntou como é que o ser humano poderia libertar-se das atividades pecaminosas e, então, evitar ir aos sistemas planetários infernais após a morte, Śukadeva Gosvāmī respondeu que se anula a vida pecaminosa através do processo da expiação. Desse modo, Śukadeva Gosvāmī testou a inteligência de Mahārāja Parīkṣit, que passou no exame ao se recusar a aceitar esse processo como genuíno. Agora, Parīkṣit Mahārāja espera outra resposta de Śukadeva Gosvāmī, seu mestre espiritual.

Texto

śrī-bādarāyaṇir uvāca
karmaṇā karma-nirhāro
na hy ātyantika iṣyate
avidvad-adhikāritvāt
prāyaścittaṁ vimarśanam

Sinônimos

śrī-bādarāyaniḥ uvāca — Śukadeva Gosvāmī, o filho de Vyāsadeva, respondeu; karmaṇā — através das atividades fruitivas; karma-nirhāraḥ — anulação das atividades fruitivas; na — não; hi — na verdade; ātyantikaḥ — definitiva; iṣyate — torna-se possível; avidvat-adhikāritvāt — àquele que está sem conhecimento; prāyaścittam — expiação verdadeira; vimarśanam — pleno conhecimento do vedānta.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī, o filho de Vedavyāsa, respondeu: Meu querido rei, como os atos destinados a neutralizar as ações impiedosas também são fruitivos, eles não tirarão de ninguém a tendência a executar atividades fruitivas. Aqueles que se sujeitam às regras e regulações da expiação não são nada inteligentes. Na verdade, eles estão no modo da escuridão. Enquanto alguém não conseguir libertar-se do modo da ignorância, tentar valer-se de uma ação para neutralizar outra será inútil, pois isso não extirpará seus desejos. Assim, muito embora a pessoa superficialmente pareça piedosa, ela sem dúvida terá a tendência a agir de maneira ímpia. Portanto, realiza verdadeira expiação quem se ilumina em conhecimento perfeito, vedānta, através do qual ele passa a entender a Suprema Verdade Absoluta.

Comentário

SIGNIFICADO—Śukadeva Gosvāmī testou seu discípulo Parīkṣit Mahārāja, e pa­rece que o rei passou em uma fase do exame, rejeitando o processo de expiação por este envolver atividades fruitivas. Agora, Śukadeva Gosvāmī apresenta a plataforma de conhecimento especulativo. Progredindo de karma-kāṇḍa a jñāna-kāṇḍa, ele propõe que prāyaścittaṁ vimarśanam: “Verdadeira expiação é ter conhecimento completo.” Vimarśana refere-se ao cultivo de conhecimento especulativo. Na Bhagavad-gītā, os karmīs, que são desprovidos de conhecimento, são comparados a asnos. Na Bhagavad-gītā (7.15), Kṛṣṇa diz:

na māṁ duṣkṛtino mūḍhāḥ
prapadyante narādhamāḥ
māyayāpahṛta-jñānā
āsuraṁ bhāvam āśritāḥ

“Os canalhas que são grosseiramente tolos, que são os mais baixos da humanidade, cujo conhecimento é roubado pela ilusão e que compartilham da natureza ateísta dos demônios, não se rendem a Mim.” Portanto, os karmīs que se ocupam em atos pecaminosos e não co­nhecem o verdadeiro objetivo da vida são chamados de mūḍhas, asnos. Entretanto, também se explica o que é vimarśana na Bhagavad-gītā (15.15), onde Kṛṣṇa diz que vedaiś ca sarvair aham eva vedyaḥ: o propósito de se estudar os Vedas é compreender a Suprema Personalidade de Deus. Se alguém estuda o Vedānta, mas simplesmente se aprofunda em conhecimento especulativo e não compreende o Senhor Supremo, permanece o mesmo mūḍha. Como se afirma na Bhagavad-gītā (7.19), alcança verdadeiro conhecimento quem compreende Kṛṣṇa e se rende a Ele (bahūnāṁ janmanām ante jñāna­vān māṁ prapadyate). Portanto, para se tornar erudito e se livrar da contaminação material, deve-se tentar entender Kṛṣṇa, pois quem age assim imediatamente se liberta de todas as atividades piedosas e impiedosas e das reações que lhes são decorrentes.

Texto

nāśnataḥ pathyam evānnaṁ
vyādhayo ’bhibhavanti hi
evaṁ niyamakṛd rājan
śanaiḥ kṣemāya kalpate

Sinônimos

na — não; aśnataḥ — aqueles que comem; pathyam — adequado; eva — na verdade; annam — alimento; vyādhayaḥ — diferentes espécies de doença; abhibhavanti — superam; hi — na verdade; evam — do mesmo modo; niyama-kṛt — aquele que segue princípios reguladores; rājan — ó rei; śanaiḥ — gradualmente; kṣemāya — de obter o bem-estar; kalpate — torna-se capaz.

Tradução

Meu querido rei, se um doente come alimentos puros e não contaminados, prescritos pelo médico, pouco a pouco ele se cura, e a infecção da doença não pode mais afetá-lo. De modo semelhante, se alguém segue os princípios reguladores do conhecimento, progride gradualmente rumo à etapa em que se liberta da contaminação material.

Comentário

SIGNIFICADO—Quem cultiva conhecimento, mesmo que seja através de especula­ção mental, e segue à risca os princípios reguladores prescritos nos śāstras e explicados no verso seguinte, purifica-se gradualmente. Portanto, a plataforma de jñāna, conhecimento especulativo, é melhor do que a plataforma de karma, ação fruitiva. Na plataforma de karma, existe sempre o perigo de cair em condições infernais, mas na plataforma de jñāna, embora ainda não esteja completamente livre da infecção, a pessoa se salva da vida infernal. A difi­culdade é que quem alcança a plataforma de jñāna pensa que se libertou e que se tornou Nārāyaṇa, ou Bhagavān. Essa é outra fase de ignorância.

ye ’nye ’ravindākṣa vimukta-māninas
tvayy asta-bhāvād aviśuddha-buddhayaḥ
āruhya kṛcchreṇa paraṁ padaṁ tataḥ
patanty adho ’nādṛta-yuṣmad-aṅghraya

Devido à ignorância, a pessoa especuladora se julga livre da contaminação material, embora não seja de fato. Portanto, mesmo que se eleve a brahma-jñāna, a compreensão do Brahman, ela ainda cai, visto que não se refugiou aos pés de lótus de Kṛṣṇa. Não obstante, os jñānīs sabem ao menos o que é pecaminoso e o que é piedoso, e têm muito cuidado em agir de acordo com os preceitos dos śāstras.

Texto

tapasā brahmacaryeṇa
śamena ca damena ca
tyāgena satya-śaucābhyāṁ
yamena niyamena vā
deha-vāg-buddhijaṁ dhīrā
dharmajñāḥ śraddhayānvitāḥ
kṣipanty aghaṁ mahad api
veṇu-gulmam ivānalaḥ

Sinônimos

tapasā — através de austeridade ou rejeição voluntária do gozo material; brahmacaryeṇa — através do celibato (a primeira austeridade); śamena — através de controlar a mente; ca — e; damena — através do controle irrestrito dos sentidos; ca — também; tyāgena — através de voluntariamente dar caridade em prol de boas causas; satya — através da veracidade; śaucābhyām — e por seguir os princípios reguladores a fim de se manter limpo interna e externamente; yamena — evitando a maldição e a violência; niyamena — cantando regularmente o santo nome do Senhor; — e; deha-vāk-buddhijam – executadas com o corpo, palavras e inteligência; dhīrāḥ — aqueles que são sóbrios; dharma-jñāḥ — plenamente imbuídos de conhecimento dos princípios religiosos; śraddhayā anvitāḥ — dotados de fé; kṣipanti — destroem; agham — toda espécie de atividades pecaminosas; mahat api — embora muito grandes e abomináveis; veṇu-gulmam — as trepadeiras secas sob um bambuzal; iva — como; analaḥ — fogo.

Tradução

Para concentrar a mente, a pessoa deve manter uma vida celibatária e jamais cair. Ela deve submeter-se à austeridade de abandonar voluntariamente o gozo dos sentidos. Deve, então, controlar a mente e os sentidos, fazer caridade, ser veraz, limpa e não-violenta, seguir os princípios reguladores e cantar com regularidade o santo nome do Senhor. Assim, quem é sóbrio e fiel e conhece os princípios religiosos purifica-se temporariamente de todos os pecados cometidos com o corpo, palavras e mente. Esses pecados são como as folhas secas de trepadeiras que estão sob um bambuzal. Embora essas trepadeiras possam ser queimadas pelo fogo, não perdem suas raízes, as quais brotarão mais uma vez tão logo haja a oportunidade. 

Comentário

SIGNIFICADO—O smṛti-śāstra explica tapaḥ da seguinte maneira, manasaś cendriyāṇāṁ ca aikāgryaṁ paramaṁ tapaḥ: “O controle completo da mente e dos sentidos e sua completa concentração em uma espécie de atividade se chama tapaḥ.” O nosso movimento da consciência de Kṛṣṇa está ensinando às pessoas como concentrar a mente no serviço devocional. Isso é tapaḥ de primeira classe. Brahmacarya, a vida de celibato, tem oito aspectos. A pessoa não deve pensar em mulheres, falar sobre vida sexual, flertar com mulheres, olhar lu­xuriosamente para mulheres, falar intimamente com mulheres ou decidir manter relações sexuais, tampouco deve esforçar-se em cul­tivar vida sexual ou entregar-se à vida sexual. Se a pessoa não deve nem mesmo pensar em mulheres ou olhar para elas, o que dizer, então, de conver­sar com elas? Isso se chama brahmacarya de primeira classe. Se um brahmacārī ou um sannyāsī fala com uma mulher em um lugar afas­tado, naturalmente haverá a possibilidade de um caso sexual sem o conhecimento de ninguém. Portanto, o brahmacārī perfeito faz exatamente o oposto. Quem é um brahmacārī exemplar tem muita faci­lidade em controlar a mente e os sentidos, fazer atos de caridade, falar verazmente e assim por diante. Entretanto, para começo, deve-­se controlar a língua e o desejo de comer.

Em bhakti-marga, o caminho do serviço devocional, a pessoa deve seguir estritamente os princípios reguladores, controlando primeiramente a língua (sevonmukhe hi jihvādau svayam eva sphuraty adaḥ). É capaz de controlar a língua (jihvā) quem canta o mahā-mantra Hare Kṛṣṇa, fala apenas sobre assuntos referentes a Kṛṣṇa e saboreia apenas aquilo que é oferecido a Kṛṣṇa. Se alguém pode controlar a língua dessa maneira, brahmacarya e outros processos purificató­rios se sucederão automaticamente. No verso seguinte, será explicado que o caminho do serviço devocional é completamente perfeito e, por­tanto, superior ao caminho das atividades fruitivas e ao caminho do conhecimento. Citando os Vedas, Śrīla Vīrarāghava Ācārya ex­plica que austeridade inclui a prática do jejum da maneira mais com­pleta possível (tapasānāśakena). Śrīla Rūpa Gosvāmī também ensina que atyāhāra, comer demais, é um impedimento ao avanço na vida espiritual. E Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā (6.17):

yuktāhāra-vihārasya
yukta-ceṣṭasya karmasu
yukta-svapnāvabodhasya
yogo bhavati duḥkha-hā

“Aquele que é regulado em seus hábitos de comer, dormir, divertir-se e trabalhar pode mitigar todas as dores materiais, praticando o sistema de yoga.”

No verso 14, a palavra dhīrāḥ, que significa “aqueles que não se perturbam em circunstância alguma”, é muito expressiva. Na Bhagavad-gītā (2.14), Kṛṣṇa diz a Arjuna:

mātrā-sparśās tu kaunteya
śītoṣṇa-sukha-duḥkha-dāḥ
āgamāpāyino ’nityās
tāṁs titikṣasva bhārata

“Ó filho de Kuntī, o aparecimento temporário da felicidade e da aflição, e o seu desaparecimento no devido tempo, são como o aparecimento e o desaparecimento das estações de inverno e verão. Eles surgem da percepção sensorial, ó descendente de Bharata, e é preciso aprender a tolerá-los sem se perturbar.” Na vida material, existem muitas perturbações (adhyātmika, adhidaivika e adhibhautika). Quem sabe tolerar as perturbações em todas as circunstâncias se chama dhīra.

Texto

kecit kevalayā bhaktyā
vāsudeva-parāyaṇāḥ
aghaṁ dhunvanti kārtsnyena
nīhāram iva bhāskaraḥ

Sinônimos

kecit — algumas pessoas; kevalayā bhaktyā — executando serviço devocional imaculado; vāsudeva — ao Senhor Kṛṣṇa, a onipenetran­te Suprema Personalidade de Deus; parāyaṇāḥ — completamente apegadas (apenas a tal serviço, independente de austeridades, penitências, cultivo de conhecimento ou atividades piedosas); agham — todas as classes de reações pecaminosas; dhunvanti — destroem; kārtsnyena — por completo (sem possibilidade de que os desejos pecaminosos revivam); nīhāram — nevoeiro; iva — como; bhāskaraḥ — o Sol.

Tradução

São raras as pessoas que tenham adotado o serviço devocional ir­restrito e imaculado a Kṛṣṇa. Somente elas podem desarraigar as ervas daninhas das ações pecaminosas sem a possibilidade de que elas revivam. Tais pessoas podem fazer isso simplesmente executando serviço devocional, assim como, através de seus raios, o Sol pode, de imediato, dissipar o nevoeiro.

Comentário

SIGNIFICADO—No verso anterior, Śukadeva Gosvāmī deu o exemplo de que, embora as folhas secas das trepadeiras sob um bambuzal venham a ser inteiramente queimadas pelo fogo, as trepadeiras podem brotar novamente porque a raiz ainda está fincada no chão. Do mesmo modo, como a raiz do desejo pecaminoso não é destruída no cora­ção de alguém que, embora cultive conhecimento, não se interessa pelo serviço devocional, existe a possibilidade de que seus desejos pecami­nosos reapareçam. Como se afirma no Śrīmad-Bhāgavatam (10.14.4):

śreyaḥ-sṛtiṁ bhaktim udasya te vibho
kliśyanti ye kevala-bodha-labdhaye

Os especuladores que se submetem a uma grande fadiga para poderem compreender meticulosamente o mundo material, distinguindo as atividades pecaminosas das piedosas, mas que não estão situados em serviço devocional, tendem às atividades materiais. Eles podem cair e se envolverem com atividades fruitivas. Entretanto, se alguém se apega ao serviço devocional, seus desejos de gozo material são automaticamente aniquilados, sem nenhum outro esforço de sua parte. Bhaktiḥ pareśānubhavo viraktir anyatra ca: para quem é avançado em consciência de Kṛṣṇa, as atividades materiais, tanto pecaminosas quanto piedosas, automaticamente se tornam insípidas. Esse é o teste da consciência de Kṛṣṇa. Tanto as atividades piedosas quanto as impiedosas realmente se devem à ignorância, pois a entidade viva serva eterna de Kṛṣṇa não preci­sa agir para o gozo dos seus sentidos pessoais. Portanto, logo que alguém se reintegra na plataforma de serviço devocional livra-se de seu apego a atividades piedosas e impiedosas e passa a preocupar-se unicamente com aquilo que dará prazer a Kṛṣṇa. Esse processo de bhakti, serviço devocional a Kṛṣṇa (vāsudeva-parāyaṇa), liberta a pessoa das reações de todas as atividades.

Uma vez que Mahārāja Parīkṣit era um grande devoto, as respostas de seu guru, Śukadeva Gosvāmī, em que este mencionava karma-kāṇḍa e jñãna-kāṇḍa, não puderam satisfazê-lo. Portanto, Śukadeva Go­svāmī, conhecendo muito bem o coração de seu discípulo, expôs a bem-aventurança transcendental do serviço devocional. A palavra kecit, que é usada neste verso, significa: “Poucas pessoas, mas não todas.” Nem todos podem se tornar conscientes de Kṛṣṇa. Como Kṛṣṇa explica na Bhagavad-gītā (7.3):

manuṣyāṇāṁ sahasreṣu
kaścid yatati siddhaye
yatatām api siddhānāṁ
kaścin māṁ vetti tattvataḥ

“Dentre muitos milhares de homens, talvez haja um que se esforce para obter a perfeição, e dentre aqueles que alcançaram a perfeição, é difícil encontrar um que Me conheça de verdade.” Praticamente, ninguém entende Kṛṣṇa como Ele é, pois Kṛṣṇa não pode ser compreendido através de ativi­dades piedosas ou através da aquisição de conhecimento especulativo, por mais elevado que seja esse conhecimento. Na verdade, o conhe­cimento mais elevado consiste em compreender Kṛṣṇa. Os homens sem inteligência que não compreendem Kṛṣṇa são grosseiramente arrogantes, julgando que são liberados ou que se tornaram Kṛṣṇa ou Nārāyaṇa. Isso é ignorância.

Para mostrar a pureza de bhakti, o serviço devocional, Śrīla Rūpa Gosvāmī diz no Bhakti-rasāmṛta-sindhu (1.1.11):

anyābhilāṣitā-śūnyaṁ
jñāna-karmādy-anāvṛtam
ānukūlyena kṛṣṇānu-
śīlanaṁ bhaktir uttamā

“É com atitude favorável e sem desejo de lucro ou ganho material alcançado através de atividades fruitivas ou especulação filosófica que se deve prestar serviço transcendental amoroso ao Supremo Senhor Kṛṣṇa. Isto se chama serviço devocional puro.” Continuando sua explica­ção, Śrīla Rūpa Gosvāmī afirma que bhakti é kleśaghnī subhadā, o que significa que, se alguém adota o serviço devocional, toda classe de esforços desnecessários e aflições materiais cessa inteiramente e ele alcança toda a boa fortuna. Bhakti é tão poderosa que também é conhecida como mokṣa-laghutākṛt; em outras palavras, comparada a ela, a liberação se torna insignificante.

Como têm a tendência a cometer atividades fruitivas pecamino­sas, os não-devotos devem submeter-se a reveses materiais. Devido à ignorância, o desejo de cometer ações pecaminosas continua em seus corações. Essas ações pecaminosas se dividem em três categorias – pātaka, mahā-pātaka e atipātaka – e também em duas classes: prārabdha e aprārabdha. Prārabdha se refere às reações pecaminosas que alguém está sofrendo no presente, e aprārabdha se refere às fontes de sofrimentos potenciais. Quando as sementes (bīja) das reações pecaminosas ainda não germinaram, as reações se chamam aprārabdha. Essas sementes da ação pecaminosa são invisíveis, mas limitadas, e ninguém pode determinar quando foram plantadas pela primeira vez. Por causa de prārabdha, reações pecaminosas que já frutificaram, uma pessoa nasce em família inferior ou é submetida a outros sofrimentos.

Entretanto, quando alguém adota o serviço devocional, todas as fases da vida pecaminosa, incluindo prārabdha, aprārabdha e bīja, são eliminadas. No Śrīmad-Bhāgavatam (11.14.19), o Senhor Kṛṣṇa diz a Uddhava:

yathāgniḥ susamṛddhārciḥ
karoty edhāṁsi bhasmasāt
tathā mad-viṣayā bhaktir
uddhavaināṁsi kṛtsnaśaḥ

“Meu querido Uddhava, o serviço devocional relacionado coMigo é como um fogo abrasador que pode reduzir a cinzas todo o com­bustível de atividades pecaminosas que lhe é suprido.” No Śrīmad­-Bhāgavatam (3.33.6), em um verso proferido durante as instruções do Senhor Kapiladeva à Sua mãe, Devahūti, explica-se como o serviço devocional elimina as reações da vida pecaminosa. Devahūti diz:

yan-nāmadheya-śravaṇānukīrtanād
yat-prahvaṇād yat-smaraṇād api kvacit
śvādo ’pi sadyaḥ savanāya kalpate
kutaḥ punas te bhagavan nu darśanāt

“Meu querido Senhor, se mesmo alguém nascido em família de comedores de cães ouve e repete o louvor de Vossas glórias, oferece-Vos respeito e lembra-se de Vós, imediatamente se torna maior do que um brāhmaṇa e, portanto, está apto a executar sacrifícios. Assim, o que dizer de alguém que Vos viu diretamente?”

No Padma Purāṇa, afirma-se que aqueles cujos corações estão sempre apegados ao serviço devocional ao Senhor Viṣṇu se libertam imediatamente de todas as reações da vida pecaminosa. De um modo geral, essas reações existem em quatro fases. Algumas delas estão prontas a produzir resultados de imediato, outras estão sob a forma de semente, outras estão imanifestas e outras estão em ativi­dade. Todas essas reações são logo anuladas pelo serviço devocional. Quando o serviço devocional está presente no coração de alguém, não há mais lugar para a realização de atividades pecaminosas. A vida pecaminosa decorre da ignorância, quando a pessoa se esquece de que, em sua posição constitucional, ela é serva eterna de Deus, mas quando alguém está em plena consciência de Kṛṣṇa compreende que é servo eterno de Deus.

Com relação a isso, Śrīla Jīva Gosvāmī comenta que bhakti pode dividir-se em duas partes: (1) santatā, o serviço devocional que continua incessantemente com fé e amor, e (2) kādācitkī, o serviço devocional que não continua incessantemente, mas que às vezes é despertado. O serviço devocional que não para de fluir (santatā) também pode dividir-se em duas categorias: (1) serviço executado com algum apego e (2) serviço devocional espontâneo. O serviço devocional intermi­tente (kādācitkī) pode dividir-se em três categorias: (1) rāgābhāsamayī, serviço devocional no qual se está quase apegado, (2) rāgābhās­a-śūnya-svarūpa-bhūtā, serviço devocional em que, embora não haja amor espontâneo, a pessoa gosta da posição constitucional em que presta serviço, e (3) ābhāsa-rūpā, um vestígio de serviço devocional. No que diz respeito à expiação, se alguém obtém pelo menos um leve vestígio de serviço devocional, todas as necessidades de submeter-­se a prāyaścitta, expiação, torna-se dispensáveis. Portanto, a expiação certamente é desnecessária àquele que alcançou amor espontâneo e, mais do que isso, alcançou apego amoroso, que são indícios de avanço pro­gressivo em kādācitkī. Mesmo na fase de bhakti ābhāsa-rūpā, todas as reações da vida pecaminosa são extirpadas e eliminadas. Śrīla Jīva Gosvāmī expressa a opinião de que a palavra kārtsnyena quer dizer que mesmo que alguém esteja desejoso de cometer ações pecamino­sas, as raízes desse desejo são eliminadas meramente com bhakti ābhāsa-­rūpā. O exemplo de bhāskara, o Sol, é muito apropriado. O aspecto ābhāsa de bhakti é comparado ao crepúsculo, e o acúmulo de atividades pecaminosas é comparado ao nevoeiro. Como o nevoeiro não invade todo o céu, basta ao Sol manifestar apenas seus primeiros raios para que o nevoeiro imediatamente se desfaça. Do mesmo modo, se a pessoa tem apenas uma leve relação com o serviço devocional, todo o nevoeiro de sua vida pecaminosa é imediatamente eliminado.

Texto

na tathā hy aghavān rājan
pūyeta tapa-ādibhiḥ
yathā kṛṣṇārpita-prāṇas
tat-puruṣa-niṣevayā

Sinônimos

na — não; tathā — esse tanto; hi — decerto; agha-vān — um homem carregado de atividades pecaminosas; rājan — ó rei; pūyeta — pode purificar-se; tapaḥ-ādibhiḥ — executando os princípios de austeridade, penitência, brahmacarya e outros processos purificatórios; yathā — tanto quanto; kṛṣṇa-arpita-prāṇaḥ — o devoto cuja vida é plenamen­te consciente de Kṛṣṇa; tat-puruṣa-niṣevayā — ocupando sua vida a serviço do representante de Kṛṣṇa.

Tradução

Meu querido rei, se uma pessoa pecaminosa se ocupa a serviço de um devoto autêntico do Senhor e, dessa maneira, aprende como dedicar sua vida aos pés de lótus de Kṛṣṇa, ela pode purificar-se por completo. Ninguém pode purificar-se meramente submetendo-se a austeridade, penitência, brahmacarya e outros métodos de expiação que descrevi.

Comentário

SIGNIFICADO—Tat-puruṣa se refere àquele que prega a consciência de Kṛṣṇa, como, por exemplo, o mestre espiritual. Śrīla Narottama Dāsa Ṭhā­kura diz que chāḍiyā vaiṣṇava-sevā nistāra pāyeche kebā: “Sem servir a um mestre espiritual fidedigno, um vaiṣṇava ideal, quem pode libertar-se das garras de māyā?” Essa ideia também é apresentada em muitas outras passagens. O Śrīmad-Bhāgavatam (5.5.2) diz que mahat-sevāṁ dvāram āhur vimukteḥ: se alguém deseja libertar-se das garras de māyā, ele deve associar-se com um devoto puro, um mahātmā. Mahātmā é aquele que se ocupa vinte e quatro horas por dia em prestar serviço amoroso ao Senhor. Como Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā (9.13):

mahātmānas tu māṁ pārtha
daivīṁ prakṛtim āśritāḥ
bhajanty ananya-manaso
jñātvā bhūtādim avyayam

“Ó filho de Pṛthā, aqueles que não se iludem, as grandes almas, estão sob a proteção da natureza divina. Eles se ocupam completamente em serviço devocional porque sabem que Eu sou a original e inexaurível Suprema Personalidade de Deus.” Assim, a carac­terística do mahātmā é que ele se ocupa apenas a serviço de Kṛṣṇa. Para se livrar das reações pecaminosas, reviver sua original cons­ciência de Kṛṣṇa e receber o aprendizado de como amar a Kṛṣṇa, a pessoa deve prestar serviço a um vaiṣṇava. Esse é o resultado de mahātma-sevā. É claro que se alguém se ocupa a serviço de um devoto puro, as reações de sua vida pecaminosa são imediatamente elimi­nadas. O serviço devocional é necessário para despertar nosso adormecido amor por Kṛṣṇa, e não para afastar um insignificante acúmulo de pecados. Assim como o nevoeiro se desfaz aos primeiros clarões da luz solar, as reações pecaminosas de alguém são auto­maticamente eliminadas logo que ele começa a servir a um devoto puro; e, de sua parte, ele não precisa recorrer a nenhum outro esforço.

A palavra kṛṣṇa-arpita-prāṇaḥ se refere ao devoto que dedica sua vida a servir a Kṛṣṇa, e não a salvar-se do caminho da vida infernal. O devoto é nārāyaṇa-parāyaṇa, ou vāsudeva-parāyaṇa, e isso signi­fica que o caminho de Vāsudeva, ou o caminho devocional, é sua vida e alma. Nārāyaṇa-parāḥ sarve na kutaścana bibhyati (Śrīmad-Bhāgavatam 6.17.28): tal devoto não teme ir a lugar algum. Existe um caminho que liberta rumo aos sistemas planetários superiores e outro que conduz aos planetas infernais, mas o devoto nārāyaṇa-para é sempre destemido e não lhe importa para onde é enviado; onde quer que esteja, tudo o que ele quer é lembrar-se de Kṛṣṇa. A semelhante devoto, pouco importa se está no céu ou no inferno; ele está simplesmente apegado a prestar serviço a Kṛṣṇa. Ao ser posto em condições infernais, o devoto as aceita como a misericórdia de Kṛṣṇa: tat te ’nukampāṁ susamīkṣamāṇaḥ. (Śrīmad-Bhāgavatam 10.14.8) Ele não reclama: “Oh! Sou um grande devoto de Kṛṣṇa. Por que fui posto nesta condição dolorosa?” Em vez disso, ele pensa: “Isso é a misericórdia de Kṛṣṇa.” Tem essa atitude o devoto que se ocupa a serviço do representante de Kṛṣṇa. Esse é o segredo do sucesso.

Texto

sadhrīcīno hy ayaṁ loke
panthāḥ kṣemo ’kuto-bhayaḥ
suśīlāḥ sādhavo yatra
nārāyaṇa-parāyaṇāḥ

Sinônimos

sadhrīcīnaḥ — exatamente apropriado; hi — decerto; ayam — este; loke — no mundo; panthāḥ — caminho; kṣemaḥ — auspicioso; akutaḥ-­bhayaḥ — sem medo; su-śīlāḥ — bem-comportadas; sādhavaḥ — pessoas santas; yatra — onde; nārāyaṇa-parāyaṇāḥ — aqueles que adotaram o caminho de Nārāyaṇa, o serviço devocional, como sua vida e alma.

Tradução

O caminho trilhado pelos devotos puros, que são bem-comportados e plenamente possuidores das melhores qualificações, decerto é o mais auspicioso deste mundo material. Nesse caminho, inexiste o medo e ele é autorizado pelos śāstras.

Comentário

SIGNIFICADO—Ninguém deve pensar que aquele que adota bhakti procede assim porque não pode executar as cerimônias ritualísticas recomendadas na seção karma-kāṇḍa dos Vedas ou porque não tem suficiente instrução para especular sobre temas espirituais. Em geral, os māyā­vādīs alegam que o caminho de bhakti é para mulheres e iletrados. Essa acusação é infundada. O caminho de bhakti é seguido pelos sábios mais eruditos, tais como os Gosvāmīs, o Senhor Caitanya Mahāprabhu e Rāmānujācārya. Eles são os verdadeiros seguidores do caminho de bhakti. Não importa se alguém é ou não é educado ou aristocrático – ele deve seguir-lhes os passos. Mahājano yena gataḥ sa panthāḥ: deve-se seguir o caminho dos mahājanas. Mahājanas são aqueles que adotaram o caminho do serviço devocional (suśīlāḥ sādhavo yatra nārāyaṇa-parāyaṇāḥ), pois essas grandes personalidades são as pessoas perfeitas. Como se afirma no Śrīmad-Bhāgavatam (5.18.12):

yasyāsti bhaktir bhagavaty akiñcanā
sarvair guṇais tatra samāsate surāḥ

“Quem possui fé inabalável na Personalidade de Deus tem todas as boas qualidades dos semideuses.” Pessoas de pouca inteligência, entretanto, não compreendem o caminho de bhakti e, portanto, alegam que bhakti se reserva àqueles que não podem executar cerimônias ritualísticas ou não sabem especular. Como se confirma aqui com a palavra sadhrīcīnaḥ, bhakti é o caminho apropriado, e não os ca­minhos de karma-kāṇḍa e jñāna-kāṇḍa. Talvez os māyāvādīs sejam suśīlāḥ sādhavaḥ (pessoas santas e bem-comportadas), mas sempre pairarão dúvidas quanto ao seu progresso, pois não aceitaram o caminho de bhakti. Por outro lado, aqueles que seguem o caminho dos ācāryas são suśīlāḥ e sādhavaḥ. Além disso, seu cami­nho é akuto-bhaya, o que significa que, nesse caminho, inexistem temores. Devem-se seguir destemidamente os doze mahājanas e sua linha de sucessão discipular e, desse modo, libertar-se das garras de māyā.

Texto

prāyaścittāni cīrṇāni
nārāyaṇa-parāṅmukham
na niṣpunanti rājendra
surā-kumbham ivāpagāḥ

Sinônimos

prāyaścittāni — processos de expiação; cīrṇāni — muito bem executados; nārāyaṇa-parāṅmukham — um não-devoto; na niṣpunanti — não podem purificar; rājendra — ó rei; surā-kumbham — um pote contendo bebida alcoólica; iva — como; āpa-gāḥ — as águas dos rios.

Tradução

Meu querido rei, assim como um pote que conteve bebida alcoólica não pode ser purificado mesmo que seja lavado nas águas de muitos rios, os não-devotos não podem purificar-se pelos processos de expiação, mesmo que os executem muito bem.

Comentário

SIGNIFICADO—Para tirar proveito dos métodos de expiação, a pessoa deve pelo menos ser um pouco devotada; caso contrário, não há possibilidade de ela se purificar. Neste verso, fica claro que mesmo aqueles que tiram proveito de karma-kāṇḍa e jñāna-kāṇḍa, mas que não têm nem um pouco de devoção não podem purificar-se simplesmente se­guindo esses outros caminhos. A palavra prāyaścittāni está no plural para indicar tanto karma-kāṇḍa quanto jñāna-kāṇḍa. Portanto, Narottama Dāsa Ṭhākura diz que karma-kāṇḍa, jñāna-kāṇḍa, kevala viṣera bhāṇḍa. Assim, Narottama Dāsa Ṭhākura compara os cami­nhos de karma-kāṇḍa e jñāna-kāṇḍa a potes de veneno. Bebidas alcoólicas e venenos estão na mesma categoria. De acordo com este verso do Śrīmad-Bhāgavatam, a pessoa que ouviu bastante sobre o caminho do serviço devocional, mas que não está apegada a ele, que não é consciente de Kṛṣṇa, é como um pote de bebida alcoólica. Semelhante pessoa não pode purificar-se enquanto não tiver tido pelo menos um pequeno contato com o serviço devocional.

Texto

sakṛn manaḥ kṛṣṇa-padāravindayor
niveśitaṁ tad-guṇa-rāgi yair iha
na te yamaṁ pāśa-bhṛtaś ca tad-bhaṭān
svapne ’pi paśyanti hi cīrṇa-niṣkṛtāḥ

Sinônimos

sakṛt — apenas uma vez; manaḥ — a mente; kṛṣṇa-padaaravindayoḥ – aos dois pés de lótus do Senhor Kṛṣṇa; niveśitam — rendida por completo; tat — de Kṛṣṇa; guṇa-rāgi — que são um tanto apegadas às qualidades, nome, fama e parafernália; yaiḥ — por quem; iha — neste mundo; na — não; te — essas pessoas; yamam — Yamarāja, o superintendente da morte; pāśa-bhṛtaḥ — aqueles que carregam cordas (para agarrar as pessoas pecaminosas); ca — e; tat — seus; bhaṭān — mensageiros; svapne api — mesmo em sonhos; paśyanti — veem; hi — na verdade; cīrṇa-niṣkṛtāḥ — que executaram o tipo correto de ex­piação.

Tradução

Embora não tenham compreendido Kṛṣṇa plenamente, as pessoas que, mesmo uma só vez, renderam-se por completo a Seus pés de lótus e que se sentiram atraídas a Seu nome, forma, qualidades e passatempos estão totalmente livres de todas as reações pecamino­sas, pois assim aceitaram o método verdadeiro de expiação. Nem mesmo em sonho tais almas rendidas veem Yamarāja ou seus men­sageiros, que possuem cordas para amarrar as pessoas pecaminosas.

Comentário

SIGNIFICADO—Na Bhagavad-gītā (18.66), Kṛṣṇa diz:

sarva-dharmān parityajya
mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja
ahaṁ tvāṁ sarva-pāpebhyo
mokṣayiṣyāmi mā śucaḥ

“Abandona todas as variedades de religião e simplesmente rende-te a Mim. Eu te libertarei de toda reação pecaminosa. Não temas.” Esse mesmo princípio é descrito aqui (sakṛn manaḥ kṛṣṇa-padāra­vindayoḥ). Se, ao estudar a Bhagavad-gītā, alguém decide render-se a Kṛṣṇa, livra-se imediatamente de todas as reações pecaminosas. É significativo também que, tendo repetido várias vezes as palavras vāsudeva-parāyaṇa e nārāyaṇa-parāyaṇa, Śukadeva Gosvāmī enfim diz que kṛṣṇa-padāravindayoḥ. Assim, ele indica que Kṛṣṇa é a origem de Nārāyaṇa e Vāsudeva. Muito embora Nārāyaṇa e Vāsu­deva não sejam diferentes de Kṛṣṇa, basta a alguém se render a Kṛṣṇa para que se renda plenamente a todas as Suas expansões, tais como Nārāyaṇa, Vāsudeva e Govinda. Como Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā (7.7), mattaḥ parataraṁ nānyat: “Não há verdade superior a Mim.” Existem muitos nomes e formas da Suprema Personalidade de Deus, mas Kṛṣṇa é a forma suprema (kṛṣṇas tu bhagavān svayam). Por­tanto, Kṛṣṇa recomenda que os neófitos devem render-se somente a Ele (mām ekam). Como os devotos neófitos não estão em condi­ções de compreender o que são as formas de Nārāyaṇa, Vāsudeva e Govinda, Kṛṣṇa diz explicitamente: mām ekam. Nesta passagem, também corrobora essa afirmação a palavra kṛṣṇa-padāravindayoḥ. Nārāyaṇa não fala pessoalmente, mas Kṛṣṇa, ou Vāsudeva, fala, como, por exemplo, na Bhagavad-gītā. Portanto, seguir a orienta­ção da Bhagavad-gītā significa render-se a Kṛṣṇa, e render-se dessa maneira é a perfeição máxima do bhakti-yoga.

Parīkṣit Mahārāja perguntou a Śukadeva Gosvāmī como alguém pode evitar de cair nas várias condições de vida infernal. Neste verso, Śukadeva Gosvāmī responde que a alma rendida a Kṛṣṇa com certeza não pode ir a naraka, a existência infernal. Se nem mesmo em sonhos ela vê Yamarāja ou seus mensageiros, que são capazes de levar alguém para lá, o que dizer, então, de ela ir até lá? Em outras palavras, aquele que deseja escapar da queda em naraka, na vida infernal, deve render-se plenamente a Kṛṣṇa. A palavra sakṛt é significativa porque indica que, se a pessoa se rende sinceramente a Kṛṣṇa uma única vez, ela se salva, mesmo que por acaso caia ao cometer atividades pecaminosas. Portanto, Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā (9.30):

api cet su-durācāro
bhajate mām ananya-bhāk
sādhur eva sa mantavyaḥ
samyag vyavasito hi saḥ

“Mesmo que alguém cometa ações das mais abomináveis, se estiver ocupado no serviço devocional, deve ser considerado santo, porque está devidamente situado em sua determinação.” Se alguém não se esquece de Kṛṣṇa por nenhum momento, estará seguro mesmo que por acaso caia ao cometer atos pecaminosos.

No segundo capítulo da Bhagavad-gītā (2.40), o Senhor também diz:

nehābhikrama-nāśo ’sti
pratyavāyo na vidyate
svalpam apy asya dharmasya
trāyate mahato bhayāt

“Neste empreendimento, não há perda nem diminuição, e um pequeno avanço neste caminho pode proteger a pessoa do mais perigoso tipo de medo.”

Em outra passagem da Gītā (6.40), o Senhor diz que kalyāṇa-kṛt kaścid durgatiṁ tāta gacchati: “Aquele que executa atividades auspiciosas nunca é derrotado pelo mal.” A atividade kalyāṇa (auspiciosa) suprema é se render a Kṛṣṇa. Esse é o único caminho pelo qual alguém pode deixar de cair na vida infernal. Śrīla Prabodhā­nanda Sarasvatī confirma isso da seguinte maneira:

kaivalyaṁ narakāyate tri-daśa-pūr ākāśa-puṣpāyate
durdāntendriya-kāla-sarpa-paṭalī protkhāta-daṁṣṭrāyate
viśvaṁ pūrṇa-sukhāyate vidhi-mahendrādiś ca kīṭāyate
yat-kāruṇya-kaṭākṣa-vaibhavavatāṁ taṁ gauram eva stumaḥ

(Caitanya-candrāmṛta 5)

As ações pecaminosas de alguém que se rendeu a Kṛṣṇa são comparadas a uma serpente cujas presas venenosas foram removidas (protkhāta-daṁṣṭrāyate). Já não se deve mais temer essa serpente. É claro que ninguém deve cometer atividades pecaminosas apoiando-se no fato de que se rendeu a Kṛṣṇa. Contudo, mesmo que alguém que se tenha rendido a Kṛṣṇa venha a fazer algo pecaminoso devido a seus hábitos anteriores, tais ações pecaminosas já não têm um efeito des­trutivo. Portanto, devemos apegar-nos muito firmemente aos pés de lótus de Kṛṣṇa e servi-lO sob a orientação do mestre espiritual. Assim, em todas as condições, seremos akuto-bhaya, livres do medo.

Texto

atra codāharantīmam
itihāsaṁ purātanam
dūtānāṁ viṣṇu-yamayoḥ
saṁvādas taṁ nibodha me

Sinônimos

atra — com relação a isso; ca — também; udāharanti — eles dão como exemplo; imam — esta; itihāsam — a história (de Ajāmila); purātanam — que é antiquíssima; dūtānām — dos mensageiros; viṣṇu — do Senhor Viṣṇu; yamayoḥ — e de Yamarāja; saṁvādaḥ — a discussão; tam — isto; nibodha — tenta entender; me — através de mim.

Tradução

Com relação a isso, os sábios eruditos e as pessoas santas descrevem um antiquíssimo acontecimento histórico envolvendo uma discussão entre os mensageiros do Senhor Viṣṇu e os de Yamarāja. Por favor, ouve-me falar sobre isso.

Comentário

SIGNIFICADO—Os Purāṇas, ou histórias antigas, às vezes são negligenciados pelos homens ininteligentes que consideram essas descrições como sendo mitológicas. Na verdade, a descrição dos Purāṇas, ou as antigas histórias do uni­verso, são reais, embora não estejam em ordem cronológica. Os Purāṇas registram os principais incidentes que ocorreram durante muitos milhões de anos, não apenas neste planeta, mas também em outros planetas dentro do universo. Portanto, todos os eruditos e estudiosos védicos esclarecidos falam apoiados nos acontecimen­tos dos Purāṇas. Śrīla Rūpa Gosvāmī confere aos Purāṇas a mesma importância atribuída aos próprios Vedas. Logo, no Bhakti-rasāmṛta-sindhu, ele cita o seguinte verso do Brahma-yāmala:

śruti-smṛti-purāṇādi-
pañcarātra-vidhiṁ vinā
aikāntikī harer bhaktir
utpātāyaiva kalpate

“Prestar serviço devocional ao Senhor, mas ignorar os textos védicos autorizados, tais como os Upaniṣads, os Purāṇas e o Nārada-pañcarātra, é simplesmente uma perturbação desnecessária na sociedade.” O devoto de Kṛṣṇa deve citar não apenas os Vedas, mas também os Purāṇas. Ninguém deve cometer a tolice de consi­derar mitológicos os Purāṇas. Se eles fossem mitológicos, Śukadeva Gosvāmī não se teria dado ao trabalho de recitar os antigos fatos históricos concernentes à vida de Ajāmila, cuja história começa da seguinte maneira.

Texto

kānyakubje dvijaḥ kaścid
dāsī-patir ajāmilaḥ
nāmnā naṣṭa-sadācāro
dāsyāḥ saṁsarga-dūṣitaḥ

Sinônimos

kānya-kubje — na cidade de Kānyakubja (Kanauj, uma cidade perto de Kanpur); dvijaḥbrāhmaṇa; kaścit — certo; dāsī-patiḥ — esposo de uma mulher de classe inferior ou prostituta; ajāmilaḥ — Ajāmila; nāmnā — de nome; naṣṭa-sat-ācāraḥ — que perdeu todas as qualidades bramânicas; dāsyāḥ — com a prostituta ou criada; saṁ­sarga-dūṣitaḥ — contaminado pela associação.

Tradução

Na cidade conhecida como Kānyakubja, havia certo brāhmaṇa cha­mado Ajāmila que se casou com uma criada que era prostituta. Ele perdeu todas as suas qualidades bramânicas devido à associação com essa mulher de classe baixa.

Comentário

SIGNIFICADO—A consequência de ligação ilícita com mulheres é que a pessoa perde todas as suas qualidades bramânicas. Na Índia, perdura uma classe de servos, chamados śūdras, cujas esposas são as criadas conhecidas como śūdrāṇīs. Às vezes, pessoas muito luxuriosas esta­belecem relações com essas criadas e faxineiras, já que, nos status superiores da sociedade, impede-se que se assediem as mulheres, o que é estritamente proibido pelas convenções sociais. Ajāmila, um jovem brāhmaṇa qualificado, perdeu todas as suas qualidades bramânicas devido à sua associação com uma prostituta, mas acabou se salvando­ porque começara o processo de bhakti-yoga. Portanto, no verso anterior, Śukadeva Gosvāmī aludiu à pessoa que se rendeu apenas uma vez aos pés de lótus do Senhor (manaḥ kṛṣṇa-padāravindayoḥ) ou simplesmente começou o processo de bhakti-yoga. Bhakti-yoga começa com śravaṇaṁ kīrtanaṁ viṣṇoḥ, ouvir e cantar os nomes do Senhor Viṣṇu, como no mahā-mantra – Hare Kṛṣṇa, Hare Kṛṣṇa, Kṛṣṇa Kṛṣṇa, Hare Hare/ Hare Rāma, Hare Rāma, Rāma Rāma, Hare Hare. O cantar é o começo do bhakti-yoga. Portanto, Śrī Caitanya Mahāprabhu declara:

harer nāma harer nāma
harer nāmaiva kevalam
kalau nāsty eva nāsty eva
nāsty eva gatir anyathā

“Nesta era de desavenças e hipocrisia, o único meio de liberação é cantar o santo nome do Senhor. Não há outra maneira. Não há outra maneira. Não há outra maneira.” O processo de se cantar o santo nome do Senhor sempre tem eficiência marcante, mas é especialmente efetivo nesta era de Kali. Sua eficiência prática será exposta agora por Śukadeva Gosvāmī através da história de Ajāmila, que se livrou das mãos dos Yamadūtas simplesmente porque cantara o santo nome de Nārāyaṇa. A pergunta original de Parīkṣit Mahārāja se referia a como é que alguém poderia evitar de cair no inferno ou nas mãos dos Yamadūtas. Em resposta, Śukadeva Gosvāmī está fazendo menção ao antigo exemplo histórico a fim de convencer Parīkṣit Mahārāja da po­tência do bhakti-yoga, que começa simplesmente com o cantar do nome do Senhor. Todas as grandes autoridades em bhakti-yoga recomendam o processo devocional que começa com o cantar do santo nome de Kṛṣṇa (tan-nāma-grahaṇādibhiḥ).

Texto

bandy-akṣaiḥ kaitavaiś cauryair
garhitāṁ vṛttim āsthitaḥ
bibhrat kuṭumbam aśucir
yātayām āsa dehinaḥ

Sinônimos

bandī-akṣaiḥ — por prender alguém desnecessariamente; kaitavaiḥ — pela trapaça ao apostar ou no jogo de dados; cauryaiḥ — cometendo roubo; garhitām — condenadas; vṛttim — profissões; āsthitaḥ — que adotou (devido à associação com uma prostituta); bibhrat — man­tendo; kuṭumbam — sua esposa e filhos dependentes; aśuciḥ — sendo muito pecaminoso; yātayām asa — ele causava problemas; dehinaḥ — às outras entidades vivas.

Tradução

Esse brāhmaṇa degenerado, Ajāmila, causava problemas aos outros, prendendo-os, enganando-os no jogo ou os assaltando diretamente. Essa era a maneira como ele ganhava sua subsistência e mantinha sua esposa e filhos.

Comentário

SIGNIFICADO—Este verso indica o quanto alguém pode degradar-se simplesmente por se entregar ao sexo ilícito com uma prostituta. Não é possível praticar sexo ilícito com uma mulher casta ou aristocrática, mas somente com śūdras incastas. Quanto mais a sociedade permite a prostituição e o sexo ilícito, maior ímpeto ela dá aos trapaceiros, ladrões, assaltantes, beberrões e apostadores. Portanto, aconselhamos em primeiro lugar a todos os discípulos em nosso movimento da consciên­cia de Kṛṣṇa que evitem o sexo ilícito, o qual é o início de toda uma vida abominável e o qual se faz seguir de consumo de carne, jogos de azar e intoxicação, um após o outro. Evidentemente, a continência é muito difícil, mas é perfeitamente possível àquele que se rende por completo a Kṛṣṇa, já que todos esses hábitos abomináveis pouco a pouco se tornam insípidos para alguém que é consciente de Kṛṣṇa. Se, no entanto, permite-se que o sexo ilícito cresça em uma sociedade, toda a sociedade se arruinará, pois nela abundarão ladrões, assaltantes, trapaceiros e coisas do gênero.

Texto

evaṁ nivasatas tasya
lālayānasya tat-sutān
kālo ’tyagān mahān rājann
aṣṭāśītyāyuṣaḥ samāḥ

Sinônimos

evam — dessa maneira; nivasataḥ — vivendo; tasya — dele (Ajāmila); lālayānasya — mantendo; tat — dela (a śūdrāṇī); sutān — filhos; kālaḥ — tempo; atyagāt — passou; mahān — uma grande quantidade; rājan — o rei; aṣṭāśītyā — oitenta e oito; āyuṣaḥ — da duração de vida; samāḥ — anos.

Tradução

Meu querido rei, tentando manter sua família de muitos filhos, ele desperdiçava seu tempo nessas atividades pecaminosas abomináveis, e assim se passaram oitenta e oito anos de sua vida.

Texto

tasya pravayasaḥ putrā
daśa teṣāṁ tu yo ’vamaḥ
bālo nārāyaṇo nāmnā
pitroś ca dayito bhṛśam

Sinônimos

tasya — dele (Ajāmila); pravayasaḥ — que era muito idoso; putrāḥ — filhos; daśa — dez; teṣām — de todos eles; tu — mas; yaḥ — aquele que; avamaḥ — o mais novo; bālaḥ — filho; nārāyaṇaḥ — Nārāyaṇa; nāmnā — de nome; pitroḥ — do pai e da mãe; ca — e; dayitaḥ — querido; bhṛśam — muito.

Tradução

Idoso, Ajāmila tinha dez filhos, dos quais o caçula era um menino chamado Nārāyaṇa. Como Nārāyaṇa era o filho mais novo, naturalmente seu pai e sua mãe queriam-lhe muito bem.

Comentário

SIGNIFICADO—A palavra pravayasaḥ revela o caráter pecaminoso de Ajāmila porque, embora tivesse oitenta e oito anos, possuía um filho muito novo. De acordo com a cultura védica, o homem deve deixar o lar tão logo atinja cinquenta anos de idade; ele não deve viver em casa e continuar gerando filhos. A vida sexual é permitida por vinte e cinco anos, entre os vinte e cinco e quarenta e cinco, ou, no máximo, cinquenta anos. Depois disso, deve-se abandonar a vida sexual e, como vānaprastha, deixar o lar e, então, tomar sannyāsa. Ajāmila, contudo, devido à sua associação com uma prostituta, perdeu toda a cultura bramânica e se tornou muito pecaminoso, mesmo em sua assim chamada vida em família.

Texto

sa baddha-hṛdayas tasminn
arbhake kala-bhāṣiṇi
nirīkṣamāṇas tal-līlāṁ
mumude jaraṭho bhṛśam

Sinônimos

saḥ — ele; baddha-hṛdayaḥ — estando muito apegado; tasmin — a esse; arbhake — filhinho; kala-bhāṣiṇi — que não podia falar claramente, mas falava com linguagem balbuciante; nirīkṣamāṇaḥ — vendo; tat — seus; līlām — passatempos (tais como caminhar e falar com seu pai); mumude — alegrava-se; jaraṭhaḥ — o ancião; bhṛśam — muito.

Tradução

Devido à linguagem balbuciante e aos movimentos desengonçados do filho, o idoso Ajāmila ficou muito apegado a ele. Ajāmila sempre cuidava do filho e se alegrava com as atividades deste.

Comentário

SIGNIFICADO—Aqui se menciona claramente que a criança Nārāyaṇa era tão nova que nem mesmo sabia falar ou caminhar apropriadamente. Como estava muito apegado ao filho, o velhinho se alegrava com as atividades dele, e porque o nome do filho era Nārāyaṇa, o velhinho sempre pronunciava o santo nome de Nārāyaṇa. Embora ele se dirigisse ao filhinho e não ao Nārāyaṇa original, o nome de Nārāyaṇa é tão poderoso que, apesar de proferir o nome de seu filho, Ajāmila estava se purificando (harer nāma harer nāma harer nāmaiva kevalam). Śrīla Rūpa Gosvāmī, portanto, declara que se a mente de alguém se sente atraída de alguma maneira ao santo nome de Kṛṣṇa (tasmāt kenāpy upāyena manaḥ kṛṣṇe niveśayet), ele está no caminho da liberação. Na sociedade hindu, é habitual que os pais deem a seus filhos nomes como Kṛṣṇa Dāsa, Govinda Dāsa, Nārāyaṇa Dāsa e Vṛndāvana Dāsa. Assim, falam os nomes Kṛṣṇa, Govinda, Nārāyaṇa e Vṛndāvana e recebem a oportunidade de se purificar.

Texto

bhuñjānaḥ prapiban khādan
bālakaṁ sneha-yantritaḥ
bhojayan pāyayan mūḍho
na vedāgatam antakam

Sinônimos

bhuñjānaḥ — enquanto comia; prapiban — enquanto bebia; khādan — enquanto mastigava; bālakam — ao filho; sneha-yantritaḥ — estando apegado afetuosamente; bhojayan — alimentando; pāyayan — dando algo de beber; mūḍhaḥ — o homem tolo; na — não; veda — compreen­dia; āgatam — chegara; antakam — morte.

Tradução

Quando Ajāmila mastigava o alimento e comia, ele chamava o filho para vir mastigar e comer, e quando ele bebia, chamava o filho para vir beber também. Sempre ocupado em cuidar do filho e pro­nunciar seu nome, Nārāyaṇa, Ajāmila não percebia que seu tempo estava para findar e que a morte pairava sobre ele.

Comentário

SIGNIFICADO—A Suprema Personalidade de Deus é bondosa com a alma condicionada. Embora esse homem tivesse se esquecido de Nārāyaṇa por completo, ele sempre chamava por seu filho, dizendo: “Nārāyaṇa, por favor, venha comer este alimento. Nārāyaṇa, por favor, venha beber o leite.” Portanto, de alguma forma, ele estava apegado ao nome Nārāyaṇa. Isso se chama ajñāta-sukṛti. Embora estivesse chamando seu filho, inconscientemente estava pronunciando o nome de Nārāyaṇa, e o santo nome da Suprema Personalidade de Deus tem tamanha po­tência transcendental que o cantar desse homem estava sendo com­putado e registrado.

Texto

sa evaṁ vartamāno ’jño
mṛtyu-kāla upasthite
matiṁ cakāra tanaye
bāle nārāyaṇāhvaye

Sinônimos

saḥ — esse Ajāmila; evam — assim; vartamānaḥ — vivendo; ajñaḥ — tolo; mṛtyu-kāle — quando o momento da morte; upasthite — chegou; matim cakāra — concentrou sua mente; tanaye — em seu filho; bāle — o filho; nārāyaṇa-āhvaye — cujo nome era Nārāyaṇa.

Tradução

Chegado o momento da morte do tolo Ajāmila, ele passou a pensar unicamente em seu filho Nārāyaṇa.

Comentário

SIGNIFICADO—No segundo canto do Śrīmad-Bhāgavatam (2.1.6), Śukadeva Gosvāmī diz:

etāvān sāṅkhya-yogābhyāṁ
svadharma-pariniṣṭhayā
janma-lābhaḥ paraḥ puṁsām
ante nārāyaṇa-smṛtiḥ

“A perfeição máxima da vida humana, alcançada ou pelo completo conhecimento sobre matéria e espírito, ou pela prática de poderes místicos ou pelo perfeito desempenho do dever ocupacional, é a pessoa, no final da vida, lembrar-se da Personalidade de Deus.” Ajāmila, consciente ou inconscien­temente, de alguma forma cantou na hora da morte o nome de Nārāyaṇa (ante nārāyaṇa-smṛtiḥ) e, portanto, alcançou completa per­feição simplesmente por concentrar sua mente no nome de Nārāyaṇa.

Pode-se concluir também que Ajāmila, que era filho de um brāhmaṇa, tinha por costume adorar Nārāyaṇa em sua juventude, visto que se faz adoração à nārāyaṇa-śilā em toda casa de brāhmaṇas. Na Índia, ainda existe esse sistema; na casa de um brāhmaṇa estrito, faz-se nārāyaṇa-seva, adoração a Nārāyaṇa. Portanto, embora o con­taminado Ajāmila estivesse chamando por seu filho, concentrando sua mente no santo nome de Nārāyaṇa, lembrou-se do Nārāyaṇa que muito fielmente adorara em sua juventude.

Com relação a isso, Śrīla Śrīdhara Svāmī expressa da seguinte maneira o seu veredito, etac ca tad-upalālanādi-śrī-nārāyaṇa-namoccāraṇa-māhātmyena tad-bhaktir evābhūd iti siddhāntopayogitvenāpi draṣṭavyam: “De acordo com o bhakti-siddhānta, deve-se analisar que, como vivia cantando o nome de seu filho, Nārāyaṇa, Ajāmila, sem o saber, elevou-se à plataforma de bhakti.” Igualmente, Śrīla Vīrarāghava Ācārya apresenta sua opinião, evaṁ vartamānaḥ sa dvijaḥ mṛtyu-kāle upasthite satyajño nārāyaṇākhye putra eva matiṁ cakāra matim āsaktām akarod ity arthaḥ: “Muito embora na hora da morte cantasse o nome de seu filho, Ajāmila concentrou sua mente no santo nome do Senhor.” Śrīla Vijayadhvaja Tīrtha emite uma opinião semelhante:

mṛtyu-kāle deha-viyoga-lakṣaṇa-kāle mṛtyoḥ sarva-doṣa-pāpa-harasya harer anugrahāt kāle datta-jñāna-lakṣaṇe upasthite hṛdi prakāśite tanaye pūrṇa-jñāne bāle pañca-varṣa-kalpe prādeśa-mātre nārāyaṇāhvaye mūrti-viśeṣe matiṁ smaraṇa-samarthaṁ cittaṁ cakāra bhaktyāsmarad ity arthaḥ.

Direta ou indiretamente, Ajāmila, na hora da morte, lembrou-se realmente de Nārāyaṇa (ante nārāyaṇa-smṛtiḥ).

Texto

sa pāśa-hastāṁs trīn dṛṣṭvā
puruṣān ati-dāruṇān
vakra-tuṇḍān ūrdhva-romṇa
ātmānaṁ netum āgatān
dūre krīḍanakāsaktaṁ
putraṁ nārāyaṇāhvayam
plāvitena svareṇoccair
ājuhāvākulendriyaḥ

Sinônimos

saḥ — essa pessoa (Ajāmila); pāśa-hastān — tendo cordas em suas mãos; trīn — três; dṛṣṭvā — vendo; puruṣān — pessoas; ati-dāruṇān — de aspectos muito amedrontadores; vakra-tuṇḍān — com rostos desfigurados; ūrdhva-romṇaḥ — com os pelos arrepiados; ātmānam — o eu; netum — para levar; āgatān — chegaram; dūre — a pouca distân­cia; krīḍanaka-āsaktam — ocupado em brincar; putram — seu filho; nārāyaṇa-āhvayam — chamado Nārāyaṇa; plāvitena — com os olhos cheios de lágrimas; svareṇa — com sua voz; uccaiḥ — bem alto; ājuhāva — chamou; ākula-indriyaḥ — estando cheio de ansiedade.

Tradução

Ajāmila, então, viu três criaturas monstruosas com aspectos físicos disformes; seus rostos eram desfigurados e ferozes, e os pelos de seu corpo estavam arrepiados. Empunhando cordas, tinham vindo para levá-lo à morada de Yamarāja. Ao ver essas criaturas, ficou extremamente desorientado, e, devido ao apego a seu filho, que brincava ali perto, Ajāmila começou a chamá-lo em voz alta, pronunciando seu nome. Assim, com lágrimas nos olhos, de alguma forma ele cantou o santo nome de Nārāyaṇa.

Comentário

SIGNIFICADO—Executam-se atividades pecaminosas com o corpo, com a mente e com as palavras. Portanto, três mensageiros de Yamarāja vieram levar Ajāmila para a morada de Yamarāja. Felizmente, embora se dirigisse a seu filho, Ajāmila cantou as quatro sílabas do hari-nāma Nārāyaṇa e, em razão disso, os mensageiros de Nārāyaṇa, os Viṣṇudūtas, também chegaram ali imediatamente. Porque sentia grande temor diante das cordas de Yamarāja, Ajāmila, com os olhos cheios de lágrimas, cantou o nome do Senhor. Na verdade, contudo, não era sua intenção cantar o santo nome de Nārāyaṇa; ele intencionava chamar por seu filho.

Texto

niśamya mriyamāṇasya
mukhato hari-kīrtanam
bhartur nāma mahārāja
pārṣadāḥ sahasāpatan

Sinônimos

niśamya — ouvindo; mriyamāṇasya — do moribundo; mukhataḥ — da boca; hari-kīrtanam — cantando o santo nome da Suprema Personalidade de Deus; bhartuḥ nāma — o santo nome de seu mestre; mahā-rāja — o rei; pārṣadāḥ — os mensageiros de Viṣṇu; sahasā — imediatamente; āpatan — chegaram.

Tradução

Meu querido rei, os mensageiros de Viṣṇu, os Viṣṇudūtas, chega­ram tão logo ouviram o santo nome do seu mestre emanar da boca do moribundo Ajāmila, que na certa cantara sem ofensas, pois can­tara em completa ansiedade.

Comentário

SIGNIFICADO—Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura comenta que hari-kīrtanaṁ niśamyāpatan, katham-bhūtasya bhartur nāma bruvataḥ: os mensageiros do Senhor Viṣṇu vieram porque Ajāmila cantara o santo nome de Nārāyaṇa. Eles não analisaram o motivo por que ele estava can­tando. Enquanto cantava o nome de Nārāyaṇa, Ajāmila realmente estava pensando em seu filho, mas bastou-lhes ouvir Ajāmila cantar o nome do Senhor para que os mensageiros do Senhor Viṣṇu, os Viṣṇudūtas, viessem para proteger Ajāmila. Com hari-kīrtana, deve-se realmente glorificar o santo nome, a forma, os passatempos e as qualidades do Senhor. Contudo, Ajāmila não glorificou a forma, as qua­lidades ou a parafernália do Senhor; tudo o que ele fez foi cantar o santo nome. Entretanto, esse cantar foi suficiente para limpá-lo de todas as atividades pecaminosas. Tão logo ouviram-no cantar o nome de seu mestre, os Viṣṇudūtas compareceram. Com relação a isso, Śrīla Vijayadhvaja Tīrtha comenta que anena putra-sneham antareṇa prācīnādṛṣṭa-balād udbhūtayā bhaktyā bhagavan-nāma-saṅkīrtanaṁ kṛtam iti jñāyate: “Ajāmila cantou o nome de Nārāyaṇa devido ao seu apego excessivo por seu filho. Entretanto, devido à sua boa for­tuna de que, no passado, prestara serviço devocional a Nārāyaṇa, ele aparentemente cantou o santo nome em pleno serviço devocional e sem ofensas.”

Texto

vikarṣato ’ntar hṛdayād
dāsī-patim ajāmilam
yama-preṣyān viṣṇudūtā
vārayām āsur ojasā

Sinônimos

vikarṣataḥ — arrancando; antaḥ hṛdayāt — de dentro do coração; dāsī-patim — o esposo da prostituta; ajāmilam — Ajāmila; yama­-preṣyān — os mensageiros de Yamarāja; viṣṇu-dūtāḥ — os mensagei­ros do Senhor Viṣṇu; vārayām āsuḥ — impediram; ojasā — com vozes ressoantes.

Tradução

Os mensageiros de Yamarāja estavam para arrancar a alma do âmago do coração de Ajāmila, o esposo da prostituta. Contudo, com vozes ressoantes, os mensageiros do Senhor Viṣṇu, os Viṣṇudūtas, impediram que o fizessem.

Comentário

SIGNIFICADO—O vaiṣṇava, ou seja, a pessoa rendida aos pés de lótus do Senhor Viṣṇu, tem sempre a proteção dos mensageiros do Senhor Viṣṇu. Como Ajāmila cantara o santo nome de Nārāyaṇa, os Viṣṇudūtas não apenas chegaram prontamente ao local como também orde­naram de imediato que os Yamadūtas não o tocassem. Falando com vozes ressoantes, os Viṣṇudūtas ameaçaram punir os Yama­dūtas caso se atrevessem a arrancar de seu coração a alma de Ajāmila. Os mensageiros de Yamarāja têm jurisdição sobre todas as entidades vivas pecaminosas, mas os mensageiros do Senhor Viṣṇu, os Viṣṇudūtas, estão prontos a punir qualquer pessoa, in­cluindo Yamarāja, se ela maltratar um vaiṣṇava.

Com seus instrumentos materiais, os cientistas materialistas não conseguem encontrar a alma dentro do corpo, mas este verso explica claramente que a alma está no âmago do coração (hṛdaya); era do coração que os Yamadūtas tentavam arrancar a alma de Ajāmila. Da mesma forma, aprendemos que o Senhor Viṣṇu, a Superalma, está também situado dentro do coração (īśvaraḥ sarva-bhūtānāṁ hṛd-deśe ’rjuna tiṣṭhati). As Upaniṣads afirmam que, como dois pássaros amigos, a Superalma e a alma individual vivem na mesma árvore do corpo. A Superalma é tida como um amigo porque a Suprema Personalidade de Deus é tão bondosa com a alma original que, quando esta transmigra de um corpo a outro, o Senhor a acompanha. Ademais, de acordo com o desejo e karma da alma individual, o Senhor, por intermédio de māyā, cria para ela outro corpo.

O coração do corpo é um arranjo mecânico. Como o Senhor diz na Bhagavad-gītā (18.61):

īśvaraḥ sarva-bhūtānāṁ
hṛd-deśe ’rjuna tiṣṭhati
bhrāmayan sarva-bhūtāni
yantrārūḍhāni māyayā

“O Senhor Supremo está situado no coração de todos, ó Arjuna, e está dirigindo as andanças de todas as entidades vivas, que estão sentadas num tipo de máquina feita de energia material.” Yantra signifi­ca máquina, assim como um automóvel. O motorista da máquina corpórea é a alma individual, que também é seu dirigente ou pro­prietário, mas o proprietário supremo é a Suprema Personalidade de Deus. O corpo das pessoas é criado por intermédio de māyā (karmaṇā daiva-netreṇa), e, de acordo com suas atividades nesta vida, cria-se outro veículo, também sob a supervisão de daivī māyā (daivī hy eṣā guṇa-mayī mama māyā duratyayā). No momento oportuno, o próximo corpo é escolhido de imediato, e tanto a alma individual quanto a Superalma se transferem para essa máquina corpórea específica. Esse processo se chama transmigração. Durante a trans­migração de um corpo a outro, a alma é levada pelos mensageiros de Yamarāja e posta em uma determinada categoria de vida infernal (naraka) para se acostumar à condição em que viverá em seu próximo corpo.

Texto

ūcur niṣedhitās tāṁs te
vaivasvata-puraḥsarāḥ
ke yūyaṁ pratiṣeddhāro
dharma-rājasya śāsanam

Sinônimos

ūcuḥ — responderam; niṣedhitāḥ — sendo proibidos; tān — aos mensageiros do Senhor Viṣṇu; te — eles; vaivasvata — de Yamarāja; puraḥ-­sarāḥ — os assistentes ou mensageiros; ke — quem; yūyam — todos vós; pratiṣed-dhāraḥ — que vos opondes; dharma-rājasya — de Yamarāja, o rei dos princípios religiosos; śāsanam — à jurisdição administrativa.

Tradução

Quando os mensageiros de Yamarāja, o filho do deus do Sol, ouviram esta proibição, responderam: Quem sois vós, senhores, que tendes a audácia de desafiar a jurisdição de Yamarāja?

Comentário

SIGNIFICADO—De acordo com as atividades pecaminosas de Ajāmila, ele estava dentro da jurisdição de Yamarāja, o juiz supremo designado para avaliar os pecados das entidades vivas. Ao serem proibidos de tocar em Ajāmila, os mensageiros de Yamarāja ficaram muito surpresos, pois ninguém dentro dos três mundos havia alguma vez os impedido de executar o seu dever.

Texto

kasya vā kuta āyātāḥ
kasmād asya niṣedhatha
kiṁ devā upadevā yā
yūyaṁ kiṁ siddha-sattamāḥ

Sinônimos

kasya — servos de quem; — ou; kutaḥ — de onde; āyātāḥ — viestes; kasmāt — qual a razão; asya — (o ato de levar) esse Ajāmila; niṣedhatha — estais proibindo; kim — se; devāḥ — semideuses; upadevāḥ — semideuses subalternos; yāḥ — quem; yūyam — todos vós; kim — caso; siddha-sat-tamāḥ — os melhores seres perfeitos, os devotos puros.

Tradução

Queridos senhores, de quem sois servos, de onde viestes e por que nos proibis de tocar no corpo de Ajāmila? Sois semideuses dos planetas celestiais, sois semideuses subalternos ou sois os melhores devotos?

Comentário

SIGNIFICADO—A palavra mais expressiva usada neste verso é siddha-sattamāḥ, que significa “os melhores entre os perfeitos”. Na Bhagavad-gītā (7.3), afirma-se que manuṣyāṇāṁ sahasreṣu kaścid yatati siddhaye: entre milhões de pessoas, talvez uma tente tornar-se siddha, per­feita – ou, em outras palavras, autorrealizada. A pessoa autorreali­zada sabe que não é o corpo e, sim, alma espiritual (ahaṁ brahmāsmi). No momento atual, praticamente todos ignoram esse fato, mas aquele que entende isso alcançou a perfeição e, portanto, é chamado de siddha. Quando alguém entende que a alma é parte integrante da alma suprema e, assim, ocupa-se em serviço devocional à alma suprema, torna-se siddha-sattama. Então, ele está apto a viver nos pla­netas Vaikuṇṭha ou Kṛṣṇaloka. A palavra siddha-sattama, portanto, refere-se ao devoto puro, liberado.

Como são servos de Yamarāja, que também é um dos siddha­-sattamas, os Yamadūtas sabiam que o siddha-sattama está situado acima dos semideuses ou de semideuses subalternos e, com efeito, acima de todas as entidades vivas dentro deste mundo material. Portanto, os Yamadūtas perguntaram por que os Viṣṇudūtas se faziam presentes em um local onde um homem pecaminoso estava prestes a morrer.

Deve-se notar que Ajāmila ainda não tinha morrido, pois os Yamadūtas estavam tentando arrancar de seu coração a alma. Con­tudo, não puderam tirar-lhe a alma, de modo que Ajāmila ainda não havia morrido. Isso será exposto nos versos seguintes. Enquanto prosse­guia a discussão entre os Yamadūtas e os Viṣṇudūtas, Ajāmila estava em um simples estado de inconsciência. Através desse debate, seria decidido a quem caberia ficar com a alma de Ajāmila.

Texto

sarve padma-palāśākṣāḥ
pīta-kauśeya-vāsasaḥ
kirīṭinaḥ kuṇḍalino
lasat-puṣkara-mālinaḥ
sarve ca nūtna-vayasaḥ
sarve cāru-caturbhujāḥ
dhanur-niṣaṅgāsi-gadā-
śaṅkha-cakrāmbuja-śriyaḥ
diśo vitimirālokāḥ
kurvantaḥ svena tejasā
kim arthaṁ dharma-pālasya
kiṅkarān no niṣedhatha

Sinônimos

sarve — todos vós; padma-palāśa-akṣāḥ — com olhos como pétalas de uma flor de lótus; pīta — amarela; kauśeya — seda; vāsasaḥ — vestin­do roupas; kirīṭinaḥ — com elmos; kuṇḍalinaḥ — com brincos; lasat — reluzentes; puṣkara-mālinaḥ — com uma guirlanda de flores de lótus; sarve — todos vós; ca — também; nūtna-vayasaḥ — muito jovens; sarve — todos vós; cāru — muito belos; catuḥ-bhujāḥ — com quatro braços; dhanuḥ — arco; niṣaṅga — aljava de flechas; asi — espada; gadā — maça; śaṅkha — búzio; cakra — disco; ambuja — flor de lótus; śriyaḥ — decorados com; diśaḥ — todas as direções; vitimira — sem escuridão; ālokāḥ — extraordinária iluminação; kurvantaḥ — manifestando; svena — por vossa própria; tejasā — refulgência; kim artham — qual o propósito; dharma-pālasya — de Yamarāja, o mantenedor dos princípios religiosos; kiṅkarān — servos; naḥ — a nós; niṣedhatha — estais proibindo.

Tradução

Os mensageiros de Yamarāja disseram: Vossos olhos são exatamente como pétalas de flores de lótus. Com roupas de seda amarela, decorados com guirlandas de lótus e usando elmos muito atrativos sobre vossas cabeças e brincos em vossas orelhas, pareceis muito jovens e viçosos. Vossos quatro longos braços estão decora­dos tanto com arcos e aljavas de flechas quanto com espadas, maças, búzios, discos e flores de lótus. Com extraordinária luminosidade, vossa refulgência dissipou a escuridão deste lugar. Então, senhores, por que nos impedis?

Comentário

SIGNIFICADO—Mesmo antes de ser apresentada a um estranho, uma pessoa pode ser conhecida por suas roupas, traços físicos e comportamento e, dessa maneira, deixar que se compreenda qual é a sua posição. Portanto, ao verem os Viṣṇudūtas pela primeira vez, os Yamadūtas ficaram sur­presos. Eles disseram: “Em vossos aspectos físicos, pareceis cavalheiros muito nobres, e tendes tamanho poder celestial que, com vossa própria refulgência, dissipastes a escuridão deste mundo material. Por que, então, deveríeis esforçar-vos por impedir-nos de executar o nosso dever?” Veremos mais adiante que os Yamadūtas, os mensageiros de Yamarāja, enganaram-se ao tomar Ajāmila como um sujeito pecaminoso. Não sabiam que, embora durante toda a sua vida ele tivesse sido pecaminoso, purificou-se por cantar constantemente o santo nome de Nārāyaṇa. Em outras palavras, só pode entender as atividades de um vaiṣṇava quem é um vaiṣṇava.

A roupa e os aspectos corpóreos dos habitantes de Vaikuṇṭhaloka são devidamente descritos nestes versos. Os habitantes de Vaikuṇṭha, que estão decorados com guirlandas e roupas de seda amarela, têm quatro braços munidos de várias armas. Assim, eles, notavelmente se assemelham ao Senhor Viṣṇu. Porque alcançaram a liberação de sārūpya, eles têm os mesmos aspectos corpóreos de Nārāyaṇa, mas, mesmo assim, agem como servos. Todos os habitantes de Vaikuṇṭha­loka sabem perfeitamente que seu mestre é Nārāyaṇa, ou Kṛṣṇa, e que todos eles são seus servos. Todos eles são almas autorrealizadas nitya-mukta, eternamente liberados. Embora pudessem facilmente se fazerem passar por Nārāyaṇa ou Viṣṇu, eles nunca adotam esse tipo de comportamento; sempre permanecem conscientes de Kṛṣṇa e servem fielmente ao Senhor. É essa a atmosfera de Vaikuṇṭhaloka. Do mesmo modo, aquele que, através do movimento da consciên­cia de Kṛṣṇa, aprende a servir fielmente ao Senhor Kṛṣṇa sempre permanecerá em Vaikuṇṭhaloka e nada terá a ver com este mundo material.

Texto

śrī-śuka uvāca
ity ukte yamadūtais te
vāsudevokta-kāriṇaḥ
tān pratyūcuḥ prahasyedaṁ
megha-nirhrādayā girā

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; iti — assim; ukte — sendo interpelados; yamadūtaiḥ — pelos mensageiros de Yamarāja; te — eles; vāsudeva-ukta-kāriṇaḥ — que estão sempre dispostos a exe­cutar as ordens do Senhor Vāsudeva (sendo associados pessoais do Senhor Viṣṇu que obtiveram a liberação sālokya); tān — a eles; pratyūcuḥ — responderam; prahasya — sorrindo; idam — isto; megha-­nirhrādayā — ressoando como uma nuvem trovejante; girā — com vozes.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī prosseguiu: Sendo assim interpelados pelos mensageiros de Yamarāja, os servos de Vāsudeva sorriram e falaram as seguintes palavras, com vozes tão profundas como o som de nuvens trovejantes.

Comentário

SIGNIFICADO—Os Yamadūtas ficaram surpresos ao ver que os Viṣṇudūtas, em­bora educados, estivessem dificultando a ação do governo de Yama­rāja. Do mesmo modo, os Viṣṇudūtas ficaram surpresos de que os Yamadūtas, embora alegando serem servos de Yamarāja, o juiz supremo dos princípios religiosos, não conhecessem os princípios da ação religiosa. Assim, os Viṣṇudūtas sorriram, pensando: “Que tolice é essa que eles estão dizendo? Se eles realmente são servos de Yamarāja, deveriam saber que Ajāmila não é a pessoa adequada para levarem.”

Texto

śrī-viṣṇudūtā ūcuḥ
yūyaṁ vai dharma-rājasya
yadi nirdeśa-kāriṇaḥ
brūta dharmasya nas tattvaṁ
yac cādharmasya lakṣaṇam

Sinônimos

śrī-viṣṇudūtāḥ ūcuḥ — os abençoados mensageiros do Senhor Viṣṇu disseram; yūyam — todos vós; vai — na verdade; dharma-rājasya — do rei Yamarāja, que conhece os princípios religiosos; yadi — se; nirdeśa­-kāriṇaḥ — mensageiros; brūta — simplesmente falai; dharmasya — dos princípios religiosos; naḥ — para nós; tattvam — a verdade; yat — aquilo que; ca — também; adharmasya — das atividades impiedosas; lakṣaṇam — características.

Tradução

Os abençoados mensageiros do Senhor Viṣṇu, os Viṣṇudūtas, dis­seram: Se sois realmente servos de Yamarāja, deveis explicar-nos o significado dos princípios religiosos e as características da irreligião.

Comentário

SIGNIFICADO—Esta pergunta que os Viṣṇudūtas fizeram aos Yamadūtas é muito importante. Ao servo cabe conhecer as instruções de seu mestre. Os servos de Yamarāja alegaram estar cumprindo suas ordens, de modo que os Viṣṇudūtas, com muita inteligência, pediram-lhes que expli­cassem as características dos princípios religiosos e irreligiosos. Porque está muito bem familiarizado com as instruções da Suprema Personalidade de Deus, o vaiṣṇava conhece perfeitamente bem esses princípios. O Senhor Supremo diz que sarva-dharmān parityajya mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja: “Abandona todas as outras variedades de religião e simplesmente rende-te a Mim.” Portanto, render-se à Suprema Personalidade de Deus é o verdadeiro princípio religioso. Todos aqueles que, em vez de se renderem a Kṛṣṇa, renderam-se aos princípios da natureza material, são impiedosos, não importando qual seja sua posição material. Ignorando os princípios da religião, eles não se rendem a Kṛṣṇa e, portanto, são considerados patifes e pecaminosos, os mais baixos entre os homens e tolos desprovidos de qualquer conhecimento. Como Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā (7.15):

na māṁ duṣkṛtino mūḍhāḥ
prapadyante narādhamāḥ
māyayāpahṛta-jñānā
āsuraṁ bhāvam āśritāḥ

“Os canalhas que são grosseiramente tolos, que são os mais baixos da humanidade, cujo conhecimento é roubado pela ilusão e que compartilham da natureza ateísta dos demônios, não se rendem a Mim.” Aquele que não se rendeu a Kṛṣṇa não conhece o verdadeiro princípio da religião; caso contrário, teria se rendido.

A questão levantada pelos Viṣṇudūtas vinha muito bem a calhar. Aquele que representa outrem deve conhecer perfeitamente a missão deste. Portanto, os devotos do movimento da consciência de Kṛṣṇa devem estar plenamente a par da missão de Kṛṣṇa e do Senhor Caitanya, ou serão considerados tolos. Todos os de­votos, especialmente os pregadores, devem conhecer a filosofia da consciência de Kṛṣṇa, para não se envergonharem nem serem insultados quando pregarem.

Texto

kathaṁ svid dhriyate daṇḍaḥ
kiṁ vāsya sthānam īpsitam
daṇḍyāḥ kiṁ kāriṇaḥ sarve
āho svit katicin nṛṇām

Sinônimos

katham svit — por que meios; dhriyate — é imposta; daṇḍaḥ — punição; kim — que; — ou; asya — deste; sthānam — o lugar; īpsitam — desejado; daṇḍyāḥ — passíveis de punição; kim — se; kāriṇaḥ — trabalhadores fruitivos; sarve — todos; āho svit — ou se; katicit — alguns; nṛṇām — dos seres humanos.

Tradução

Qual o processo através do qual se punem os outros? Quem são os verdadeiros candidatos à punição? Todos os karmīs ocupados em atividades fruitivas são passíveis de punição, ou somente alguns deles?

Comentário

SIGNIFICADO—Uma pessoa que tem o poder de punir os outros não deve punir todos. Existem inúmeras entidades vivas, a maioria das quais está no mundo espiritual e são nitya-mukta, eternamente liberadas. Julgar esses seres vivos liberados é algo que está fora de cogitação. Somente uma pequena fração das entidades vivas, talvez um quarto, está no mundo material. E a maior porção das entida­des vivas no mundo material – 8.000.000 das 8.400.000 formas de vida – é inferior aos seres humanos. Elas não são passíveis de pu­nição, visto que, sob as leis da natureza material, estão evoluindo automaticamente. Os seres humanos, que são avançados em consciência, são responsáveis, mas nem todos são passíveis de punição. Aqueles que estão ocupados em atividades piedosas avançadas estão além da punição. Somente aqueles que se ocupam em atividades pecami­nosas é que são passíveis de punição. Portanto, os Viṣṇudūtas per­guntaram especificamente sobre quem é passível de punição e por que Yamarāja fora designado para discriminar entre quem deve ou quem não deve ser punido. Como é que alguém será julgado? Qual o princípio básico de autoridade? Essas foram as perguntas levan­tadas pelos Viṣṇudūtas.

Texto

yamadūtā ūcuḥ
veda-praṇihito dharmo
hy adharmas tad-viparyayaḥ
vedo nārāyaṇaḥ sākṣāt
svayambhūr iti śuśruma

Sinônimos

yamadūtāḥ ūcuḥ — os mensageiros de Yamarāja disseram; veda — pelos quatro Vedas (Sāma, Yajur, Ṛg e Atharva); praṇihitaḥ — prescritos; dharmaḥ — princípios religiosos; hi — na verdade; adharmaḥ — princípios irreligiosos; tat-viparyayaḥ — o oposto disso (aquilo que não é apoiado pelos preceitos védicos); vedaḥ — os Vedas, livros de conhecimento; nārāyaṇaḥ sākṣāt — diretamente a Suprema Persona­lidade de Deus (sendo as palavras de Nārāyaṇa); svayambhūḥ – autógeno, autossuficiente (aparecendo somente da respiração de Nārāyaṇa e não sendo ensinados por nenhuma outra pessoa); iti — assim; śuśruma — ouvimos.

Tradução

Os Yamadūtas responderam: Aquilo que os Vedas prescrevem constitui o dharma, princípios religiosos, e o oposto disso é irreligião. Os Vedas são diretamente a Suprema Personalidade de Deus, Nārāyaṇa, e são autógenos. Foi Yamarāja quem nos disse isso.

Comentário

SIGNIFICADO—Os servos de Yamarāja responderam de maneira bem adequada. Eles não inventaram princípios de religião ou irreligião. Ao contrá­rio, explicaram o que lhe transmitiu uma autoridade: Yamarāja. Mahājano yena gataḥ sa panthāḥ: deve-se seguir o mahājana, a pessoa autorizada. Yamarāja é uma das doze autoridades. Portanto, os servos de Yamarāja, os Yamadūtas, responderam com toda a preci­são quando disseram śuśruma (“ouvimos”). Através da invenção especulativa, os membros da civilização moderna inventam princí­pios religiosos defeituosos. Isso não é dharma. Eles não sabem o que é dharma e o que é adharma. Portanto, como se afirma no começo do Śrīmad-Bhāgavatam, dharmaḥ projjhita-kaitavo ’tra: o Śrīmad-bhāgavata-dharma rejeita todo dharma que não é apoiado pelos Vedas. Bhāgavata-dharma abrange somente aquilo que é dado pela Suprema Personalidade de Deus. Bhāgavata-dharma é sarva-dharmān parityajya mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja: deve-se aceitar a autoridade da Suprema Personalidade de Deus e se render a Ele e a tudo o que Ele diz. Isso é dharma. Arjuna, por exemplo, pensando que a vio­lência era adharma, estava recusando-se a lutar, mas Kṛṣṇa o instigou a lutar. Arjuna acatou as ordens de Kṛṣṇa, daí ele realmente ser um dharmī, pois a ordem de Kṛṣṇa é o dharma. Na Bhagavad-gītā (15.15), Kṛṣṇa diz que vedais ca sarvair aham eva vedyaḥ: “O verdadeiro propósito do veda, o conhecimento, é conhecer­-Me.” Aquele que conhece Kṛṣṇa perfeitamente está liberado. Como Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā (4.9):

janma karma ca me divyam
evaṁ yo vetti tattvataḥ
tyaktvā dehaṁ punar janma
naiti mām eti so ’rjuna

“Aquele que conhece a natureza transcendental do Meu aparecimento e atividades, ao deixar o corpo não volta a nascer neste mundo material, senão que alcança Minha morada eterna, ó Arjuna.” Aquele que compreende Kṛṣṇa e acarta Sua ordem torna-se apto a regressar ao lar, regressar ao Supremo. Pode-se concluir que dharma, religião, refere-se àquilo que os Vedas ordenam, e adharma, irreligião, refere­-se àquilo que não encontra apoio nos Vedas.

Na verdade, o dharma não é inventado por Nārāyaṇa. Como se afirma nos Vedas, asya mahato bhūtasya niśvasitam etad yad ṛg-vedaḥ iti: os preceitos de dharma emanam da respiração de Nārāyaṇa, a entidade viva suprema. Nārāyaṇa existe eternamente e respira eter­namente, daí o dharma, os preceitos de Nārāyaṇa, também existirem eternamente. Śrīla Madhvācārya, o ācārya original para aqueles que pertencem ao Mādhva-Gauḍīya-sampradāya, diz:

vedānāṁ prathamo vaktā
harir eva yato vibhuḥ
ato viṣṇv-ātmakā vedā
ity āhur veda-vādinaḥ

As palavras transcendentais dos Vedas emanam da boca da Suprema Personalidade de Deus. Portanto, os princípios védicos devem ser tidos como princípios vaiṣṇavas porque Viṣṇu é a origem dos Vedas. Os Vedas não contêm nada além das instruções de Viṣṇu, e quem segue os princípios védicos é um vaiṣṇava. O vaiṣṇava não é um membro de uma comunidade inventada neste mundo material. O vaiṣṇava é o verdadeiro conhecedor dos Vedas, como se confirma na Bhagavad-gītā (vedaiś ca sarvair aham eva vedyaḥ).

Texto

yena sva-dhāmny amī bhāvā
rajaḥ-sattva-tamomayāḥ
guṇa-nāma-kriyā-rūpair
vibhāvyante yathā-tatham

Sinônimos

yena — por quem (Nārāyaṇa); sva-dhāmni — embora em Sua própria morada, o mundo espiritual; amī — todas essas; bhāvāḥ — manifestações; rajaḥ-sattva-tamaḥ-mayāḥ — criadas pelos três modos da natureza material (paixão, bondade e ignorância); guṇa — qualidades; nāma — nomes; kriyā — atividades; rūpaiḥ — e com as formas; vibhāvyante — manifestam-se variadamente; yathā-tatham — exatamente no ponto certo.

Tradução

Nārāyaṇa, a suprema causa de todas as causas, está situado em Sua própria morada no mundo espiritual, mas, de acordo com os três modos da natureza material – sattva-guṇa, rajo-guṇa e tamo-­guṇa –, Ele controla toda a manifestação cósmica. Dessa maneira, todas as entidades vivas recebem diferentes qualidades, diferentes designações, [tais como brāhmaṇa, kṣatriya e vaiśya], diferentes deveres de acordo com a instituição varṇāśrama e diferentes formas. Assim, Nārāyaṇa é a causa de toda a manifestação cósmica.

Comentário

SIGNIFICADO—Os Vedas nos informam:

na tasya kāryaṁ karaṇaṁ ca vidyate
na tat-samaś cābhyadhikaś ca dṛśyate
parāsya śaktir vividhaiva śrūyate
svābhāvikī jñāna-bala-kriyā ca

(Śvetāśvatara Upaniṣad 6.8)

Nārāyaṇa, a Suprema Personalidade de Deus, é onipotente. Ele tem energias multifárias e, portanto, é capaz de permanecer em Sua própria morada e, sem esforço, supervisionar e manipular toda a manifestação cósmica por meio da interação dos três modos da na­tureza material – sattva-guṇa, rajo-guṇa e tamo-guṇa. Essas intera­ções criam diferentes formas, corpos, atividades e mudanças, todos os quais ocorrem perfeitamente. Porque o Senhor é perfeito, tudo funciona como se Ele estivesse supervisionando tudo diretamente e em tudo tomando parte. Os ateus, contudo, estando cobertos pelos três modos da natureza material, não podem ver que Nārāyaṇa é a causa suprema que controla todas as atividades. Como Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā (7.13):

tribhir guṇamayair bhāvair
ebhiḥ sarvam idaṁ jagat
mohitaṁ nābhijānāti
mām ebhyaḥ param avyayam

“Iludido pelos três modos [bondade, paixão e ignorância], o mundo inteiro não conhece a Mim, que estou acima dos modos e sou inesgotável.” Porque são mohita, iludidos pelos três modos da natureza material, os agnósticos sem inteligência não conseguem entender que Nārāyaṇa, Kṛṣṇa, é a causa suprema de todas as atividades. Como se afirma na Brahma-saṁhitā (5.1):

īśvaraḥ paramaḥ kṛṣṇaḥ
sac-cid-ānanda-vigrahaḥ
anādir ādir govindaḥ
sarva-kāraṇa-kāraṇam

“Kṛṣṇa, conhecido como Govinda, é o controlador supremo. Ele tem um corpo espiritual eterno e bem-aventurado. Ele é a origem de tudo. Ele não tem alguma outra origem, pois é a causa primordial de todas as causas.”

Texto

sūryo ’gniḥ khaṁ marud devaḥ
somaḥ sandhyāhanī diśaḥ
kaṁ kuḥ svayaṁ dharma iti
hy ete daihyasya sākṣiṇaḥ

Sinônimos

sūryaḥ — o deus do Sol; agniḥ — o fogo; kham — o céu; marut — o ar; devaḥ — os semideuses; somaḥ — a Lua; sandhyā — o crepúsculo; ahanī — o dia e a noite; diśaḥ — as direções; kam — a água; kuḥ — a terra; svayam — pessoalmente; dharmaḥ — Yamarāja ou a Superalma; iti — assim; hi — na verdade; ete — todos esses; daihyasya — de uma entidade viva corporificada nos elementos materiais; sākṣiṇaḥ — testemunhas.

Tradução

O Sol, o fogo, o céu, o ar, os semideuses, a Lua, o crepúsculo, o dia, a noite, as direções, a água, a terra e a própria Superalma – todos testemunham as atividades dos seres vivos.

Comentário

SIGNIFICADO—Os membros de algumas seitas religiosas, especialmente os cristãos, não acreditam nas reações do karma. Certa vez, tivemos uma con­versa com um erudito catedrático cristão que argumentava que, embora as pessoas geralmente sejam punidas depois de ouvidas as testemunhas de seus delitos, onde estão as testemunhas responsá­veis pelo fato de alguém sofrer as reações do karma passado? Para tal pessoa, temos aqui a resposta dos Yamadūtas. A alma condicio­nada pensa que está agindo ocultamente e que ninguém pode ver suas atividades pecaminosas, mas, através dos śāstras, podemos entender que existem muitas testemunhas, incluindo o Sol, o fogo, o céu, o ar, a Lua, os semideuses, o crepúsculo, a noite, o dia, as direções, a água, a terra e a própria Superalma, que, juntamente com a alma individual, está sentada dentro do coração desta. Quem disse que não havia testemunhas? Tanto as testemunhas quanto o Senhor Supremo existem, de modo que muitas entidades vivas são ele­vadas aos sistemas planetários superiores ou degradadas aos sistemas planetários inferiores, incluindo os planetas infernais. Não há nada fora do lugar, pois tudo é arranjado perfeitamente pela administra­ção do Deus Supremo (svābhāvikī jñāna-bala-kriyā ca). As testemunhas mencionadas neste verso também são mencionadas em outros textos védicos:

āditya-candrāv anilo ’nalaś ca
dyaur bhūmir āpo hṛdayaṁ yamaś ca
ahaś ca rātriś ca ubhe ca sandhye
dharmo ’pi jānāti narasya vṛttam

Texto

etair adharmo vijñātaḥ
sthānaṁ daṇḍasya yujyate
sarve karmānurodhena
daṇḍam arhanti kāriṇaḥ

Sinônimos

etaiḥ — por todas essas (testemunhas, começando com o deus do Sol); adharmaḥ — desviar-se dos princípios reguladores; vijñātaḥ — é sabido; sthānam — o lugar adequado; daṇḍasya — de punição; yujya­te — é aceito como; sarve — todas; karma-anurodhena — considerando-se as atividades realizadas; daṇḍam — punição; arhanti — merecem; kāriṇaḥ — os autores de atividades pecaminosas.

Tradução

Os candidatos à punição são aqueles que essas muitas testemunhas apontam como tendo se desviado de seus deveres prescritos. Todas as pessoas ocupadas em atividades fruitivas estão sujeitas a serem punidas de acordo com os seus atos pecaminosos.

Texto

sambhavanti hi bhadrāṇi
viparītāni cānaghāḥ
kāriṇāṁ guṇa-saṅgo ’sti
dehavān na hy akarma-kṛt

Sinônimos

sambhavanti — existem; hi — na verdade; bhadrāṇi — atividades piedosas e auspiciosas; viparītāni — justamente o oposto (atividades pecaminosas e inauspiciosas); ca — também; anaghāḥ — ó habitantes de Vaikuṇṭha, os quais não tendes pecado algum; kāriṇām — dos trabalhadores fruitivos; guṇa-saṅgaḥ — contaminação dos três modos da natureza; asti — existe; deha-vān — todo aquele que tenha aceitado este corpo material; na — não; hi — na verdade; akarma-kṛt — sem exe­cutar ações.

Tradução

Ó habitantes de Vaikuṇṭha, não tendes pecado algum, mas todos aqueles que vivem neste mundo material são karmīs, quer estejam agindo piedosa, quer impiedosamente. Ambas as classes de ação lhes são possíveis porque eles estão contaminados pelos três modos da natureza e têm que agir em conformidade com esses. Aquele que aceitou um corpo material não pode permanecer inativo, e a ação pecaminosa é inevitável para aquele que age sob os modos da natureza material. Portanto, todas as entidades vivas dentro deste mundo material são passíveis de punição.

Comentário

SIGNIFICADO—A diferença entre os seres humanos e os seres não-humanos é que o ser humano deve agir de acordo com a orientação dos Vedas. Infelizmente, sem consultar os Vedas, os homens inventam seus próprios modos de agir. Portanto, todos eles cometem ações pecaminosas e são passíveis de punição.

Texto

yena yāvān yathādharmo
dharmo veha samīhitaḥ
sa eva tat-phalaṁ bhuṅkte
tathā tāvad amutra vai

Sinônimos

yena — pela pessoa que; yāvān — na quantidade que; yathā — na maneira que; adharmaḥ — atividades irreligiosas; dharmaḥ — atividades religiosas; — ou; iha — nesta vida; samīhitaḥ — executadas; saḥ — essa pessoa; eva — na verdade; tat-phalam — o resultado específico disso; bhuṅkte — desfruta ou sofre; tathā — dessa maneira; tāvat — nessa proporção; amutra — na vida seguinte; vai — na verdade.

Tradução

Em proporção à quantidade de ações religiosas ou irreligiosas que o indivíduo pratica nesta vida, ele terá de desfrutar ou sofrer a mesma equivalência das reações do seu karma na vida seguinte.

Comentário

SIGNIFICADO—Como se afirma na Bhagavad-gītā (14.18):

ūrdhvaṁ gacchanti sattva-sthā
madhye tiṣṭhanti rājasāḥ
jaghanya-guṇa-vṛtti-sthā
adho gacchanti tāmasāḥ

Aqueles que agem no modo da bondade são promovidos aos siste­mas planetários superiores para se tornarem semideuses, aqueles que agem de modo comum e não cometem excessivos atos pecaminosos permanecem dentro deste sistema planetário intermediário, e aqueles que executam ações pecaminosas abomináveis se rebaixam a uma vida infernal.

Texto

yatheha deva-pravarās
trai-vidhyam upalabhyate
bhūteṣu guṇa-vaicitryāt
tathānyatrānumīyate

Sinônimos

yathā — assim como; iha — nesta vida; deva-pravarāḥ — ó melhores entre os semideuses; trai-vidhyam — três classes de atributos; upalabhyate — são alcançadas; bhūteṣu — entre todas as entidades vivas; guṇa-vaicitryāt — por causa da diversidade da contaminação através dos três modos da natureza; tathā — igualmente; anyatra — em outros lugares; anumīyate — conclui-se.

Tradução

Ó melhores entre os semideuses, podemos ver três diferentes variedades de vida, que são consequentes à contaminação dos três modos da natureza. Portanto, conhecem-se as entidades vivas como: pacíficas, inquietas ou tolas; felizes, infelizes ou com um pouco dessas duas características; religiosas, irreligiosas ou semirreligiosas. Podemos deduzir que, na próxima vida, essas três espécies de natu­reza material continuarão exercendo suas ações.

Comentário

SIGNIFICADO—As ações e reações dos três modos da natureza material são visíveis nesta vida. Por exemplo, algumas pessoas são muito felizes, outras são muito aflitas e algumas sentem uma mistura de felicidade e tris­teza. Isso decorre do fato de que, no passado, elas se associaram com os modos da natureza material – bondade, paixão e ignorân­cia. Como essas variedades são visíveis nesta vida, podemos presumir que, de acordo com sua associação com os diferentes modos da na­tureza material, as entidades vivas, também em suas próximas vidas, serão felizes, infelizes ou terão um pouco dessas duas características. Portanto, a melhor conduta que alguém pode tomar é se desvincular dos três modos da natureza material e permanecer sempre transcendental à contaminação deles. Isso é possível somente quando ele se ocupa completamente em serviço devocional ao Senhor. Como Kṛṣṇa confirma na Bhagavad-gītā (14.26):

māṁ ca yo ’vyabhicāreṇa
bhakti-yogena sevate
sa guṇān samatītyaitān
brahma-bhūyāya kalpate

“Aquele que se ocupa em serviço devocional pleno e não falha em circunstância alguma, transcende de imediato os modos da natureza material e chega então ao nível de Brahman.” A menos que alguém esteja completamente absorto em servir ao Senhor, sujeita-­se à contaminação dos três modos da natureza material e, portanto, tem que passar por infelicidade ou uma mistura de felicidade e infelicidade.

Texto

vartamāno ’nyayoḥ kālo
guṇābhijñāpako yathā
evaṁ janmānyayor etad
dharmādharma-nidarśanam

Sinônimos

vartamānaḥ — o presente; anyayoḥ — do passado e do futuro; kālaḥ — tempo; guṇa-abhijñāpakaḥ — fazendo as qualidades tornarem-se conhecidas; yathā — exatamente como; evam — assim; janma — nascimento; anyayoḥ — dos nascimentos passados e futuros; etat — isto; dharma — princípios religiosos; adharma — princípios irreligiosos; nidarśanam — indicando.

Tradução

Assim como, no presente, a primavera denota a natureza das pri­maveras passadas e futuras, do mesmo modo, esta vida de felicidade, de infelicidade ou de uma mistura de ambas as características evidencia as atividades religiosas ou irreligiosas das vidas passadas e futuras de alguém.

Comentário

SIGNIFICADO—Não é muito difícil decifrar o passado e o futuro, pois o tempo está sob a influência da contaminação dos três modos da natureza material. Tão logo chega a primavera, a proliferação costumeira de várias espécies de frutos e flores naturalmente se manifesta, de modo que se pode concluir que, no passado, a primavera também estava enfeitada com frutas e flores e o mesmo lhe acontecerá no futuro. Nossa repetição de nascimentos e mortes está ocorrendo dentro do tempo, e, de acordo com a influência dos modos da natureza, esta­mos recebendo várias classes de corpos e sujeitando-nos a várias condições.

Texto

manasaiva pure devaḥ
pūrva-rūpaṁ vipaśyati
anumīmāṁsate ’pūrvaṁ
manasā bhagavān ajaḥ

Sinônimos

manasā — com a mente; eva — na verdade; pure — em sua morada ou dentro do coração de todos como a Superalma; devaḥ — o semi­deus Yamarāja (dīvyatīti devaḥ: alguém que é sempre brilhante e ilu­minado chama-se deva); pūrva-rūpam — a condição religiosa ou irreligiosa do passado; vipaśyati — observa por completo; anumīmāṁsate — ele pondera; apūrvam — a condição futura; manasā — com sua mente; bhagavān — que é todo-poderoso; ajaḥ — tão bom como o senhor Brahmā.

Tradução

O onipotente Yamarāja é tão bom como o senhor Brahmā, pois, enquanto permanece em sua própria morada ou no coração de todos como o Paramātmā, ele observa mentalmente as atividades passadas das entidades vivas e assim entende como as entidades vivas agirão em vidas futuras.

Comentário

SIGNIFICADO—Ninguém deve considerar Yamarāja como um ser vivo comum. Ele está no mesmo nível do senhor Brahmā. Ele conta com toda a cooperação do Senhor Supremo, que está situado no coração de todos, e portanto, pela graça da Superalma, ele, internamente, pode ver o passado, o presente e o futuro dos seres vivos. A palavra anumīmāṁsate significa que ele decide após consultar a Superalma. Anu significa “acatar”. As verdadeiras decisões quanto às próximas vidas dos seres vivos são tomadas pela Superalma, e Yamarāja é quem as executa.

Texto

yathājñas tamasā yukta
upāste vyaktam eva hi
na veda pūrvam aparaṁ
naṣṭa-janma-smṛtis tathā

Sinônimos

yathā — assim como; ajñaḥ — um ser vivo ignorante; tamasā — em dormir; yuktaḥ — ocupado; upāste — age de acordo com; vyaktam — um corpo manifesto em um sonho; eva — decerto; hi — na verdade; na veda — não conhece; pūrvam — o corpo anterior; aparam — o próximo corpo; naṣṭa — perdida; janma-smṛtiḥ — a lembrança do nascimento; tathā — igualmente.

Tradução

Assim como a pessoa adormecida age de acordo com o corpo manifesto em seus sonhos e o aceita como sendo ela própria, do mesmo modo, alguém se identifica com o seu corpo atual, o qual adquiriu devido às suas ações religiosas ou irreligiosas, praticadas no passado, e é incapaz de conhecer suas vidas passadas ou futuras.

Comentário

SIGNIFICADO—Um homem se ocupa em atividades pecaminosas porque não sabe o que fez em sua vida passada para obter este corpo atual que é materialmente condicionado e que está sujeito aos três sofrimentos. Como Ṛṣabhadeva afirma no Śrīmad-Bhāgavatam (5.5.4), nūnaṁ pramattaḥ kurute vikarma: o ser humano que está enlouquecido pelo gozo dos sentidos não hesita em agir pecaminosamente. Yad indriya-prītaya āpṛṇoti: em troca de simples gozo dos sentidos, ele executa ações pecaminosas. Na sādhu manye: isso não é bom. Yata ātmano ’yam asann api kleśada āsa dehaḥ: devido a essas ações pecaminosas, receberá outro corpo no qual deverá sofrer assim como, em seu corpo atual, sofre devido a suas atividades pecaminosas passadas.

Convém que se saiba que alguém que não tem conhecimento védico sempre age em ignorância do que fez no passado, do que está fazendo no presente e do que sofrerá no futuro. Ele jaz em completa escuridão. Portanto, o preceito védico diz que tamasi mā: “Não permaneças na escuridão.” Jyotir gama: “Tenta chegar-te à luz.” A luz, ou ilu­minação, é o conhecimento védico, do qual alguém pode achegar-se quando se eleva ao modo da bondade ou quando transcende o modo da bondade ocupando-se em serviço devocional ao mestre espiritual e ao Senhor Supremo. Descreve isso a Śvetāśvatara Upaniṣad (6.23):

yasya deve parā bhaktir
yathā deve tathā gurau
tasyaite kathitā hy arthāḥ
prakāśante mahātmanaḥ

“Somente àquelas grandes almas que têm fé irrestrita tanto no Senhor quanto no mestre espiritual, é que todos os significados do conhecimento védico são automaticamente revelados.” Os Vedas prescrevem que tad-vijñānārthaṁ sa gurum evābhigacchet: a fim de se tornar devoto do Senhor, a pessoa deve aproximar-se de um mestre espiritual que conheça todos os Vedas e deve fielmente receber orientações dele. Então, o conheci­mento dos Vedas lhe será revelado. Quando o conhecimento védico lhe for revelado, ela sairá da escuridão da natureza material.

De acordo com sua associação com os modos da natureza mate­rial – bondade, paixão e ignorância –, a entidade viva obtém uma determinada classe de corpo. Exemplo de pessoa associada com o modo da bondade é o brāhmaṇa qualificado. Tal brāhmaṇa conhece o presente, o passado e o futuro porque consulta a literatura védica e vê com os olhos dos śāstras (śāstra-cakṣuḥ). Ele pode entender qual foi sua vida passada, por que está no corpo atual e como pode li­bertar-se das garras de māyā e evitar de aceitar outro corpo material. Tudo isso se torna possível àquele que se situa no modo da bonda­de. Geralmente, entretanto, as entidades vivas estão absortas nos modos da paixão e da ignorância.

Em todo caso, é o critério da Suprema Personalidade de Deus, Paramātmā, que determina se a pessoa recebe um corpo superior ou inferior. Como se afirma no verso anterior:

manasaiva pure devaḥ
pūrva-rūpaṁ vipaśyati
anumīmāṁsate ’pūrvaṁ
manasā bhagavān ajaḥ

Tudo depende de bhagavān, ou ajaḥ, o não-nascido. Por que, então, alguém se negaria a satisfazer Bhagavān, o qual pode lhe dar um corpo melhor? A resposta é ajñas tamasā: devido à ignorância crassa. Aquele que está em completa escuridão não consegue entender sua vida passada nem sua vida futura; ele está simplesmente interessa­do em seu corpo atual. Muito embora tenha um corpo humano, a pessoa no modo da ignorância e interessada unicamente em seu pre­sente corpo é como um animal, pois um animal, estando coberto pela ignorância, pensa que a meta última da vida e a felicidade con­sistem em comer o máximo possível. O ser humano deve receber edu­cação no sentido de entender sua vida passada e de como pode esforçar-se por uma melhor vida futura. Existe até mesmo um livro, de nome Bhṛgu-saṁhitā, que, de acordo com cálculos astrológicos, revela informações sobre as vidas passadas, presente e futuras. De alguma forma, a pessoa deve esclarecer-se acerca de seu passado, presente e futuro. Importar-se somente com seu corpo atual e tentar satisfazer os sentidos ao máximo é próprio de uma pessoa absorta no modo da ignorância. Seu futuro é muitíssimo tenebroso. Na ver­dade, o futuro é sempre muito tenebroso para alguém que está mer­gulhado grosseiramente na ignorância. Em especial nesta era, a sociedade humana está imersa no modo da ignorância, de modo que, sem levar em consideração o passado ou o futuro, todos pensam que seu corpo atual é tudo.

Texto

pañcabhiḥ kurute svārthān
pañca vedātha pañcabhiḥ
ekas tu ṣoḍaśena trīn
svayaṁ saptadaśo ’śnute

Sinônimos

pañcabhiḥ — com os cinco sentidos funcionais (voz, braços, pernas, ânus e órgãos genitais); kurute — executa; sva-arthān — seus ansiados interes­ses; pañca — os cinco objetos dos sentidos (som, forma, tato, aroma e paladar); veda — conhece; atha — assim; pañcabhiḥ — com os cinco sentidos de percepção (ouvir, ver, cheirar, saborear e sentir); ekaḥ — a única; tu — mas; ṣoḍaśena — com esses quinze fa­tores e a mente; trīn — das três categorias de experiência (felicidade, infelicidade e uma mistura de ambas); svayam — ela, a própria enti­dade viva; saptadaśaḥ — o décimo sétimo fator; aśnute — desfruta.

Tradução

Acima dos cinco sentidos de percepção, dos cinco sentidos funcionais e dos cinco objetos dos sentidos, encontra-se a mente, que é o décimo sexto elemento. Acima da mente, está o décimo sétimo elemento, a alma, o próprio ser vivo, que, em cooperação com os outros de­zesseis, desfruta sozinho do mundo material. O ser vivo desfruta de três espécies de situações, a saber, felicidade, infelicidade ou a mis­tura das duas.

Comentário

SIGNIFICADO—Todas as pessoas se ocupam em trabalhar com suas mãos, pernas e outros sentidos simplesmente para alcançar certa meta, de acordo com sua imaginação. Desconhecendo a verdadeira meta da vida, que consiste em satisfazer o Senhor Supremo, todos tentam desfrutar dos cinco objetos dos sentidos, a saber, forma, som, paladar, aroma e tato. Por desobedecer ao Senhor Supremo, a pessoa é posta em condições materiais, e então, recusando-se a seguir as instruções da Suprema Personalidade de Deus, recorre a expedientes imaginários e tenta melhorar sua situação. Entretanto, o Senhor Supremo é tão bondoso que vem pessoalmente para instruir a entidade viva confu­sa, orientando-a sobre como agir obedientemente e então, de modo gradual, retornar ao lar, retornar ao Supremo, onde pode alcançar uma vida eterna e pacífica, plena de bem-aventurança e conhecimen­to. A entidade viva tem um corpo, que é uma combinação muito complexa de elementos materiais, e, com esse corpo, luta sozinha, como indicam neste verso as palavras ekas tu. Por exemplo, se alguém está lutando no oceano, tem que nadar sozinho. Embora muitos outros homens e seres aquáticos estejam nadando no oceano, ele deve cuidar de si próprio porque nenhum outro ser o ajudará. Portanto, este verso indica que o décimo sétimo item, a alma, tem que agir sozinho. Embora a alma tente criar sociedade, amizade e amor, ninguém, a não ser Kṛṣṇa, o Senhor Supremo, será capaz de ampará­-la. Logo, ela deve interessar-se apenas em como satisfazer Kṛṣṇa. Isso também é o que Kṛṣṇa quer (sarva-dharmān parityajya mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja). As pessoas desorientadas pelas condições ma­teriais tentam manter-se unidas, mas, embora lutem pela unida­de entre os homens e as nações, todas as suas tentativas se frustram. Sozinho, cada um deve lutar para sobreviver em meio aos muitos elementos da natureza. Portanto, tudo o que nos resta, como Kṛṣṇa aconselha, é rendermo-nos a Ele, pois Ele pode ajudar-nos a livrar­mo-nos do oceano da ignorância. Śrī Caitanya Mahāprabhu, por­tanto, ora:

ayi nanda-tanuja kiṅkaraṁ
patitaṁ māṁ viṣame bhavāmbudhau
kṛpayā tava pāda-paṅkaja-
sthita-dhūlī-sadṛśaṁ vicintaya

“Ó Kṛṣṇa, amado filho de Nanda Mahārāja, sou Teu servo eterno, mas, de alguma forma, caí neste oceano de ignorância, e, embora esteja lutando muito arduamente, não há como eu me salvar. Se fizeres o favor de resgatar-me e colocar-me como uma das partículas de poeira a Teus pés de lótus, isso me salvará.”

De maneira semelhante, Bhaktivinoda Ṭhākura canta:

anādi karama-phale, paḍi’ bhavārṇava-jale,
taribāre nā dekhi upāya

“Meu querido Senhor, não consigo lembrar-me quando foi que, de alguma forma, caí neste oceano de ignorância, e agora não vejo de que maneira poderei salvar-me.” Devemos lembrar-nos de que todos são responsáveis por suas próprias vidas. Se um indivíduo se torna devoto puro de Kṛṣṇa, ele se liberta do oceano de ignorância.

Texto

tad etat ṣoḍaśa-kalaṁ
liṅgaṁ śakti-trayaṁ mahat
dhatte ’nusaṁsṛtiṁ puṁsi
harṣa-śoka-bhayārtidām

Sinônimos

tat — portanto; etat — este; ṣoḍaśa-kalam — composto de dezesseis partes (a saber, os dez sentidos, a mente e os cinco objetos dos sentidos); liṅgam — o corpo sutil; śakti-trayam — o efeito dos três modos da natureza material; mahat — insuperável; dhatte — proporciona; anusaṁsṛtim — rotação e transmigração quase perpétuas em diferentes espécies de corpos; puṁsi — à entidade viva; harṣa — júbilo; śoka — lamentação; bhaya — medo; ārti — sofrimento; dām — o qual confere.

Tradução

O corpo sutil é composto de dezesseis partes: os cinco sentidos com os quais se adquire conhecimento, os cinco sentidos funcionais, os cinco objetos do gozo dos sentidos e a mente. Este corpo sutil é consequente aos três modos da natureza material. Ele é constituído de desejos fortes e insuperáveis, de modo que faz com que, na vida humana, na vida animal ou na vida de semideus, a entidade viva transmigre de um corpo a outro. Ao adquirir um corpo de semideus, a entidade viva certamente fica muito feliz; ao obter um corpo humano, ela está sempre se lamentando; e, ao obter um corpo de animal, ela está sempre com medo. Contudo, em qualquer circuns­tância, sua situação é realmente deplorável. Sua condição deplorável se chama saṁsṛti, ou transmigração na vida material.

Comentário

SIGNIFICADO—Neste verso, explica-se a essência da vida material condicionada. Vida após vida, a entidade viva, o décimo sétimo elemento, está lutando sozinha. Essa luta se chama saṁsṛti, ou vida material condicionada. Na Bhagavad-gītā, afirma-se que a força da natureza material é insuperavelmente forte (daivī hy eṣā guṇa-mayī mama māyā duratyayā). Em diferentes corpos, a natureza material aflige a enti­dade viva, mas, se ela se render à Suprema Personalidade de Deus, liberta-se desse emaranhamento, como se confirma na Bhagavad-gītā (mām eva ye prapadyante māyām etāṁ taranti te). Assim, sua vida se torna exitosa.

Texto

dehy ajño ’jita-ṣaḍ-vargo
necchan karmāṇi kāryate
kośakāra ivātmānaṁ
karmaṇācchādya muhyati

Sinônimos

dehī — a alma corporificada; ajñaḥ — sem conhecimento perfeito; ajita-ṣaṭ-vargaḥ — que não controlou os sentidos de percepção e a mente; na icchan — sem desejar; karmāṇi — atividades para o benefí­cio material; kāryate — é levada a executar; kośakāraḥ — o bicho-da-seda; iva — como; ātmānam — ela própria; karmaṇā — de atividades fruitivas; ācchādya — cobrindo-se; muhyati — desorienta-se.

Tradução

A tola entidade viva corporificada, incapaz de controlar seus sen­tidos e sua mente, toma atitudes contrárias aos seus dese­jos, pois é forçada a agir de acordo com a influência dos modos da natureza material. Ela é como um bicho-da-seda que usa a sua própria saliva para criar um casulo no qual se prende, sem possibilidade de escapar. A entidade viva se aprisiona na rede de suas próprias atividades fruitivas, após o que não consegue encontrar uma maneira de se libertar. Assim, está sempre confusa e morre vezes e mais vezes.

Comentário

SIGNIFICADO—Como já se explicou, a influência dos modos da natureza é muito forte. A entidade viva enredada em diferentes classes de atividades fruitivas é como um bicho-da-seda aprisionado em um casulo. Livrar-se é algo muito difícil para ela, a menos que lhe venha a ajuda da Suprema Personalidade de Deus.

Texto

na hi kaścit kṣaṇam api
jātu tiṣṭhaty akarma-kṛt
kāryate hy avaśaḥ karma
guṇaiḥ svābhāvikair balāt

Sinônimos

na — não; hi — na verdade; kaścit — ninguém; kṣaṇam api — nem mesmo por um momento; jātu — em tempo algum; tiṣṭhati — permanece; akarma-kṛt — sem fazer nada; kāryate — ele é levado a executar; hi — na verdade; avaśaḥ — automaticamente; karma — atividades fruitivas; guṇaiḥ — pelos três modos da natureza; svābhāvikaiḥ — que são produzidas pelas suas próprias tendências em vidas passadas; balāt — à força.

Tradução

Nem mesmo uma única entidade viva pode permanecer sem ocupa­ção nem mesmo por um momento. Todos têm que agir conforme sua ten­dência natural ditada pelos três modos da natureza material, pois essa tendência natural forçosamente faz com que elas ajam de determinada maneira.

Comentário

SIGNIFICADO—Svābhāvika, ou tendência natural, é o fator mais importante que induz alguém a agir. A tendência natural de todos é servir, porque a entidade viva é serva eterna de Deus. A entidade viva quer servir, mas, devido ao seu esquecimento de sua relação com o Senhor Supremo, ela serve sob os modos da natureza material e inventa vários tipos de serviço, tais como socialismo, humanitarismo e altruísmo. Contudo, as pessoas devem iluminar-se pelos princípios da Bhagavad-gītā e aceitar a instrução da Suprema Personalidade de Deus, que as aconselha a rejeitar todas as tendências naturais de prestar serviço material sob diferentes designações e adotar o serviço ao Senhor. Nossa tendência natural original é agirmos em consciên­cia de Kṛṣṇa, pois nossa verdadeira natureza é espiritual. O dever do ser humano é compreender que, como ele é essencialmente espí­rito, tem que se limitar às tendências espirituais e não deve deixar se arrastar por tendências materiais. Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura, portanto, canta:

(miche) māyāra vaśe, yāccha bhese',
khāccha hābuḍubu, bhāi

“Meus queridos irmãos, estais sendo arrastados pelas ondas da energia material e estais sofrendo em muitas condições dolorosas. Ora estais afogando-vos nas ondas da natureza material, ora, tal qual um nadador que peleja no oceano, ficais debatendo-­vos.” Como confirma Bhaktivinoda Ṭhākura, essa tendência de ser atormentado pelas ondas de māyā pode ser convertida para a tendên­cia natural e original, que é espiritual, quando a entidade viva entende que é eternamente kṛṣṇa-dāsa, servo de Deus, Kṛṣṇa.

(jīva) kṛṣṇa-dāsa, ei viśvāsa,
karle ta’ āra duḥkha nāi

Se, em vez de servir a māyā sob diferentes designações, alguém uti­liza sua atitude de prestar serviço e passa a servir ao Senhor Supremo, ele fica em uma posição segura e as dificuldades se acabam. Caso, através do processo de compreender o conhecimento perfeito que o próprio Kṛṣṇa transmite na literatura védica, a pessoa recupere sua tendência original e natural na forma de vida humana, sua vida terá sido exitosa.

Texto

labdhvā nimittam avyaktaṁ
vyaktāvyaktaṁ bhavaty uta
yathā-yoni yathā-bījaṁ
svabhāvena balīyasā

Sinônimos

labdhvā — tendo obtido; nimittam — a causa; avyaktam — invisível ou desconhecida pela pessoa; vyakta-avyaktam — manifesto ou imanifesto, ou o corpo grosseiro e o corpo sutil; bhavati — passar a exis­tir; uta — decerto; yathā-yoni — tal qual a mãe; yathā-bījam — tal qual o pai; sva-bhāvena — pela tendência natural; balīyasā — que é muito poderosa.

Tradução

As atividades fruitivas que o ser vivo executa, quer piedosas, quer impiedosas, são a causa subjacente para a satisfação dos seus desejos. Essa causa invisível é a raiz dos diferentes corpos da entidade viva. Devido ao seu desejo intenso, a entidade viva nasce em uma família em particular e recebe um corpo que é ou como o de sua mãe ou como o de seu pai. Os corpos grosseiros e sutis são criados de acordo com o seu desejo.

Comentário

SIGNIFICADO—O corpo grosseiro é produto do corpo sutil. Como se afirma na Bhagavad-gītā (8.6):

yaṁ yaṁ vāpi smaran bhāvaṁ
tyajaty ante kalevaram
taṁ tam evaiti kaunteya
sadā tad-bhāva-bhāvitaḥ

“Qualquer que seja o estado de existência de que alguém se lembre ao deixar o corpo, ó filho de Kuntī, esse mesmo estado ele alcançará impreterivelmente.” Na hora da morte, a atmosfera do corpo sutil é criada pelas atividades do corpo grosseiro. Assim, o corpo grosseiro age no de­curso da vida, e o corpo sutil age na hora da morte. O corpo sutil, que se chama liṅga, o corpo do desejo, é a base para o desenvolvi­mento de uma espécie particular de corpo grosseiro, que é ou como o de nossa mãe ou como o de nosso pai. De acordo com o Ṛg Veda, se na hora do ato sexual as secreções da mãe são mais profusas do que as do pai, a criança receberá um corpo feminino, e se as secreções do pai forem mais profusas que as da mãe, a criança receberá um corpo masculino. Estas são as leis sutis da natureza, que agem de acordo com o desejo da entidade viva. Caso se ensine a um ser humano como mudar seu corpo sutil através do processo de desenvolver a cons­ciência de Kṛṣṇa, na hora da morte o corpo sutil criará um corpo grosseiro no qual ele será um devoto de Kṛṣṇa, ou se ele for ainda mais perfeito, não precisará aceitar outro corpo material, senão que obterá imediatamente um corpo espiritual e assim voltará ao lar, voltará ao Supremo. Esse é o método da transmigração da alma. Portanto, em vez de tentar unir a sociedade humana através de pactos para o gozo dos sentidos que nunca podem ser concretizados, é bem melhor ensinar às pessoas como se tornarem conscientes de Kṛṣṇa e voltar ao lar, voltar ao Supremo. Isso é verdade tanto agora quanto em qualquer época.

Texto

eṣa prakṛti-saṅgena
puruṣasya viparyayaḥ
āsīt sa eva na cirād
īśa-saṅgād vilīyate

Sinônimos

eṣaḥ — essa; prakṛti-saṅgena — por causa da associação com a natureza material; puruṣasya — da entidade viva; viparyayaḥ — uma situação de esquecimento ou uma situação incômoda; āsīt — passou a existir; saḥ — essa posição; eva — na verdade; na — não; cirāt — levan­do muito tempo; īśa-saṅgāt — na associação com o Senhor Supremo; vilīyate — é subjugada.

Tradução

Como está associada com a natureza material, a entidade viva se encontra em uma posição incômoda, mas se, na forma de vida humana, ela aprende a se associar com a Suprema Personalidade de Deus ou com Seu devoto, essa posição pode ser subjugada.

Comentário

SIGNIFICADO—A palavra prakṛti significa natureza material, e puruṣa pode também referir-se à Suprema Personalidade de Deus. Se alguém deseja continuar sua associação com prakṛti, a energia feminina de Kṛṣṇa, e se manter separado de Kṛṣṇa pensando que é capaz de des­frutar de prakṛti, ele tem que continuar com sua vida condicionada. En­tretanto, se muda de consciência e se associa com a pessoa suprema e original (puruṣaṁ śāśvatam), ou com Seus associados, pode escapar do enredamento da natureza material. Como se confirma na Bhagavad-gītā (4.9), janma karma ca me divyam evaṁ yo vetti tattvataḥ: devemos simplesmente compreender Kṛṣṇa, a Pessoa Su­prema, no que se refere à Sua forma, nome, atividades e passatem­pos. Isso nos manterá sempre em associação com Kṛṣṇa. Tyaktvā dehaṁ punar janma naiti mām eti so ’rjuna: assim, após abandonar o corpo material grosseiro, não precisaremos receber outro corpo grosseiro, senão que receberemos um corpo espiritual com o qual voltaremos ao lar, voltaremos ao Supremo. Assim, findaremos a tribulação causada por nossa associação com a energia material. Em suma, a enti­dade viva é serva eterna de Deus, mas, devido ao seu desejo de se assenhorear da matéria, vem ao mundo material e fica atada às condições materiais. Liberação significa abandonar essa falsa cons­ciência e reviver nosso serviço original ao Senhor. Esse retorno à vida original se chama mukti, como se confirma no Śrīmad-Bhāgavatam (muktir hitvānyathā rūpaṁ svarūpeṇa vyavasthitiḥ).

Texto

ayaṁ hi śruta-sampannaḥ
śīla-vṛtta-guṇālayaḥ
dhṛta-vrato mṛdur dāntaḥ
satya-vāṅ mantra-vic chuciḥ
gurv-agny-atithi-vṛddhānāṁ
śuśrūṣur anahaṅkṛtaḥ
sarva-bhūta-suhṛt sādhur
mita-vāg anasūyakaḥ

Sinônimos

ayam — essa pessoa (conhecida como Ajāmila); hi — na verdade; śruta-sampannaḥ — bem-educada em conhecimento védico; śīla — de bom caráter; vṛtta — boa conduta; guṇa — e boas qualidades; ālayaḥ — o reservatório; dhṛta-vrataḥ — fixa na execução dos preceitos védicos; mṛduḥ — muito meiga; dāntaḥ — controlando por completo a mente e os sentidos; satya-vāk — sempre veraz; mantra-vit — sabendo cantar os hinos védicos; śuciḥ — sempre muito limpo e asseado; guru — o mestre espiritual; agni — o deus do fogo; atithi — convidados; vṛddhānām — e aos antigos membros da família; śuśrūṣuḥ — muito respeitosamente ocupado no serviço; anahaṅkṛtaḥ — sem orgulho ou falso prestígio; sarva-bhūta-suhṛt — amigável com todas as entidades vivas; sādhuḥ — bem-comportado (ninguém podia encontrar falha alguma em seu caráter); mita-vāk — falando com muito cuidado para evitar dizer tolices; anasūyakaḥ — destituído de inveja.

Tradução

No começo, esse brāhmaṇa chamado Ajāmila estudou todos os textos védicos. Ele era um reservatório de bom caráter, boa conduta e boas qualidades. Firmemente estabelecido em executar todos os preceitos védicos, ele era muito meigo e gentil, e mantinha sua mente e seus sentidos sob controle. Além disso, era sempre veraz, sabia cantar os mantras védicos, e era também muito puro. Ajāmila mos­trava muito respeito a seu mestre espiritual, ao deus do fogo, aos convidados e aos membros mais velhos de sua família. Na verdade, estava livre do falso prestígio. Era íntegro, benevolente para com todas as entidades vivas e bem-comportado. Nunca falava tolices nem invejava ninguém.

Comentário

SIGNIFICADO—Os mensageiros de Yamarāja, os Yamadūtas, estão explicando a verdadeira posição de piedade e impiedade e como a entidade viva se enreda neste mundo material. Descrevendo a história da vida de Ajāmila, os Yamadūtas relatam que, no começo, ele era um sábio entendido em literatura védica. Ele era bem-comportado, limpo e asseado, e muito bondoso com todos. De fato, ele tinha todas as boas qualidades. Em outras palavras, ele era um brāhmaṇa perfeito. Espera-se que um brāhmaṇa seja perfeitamente piedoso, siga todos os princípios reguladores e tenha todas as boas qualidades. Os sin­tomas de piedade são explicados nestes versos. Śrīla Vīrarāghava Ācārya comenta que dhṛta-vrata significa dhṛtaṁ vrataṁ strī-saṅga-­rāhityātmaka-brahmacarya-rūpam. Em outras palavras, Ajāmila seguia as regras e regulações de celibato como um brahmacārī per­feito e era muito bondoso de coração, veraz, limpo e puro. Nos versos seguintes, será descrito como, apesar de ter todas essas qua­lidades, ele caiu e assim chegou a ser ameaçado de receber a punição de Yamarāja.

Texto

ekadāsau vanaṁ yātaḥ
pitṛ-sandeśa-kṛd dvijaḥ
ādāya tata āvṛttaḥ
phala-puṣpa-samit-kuśān
dadarśa kāminaṁ kañcic
chūdraṁ saha bhujiṣyayā
pītvā ca madhu maireyaṁ
madāghūrṇita-netrayā
mattayā viślathan-nīvyā
vyapetaṁ nirapatrapam
krīḍantam anugāyantaṁ
hasantam anayāntike

Sinônimos

ekadā — certa vez; asau — esse Ajāmila; vanam yātaḥ — foi à flores­ta; pitṛ — de seu pai; sandeśa — a ordem; kṛt — cumprindo; dvijaḥ — o brāhmaṇa; ādāya — colhendo; tataḥ — da floresta; āvṛttaḥ — regres­sando; phala-puṣpa — frutas e flores; samit-kuśān — duas espécies de gramíneas, conhecidas como samit e kuśa; dadarśa — viu; kāmi­nam — muito luxurioso; kañcit — alguém; śūdram — um homem de quarta classe, um śūdra; saha — juntamente com; bhujiṣyayā — uma criada ordinária, ou prostituta; pītvā — após beberem; ca — também; madhu — néctar; maireyam — feito da flor soma; mada — pela embria­guez; āghūrṇita — girando; netrayā — seus olhos; mattayā — embria­gada; viślathat-nīvyā — cuja roupa estava solta; vyapetam — desviado do comportamento digno; nirapatrapam — sem medo da opinião pública; krīḍantam — ocupado em gozo; anugāyantam — cantando; hasantam — sorrindo; anayā — dela; antike — perto.

Tradução

Certa vez, esse brāhmaṇa Ajāmila, seguindo a ordem de seu pai, foi à floresta colher frutas, flores e duas espécies de gramíneas, cha­madas samit e kuśa. No caminho de volta para casa, deparou-se com um śūdra, um homem de quarta classe muitíssimo luxurioso e que desavergonhadamente abraçava e beijava uma prostituta. O śūdra sorria, cantava e alegrava-se como se esse seu comportamento fosse digno. Tanto o śūdra quanto a prostituta estavam embriagados. Os olhos da prostituta giravam de embriaguez, e sua roupa se afrouxara. Foi nesse estado que Ajāmila os viu.

Comentário

SIGNIFICADO—Enquanto percorria a via pública, Ajāmila se deparou com um homem de quarta classe e uma prostituta, que aqui são vividamente descritos. A embriaguez às vezes se manifestava mesmo em eras re­motas, embora não muito frequentemente. Contudo, nesta era de Kali, tal pecado é visto em toda parte, pois as pessoas do mundo inteiro perderam a vergonha. Outrora, ao presenciar a cena em que figura­vam o śūdra bêbado e a prostituta, Ajāmila, que era um brahmacārī perfeito, ficou abalado. Hoje em dia, semelhante pecado é comum em muitos lugares, e, em consequência disso, devemos analisar a po­sição de um estudante brahmacārī que vê tal comportamento. Se ele não for extremamente forte em seguir os princípios reguladores, é muito difícil que esse brahmacārī permaneça firme. Entretanto, se alguém adota muito seriamente a consciência de Kṛṣṇa, pode resistir a provocações criadas pelo pecado. Em nosso movimento da cons­ciência de Kṛṣṇa, proibimos o sexo ilícito, a intoxicação, o consumo de carne e os jogos de azar. Em Kali-yuga, ver uma mulher embria­gada e seminua abraçando um bêbado é algo muito comum, especialmente nos países ocidentais, e se controlar após ver esse tipo de coisa é muito difícil. Contudo, se, pela graça de Kṛṣṇa, a pessoa se mantém fiel aos princípios reguladores e canta o mantra Hare Kṛṣṇa, é certo que Kṛṣṇa a protegerá. Na verdade, Kṛṣṇa diz que seu devoto nunca perece (kaunteya pratijānīhi na me bhaktaḥ praṇaśyati). Por­tanto, todos os discípulos que praticam a consciência de Kṛṣṇa devem seguir com obediência os princípios reguladores e permanecer fixos em cantar os santos nomes do Senhor. Então, não será preciso temer. Caso contrário, sua posição será muito perigosa, especialmente neste Kali-yuga.

Texto

dṛṣṭvā tāṁ kāma-liptena
bāhunā parirambhitām
jagāma hṛc-chaya-vaśaṁ
sahasaiva vimohitaḥ

Sinônimos

dṛṣṭvā — vendo; tām — a ela (a prostituta); kāma-liptena — enfeitado com açafrão para provocar desejos luxuriosos; bāhunā — com o braço; parirambhitām — abraçava; jagāma — foi; hṛt-śaya — dos dese­jos luxuriosos dentro do coração; vaśam — sob o controle; sahasā — subitamente; eva — na verdade; vimohitaḥ — estando iludido.

Tradução

O śūdra, cujo braço estava decorado com pó de cúrcuma, abraçava a prostituta. Quando Ajāmila a viu, os desejos luxuriosos, que estavam adormecidos em seu coração, emergiram, e, iludido, deixou-­se ficar sob o controle deles.

Comentário

SIGNIFICADO—É dito que, quando alguém esfrega cúrcuma em seu corpo, ele atrai os desejos luxuriosos da pessoa do sexo oposto. A palavra kāma-liptena indica que o śūdra estava com o corpo untado de cúrcuma.

Texto

stambhayann ātmanātmānaṁ
yāvat sattvaṁ yathā-śrutam
na śaśāka samādhātuṁ
mano madana-vepitam

Sinônimos

stambhayan — tentando controlar; ātmanā — com a inteligência; ātmānam — a mente; yāvat sattvam — na medida que lhe era possível; yathā-śrutam — lembrando-se da instrução (de celibato, brahmacarya, de nem mesmo olhar para uma mulher); na — não; śaśāka — era capaz; samādhātum — de controlar; manaḥ — a mente; madana-vepitam — agitada pelo Cupido ou por desejos luxuriosos.

Tradução

Tanto quanto possível, ele, pacientemente, tentava lembrar-se das instruções dos śāstras de que não deveria nem mesmo olhar para uma mulher. Com a ajuda desse conhecimento e de seu intelecto, ele tentou controlar seus desejos luxuriosos, mas, devido à força do Cupido dentro de seu coração, não conseguiu controlar a mente.

Comentário

SIGNIFICADO—A menos que alguém seja muito forte em conhecimento, paciência e comportamento corpóreo, mental e intelectual adequados, refrear os desejos luxuriosos é extremamente difícil. Assim, após ver um homem abraçando uma jovem mulher e fazendo praticamente tudo o que se exige na vida sexual, mesmo um brāhmaṇa plenamente qua­lificado, como esse que acaba de ser descrito, não pôde con­trolar seus desejos luxuriosos, tampouco se abster de ouvir os seus comandos. Devido à força da vida materialista, manter o autocon­trole é extremamente difícil para quem não está sob especial proteção da Suprema Personalidade de Deus através do serviço devocional.

Texto

tan-nimitta-smara-vyāja-
graha-grasto vicetanaḥ
tām eva manasā dhyāyan
sva-dharmād virarāma ha

Sinônimos

tat-nimitta — decorrente do fato de tê-la visto; smara-vyāja — agarrando-se à sua atitude de sempre estar pensando nela; graha-­grastaḥ — eclipsados; vicetanaḥ — tendo se esquecido completamente de sua verdadeira posição; tām — nela; eva — decerto; manasā — com a mente; dhyāyan — meditando; sva-­dharmāt — dos princípios reguladores executados por um brāhmaṇa; virarāma ha — afastou-se por completo.

Tradução

Da mesma maneira que o Sol e a Lua são eclipsados por um planeta inferior, o brāhmaṇa perdeu todo o seu bom senso. Agarrando-­se a essa situação, ele sempre pensava na prostituta e, dentro de pouco tempo, convidou-a para trabalhar como criada em sua casa e, então, abandonou todos os princípios reguladores em que se alicerça a vida bramânica.

Comentário

SIGNIFICADO—Falando este verso, Śukadeva Gosvāmī procura incutir na mente do leitor que a elevada posição bramânica de Ajāmila desmoronou tão logo ele se associou com a prostituta, tão intensamente que ele se esque­ceu de todas as suas atividades bramânicas. Entretanto, no final de sua vida, quando cantou as quatro sílabas do nome de Nārāyaṇa, ele pôde ser salvo do gravíssimo perigo de cair. Svalpam apy asya dharmasya trāyate mahato bhayāt: mesmo um pouco de serviço de­vocional pode salvar-nos do maior perigo. O serviço devocional, que começa com o cantar do santo nome do Senhor, é tão poderoso que, mesmo que alguém se entregue a atividades sexuais, e consequen­temente caia da elevada posição de brāhmaṇa, pode salvar-se de todas as calamidades se, de alguma forma, canta o santo nome do Senhor. Esse é o poder extraordinário do santo nome do Senhor. Portanto, aconselha-se na Bhagavad-gītā que a pessoa não se esqueça de cantar o santo nome por um momento sequer (satataṁ kīrtayanto māṁ yatantaś ca dṛḍha-vratāḥ). São tantos os perigos neste mundo material que, a qualquer momento, uma pessoa pode cair de uma posição elevada. Todavia, se ela se mantiver sempre pura e fixa, cantando o mahā-mantra Hare Kṛṣṇa, será salva, e não restam dúvidas quanto a isso.

Texto

tām eva toṣayām āsa
pitryeṇārthena yāvatā
grāmyair manoramaiḥ kāmaiḥ
prasīdeta yathā tathā

Sinônimos

tām — a ela (a prostituta); eva — na verdade; toṣayām asa — ele tentou satisfazer; pitryeṇa — ele obteve através do árduo trabalho do seu pai; arthena — com o dinheiro; yāvatā — durante todo o tempo possível; grāmyaiḥ — materiais; manaḥ-ramaiḥ — agradáveis à mente dela; kamaiḥ — através de presentes para o gozo dos sentidos; pra­sīdeta — ela ficasse satisfeita; yathā — a fim de que; tathā — dessa maneira.

Tradução

Assim, para satisfazer a prostituta com vários presentes materiais, Ajāmila passou a gastar todo o dinheiro que herdara de seu pai, de modo que ela permanecesse satisfeita com ele. Enfim, para satisfa­zer a prostituta, abandonou todas as suas atividades bramânicas.

Comentário

SIGNIFICADO—Mundo afora, existem muitos exemplos onde, mesmo uma pessoa pura, deixando-se atrair por uma prostituta, gasta todo o dinheiro que herdou. A caça a prostitutas é tão abominável que o desejo de contato sexual com prostitutas pode arruinar o caráter da pessoa, destruir sua posição elevada e corroer todo o seu dinheiro. Portan­to, o sexo ilícito é estritamente proibido. Deve-se ficar satisfeito com a esposa obtida através de matrimônio legal, pois mesmo um leve desvio causará dano. O gṛhastha consciente de Kṛṣṇa deve sempre se lembrar disso. Ele sempre deve viver satisfeito com sua única esposa e ficar em paz simplesmente cantando o mantra Hare Kṛṣṇa. Caso contrário, a qualquer momento, poderá cair de sua posição, como exemplifica o caso de Ajāmila.

Texto

viprāṁ sva-bhāryām aprauḍhāṁ
kule mahati lambhitām
visasarjācirāt pāpaḥ
svairiṇyāpāṅga-viddha-dhīḥ

Sinônimos

viprām — a filha de um brāhmaṇa; sva-bhāryām — sua esposa; aprauḍhām — não muito idosa (jovem); kule — de uma família; mahati — muito respeitável; lambhitām — casado; visasarja — abandonou; acirāt — muito rapidamente; pāpaḥ — sendo pecaminoso; svairi­ṇyā — da prostituta; apāṅga-viddha-dhīḥ — sua inteligência trespassada pelo olhar luxurioso.

Tradução

Porque sua inteligência se deixou trespassar pelo olhar luxurioso da prostituta, o brāhmaṇa Ajāmila, tornando-se sua vítima, entre­gou-se a atos pecaminosos na associação dela. Ele inclusive chegou a abandonar a companhia de sua belíssima e jovem esposa, que viera de uma respeitabilíssima família de brāhmaṇas.

Comentário

SIGNIFICADO—Habitualmente, todos são elegíveis a herdar a propriedade paterna, e Ajāmila também herdou o dinheiro de seu pai. Mas que ele fez do dinheiro? Em vez de aplicar o dinheiro a serviço de Kṛṣṇa, ele o investiu a serviço de uma prostituta. Portanto, ele estava conde­nado e era passível de punição por Yamarāja. Como isso aconteceu? Ele caiu vítima do perigoso e luxurioso olhar de uma prostituta.

Texto

yatas tataś copaninye
nyāyato ’nyāyato dhanam
babhārāsyāḥ kuṭumbinyāḥ
kuṭumbaṁ manda-dhīr ayam

Sinônimos

yataḥ tataḥ — onde quer que fosse possível, da maneira que fosse possível; ca — e; upaninye — obtinha; nyāyataḥ — honestamente; anyā­yataḥ — desonestamente; dhanam — dinheiro; babhāra — ele mantinha; asyāḥ — dela; kuṭum-binyāḥ — tendo muitos filhos e filhas; kuṭumbam — a família; manda-dhīḥ — destituído de toda a inteligência; ayam — essa pessoa (Ajāmila).

Tradução

Embora nascido em família brāhmaṇa, esse patife, destituído de inteligência devido à associação com a prostituta, ganhava dinheiro de uma maneira ou outra, fosse de modo honesto ou desonesto, e usava o mesmo para manter os filhos e filhas da prostituta.

Texto

yad asau śāstram ullaṅghya
svaira-cāry ati-garhitaḥ
avartata ciraṁ kālam
aghāyur aśucir malāt

Sinônimos

yat — porque; asau — esse brāhmaṇa; śāstram ullaṅghya — transgredindo as leis do śāstra, svaira-cārī – agindo irresponsavelmente; ati­garhitaḥ — muitíssimo condenado; avartata — levou; ciram kālam — um longo tempo; agha-āyuḥ — cuja vida foi cheia de atividades pe­caminosas; aśuciḥ — impuro; malāt — devido ao vício.

Tradução

Esse brāhmaṇa irresponsável levou toda a sua longa vida transgredindo todas as regras e regulações da escritura sagrada, vivendo extravagantemente e comendo alimentos preparados por uma pros­tituta. Portanto, ficou cheio de pecados, impuro e viciado em ativi­dades proibidas.

Comentário

SIGNIFICADO—O alimento preparado por uma mulher ou homem impuros e pecaminosos, especialmente por uma prostituta, é extremamente contaminado. Ajāmila comia tais alimentos e, portanto, estava sujeito a ser punido por Yamarāja.

Texto

tata enaṁ daṇḍa-pāṇeḥ
sakāśaṁ kṛta-kilbiṣam
neṣyāmo ’kṛta-nirveśaṁ
yatra daṇḍena śuddhyati

Sinônimos

tataḥ — portanto; enam — a ele; daṇḍa-pāṇeḥ — de Yamarāja, que é autorizado a punir; sakāśam — à presença; kṛta-kilbiṣam — que regularmente cometeu todas as atividades pecaminosas; neṣyāmaḥ — levaremos; akṛta-nirveśam — que não se submeteu à expiação; yatra — onde; daṇḍena — através da punição; śuddhyati — ele se purificará.

Tradução

Ajāmila não se submeteu à expiação. Portanto, devido à sua vida pecaminosa, temos que levá-lo à presença de Yamarāja para ser pu­nido. Lá, de acordo com a quantidade dos seus atos pecaminosos, ele será punido e se purificará dessa maneira.

Comentário

SIGNIFICADO—Os Viṣṇudūtas proibiram os Yamadūtas de levar Ajāmila a Yamarāja, motivo pelo qual os Yamadūtas explicaram que levar tal homem até Yamarāja era a atitude correta. Como não se submetera à expiação de seus atos pecaminosos, Ajāmila devia ser levado até Yamarāja para ser purificado. Quando um homem comete assassinato, torna­-se pecaminoso, e portanto ele também tem que ser morto; caso con­trário, após a morte, ele terá que sofrer muitas reações pecaminosas. Analogamente, a punição imposta por Yamarāja é um processo de purificar as mais abomináveis pessoas pecaminosas. Portanto, os Yamadūtas pediram aos Viṣṇudūtas que não os impedissem de levar Ajāmila a Yamarāja.

Neste ponto, encerram-se os Significados Bhaktivedanta do sexto canto, primeiro capítulo, do Śrīmad-Bhāgavatam, intitulado “A História de Ajāmila”.