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CAPÍTULO UM

As Atividades de Mahārāja Priyavrata

Este capítulo descreve como o rei Priyavrata gozou de opulência e soberania reais e depois voltou ao pleno conhecimento. O rei Priyavrata era desapegado das opulências mundanas, mas depois apegou-se a seu reino e, afinal, novamente se desapegou do gozo material, alcançando, assim, a liberação. Ao ouvir acerca disso, o rei Parīkṣit ficou maravilhado, mas estava um tanto confuso a respeito de como um devoto sem nenhum apego ao gozo material pudesse, depois disso, voltar a ter apego a ele. Portanto, abismado, ele questionou Śukadeva Gosvāmī quanto a isso.

Em resposta às perguntas do rei, Śukadeva Gosvāmī disse que nenhuma influência material pode desvirtuar o serviço devocional, que é transcendental. Priyavrata recebera conhecimento transcendental através das instruções de Nārada, em razão do que não queria entregar-se a uma vida material e ao gozo de um reino. Contudo, ele aceitou o reino a pedido de semideuses superiores, tais como o senhor Brahmā e o senhor Indra, o rei dos céus.

Tudo está sob o controle da Suprema Personalidade de Deus, o controlador supremo, e todos devem agir em conformidade com isso. Assim como um touro é controlado por uma corda amarrada a seu focinho, todas as almas condicionadas são forçadas a trabalhar sob os encantos dos modos da natureza. Logo, um homem civilizado trabalha de acordo com a instituição de varṇa e āśrama. Mesmo na vida materialista, entretanto, a pessoa não pode agir livremente. Todos são obrigados a aceitar um tipo de corpo, oferecido pelo Senhor Supremo, e assim recebem diferentes graus de felicidade e aflição. Portanto, mesmo que alguém levianamente deixe o lar e vá para a floresta, ele se apegará novamente à vida materialista. A vida familiar é comparada a uma fortaleza destinada à prática do controle dos sentidos. Quem mantém os sentidos controlados pode viver em casa ou na floresta; não faz diferença.

Quando Mahārāja Priyavrata, seguindo a instrução do senhor Brahmā, aceitou o trono real, Manu, seu pai, deixou o lar e dirigiu-se à floresta. Mahārāja Priyavrata, então, casou-se com Barhiṣmatī, filha de Viśvakarmā. No ventre de Barhiṣmatī, ele gerou dez filhos, chamados Āgnīdhra, Idhmajihva, Yajñabāhu, Mahāvīra, Hiraṇyaretā, Ghṛtapṛṣṭha, Savana, Medhātithi, Vītihotra e Kavi. Gerou, também, uma filha, cujo nome era Ūrjasvatī. Mahārāja Priyavrata viveu com a esposa e a família por muitos milhares de anos. As impressões dos aros das rodas da quadriga de Mahārāja Priyavrata criaram sete oceanos e sete ilhas. Dos dez filhos de Priyavrata, três, chamados Kavi, Mahāvīra e Savana, aceitaram sannyāsa, a quarta ordem da vida, e os sete filhos restantes tornaram-se os governantes das sete ilhas. Mahārāja Priyavrata também teve uma segunda esposa, com a qual teve três filhos, chamados Uttama, Raivata e Tāmasa. Todos eles foram elevados ao posto de Manu. Śukadeva Gosvāmī descreve, então, como Mahārāja Priyavrata alcançou a liberação.

Texto

rājovāca
priyavrato bhāgavata
ātmārāmaḥ kathaṁ mune
gṛhe ’ramata yan-mūlaḥ
karma-bandhaḥ parābhavaḥ

Sinônimos

rājā uvāca — o rei Parīkṣit disse; priya-vrataḥ — rei Priyavrata; bhāgavataḥ — grande devoto; ātma-ārāmaḥ — que sente prazer na autorrealização; katham — por que; mune — ó grande sábio; gṛhe­ — no lar; aramata — desfrutou; yat-mūlaḥ — tendo isso como a causa fundamental; karma-bandhaḥ — o cativeiro às atividades fruitivas; parābhavaḥ — o fracasso da missão humana.

Tradução

O rei Parīkṣit perguntou a Śukadeva Gosvāmī: Ó grande sábio, por que o rei Priyavrata, que era um grande devoto autorrealizado do Senhor, permaneceu na vida familiar, que é a causa fundamental do cativeiro do karma [atividades fruitivas] e que faz fracassar a missão da vida humana?

Comentário

SIGNIFICADO—No quarto canto, Śrīla Śukadeva Gosvāmī explica que Nārada Muni instruiu perfeitamente ao rei Priyavrata sobre a missão da vida humana. A missão da vida humana consiste em compreender o eu e então, aos poucos, voltar ao lar, voltar ao Supremo. Já que Nārada Muni havia dado instruções suficientes ao rei sobre esse assunto, por que ele retomou a vida familiar, que é a principal causa do cativeiro material? Mahārāja Parīkṣit estava muito atônito com o fato de o rei Priyavrata voltar à vida familiar, especialmente por ele ser, não somente uma alma autorrealizada, mas também um devoto de primeira classe. De fato, o devoto não tem atração pela vida familiar, mas, surpreendentemente, o rei Priyavrata gozou muito da vida familiar. Pode ser que alguém pergunte: “O que há de errado em desfrutar da vida familiar?” A resposta é que a vida familiar ata o indivíduo aos efeitos das atividades fruitivas. A essência da vida familiar é o gozo dos sentidos, e, enquanto alguém embrutece a mente no árduo trabalho em troca de gozo dos sentidos, deixa-se atar pelas reações de suas atividades fruitivas. Essa ignorância da autorrealização é o maior fracasso na vida humana. A forma humana de vida se destina especialmente a escapar do cativeiro das atividades fruitivas, mas, enquanto alguém se mantém esquecido de sua missão na vida e age como um animal comum – comendo, dormindo, acasalando-se e defendendo-se –, é obrigado a continuar sua vida condicionada na existência material. Essa espécie de vida se chama svarūpa-vismṛti, esquecimento da verdadeira posição constitucional. Portanto, na civilização védica, as pessoas são treinadas desde o começo da vida como brahmacārīs. O brahmacārī deve realizar austeridades e abster-se da prática sexual. Portanto, se alguém é bem treinado nos princípios de brahmacarya, geralmente não adota a vida familiar. Então, ele se chama naiṣṭhika-brahmacārī, o que indica perfeito celibato. Por isso, o rei Parīkṣit estava atônito de ver que o grande rei Priyavrata, embora treinado nos princípios de naiṣṭhika-brahmacarya, tivesse adotado a vida familiar.

As palavras bhāgavata ātmārāmaḥ são muito significativas neste verso. Se alguém vive satisfeito consigo mesmo, como acontece com a Suprema Personalidade de Deus, ele se chama bhāgavata ātmārāmaḥ. Existem diferentes classes de satisfação. Os karmīs contentam-se com suas atividades fruitivas, os jñānīs contentam-se com a imersão na refulgência do Brahman, mas os devotos ficam satisfeitos quando podem ocupar-se a serviço do Senhor. O Senhor está sempre satisfeito conSigo mesmo porque é plenamente opulento, e alguém que fica satisfeito servindo-O chama-se bhāgavata ātmārāmaḥ. Manuṣyāṇāṁ sahasreṣu: dentre milhares e milhares de pessoas, talvez uma queira esforçar-se pela liberação, e, dentre milhares de pessoas que tentam libertar-se, talvez uma se livre das ansiedades da existência material e passe a viver satisfeita consigo mesma. Mesmo essa satisfação, contudo, não é a satisfação final. Os jñānīs e os karmīs têm desejos, como os têm os yogīs, mas os devotos não têm desejos. A satisfação de servir ao Senhor se chama ākāma, isenção de desejos, e essa é a satisfação última. Portanto, Mahārāja Parīkṣit perguntou: “Como alguém plenamente satisfeito na plataforma superior poderia satisfazer-se com a vida familiar?”

A palavra parābhavaḥ, neste verso, também é significativa. Quem se contenta com a vida familiar está perdido porque já deve ter esquecido sua relação com o Senhor. Prahlāda Mahārāja diz que as atividades da vida familiar nos enredam cada vez mais. Ātma-pātaṁ gṛham andha-kūpam: a vida familiar é como um poço escuro. Se uma pessoa cai nesse poço, sua morte espiritual é inevitável. O verso seguinte descreve como Priyavrata Mahārāja permaneceu como um paramahaṁsa liberado mesmo dentro da vida familiar.

Texto

na nūnaṁ mukta-saṅgānāṁ
tādṛśānāṁ dvijarṣabha
gṛheṣv abhiniveśo ’yaṁ
puṁsāṁ bhavitum arhati

Sinônimos

na — não; nūnam — certamente; mukta-saṅgānām — que estão livres do apego; tādṛśānām — semelhantes; dvija-ṛṣabha — ó maior dos brāhmaṇas; gṛheṣu — à vida familiar; abhiniveśaḥ — apego excessivo; ayam — este; puṁsām — de pessoas; bhavitum — ser; arhati — é possível.

Tradução

Por certo que os devotos são pessoas liberadas. Portanto, ó maior dos brāhmaṇas, não há possibilidade de eles se deixarem absorver nos assuntos familiares.

Comentário

SIGNIFICADO—O Bhakti-rasāmṛta-sindhu afirma que, prestando serviço devocional ao Senhor, todos podem compreender a posição transcendental do ser vivo e da Suprema Personalidade de Deus. Única e exclusivamente através de bhakti é que se pode compreender a Suprema Personalidade de Deus. O Senhor confirma isso no Śrīmad-Bhāgavatam (11.14.21). Bhaktyāham ekayā grāhyaḥ: “Só pode apreciar-Me quem pratica serviço devocional.” Do mesmo modo, na Bhagavad-gītā (18.55), o Senhor Kṛṣṇa diz que bhaktyā mam abhijānāti: “Pela simples prática do serviço devocional, qualquer pessoa pode compreender-Me.” Assim, é impossível que um bhakta se apegue aos assuntos familiares, uma vez que o bhakta e seus associados são pessoas liberados. Todos buscam por ānanda, ou bem-aventurança, mas, no mundo material, não pode haver qualquer bem-aventurança. Ela só é possível no serviço devocional. O apego aos assuntos familiares e o serviço devocional são incompatíveis. Por isso, Mahārāja Parīkṣit ficou um tanto surpreso ao ouvir que Mahārāja Priyavrata estava simultaneamente apegado ao serviço devocional e à vida familiar. 

Texto

mahatāṁ khalu viprarṣe
uttamaśloka-pādayoḥ
chāyā-nirvṛta-cittānāṁ
na kuṭumbe spṛhā-matiḥ

Sinônimos

mahatām — de grandes devotos; khalu — decerto; vipra-ṛṣe — ó grande sábio entre os brāhmaṇas; uttama-śloka-pādayoḥ — dos pés de lótus da Suprema Personalidade de Deus; chāyā — pela sombra; nirvṛta — saciados; cittānām — cuja consciência; na — nunca; kuṭumbe — aos membros familiares; spṛhā-matiḥ — consciência com apego.

Tradução

Os grandes mahātmās que se refugiaram aos pés de lótus da Suprema Personalidade de Deus satisfazem-se plenamente por estarem à sombra desses pés de lótus. Não há possibilidade de que a consciência deles se apegue aos membros familiares.

Comentário

SIGNIFICADO—Śrīla Narottama Dāsa Ṭhākura canta: nitāi pada-kamala, koṭī-candra suśītala, ye chāyāya jagat juḍāya. Ele descreve que a sombra dos pés de lótus do Senhor Nityānanda é tão agradável e refrescante que todos os materialistas, os quais estão sempre ardendo no fogo abrasador das atividades materiais, podem refugiar-se à sombra de Seus pés de lótus, aliviarem-se e saciarem-se por completo. A distinção entre a vida familiar e a vida espiritual pode ser experimentada por qualquer pessoa que tenha se submetido às tribulações de viver com uma família. Alguém que obteve o refúgio dos pés de lótus do Senhor jamais se sente atraído pelas atividades da vida familiar. Como afirma a Bhagavad-gītā (2.59), paraṁ dṛṣṭvā nivartate: abandonamos as ocupações inferiores quando experimentamos um gosto superior. Assim, o desapego à vida familiar acontece tão logo nos refugiemos aos pés de lótus do Senhor.

Texto

saṁśayo ’yaṁ mahān brahman
dārāgāra-sutādiṣu
saktasya yat siddhir abhūt
kṛṣṇe ca matir acyutā

Sinônimos

saṁśayaḥ — dúvida; ayam — esta; mahān — grande; brahman — ó brāhmaṇa; dāra — à esposa; āgāra — lar; suta — filhos; ādiṣu — e assim por diante; saktasya — de uma pessoa apegada; yat — porque; siddhiḥ — perfeição; abhūt — tornou-se; kṛṣṇe — a Kṛṣṇa; ca — também; matiḥ — apego; acyutā — infalível.

Tradução

O rei prosseguiu: Ó grande brāhmaṇa, esta é a minha grande dú­vida. Como foi possível a uma pessoa como o rei Priyavrata, que era tão apegado a esposa, filhos e lar, alcançar a perfeição máxima e infalível em consciência de Kṛṣṇa?

Comentário

SIGNIFICADO—O rei Parīkṣit surpreendeu-se ao saber que uma pessoa tão apegada a esposa, filhos e lar pudesse se tornar tão perfeitamente consciente de Kṛṣṇa. Prahlāda Mahārāja diz:

matir na kṛṣṇe parataḥ svato vā
mitho ’bhipadyeta gṛha-vratānām

O gṛhavrata, aquele que fez um voto de cumprir com seus deveres familiares, não tem possibilidade de tornar-se consciente de Kṛṣṇa. Isso porque a maioria dos gṛhavratas deixam-se conduzir pelo gozo dos sentidos e, portanto, deslizam gradualmente às mais escuras regiões da existência material (adānta-gobhir viśatāṁ tamisram). Será que eles podem realmente tornar-se perfeitos em consciência de Kṛṣṇa? Mahārāja Parīkṣit pediu a Śukadeva Gosvāmī que esclare­cesse essa grande dúvida.

Texto

śrī-śuka uvāca
bāḍham uktaṁ bhagavata uttamaślokasya śrīmac-caraṇāravinda-makaranda-rasa āveśita-cetaso bhāgavata-paramahaṁsa-dayita-kathāṁ kiñcid antarāya-vihatāṁ svāṁ śivatamāṁ padavīṁ na prāyeṇa hinvanti.

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī  Śukadeva Gosvāmī disse; bāḍham — correto; uktam — o que disseste; bhagavataḥ — da Personalidade de Deus; uttama-ślokasya — que é louvado com versos excelentes; śrīmatcaraṇa-aravinda – dos pés, que são como as mais belas e fragrantes flores de lótus; makaranda — mel; rase — no néctar; āveśita — absortos; cetasaḥ — cujos corações; bhāgavata — para os devotos; paramahaṁsa — pessoas liberadas; dayita — agradável; kathām — glorificação; kiñcit — às vezes; antarāya — por obstáculos; vihatām — barrados; svām — próprios; śiva-tamām — tão sublime; padavīm — posição; na — não; prāyeṇa — quase sempre; hinvanti — abandonam.

Tradução

Śrī Śukadeva Gosvāmī disse: O que disseste é correto. As glórias da Suprema Personalidade de Deus – que é louvado com eloquentes versos transcendentais, compostos por personalidades elevadas, como Brahmā – são muito agradáveis para os grandes devotos e para as pessoas liberadas. Quem é apegado ao mel nectáreo dos pés de lótus do Senhor, e cuja mente está sempre absorta em Suas glórias, talvez tenha seu progresso estorvado algumas vezes por algum obstáculo, mas, de qualquer modo, jamais abandona a posição sublime que alcançou.

Comentário

SIGNIFICADO—Śrī Śukadeva Gosvāmī aceitou ambas as proposições do rei: que uma pessoa avançada em consciência de Kṛṣṇa não consegue retomar a vida materialista e que alguém que adotou a vida materialista não pode, em nenhuma fase de sua existência, aderir à consciência de Kṛṣṇa. Apesar de ter aceitado as duas afirmações, Śukadeva Gosvāmī justificou-as, dizendo que alguém que já tenha alguma vez concentrado sua mente na glorificação à Suprema Per­sonalidade de Deus pode, certas vezes, sofrer a influência de contratempos, mas, de qualquer modo, ele não abandona sua sublime posição.

Segundo Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura, existem duas classes de impedimentos ao serviço devocional. O primeiro é uma ofensa aos pés de lótus de um vaiṣṇava, chamada vaiṣṇava-aparādha. Śrī Caitanya Mahāprabhu advertiu Seus devotos a não cometerem vaiṣṇava-aparādha, algo que Ele descreveu como “a ofensa do elefante louco”. Ao entrar em um belo jardim, o elefante louco destrói tudo, deixando apenas um terreno baldio. Do mesmo modo, tamanho é o poder de um vaiṣṇava-aparādha que mesmo um devoto avançado se vê privado quase completamente de seus bens espirituais caso se envolva com isso. Por ser eterna, a consciência de Kṛṣṇa não pode ser des­truída por inteiro, mas o avanço pode ser estorvado por algum tempo. Assim, o vaiṣṇava-aparādha é uma das classes de im­pedimento ao serviço devocional. Às vezes, entretanto, a Suprema Personalidade de Deus ou Seu devoto desejam impedir o serviço devocional de alguém. Por exemplo, Hiraṇyakaśipu e Hiraṇyākṣa foram, anteriormente, Jaya e Vijaya, os porteiros de Vaikuṇṭha, mas, pelo desejo do Senhor, tornaram-se Seus inimigos durante três vidas. Deste modo, o desejo do Senhor é outra classe de impedi­mento. Porém, em ambos os casos, o devoto puro, já avançado em consciência de Kṛṣṇa, não pode perecer. Seguindo as ordens de seus superiores (Svāyambhuva e o senhor Brahmā), Priyavrata aceitou a vida familiar, mas isso não significa que ele perdeu sua posição em serviço devocional. A consciência de Kṛṣṇa é perfeita e eterna, daí ser impossível perdê-la, independentemente de quais sejam as circunstâncias. Como o mundo material está cheio de obstáculos ao avanço em consciência de Kṛṣṇa, pode parecer que existem muitos impedimen­tos, mas Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, declara na Bhagavad-gītā (9.31) que kaunteya pratijānīhi na me bhaktaḥ praṇaśyati: uma vez que nos refugiemos aos pés de lótus do Senhor, não podemos mais nos perder.

Neste verso, a palavra śivatamām é muito significativa. Śivatamām significa “o mais auspicioso”. O caminho devocional é tão auspi­cioso que o devoto não perece em nenhuma circunstância. O próprio Senhor descreve isso na Śrīmad Bhagavad-gītā (6.40), onde diz que pārtha naiveha nāmutra vināśas tasya vidyate: “Meu querido Arjuna, um devoto não tem possibilidade de perder-se, seja nesta vida, seja na próxima.” Na Bhagavad-gītā (6.43), o Senhor explica em termos claros como isso acontece.

tatra taṁ buddhi-saṁyogaṁ
labhate paurva-dehikam
yatate ca tato bhūyaḥ
saṁsiddhau kuru-nandana

Por ordem do Senhor, o devoto perfeito às vezes vem a este mundo material como um ser humano comum, mas, devido à sua prática anterior, esse devoto perfeito apega-se com naturalidade ao serviço devocional, aparentemente sem nenhum motivo. A despeito de todas as classes de impedimentos decorrentes das circunstâncias que o cercam, ele persevera com naturalidade no serviço devocional e, aos poucos, avança até se tornar perfeito mais uma vez. Bilvamaṅgala Ṭhākura havia sido um devoto avançado em sua vida anterior, mas, na vida seguinte, tornou-se muito caído e se apegou a uma prostituta. De repente, contudo, todo o seu comportamento transformou-se diante das palavras da mesma prostituta que tanto o atraíra e ele voltou a ser um grande devoto. Na vida de grandes devotos, encontramos muitos desses exemplos, provando que, uma vez que alguém tenha se refugiado aos pés de lótus do Senhor, ele jamais se perde (kaunteya pratijānīhi na me bhaktaḥ praṇaśyati).

É verdade, entretanto, que alguém se torna devoto ao livrar-se por completo de todas as reações da vida pecaminosa. Como Kṛṣṇa afirma na Bhagavad-gītā (7.28):

yeṣāṁ tv anta-gataṁ pāpaṁ
janānāṁ puṇya-karmaṇām
te dvanda-moha-nirmuktā
bhajante māṁ dṛḍha-vratāḥ

“Aqueles que agiram piedosamente tanto nesta vida quanto em vidas passadas, e cujas ações pecaminosas se erradicaram por completo, livram-se da ilusão manifesta sob a forma das dualidades, e se ocupam em servir-Me com determinação.” Por outro lado, como disse Prahlāda Mahārāja:

matir na kṛṣṇe parataḥ svato vā
mitho ’bhipadyeta gṛha-vratānām

Quem é por excessivamente apegado à vida familiar materialista – lar, famí­lia, esposa, filhos e assim por diante – não pode desenvolver a consciência de Kṛṣṇa.

Pela graça do Senhor Supremo, essas aparentes contradições são conciliadas na vida de um devoto, em virtude do que o devoto nunca é privado de sua posição no caminho da liberação, posição esta descrita neste verso como śivatamām padavīm.

Texto

yarhi vāva ha rājan sa rāja-putraḥ priyavrataḥ parama-bhāgavato nāradasya caraṇopasevayāñjasāvagata-paramārtha-satattvo brahma-satreṇa dīkṣiṣyamāṇo ’vani-tala-paripālanāyāmnāta-pravara-guṇa-gaṇaikānta-bhājanatayā sva-pitropāmantrito bhagavati vāsudeva evāvyavadhāna-samādhi-yogena samāveśita-sakala-kāraka-kriyā-kalāpo naivābhyanandad yadyapi tad apratyāmnātavyaṁ tad-adhikaraṇa ātmano ’nyasmād asato ’pi parābhavam anvīkṣamāṇaḥ.

Sinônimos

yarhi — porque; vāva ha — de fato; rājan — ó rei; saḥ — ele; rāja­-putraḥ — o príncipe; priyavrataḥ — Priyavrata; parama — supremo; bhāgavataḥ — devoto; nāradasya — de Nārada; caraṇa — os pés de lótus; upasevayā — servindo; añjasā — rapidamente; avagata — tomou conhecimento de; parama-artha — tema transcendental; sa-tattvaḥ — com todos os fatos cognoscíveis; brahma-satrena — pelo entretenimento contínuo com o Supremo; dīkṣiṣyamāṇaḥ — desejando dedicar­-se por completo; avani-tala — a superfície do globo; paripālanāya — de governar; āmnāta — orientado pelas escrituras reveladas; pravara­ — supremas; guṇa — de qualidades; gaṇa — o somatório; ekānta — sem desvio; bhājanatayā — devido ao fato de ele possuir; sva-pitrā — por seu pai; upāmantritaḥ — sendo solicitado; bhagavati — na Suprema Personalidade de Deus; vāsudeve — o Senhor onipenetrante; eva — com certeza; avyavadhāna — sem cessar; samādhi-yogena — pela prática de yoga, em completa absorção; samāveśita — plenamente dedicado; sakala — todos; kāraka — sentidos; kriyā-kalāpaḥ — cujas atividades totais; na — não; eva — assim; abhyanandat — ofereceu boas-vindas; yady­api — embora; tat — isto; apratyāmnātavyam — que não deve ser re­jeitado por razão alguma; tat-adhikaraṇe — em ocupar este posto; ātmanaḥ — dele próprio; anyasmāt — por outras ocupações; asataḥ­ — materiais; api — decerto; parābhavam — deterioração; anvīkṣamāṇaḥ­ — prevendo.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī prosseguiu: Meu querido rei, o príncipe Priya­vrata era um grande devoto, pois refugiou-se aos pés de lótus de Nārada, seu mestre espiritual, alcançando, assim, a perfeição máxima em conhecimento transcendental. Munido de conhecimento avan­çado, ele discutia temas espirituais sem cessar e não dispersava sua atenção com coisa alguma. Então, o pai do príncipe pediu-lhe que se encarregasse de governar o mundo. Ele tentou convencer Priyavrata de que aquele era seu dever, segundo indicavam as escri­turas reveladas. O príncipe Priyavrata, contudo, seguiu praticando bhakti-yoga todo o tempo, lembrando-se sempre da Suprema Per­sonalidade de Deus e, assim, ocupando todos os seus sentidos a ser­viço do Senhor. Portanto, embora não pudesse rejeitar a ordem de seu pai, o príncipe não a acolheu com alegria. Então, muito cuidadosamente, ele questionou se deveria de fato desviar-se do serviço devocional, aceitando a responsabilidade de governar o mundo.

Comentário

SIGNIFICADO—Em uma de suas canções, Śrīla Narottama Dāsa Ṭhākura diz que chāḍiyā vaiṣṇava-sevā nistāra pāyeche kebā: “Sem servir aos pés de lótus de um vaiṣṇava puro ou mestre espiritual, ninguém jamais alcançou a liberação perfeita do cativeiro material.” Como prestava serviço regular aos pés de lótus de Nārada, o príncipe Priyavrata entendia os temas transcendentais de uma maneira perfeita e concreta (sa-­tattvaḥ). A palavra sa-tattvaḥ significa que Priyavrata conhecia todos os fatos relativos à alma espiritual, à Suprema Personalidade de Deus e à relação entre a alma espiritual e a Suprema Personalidade de Deus, além de também conhecer tudo acerca deste mundo material e da relação da alma espiritual com o Senhor Supremo no mundo material. Sendo assim, o príncipe decidiu se ocupar apenas em prestar serviço ao Senhor.

Quando Svāyambhuva Manu, pai de Priyavrata, pediu-lhe que aceitasse a responsabilidade de governar o mundo, ele não recebeu com a alegria a sugestão. Esse sintoma é próprio de um grande devoto liberado. Mesmo que esteja ocupado em afazeres mundanos, ele não sente prazer neles, senão que permanece sempre absorto em servir ao Senhor. Enquanto serve ao Senhor dessa maneira, ele se ocupa externamente com os afazeres mundanos sem se deixar afetar por eles. Por exemplo, mesmo não sentindo atração por seus filhos, ele cuida deles e educa-os para que se tornem devotos. Da mesma forma, ele usa palavras afetuosas ao dirigir-se à sua esposa, mas não é apegado a ela. Prestando serviço devocional, o devoto adquire todas as boas qualidades do Senhor Supremo. O Senhor Kṛṣṇa tinha dezesseis mil esposas, todas elas belíssimas, e, embora Se relacionasse com todas elas como se fosse um esposo apaixonado, Ele não sentia atração ou apego por nenhuma delas. Da mesma maneira, mesmo que se case e seja muito afetuoso com a esposa e os filhos, o devoto nunca se apega a essas atividades.

Este verso afirma que, servindo aos pés de lótus de seu mestre espiritual, o príncipe Priyavrata logo alcançou a fase de perfeição em consciência de Kṛṣṇa. Essa é a única maneira de avançar na vida espiritual. Como afirmam os Vedas:

yasya deve parā bhaktir
yathā deve tathā gurau
tasyaite kathitā hy arthāḥ
prakāśante mahātmanaḥ

“Se alguém tiver fé absoluta no Senhor Supremo e no mestre espiritual, a essência de todo o conhecimento védico lhe será revelada.” (Śvetāśvatara Upaniṣad 6.23) O devoto está sempre pensando no Senhor. Enquanto canta o mantra Hare Kṛṣṇa, as palavras Kṛṣṇa e Hare imediatamente fazem com que ele se lembre de todas as atividades do Senhor. Como dedica toda a sua vida ao serviço do Senhor, o devoto não consegue esquecer o Senhor nem por um instante. Assim como um homem comum mantém sua mente ocupada em atividades materiais, o devoto mantém sua mente ocupada em atividades espi­rituais. Isso se chama brahma-satra, ou seja, meditar sempre no Senhor Supremo. O príncipe Priyavrata foi perfeitamente iniciado nessa prática por Śrī Nārada.

Texto

atha ha bhagavān ādi-deva etasya guṇa-visargasya paribṛṁhaṇānudhyāna-vyavasita-sakala-jagad-abhiprāya ātma-yonir akhila-nigama-nija-gaṇa-pariveṣṭitaḥ sva-bhavanād avatatāra.

Sinônimos

atha — assim; ha — na verdade; bhagavān — o mais poderoso; ādi-­devaḥ — o primeiro semideus; etasya — deste universo; guṇa-visarga­sya — a criação dos três modos da natureza material; paribṛṁhaṇa — o bem-estar; anudhyāna — pensando sempre em; vyavasita — conhecido; sakala — todo; jagat — do universo; abhiprāyaḥ — por quem o propó­sito fundamental; ātma — o Eu Supremo; yoniḥ — cuja fonte de nasci­mento; akhila — todos; nigama — dos Vedas; nija-gaṇa — de associados pessoais; pariveṣṭitaḥ — estando rodeado; sva-bhavanāt — de sua própria morada; avatatāra — desceu.

Tradução

Śrī Śukadeva Gosvāmī continuou: Neste universo, a primeira cria­tura e o mais poderoso semideus é o senhor Brahmā, que é sempre responsável pelo desenvolvimento dos assuntos universais. Nascido diretamente da Suprema Personalidade de Deus, ele dedica suas atividades ao bem-estar de todo o universo, pois conhece o propósito da criação universal. Esse poderosíssimo senhor Brahmā, acompa­nhado de seus associados e dos Vedas personificados, deixou sua própria morada, situada no mais elevado sistema planetário deste universo, e desceu ao lugar onde meditava o príncipe Priyavrata.

Comentário

SIGNIFICADO—O Senhor Viṣṇu, o Supremo Eu (ātmā), é a fonte de tudo, con­forme explica o Vedānta-sūtra: janmādy asya yataḥ. Como Brahmā nasceu diretamente do Senhor Viṣṇu, ele é chamado de ātma-yoni. Ele também é chamado de bhagavān, embora, de um modo geral, bhagavān refira-se à Suprema Personalidade de Deus (Viṣṇu ou o Senhor Kṛṣṇa). Às vezes, grandes personalidades – semideuses como o senhor Brahmā, Nārada ou o senhor Śiva – também são chama­das de bhagavān porque trazem à tona o propósito da Suprema Personalidade de Deus. O senhor Brahmā é chamado de bhagavān porque é o criador secundário deste universo. Ele está sempre pensando em como melhorar a situação das almas condicionadas que vêm ao mundo material gozar de atividades materiais. Por essa razão, a fim de orientar a todos, ele dissemina o conhecimento védico por todo o universo.

O conhecimento védico se divide em duas categorias: pravṛtti­-mārga e nivṛtti-mārga. Nivṛtti-marga é o caminho em que se nega o gozo dos sentidos, e pravṛtti-mārga é o caminho mediante o qual as entidades vivas recebem uma oportunidade de desfrutar e, ao mesmo tempo, são orientadas de tal maneira que possam voltar ao lar, voltar ao Supremo. Já que governar este universo é uma grande responsabilidade, Brahmā precisa forçar muitos Manus em diferentes eras a se encarregarem dos assuntos universais. Debaixo da autoridade de cada Manu, existem diferentes reis que também cumprem o propósito do senhor Brahmā. Segundo explicações anteriores, entendemos que o rei Uttānapāda, pai de Dhruva Mahārāja, governou o universo porque Priyavrata, seu irmão mais velho, estava praticando austeridades desde o começo de sua vida. Assim, até a época dos Pracetās, os reis do uni­verso eram todos descendentes de Uttānapāda Mahārāja. Como não havia reis competentes depois dos Pracetās, Svāyambhuva Manu dirigiu-se à colina Gandhamādana, onde Priyavrata, seu filho mais velho, estava meditando, para trazê-lo de volta. Svāyambhuva Manu pediu a Priyavrata que governasse o universo. Como ele se recusava a isso, o senhor Brahmā desceu do sistema planetário supremo, conhecido como Satyaloka, para pedir a Priyavrata que aceitasse a ordem do pai. O senhor Brahmā não desceu sozinho. Com ele, vieram outros sábios, como Marīci, Ātreya e Vasiṣṭha. Para convencer Priyavrata de que era necessário que ele observasse os preceitos védicos e acei­tasse a responsabilidade de governar o mundo, o senhor Brahmā também levou consigo os Vedas personificados, seus companheiros constantes.

Uma palavra significativa neste verso é sva-bhavanāt, indicativa de que o senhor Brahmā desceu de sua própria morada. Todo semi­deus tem sua própria morada. Indra, o rei dos semideuses, tem sua própria morada, assim como Candra, o senhor do planeta Lua, e Sūrya, a deidade predominante do planeta Sol. Existem muitos milhões de semideuses, e as estrelas e os planetas são suas respecti­vas moradas. A Bhagavad-gītā confirma isso. Yānti deva-vratā devān: “Aqueles que adoram os semideuses vão aos seus respectivos siste­mas planetários.” A morada do senhor Brahmā, o sistema planetá­rio mais elevado, chama-se Satyaloka, ou, algumas vezes, Brahmaloka. Normalmente, Brahmaloka se refere ao mundo espiritual. A morada do senhor Brahmā é Satyaloka, mas, como o senhor Brahmā ali reside, às vezes ela também é chamada de Brahmaloka.

Texto

sa tatra tatra gagana-tala uḍu-patir iva vimānāvalibhir anupatham amara-parivṛḍhair abhipūjyamānaḥ pathi pathi ca varūthaśaḥ siddha-gandharva-sādhya-cāraṇa-muni-gaṇair upagīyamāno gandha-mādana-droṇīm avabhāsayann upasasarpa.

Sinônimos

saḥ — ele (o senhor Brahmā); tatra tatra — aqui e ali; gagana-tate — sob o firmamento celeste; uḍu-patiḥ — a Lua; iva — como; vimāna-­āvalibhiḥ — em seus respectivos aeroplanos; anupatham — ao longo do caminho; amara — dos semideuses; parivṛḍhaiḥ — pelos líderes; abhipūjyamānaḥ — sendo adorado; pathi pathi — no caminho, um após outro; ca — também; varūthaśaḥ — em grupos; siddha — pelos ha­bitantes de Siddhaloka; gandharva — pelos habitantes de Gandharva­loka; sādhya — pelos habitantes de Sādhyaloka; cāraṇa — pelos habitantes de Cāraṇaloka; muni-gaṇaiḥ — e por grandes sábios; upagīyamānaḥ — sendo adorado; gandha-mādana — do planeta onde se encontra a colina Gandhamādana; droṇīm — o sopé; avabhā-sayan — iluminando; upasasarpa — ele se aproximou.

Tradução

Conforme Brahmā descia, montado no grande cisne, seu veículo, todos os habitantes dos planetas chamados Siddhaloka, Gandharvaloka, Sādhyaloka e Cāraṇaloka, bem como grandes sábios e semideuses que voam em seus diversos aeroplanos, reuniram-se no firmamento celeste para recebê-lo e adorá-lo. Enquanto recebia o respeito e a adoração dos habitantes de vários planetas, o senhor Brahmā parecia a lua cheia rodeada de estrelas luminosas. Então, o grande cisne do senhor Brahmā chegou ao sopé da colina Gandha­mādana e aproximou-se do príncipe Priyavrata, que se encontrava sentado ali.

Comentário

SIGNIFICADO—Esta descrição indica que existem viagens interplanetárias regulares entre os planetas dos semideuses. Outro detalhe significativo é que existe um planeta coberto, na maior parte de sua extensão, por grandes montanhas, uma das quais é a colina Gandhamādana. Três grandes personalidades – Priyavrata, Nārada e Svāyambhuva Manu – estavam sentados nessa colina. Segundo a Brahma-saṁhitā, cada universo tem seus diferentes sistemas planetários, e cada sistema planetário tem uma opulência própria. Em Siddhaloka, por exemplo, todos os habitantes são muito avançados nos poderes do yoga místico. Eles podem voar de um planeta a outro sem precisar de aeroplanos ou outras máquinas voadoras. Do mesmo modo, os habitantes de Gandharvaloka são hábeis na ciência musical, e os residentes de Sādhyaloka são todos grandes santos. Não restam dúvidas de que o sistema interplanetário existe, e os habitantes dos diferentes pla­netas podem viajar de um planeta a outro. Nesta Terra, entretanto, ainda não inventamos nenhuma máquina que possa ir diretamente de um planeta a outro, embora se tenha feito uma tentativa malograda de ir diretamente à Lua.

Texto

tatra ha vā enaṁ devarṣir haṁsa-yānena pitaraṁ bhagavantaṁ hiraṇya-garbham upalabhamānaḥ sahasaivotthāyārhaṇena saha pitā-putrābhyām avahitāñjalir upatasthe.

Sinônimos

tatra — ali; ha — decerto; enam — a ele; deva-ṛṣiḥ — o grande santo Nārada; haṁsa-yānena — pelo cisne carregador; pitaram — seu pai; bhagavantam — poderosíssimo; hiraṇya-garbham — senhor Brahmā; upalabhamānaḥ — entendendo; sahasā eva — imediatamente; utthāya — tendo-se levantado; arhaṇena — com a parafernália para fazer a adoração; saha — acompanhado; pitā-putrābhyām — de Priyavrata e seu pai, Svāyambhuva Manu; avahita-añjaliḥ — com respeito e mãos postas; upatasthe — adoraram.

Tradução

O senhor Brahmā, o pai de Nārada Muni, é a pessoa suprema dentro deste universo. Tão logo viu o grande cisne, Nārada pôde compreender que o senhor Brahmā havia chegado. Portanto, ele se levantou de imediato, juntamente com Svāyambhuva Manu e seu filho Priyavrata, com quem Nārada estava compartilhando suas instruções. Então, eles ficaram de mãos postas e começaram a adorar o senhor Brahmā com todo o respeito.

Comentário

SIGNIFICADO—Como se afirmou no verso anterior, o senhor Brahmā estava acompanhado por outros semideuses, mas, especificamente, quem o transportava era o grande cisne. Portanto, assim que viu o cisne, Nārada Muni pôde entender que seu pai, o senhor Brahmā, também conhecido como Hiraṇyagarbha, estava chegando. Assim, ele se levantou de imediato, juntamente com Svāyambhuva Manu e seu filho Priyavrata, para recepcionar o senhor Brahmā e prestar-lhe o devido respeito.

Texto

bhagavān api bhārata tad-upanītārhaṇaḥ sūkta-vākenātitarām udita-guṇa-gaṇāvatāra-sujayaḥ priyavratam ādi-puruṣas taṁ sadaya-hāsāvaloka iti hovāca.

Sinônimos

bhagavān — senhor Brahmā; api — além disso; bhārata — ó rei Parīkṣit; tat — por eles; upanīta — trazida; arhaṇaḥ — parafernália de adoração; sūkta — de acordo com a etiqueta védica; vākena — com linguagem; atitarām — altamente; udita — louvaram; guṇa-gaṇa — qualidades; avatāra — devido à descida; su-jayaḥ — cujas glórias; priya­vratam — a Priyavrata; ādi-puruṣaḥ — a pessoa original; tam — a ele; sa-daya — com benevolência; hāsa — sorridente; avalokaḥ — cujo olhar; iti — assim; ha — decerto; uvāca — disse.

Tradução

Meu querido rei Parīkṣit, como o senhor Brahmā finalmente des­cera de Satyaloka a Bhūloka, Nārada Muni, o príncipe Priyavrata e Svāyambhuva Manu adiantaram-se para oferecer-lhe os artigos de adoração e louvá-lo em termos altamente elogiosos, de acordo com a etiqueta védica. Nesse momento, o senhor Brahmā, a pessoa original deste universo, sentiu compaixão de Priyavrata e, olhando para ele com o rosto sorridente, disse-lhe o seguinte.

Comentário

SIGNIFICADO—O fato de o senhor Brahmā ter descido de Satyaloka para ver Priyavrata demonstra a grande seriedade do assunto. Nārada Muni estava ali para ensinar a Priyavrata o valor da vida espiritual, do conhecimen­to, da renúncia e de bhakti, e o senhor Brahmā sabia que as instru­ções de Nārada eram muito convincentes. Portanto, o senhor Brahmā sabia que o príncipe Priyavrata não aceitaria a ordem de seu pai a menos que o senhor Brahmā estivesse pessoalmente na colina Gandhamādana para falar com Priyavrata. A intenção de Brahmā era afrouxar a determinação de Priyavrata. Portanto, em primeiro lugar, Brahmā olhou para Priyavrata com benevolência. Seu sorriso e expressão compassivos também indicam que, apesar de Brahmā ter vindo pedir a Priyavrata que aceitasse a vida familiar, Priyavrata não deixaria de praticar o serviço devocional. Pelas bênçãos de um vaiṣṇava, tudo é possível. Descreve-se isso no Bhakti-rasāmṛta-sindhu como kṛpā-siddhi, ou a perfeição alcançada simplesmente pelas bênçãos de uma pessoa superior. Normalmente, a pessoa se torna liberada e perfeita observando os princípios reguladores estabelecidos nos śāstras. Todavia, muitas pessoas alcançam a perfeição simples­mente através das bênçãos de um mestre espiritual ou de uma pessoa superior.

Priyavrata era neto do senhor Brahmā, e, assim como às vezes ocorre uma competição de brincadeira entre neto e avô, também neste caso Priyavrata estava determinado a permanecer em meditação, ao passo que a determinação de Brahmā era convencê-lo a governar o universo. Assim, o sorriso e o olhar afetuosos do senhor Brahmā significa­vam: “Meu querido Priyavrata, decidiste não te casares, mas eu deci­di convencer-te de que deves, sim, contrair matrimônio.” Na verdade, Brahmā descera a fim de elogiar Priyavrata por seu alto padrão de renúncia, austeridade, penitência e devoção, comprovando que, muito embora tivesse que aceitar a vida familiar, Priyavrata não se desviaria do serviço devo­cional.

Neste verso, uma palavra importante é sūkta-vākena (mediante hinos védicos). Nos Vedas, encontramos a seguinte oração ao senhor Brahmā: hiraṇyagarbhaḥ samavartatāgre bhūtasya jātaḥ patir eka āsīt. Brahmā foi recepcionado com hinos védicos apropriados e, por ter recebido boas-vindas de acordo com a etiqueta védica, ficou muito satisfeito.

Texto

śrī-bhagavān uvāca
nibodha tātedam ṛtaṁ bravīmi
māsūyituṁ devam arhasy aprameyam
vayaṁ bhavas te tata eṣa maharṣir
vahāma sarve vivaśā yasya diṣṭam

Sinônimos

śrī-bhagavān uvāca — o senhor Brahmā, a pessoa suprema, disse; nibodha — por favor, ouve com atenção; tāta — meu querido filho; idam — isto; ṛtam — verdade; bravīmi — estou falando; — não; asūyitum — tenhas inveja de; devam — a Suprema Personalidade de Deus; arhasi — deves; aprameyam — que está além de nosso conhecimento experimental; vayam — nós; bhavaḥ — senhor Śiva; te — teu; tataḥ — pai; eṣaḥ — este; mahā-ṛṣiḥ — Nārada; vahāmaḥ — cumprimos; sarve — todos; vivaśāḥ — incapazes de desviar-nos; yasya — de quem; diṣṭam — a ordem.

Tradução

O senhor Brahmā, a pessoa suprema dentro deste universo, disse: Meu querido Priyavrata, por favor, ouve atentamente o que tenho a dizer-te. Não invejes o Senhor Supremo, que está além de nossos cálculos experimentais. Todos nós, inclusive o senhor Śiva, teu pai e o grande sábio Mahāṛṣi Nārada, temos obrigação de cumprir a ordem do Supremo. Não podemos desviar-nos de Sua ordem.

Comentário

SIGNIFICADO—Dentre as doze grandes autoridades em serviço devocional, quatro – o próprio senhor Brahmā, seu filho Nārada, Svāyambhuva Manu e o senhor Śiva – estavam presentes diante de Priyavrata. Eles estavam acompanhados de muitos outros sábios conceituados. Em primeiro lugar, Brahmā queria convencer Priyavrata de que, embora essas grandes personalidades fossem todos autoridades, elas não podiam desobedecer às ordens da Suprema Personalidade de Deus, que se descreve neste verso como sendo deva, “sempre glorioso”. O poder, a glória e as potências da Suprema Personalidade de Deus jamais se reduzirão. Na Īśopaniṣad, descreve-se o Senhor como apāpa­-viddha, o que indica que Ele jamais é afetado por algo material e pecaminoso. Do mesmo modo, o Śrīmad-Bhāgavatam descreve a Suprema Personalidade de Deus como sendo tão poderosa que nada que possamos considerar abo­minável pode afetá-lO. Um exemplo às vezes dado para explicar a posição do Senhor Supremo é o exemplo do Sol. Esse evapora a urina da terra, mas nunca é afetado pela contaminação. Não é possível, em tempo algum, uma pessoa acusar o Senhor Supremo de ter feito algo errado.

A atitude do senhor Brahmā, ao ir induzir Priyavrata a aceitar a responsabilidade de governar o universo, não foi caprichosa: ele estava simplesmente seguindo as ordens do Senhor Supremo. Na verdade, Brahmā e outras autoridades genuínas nunca fazem nada sem Sua permissão. O Senhor Supremo encontra-Se no coração de todos. No começo do Śrīmad-Bhāgavatam, lemos que tene brahma hṛdā ya ādi-kavaye. O Senhor, através do coração de Brahmā, trans­mitiu-lhe o conhecimento védico. Quanto mais uma entidade viva se purifica através do serviço devocional, mais ela entra em contato direto com a Suprema Personalidade de Deus, e isso é confirmado na Śrīmad Bhagavad-gītā (10.10):

teṣāṁ satata-yuktānāṁ
bhajatāṁ prīti-pūrvakam
dadāmi buddhi-yogaṁ taṁ
yena mām upayānti te

“Àqueles que estão constantemente devotados a Me servir com amor, Eu dou a compreensão pela qual eles podem vir a Mim.” O senhor Brahmā, portanto, não viera ter com Priyavrata por mero capricho pessoal; pelo contrário, sabe-se que ele havia recebido ordens de persuadir Priyavrata da parte da Suprema Personalidade de Deus, cujas atividades não podem ser entendidas através dos sentidos materiais, motivo pelo qual Ele é aqui descrito como aprameya. Assim, antes de qualquer outra coisa, o senhor Brahmā aconselhou Priyavrata a ouvir suas palavras com atenção e sem inveja.

Indica-se nesta passagem o motivo pelo qual alguém é induzido a executar certos atos apesar de seu desejo de proceder de outro modo. Ninguém pode desobedecer às ordens do Senhor Supremo, mesmo que seja tão poderoso como o senhor Śiva, o senhor Brahmā, Manu ou o grande sábio Nārada. Todas essas autoridades são muito poderosas, indubitavelmente, mas não têm o poder de desobedecer às ordens da Suprema Personalidade de Deus. Uma vez que o senhor Brahmā viera ter com Priyavrata em obediência às ordens do Senhor Supremo, em primeiro lugar ele queria dissipar qualquer suspeita de que pudesse estar agindo como um malquerente de Priyavrata. O senhor Brahmā estava seguin­do as ordens do Senhor Supremo, motivo pelo qual seria conveniente Priya­vrata aceitar a ordem do senhor Brahmā, conforme o desejo do Senhor.

Texto

na tasya kaścit tapasā vidyayā vā
na yoga-vīryeṇa manīṣayā vā
naivārtha-dharmaiḥ parataḥ svato vā
kṛtaṁ vihantuṁ tanu-bhṛd vibhūyāt

Sinônimos

na — nunca; tasya — Sua; kascit — ninguém; tapasā — pela austeridade; vidyayā — pela educação; — ou; na — nunca; yoga — pelo poder do yoga místico; vīryeṇa — pela força pessoal; manīṣayā — pela inteligência; — ou; na — nunca; eva — decerto; artha — pela opulên­cia material; dharmaiḥ — pelo poder da religião; parataḥ — por qualquer poder externo; svataḥ — pelo esforço pessoal; — ou; kṛtam — a ordem; vihantum — evitar; tanu-bhṛt — uma entidade viva que aceitou um corpo material; vibhūyāt — é capaz.

Tradução

Ninguém é capaz de evitar as ordens da Suprema Personali­dade de Deus, nem mesmo por força de rigorosas austeridades, de uma excelsa educação védica, ou do poder do yoga místico, proezas físicas ou atividades intelectuais. Tampouco pode alguém usar seu poder de religião, sua opulência material ou qualquer outro meio, seja por si próprio, seja com o auxílio de outros, para desafiar as ordens do Senhor Supremo. Nenhum ser vivo, seja ele Brahmā ou uma simples formiga, tem esse poder.

Comentário

SIGNIFICADO—Na Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad (3.8.9), Yājñavalkya diz a Gārgī, a filha de Garga Muni, que etasya vā akṣarasya praśāsane gargi sūryā-candramasau vidhṛtau tiṣṭhataḥ: “Minha querida Gargī, tudo está sob o controle da Suprema Personalidade de Deus. Mesmo o Sol e a Lua, e outros controladores e semideuses, como o senhor Brahmā e o rei Indra – tudo e todos estão sob o Seu controle.” Um ser humano comum ou um animal que tenham aceitado um corpo material não podem escapar à jurisdição do controle da Suprema Personalidade de Deus. O corpo material é formado de sentidos. Contudo, as atividades dos sentidos dos pretensos cientistas na tentativa de livrarem-se da lei de Deus ou das leis da natureza são inúteis. Confirma-se isso, também, na Bhagavad-gītā (7.14). Mama māyā duratyayā: é impossível fugir ao domínio da natureza material, pois é a Suprema Personalidade de Deus quem age por trás dela. Às vezes, orgulhamo-nos de nossas austeridades, penitências e poderes do yoga místico, mas esse verso afirma claramente que ninguém pode superar as leis e orientações da Suprema Personalidade de Deus, seja pela força do poder místico, da educação científica, de austeridades ou de penitências. Isso é impossível.

A palavra manīṣayā, “pela inteligência”, é de especial importância: talvez Priyavrata argumentasse que o senhor Brahmā lhe estava pedindo que aceitasse a vida familiar e a responsabilidade de governar um reino, embora Nārada Muni o tivesse aconselhado a não se casar e a não se envolver com assuntos materiais. Já que tanto o senhor Brahmā quanto Nārada Muni eram autoridades genuínas, Priyavrata teria de enfrentar o dilema de quem ele deveria aceitar. Em tais circunstâncias, o uso da palavra manīṣayā é muito apropriado, e usá-la indica como tanto Nārada Muni quanto o senhor Brahmā são autorizados a dar instruções. Logo, Priyavrata não deveria menosprezar nenhum deles, senão que lhe seria apropriado usar de sua inteligência para seguir o conselho de ambos. Para resolver semelhantes situações, Rūpa Go­svāmī cita um conceito muito claro de inteligência. Diz assim:

anāsaktasya viṣayān
yathārham upayuñjataḥ
nirbandhaḥ kṛṣṇa-sambandhe
yuktaṁ vairāgyam ucyate

Devemos aceitar viayān, os assuntos materiais, sem apego, e deve­mos utilizar tudo a serviço do Senhor. Isso é inteligência de fato (manīṣā). Tornar-se chefe de família ou rei no mundo material não é prejudicial contanto que se aceite tudo a serviço de Kṛṣṇa. Para isso, precisamos de inteligência clara. Os filósofos māyāvādīs dizem que brahma satyaṁ jagan mithyā: este mundo material é falso, e somente a Verdade Absoluta é real. Contudo, o devoto inteligente na linha do senhor Brahmā e do grande sábio Nārada – ou, em outras palavras, no Brahma-sampradāya – não considera este mundo como falso. Aquilo que a Suprema Personalidade de Deus criou não pode ser falso; falso é usá-lo para o desfrute próprio. Tudo se destina ao desfrute da Suprema Personalidade de Deus, como con­firma a Bhagavad-gītā (5.29), bhoktāraṁ yajña-tapasāṁ sarva-loka­-maheśvaram: a Suprema Personalidade de Deus é o proprietário e o desfrutador supremo, e por isso devemos utilizar tudo para o desfrute dEle e a serviço dEle. A despeito das circunstâncias, favo­ráveis ou desfavoráveis, devemos utilizar tudo para servir ao Senhor Supremo. Deste modo, faremos uso perfeito de nossa inteligência.

Texto

bhavāya nāśāya ca karma kartuṁ
śokāya mohāya sadā bhayāya
sukhāya duḥkhāya ca deha-yogam
avyakta-diṣṭaṁ janatāṅga dhatte

Sinônimos

bhavāya — ao nascimento; nāśāya — à morte; ca — também; karma — atividade; kartum — fazer; śokāya — ao pesar; mohāya — à ilusão; sadā — sempre; bhayāya — ao medo; sukhāya — à felicidade; duḥ­khāya — à aflição; ca — também; deha-yogam — vínculo com um corpo material; avyakta — pela Suprema Personalidade de Deus; diṣṭam — orientadas; janatā — as entidades vivas; aṅga — ó Priyavrata; dhatte — aceitam.

Tradução

Meu querido Priyavrata, por ordem da Suprema Personalidade de Deus, todas as entidades vivas aceitam diferentes espécies de corpos, sujeitando-se, assim, ao nascimento, à morte, às atividades, à lamentação, à ilusão, ao medo de perigos futuros, à felicidade e à aflição.

Comentário

SIGNIFICADO—Toda entidade viva que vem a este mundo material o faz em busca de gozo material, mas, de acordo com o seu próprio karma, o con­junto de atividades, ela se vê forçada a aceitar determinada espécie de corpo, fornecido pela natureza material sob a direção da Suprema Personalidade de Deus. Como se afirma na Bhagavad-gītā (3.27), prakṛteḥ kriyamāṇāni guṇaiḥ karmāṇi sarvaśah: sob a direção do Senhor Supremo, a prakṛti, a natureza material, está fazendo tudo. Os cientistas modernos ignoram o motivo pelo qual existem variedades de corpos em 8.400.000 formas. É verdade, porém, que todos esses corpos são impostos às entidades vivas pela Suprema Personalidade de Deus, de acordo com os desejos delas. Ele confere às entidades vivas liberdade para agirem como quiserem, mas, por outro lado, elas são obrigadas a aceitar um corpo de acordo com o mérito de suas atividades. Daí as diferentes classes de corpos. Algumas entidades vivas têm uma vida curta, ao passo que outras têm vidas com uma duração fantástica. Todas elas, entretanto, desde Brahmā até a formiga, agem de acordo com a direção da Suprema Personalidade de Deus, que Se encontra no coração de todos. Confirma-se isso na Bhagavad-gītā (15.15):

sarvasya cāhaṁ hṛdi sanniviṣṭo
mattaḥ smṛtir jñānam apohanaṁ ca

"Encontro-Me no coração de todos, e de Mim vêm a lembrança, o conhecimento e o esquecimento.” Não é verdade, contudo, que a Suprema Personalidade de Deus oriente certas entidades vivas de uma maneira e outras entidades vivas de outra maneira. A verdade é que toda entidade viva tem determinados desejos, e o Senhor Supremo lhe concede a oportunidade de satisfazê-los. O melhor a se fazer, portanto, é render-se à Suprema Personalidade de Deus e agir con­forme Seu desejo. Alguém que assim o faz está liberado.

Texto

yad-vāci tantyāṁ guṇa-karma-dāmabhiḥ
sudustarair vatsa vayaṁ suyojitāḥ
sarve vahāmo balim īśvarāya
protā nasīva dvi-pade catuṣ-padaḥ

Sinônimos

yat — de quem; vāci — sob a forma da instrução védica; tantyām — a uma longa corda; guṇa — da qualidade; karma — e do trabalho; dāmabhiḥ — pelas cordas; su-dustaraiḥ — muito difícil de evitar; vatsa — meu querido jovem; vayam — nós; su-yojitāḥ — estamos ocupados; sarve — todos; vahāmaḥ — cumprem; balim — ordens para agradá-lO; īśvarāya — à Suprema Personalidade de Deus; protāḥ­ — estando atados; nasi — pelo focinho; iva — como; dvi-pade — ao de duas pernas (condutor); catuḥ-padaḥ — os de quatro pernas (touros).

Tradução

Meu querido jovem, estamos todos atados pelos preceitos védicos concernentes às divisões do varṇāśrama, segundo nossas qualidades e nosso trabalho. É difícil evitar essas divisões porque existe um arranjo científico para elas. Devemos, portanto, cumprir nossos deveres de varṇāśrama-dharma, assim como se obriga os touros a moverem-se de acordo com a orientação de um condutor que puxa as cordas amarradas aos seus focinhos.

Comentário

SIGNIFICADO—Neste verso, as palavras tantyāṁ guṇa-karma-dāmabhiḥ são muito importantes. Cada um de nós obtém um corpo de acordo com o nosso contato com os guṇas, as qualidades ou os modos da natureza material, e agimos de acordo com isso. Estabelecem-se na Bhagavad-gītā as quatro ordens do sistema social – a saber, brāhmaṇa, kṣatriya, vaiśya e śūdra –, dispostas segundo guṇa e karma, isto é, segundo as qualidades e o trabalho de cada um. Há certa contro­vérsia quanto a isso, mas, porque alguns dizem que, já que obtemos nosso corpo de acordo com o guṇa e o karma de nossa vida passada, é o nascimento que determina nosso status social. Todavia, outros dizem que o nascimento de acordo com o guṇa e o karma da vida passada não deve ser considerado um fator essencial, uma vez que alguém pode alterar seu guṇa e seu karma mesmo nesta vida. Assim, dizem, as quatro divisões da ordem social – brāhmaṇa, kṣatriya, vaiśya e śūdra – devem ser estabelecidas de acordo com o guṇa e o karma desta vida. Nārada Muni confirma essa versão no Śrīmad-Bhāgavatam. Ao instruir Mahārāja Yudhiṣṭhira sobre os sintomas de guṇa e karma, Nārada Muni disse que esses sintomas é que devem determinar as divisões da sociedade. Em outras palavras, se alguém é nascido em família de brāhmaṇas, mas apresenta as características de um śūdra, ele deve ser considerado śūdra. Do mesmo modo, se um śūdra apresenta qualidades bramânicas, ele deve ser considerado brāhmaṇa.

O sistema de varṇāśrama é científico. Portanto, se aceitarmos as divisões de varṇa e āśrama conforme as instruções védicas, nossa vida será exitosa. A sociedade humana só pode ser perfeita quando dividida e organizada dessa maneira. Assim afirma o Viṣṇu Purāṇa (3.8.9):

varṇāśramācāravatā
puruṣeṇa paraḥ pumān
viṣṇur ārādhyate panthā
nānyat tat-toṣa-kāraṇam

“A Suprema Personalidade de Deus, o Senhor Viṣṇu, é adorado através do devido cumprimento dos deveres prescritos no sistema de varṇa e āśrama. Não há outra maneira de satisfazer a Suprema Personalidade de Deus. Todos devem ajustar-se à instituição dos quatro varṇas e quatro āśramas.” Toda a sociedade humana destina­-se a adorar o Senhor Viṣṇu. No momento atual, contudo, a sociedade humana não sabe que essa é a meta última ou a perfeição da vida. Logo, em vez de adorar o Senhor Viṣṇu, a população está sendo educada para adorar a matéria. Graças à orientação da sociedade moderna, os homens acham que civilização avançada é aquela em que se pode manipular a matéria para construir arranha-céus, grandes rodovias, automóveis e assim por diante. Semelhante civilização certamente merece ser chamada de materialista, porque sua popu­lação ignora a meta da vida. A meta da vida é buscar Viṣṇu, mas, em vez de buscarem Viṣṇu, as pessoas se deixam confundir pela manifestação externa da energia material. Por isso, o progresso no avanço material é cego, e os líderes desse avanço material também são cegos. Eles estão liderando os seus seguidores de maneira errada.

É melhor, portanto, aceitar os preceitos dos Vedas que se mencionam neste verso como yad-vāci. De acordo com esses preceitos, todos devem procurar saber se são brāhmaṇas, kṣatriyas, vaiśyas ou śūdras e educarem-se dentro desse sistema. Então, suas vidas serão exitosas. Caso contrário, toda a sociedade humana ficará confusa. Se a sociedade humana for dividida de maneira científica, de acordo com varṇa e āśrama, e caso se obedeçam às orientações védicas, a vida das pessoas, a despeito da posição delas, será exitosa. Não é verdade que os brāhmaṇas serão elevados à plataforma transcenden­tal e os śūdras não. Se os preceitos védicos forem seguidos, todos eles – brāhmaṇas, kṣatriyas, vaiśyas e śūdras – serão elevados à plataforma transcendental e suas vidas serão exitosas. Os preceitos dos Vedas são orientações explícitas da Suprema Personalidade de Deus. Este verso cita o exemplo dos touros que, amarrados por cordas em seus focinhos, movem-se conforme a orientação do con­dutor. De modo semelhante, se nos comportarmos de acordo com as instruções dos Vedas, o caminho perfeito para nossas vidas será estabelecido. Caso contrário, se não nos portarmos dessa maneira, mas de acordo com nossas ideias caprichosas, nossas vidas serão dominadas pelo caos e terminarão em desespero. Na verdade, por não estarem seguindo as instruções dos Vedas, todas as pessoas hoje em dia estão confusas. Devemos, portanto, admitir que esta instrução do senhor Brahmā a Priyavrata é a verdadeira orientação científica, capaz de fazer de nossa vida um êxito. Confirma-se isso na Bhagavad-gītā (16.23):

yaḥ śāstra-vidhim utsṛjya
vartate kāma-kārataḥ
na sa siddhim avāpnoti
na sukhaṁ na parāṁ gatim

Quem não viver de acordo com os preceitos dos śāstras, os Vedas, jamais terá sucesso na vida, isso para não mencionar felicidade ou elevação a status superiores de vida.

Texto

īśābhisṛṣṭaṁ hy avarundhmahe ’ṅga
duḥkhaṁ sukhaṁ vā guṇa-karma-saṅgāt
āsthāya tat tad yad ayuṅkta nāthaś
cakṣuṣmatāndhā iva nīyamānāḥ

Sinônimos

īśa-abhisṛṣṭam — criado ou fornecido pelo Senhor; hi — com certeza; avarundhmahe — somos obrigados a aceitar; aṅga — meu querido Priyavrata; duḥkham — aflição; sukham — felicidade; — ou; guṇa­-karma — com a qualidade e o trabalho; saṅgāt — pelo contato; āsthāya — estando situados em; tat tat — essa condição; yat — cujo corpo; ayuṅkta — Ele deu; nāthaḥ — o Senhor Supremo; cakṣuṣmatā — por alguém que tem o dom da visão; andhāḥ — cegos; iva — como; nīyamānāḥ — sendo conduzidos.

Tradução

Meu querido Priyavrata, dependendo do contato que estabelece­mos com diferentes modos da natureza material, a Suprema Personalidade de Deus fornece-nos corpos especiais e a felicidade e infelicidade que merecemos. É nosso dever, portanto, respeitar nossa posição, estabelecida por guṇa e karma, e deixar-nos conduzir pela Suprema Personalidade de Deus, exatamente como um cego é guiado por alguém que tem o dom da visão.

Comentário

SIGNIFICADO—Não há meios materiais que possam ajudar-nos a evitar a felici­dade ou a infelicidade decorrentes de nosso próprio corpo. Existem 8.400.000 formas corpóreas, cada uma delas destinada a desfrutar ou sofrer uma certa quantidade de felicidade ou aflição. Não pode­mos mudar isso, pois a felicidade e a aflição são determinadas pela Suprema Personalidade de Deus, de acordo com cuja decisão recebemos nossos corpos. Como não podemos evitar o plano da Divindade Suprema, temos que concordar em sermos orientados por Ele, assim como um cego é guiado por uma pessoa dotada de visão. Em tais circunstâncias, se permanecermos na posição que nos foi desig­nada pelo Senhor Supremo e seguirmos Suas instruções, nós nos tornaremos perfeitos. O principal objetivo da vida é seguir as instruções da Suprema Personalidade de Deus. Essas instruções é que consti­tuem a religião ou dever ocupacional de cada um de nós.

Por isso, o Senhor Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā (18.66) que sarva-dharmān parityajya mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja: “Abandona todas as outras ocupações. Simplesmente rende-te a Mim e segue-Me.” Este processo de render-se seguindo as instruções da Suprema Personalidade de Deus não se destina a uma casta ou a um credo em particular. Assim como o brāhmaṇa pode render-se, o kṣatriya, o vaiśya e o śūdra também o podem. Todos podem adotar este pro­cesso. Como se afirma neste verso, cakṣuṣmatāndhā iva nīyamānāḥ: todos devem seguir o Senhor do mesmo modo como um cego acompanha alguém que possui olhos. Se seguirmos a Suprema Personalidade de Deus, obedecendo às orientações que Ele nos fornece nos Vedas e na Bhagavad-gītā, nossa vida será exitosa. Portanto, o Senhor diz:

man-manā bhava mad-bhakto
mad-yājī māṁ namaskuru
mām evaiṣyasi satyaṁ te
pratijāne priyo ’si me

“Pensa sempre em Mim e torna-te Meu devoto. Adora-Me e oferece-Me homenagens. Agindo assim, virás a Mim impreterivelmente. Eu te prometo isso porque és Meu amigo muito querido.” (Bhagavad-gītā 18.65) Essa instrução é para todos – brāhmaṇas, kṣatriyas, vaiśyas ou śūdras. Se alguém, de qualquer classe de vida, render-se à Suprema Personalidade de Deus e seguir Suas instruções, sua vida será exitosa.

O verso anterior apresenta a analogia dos touros movendo-se sob a orientação de um condutor de carro de bois. Os touros, inteira­mente rendidos ao condutor, vão aonde quer que ele deseje e comem o que ele deseja que eles comam. Analogamente, rendendo-nos por completo à Suprema Personalidade de Deus, não devemos aspirar à felicidade, nem nos lamentar por causa de aflições; devemos contentar-nos com a posição que nos foi designada pelo Senhor. Devemos trilhar o caminho do serviço devocional e não ficar insa­tisfeitos com a felicidade e aflição que Ele nos proporciona. Quem está sob a influência dos modos materiais de paixão e ignorância geralmente não consegue entender o plano da Suprema Personali­dade de Deus com suas 8.400.000 formas de vida, mas a forma humana nos concede o privilégio especial de entendermos esse plano, ocuparmo-nos em serviço devocional e elevarmo-nos à posição máxima de perfeição, seguindo as instruções do Senhor. O mundo inteiro gira em torno da influência dos modos da natureza material, espe­cialmente ignorância e paixão. Contudo, se as pessoas passarem a ouvir e cantar as glórias do Senhor Supremo, poderão ter sucesso na vida e, assim, elevar-se à perfeição máxima. Portanto, o Bṛhan­-nāradīya Purāṇa afirma:

harer nāma harer nāma
harer nāmaiva kevalam
kalau nāsty eva nāsty eva
nāsty eva gatir anyathā

“Nesta era de Kali, não há outra maneira, não há outra maneira, não há outra maneira para se alcançar a perfeição espiritual além do santo nome, do santo nome, do santo nome do Senhor.” Todos devem receber a oportunidade de ouvir os santos nomes da Suprema Personalidade de Deus, pois, dessa maneira, acabarão compreendendo sua verdadeira posição na vida e se elevarão à posição transcendental acima do modo da bondade. Isso fará com que todos os obstáculos ao avanço espiritual sejam eliminados. Em conclusão, portanto, devemos contentar-nos com a posição em que fomos colocados pela Suprema Personalidade de Deus e devemos nos esforçar para nos ocuparmos em Seu serviço devocional. Nossa vida, então, será exitosa.

Texto

mukto ’pi tāvad bibhṛyāt sva-deham
ārabdham aśnann abhimāna-śūnyaḥ
yathānubhūtaṁ pratiyāta-nidraḥ
kiṁ tv anya-dehāya guṇān na vṛṅkte

Sinônimos

muktaḥ — a pessoa liberada; api — até; tāvat — enquanto; bibhṛyāt­ — for obrigada a manter; sva-deham — seu próprio corpo; ārabdham — obtido como resultado de atividades passadas; aśnan — aceitando; abhimāna-śūnyaḥ — sem concepções errôneas; yathā — como; anu­bhūtam — o que foi percebido; pratiyāta-nidraḥ — alguém que acabou de acordar; kim tu — porém; anya-dehāya — em busca de outro corpo material; guṇān — as qualidades materiais; na — nunca; vṛṅkte — desfruta.

Tradução

Até a pessoa liberada é obrigada a aceitar o corpo decorrente de seu karma passado. Sem concepções errôneas, contudo, ela percebe seu gozo e sofrimento decorrentes desse karma da mesma maneira que, ao despertar, uma pessoa percebe o sonho que teve enquanto dormia. Assim, ela permanece fixa, sem jamais agir de maneira a obter outro corpo material sob a influência dos três modos da natureza material.

Comentário

SIGNIFICADO—A diferença entre a alma liberada e a alma condicionada é que a alma condicionada está sob a influência do conceito de vida cor­pórea, ao passo que a alma liberada sabe que não é o corpo, mas sim um espí­rito, diferente do corpo. Priyavrata poderia pensar que, visto que a alma condicionada é obrigada a agir de acordo com as leis da natureza, por que ele deveria, sendo tão avançado em compreensão espiritual, aceitar a mesma espécie de cativeiro e obstáculos ao avanço espiritual? Para sanar essa dúvida, o senhor Brahmā lhe informou que nem as pessoas liberadas se ressentem ao aceitar o corpo atual a partir dos resultados de suas vidas passadas. Enquanto dormem, as pessoas sonham muitas coisas irreais, mas, ao acordarem, deixam-nas de lado para prosseguir com sua vida real. Do mesmo modo, a pessoa liberada – tendo compreendido inteiramente que não é o corpo, mas sim uma alma espiritual – desconsidera as atividades passadas executa­das em ignorância e realiza suas atividades presentes de tal maneira que elas não produzam reações. Descreve-se isso na Bhagavad-gītā (3.9), yajñārthāt karmaṇo ’nyatra loko ’yaṁ karma-bandhanaḥ: quem realiza atividades para a satisfação da Personalidade Suprema, o yajña-puruṣa, não sofre reações, ao passo que os karmīs, que agem por interesse próprio, são atados pelas reações de seu trabalho. A pessoa liberada, portanto, não pensa no que fez no passado, influenciada pela ignorância; ao contrário, ela age de maneira a não produzir outro corpo decorrente de atividades fruitivas. Como se menciona claramente na Bhagavad-gītā (14.26):

mām ca yo ’vyabhicāreṇa
bhakti-yogena sevate
sa guṇān samatītyaitān
brahma-bhūyāya kalpate

“Aquele que se ocupa em serviço devocional pleno e não falha em circunstância alguma, transcende de imediato os modos da natureza material e chega então ao nível de Brahman.” Independentemente do que tenhamos feito em nossas vidas passadas, caso nos ocupemos em serviço devocional imaculado ao Senhor nesta vida, estaremos sempre situados no estado brahma-bhūta (liberado), livres das reações, e não seremos obrigados a aceitar outro corpo material. Tyaktvā dehaṁ punar jamma naiti mam eti so ’rjuna (Bhagavad-gītā 4.9). Após abandonar o corpo, quem agiu dessa maneira não precisa aceitar outro corpo material, senão que, em vez disso, volta ao lar, volta ao Supremo.

Texto

bhayaṁ pramattasya vaneṣv api syād
yataḥ sa āste saha-ṣaṭ-sapatnaḥ
jitendriyasyātma-rater budhasya
gṛhāśramaḥ kiṁ nu karoty avadyam

Sinônimos

bhayam — medo; pramattasya — daquele que está confuso; vaneṣu­ — nas florestas; api — mesmo; syāt — existe fatalmente; yataḥ — porque; saḥ — ele (aquele que não tem autocontrole); āste — existe; saha — com; ṣaṭ-sapatnaḥ — seis co-esposas; jita-indriyasya — para quem já conquistou os sentidos; ātma-rateḥ — satisfeito consigo mesmo; budhasya — para semelhante homem erudito; gṛha-āśramaḥ — vida familiar; kim — que; nu — na verdade; karoti — pode fazer; avadyam — mal.

Tradução

Mesmo que vá de floresta em floresta, quem não tem autocontrole sempre teme o cativeiro material, pois anda na companhia de seis co-esposas: a mente e os sentidos de adquirir conhecimento. A vida familiar, contudo, não pode prejudicar um homem eru­dito e autossatisfeito que conquistou os sentidos.

Comentário

SIGNIFICADO—Segundo canta Śrīla Narottama Dāsa Ṭhākura, gṛhe vā vanete thāke, ‘hā gaurāṅga’ bale ḍāke: quer a pessoa se encontre na floresta, quer se encontre no lar, se ela estiver ocupada em serviço devocional ao Senhor Caitanya, será uma pessoa liberada. Este verso repete isso. Para alguém que não tenha controlado os sentidos, ir à floresta ou tornar-se um pretenso yogī é inútil. Quem anda em companhia da mente e de sentidos descontrolados não pode obter nada, mesmo que abandone a vida familiar e permaneça na floresta. Outrora, muitos mercadores do norte da Índia costumavam ir à Bengala, e existe um ditado familiar a esse respeito: “Se fores para a Bengala, teu destino irá contigo.” Em primeiro lugar, portanto, devemos nos preocupar em controlar os sentidos, e, como não podemos controlá-los sem que nos ocupemos em serviço devocional ao Senhor, nosso dever mais importante é ocupar os nossos sentidos em serviço devocional. Hṛṣīkeṇa hṛṣīkeśa-sevanaṁ bhaktir ucyate: bhakti significa ocupar os sentidos purificados em servir ao Senhor.

Nesta passagem, o senhor Brahmā mostra que, em vez de ir à floresta com os sentidos descontrolados, é melhor e mais seguro ocupar os sentidos a serviço do Senhor. A vida familiar não pode perturbar alguém que é autocontrolado e que age dessa maneira; ela não pode forçá-lo a enredar-se no cativeiro material. Śrīla Rūpa Gosvāmī explica essa posição com mais pormenores:

īhā yasya harer dāsye
karmaṇā manasā girā
nikhilāsv apy avasthāsu
jīvan-muktaḥ sa ucyate

“Apesar das circunstâncias, se alguém ocupa realmente suas atividades, mente e palavras no serviço devocional ao Senhor, ele deve ser considerado uma pessoa liberada.” Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura era um funcionário responsável e chefe de família, mas seu serviço à causa da expansão da missão do Senhor Caitanya Mahāprabhu é singular. Śrīla Prabodhānanda Sarasvatī Ṭhākura diz: durdāntendriya-kāla-sarpa-paṭalī protkhāta-daṁṣṭrāyate. Por certo que os órgãos dos sentidos são nossos maiores inimigos, em razão do que são comparados a serpentes venenosas. Contudo, se uma serpente vene­nosa é despojada de suas presas peçonhentas, ela não causa mais medo. Da mesma forma, não há por que temer as atividades dos sentidos ocupados a serviço do Senhor. Os devotos do movimento para a consciência de Kṛṣṇa vivem neste mundo material, mas, por manterem seus sentidos ocupados em serviço ao Senhor, estão sempre à parte do mundo material. Eles vivem sempre em uma posição trans­cendental.

Texto

yaḥ ṣaṭ sapatnān vijigīṣamāṇo
gṛheṣu nirviśya yateta pūrvam
atyeti durgāśrita ūrjitārīn
kṣīṇeṣu kāmaṁ vicared vipaścit

Sinônimos

yaḥ — qualquer pessoa que; ṣaṭ — seis; sapatnān — adversários; vijigī­ṣamāṇaḥ — desejando conquistar; gṛheṣu — na vida familiar; nir­viśya — tendo ingressado; yateta — deve procurar; pūrvam — primeiro; atyeti — conquista; durga-āśritaḥ — estando em uma fortaleza; ūrjita­-arīn — inimigos muito fortes; kṣīṇeṣu — reduzidos; kāmam — desejos luxuriosos; vicaret — pode ir; vipaścit — a mais experiente e erudita.

Tradução

Quem é casado e, de maneira sistemática, conquista a mente e os cinco órgãos dos sentidos, é como um rei, de cuja fortaleza conquista seus poderosos inimigos. Depois de ser treinada na vida fami­liar e de ver reduzirem-se os seus desejos luxuriosos, a pessoa pode ir a qualquer parte, sem perigo.

Comentário

SIGNIFICADO—O sistema védico de quatro varṇas e quatro āśramas, além de ser muito científico, visa basicamente a capacitar as pessoas a contro­larem os sentidos. Antes de ingressar na vida familiar (gṛhastha­-āśrama), o estudante é plenamente treinado para se tornar jitendriya, alguém com controle sobre os sentidos. O estudante maduro recebe a permissão de se tornar chefe de família, e, por ele ter primeiramente recebido o treinamento para controlar os sentidos, poderá retirar-se da vida familiar e tornar-se vānaprastha logo que as fortes ondas da juventude passem e ele chegue à beira da velhice, aos cinquenta anos ou um pouco mais. Então, após mais algum treinamento, ele aceita sannyāsa. A partir daí, torna-se uma pessoa plenamente erudita e renunciada, capaz de ir a qualquer parte sem o medo de se deixar cativar pelos desejos materiais. Os sentidos são considerados inimigos poderosíssimos. Assim como um rei em uma fortaleza magnífica pode conquistar inimigos poderosos, o chefe de família no gṛhastha-āśrama, a vida familiar, pode conquistar os desejos luxuriosos da juventude e estar muito seguro quando aceitar vānaprastha e sannyāsa.

Texto

tvaṁ tv abja-nābhāṅghri-saroja-kośa-
durgāśrito nirjita-ṣaṭ-sapatnaḥ
bhuṅkṣveha bhogān puruṣātidiṣṭān
vimukta-saṅgaḥ prakṛtiṁ bhajasva

Sinônimos

tvam — tua pessoa; tu — então; abja-nābha — da Suprema Personalidade de Deus, cujo umbigo é como uma flor de lótus; aṅghri — pés; saroja — lótus; kośa — orifício; durga — a cidadela; āśritaḥ — refugiado em; nirjita — conquistados; ṣaṭ-sapatnaḥ — os seis inimigos (a mente e os cinco sentidos); bhuṅkṣva — desfruta; iha — neste mundo material; bhogān — coisas desfrutáveis; puruṣa — pela Pessoa Suprema; atidiṣ­ṭān — solicitado extraordinariamente; vimukta — livre; saṅgaḥ — do contato com a matéria; prakṛtim — posição constitucional; bhajasva — desfruta.

Tradução

O senhor Brahmā prosseguiu: Meu querido Priyavrata, refugia-te dentro do verticilo do lótus dos pés do Senhor, cujo umbigo também é como um lótus. Deste modo, conquista os seis órgãos dos sentidos [a mente e os sentidos de adquirir conhecimento]. Aceita o gozo material porque o Senhor, extraordinariamente, ordenou que fizesses isso. Dessa maneira, estarás sempre livre do contato com a matéria e conseguirás cumprir as ordens do Senhor em tua posição constitucional.

Comentário

SIGNIFICADO—Existem três classes de homens neste mundo material. Os que se esforçam por satisfazer os sentidos ao máximo chamam-se karmīs; acima deles estão os jñānīs, que procuram controlar os impulsos dos sentidos, e, acima destes, estão os yogīs, que já dominaram os sen­tidos. Nenhum deles, entretanto, está situado em uma posição transcen­dental. Apenas os devotos, que não pertencem a nenhum dos grupos supramencionados, são transcendentais. Como explica a Bhagavad-gītā (14.26):

māṁ ca yo ’vyabhicāreṇa
bhakti-yogena sevate
sa guṇān samatītyaitān
brahma-bhūyāya kalpate

Aquele que se ocupa em serviço devocional pleno e não falha em circunstância alguma, transcende de imediato os modos da natureza material e chega então ao nível de Brahman.” Neste verso, o senhor Brahmā aconselha Priyavrata a permanecer transcenden­tal na fortaleza, não da vida familiar, mas sim dos pés de lótus do Senhor (abja-nābhāṅghri-saroja). Quando uma abelha pousa no ver­ticilo de uma flor de lótus e colhe o seu mel, ela fica plenamente protegida pelas pétalas do lótus. Nem o brilho do Sol nem outras influências externas perturbam a abelha. Analogamente, quem sempre busca refúgio aos pés de lótus da Suprema Personalidade de Deus fica protegido de todos os perigos. É por isso que o Śrīmad-Bhāgavatam (10.14.58) diz:

samāśritā ye pada-pallava-plavaṁ
mahat-padaṁ puṇya-yaśo murāreḥ
bhavāmbudhir vatsa-padaṁ paraṁ padaṁ
padaṁ padaṁ yad vipadāṁ na teṣām

Tudo é facilitado para quem se refugiou aos pés de lótus do Senhor. De fato, mesmo a travessia do grande oceano da ignorância (bhavāmbudhi) é exatamente como cruzar a pegada criada por um bezerro (vatsa-padam). Para semelhante devoto, não há como permanecer em um lugar onde cada passo é perigoso.

Nosso verdadeiro dever consiste em cumprir a ordem suprema da Personalidade de Deus. Se estivermos fixos em nossa determinação de cumprir a ordem suprema do Senhor, estaremos sempre seguros, não importando onde nos encontremos, seja no céu, seja no inferno. Nesta passagem, são muito significa­tivas as palavras prakṛtiṁ bhajasva. Prakṛtim se refere à nossa posição constitucional. Por posição constitucional, toda entidade viva é serva eterna de Deus. Portanto, o senhor Brahmā aconselhou a Priyavrata: “Situa-te em tua posição original de servo eterno do Senhor. Se cumprires Suas ordens, jamais cairás, mesmo em meio ao gozo material.” O gozo material alcan­çado em virtude de nossas atividades fruitivas difere do gozo material proporcionado pela Suprema Personalidade de Deus. Às vezes, um devoto parece gozar de uma posição muito opulenta, mas ele aceita semelhante posição para cumprir as ordens da Suprema Personali­dade de Deus. Logo, as influências materiais nunca afetam o devoto. Os devotos do movimento para a consciência de Kṛṣṇa estão pre­gando por todo o mundo, de acordo com a ordem de Śrī Caitanya Mahāprabhu. Eles são obrigados a encontrar-se com muitos karmīs, mas, pela misericórdia de Śrī Caitanya Mahāprabhu, as influências materiais não os afetam. Ele os abençoou, como descreve o Caitanya­-caritāmṛta (Madhya 7.129):

kabhu nā bādhibe tomāra viṣaya-taraṅga
punarapi ei ṭhāñi pābe mora saṅga

O devoto sincero, ocupado em servir ao Senhor Śrī Caitanya Mahā­prabhu, pregando Seu culto pelo mundo inteiro, jamais se deixará afetar por viṣaya-taraṅga, ou seja, influências materiais. Ao contrário, ele retornará ao refúgio dos pés de lótus do Senhor Śrī Caitanya Mahāprabhu no devido curso do tempo e, assim, terá associação perpétua com Ele.

Texto

śrī-śuka uvāca
iti samabhihito mahā-bhāgavato bhagavatas tri-bhuvana-guror anuśāsanam ātmano laghutayāvanata-śirodharo bāḍham iti sabahu-mānam uvāha.

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; iti — assim; samabhihitaḥ — instruiu perfeitamente; mahā-bhāgavataḥ — o grande devoto; bhagavataḥ — do poderosíssimo senhor Brahmā; tri-bhuvana — dos três mundos; guroḥ — o mestre espiritual; anuśāsanam — a ordem; ātmanaḥ — dele mesmo; laghutayā — devido à inferioridade; avanata — prostrou; śirodharaḥ — sua cabeça; bāḍham — sim, senhor; iti — assim; sa-bahu-mānam — com muito respeito; uvāha — executou.

Tradução

Śrī Śukadeva Gosvāmī continuou: Assim, depois de ser perfeitamente instruído pelo senhor Brahmā, que é o mestre espiritual dos três mundos, Priyavrata, cuja posição era de um inferior, prestou-lhe reverências, aceitou a ordem e executou a mesma com muito respeito.

Comentário

SIGNIFICADO—Śrī Priyavrata era neto do senhor Brahmā. Portanto, conforme dita a etiqueta social, sua posição era inferior. É dever do inferior cumprir a ordem do superior com muito respeito. Priyavrata, por­tanto, disse imediatamente: “Sim, senhor. Executarei vossa ordem.” Descreve-se Priyavrata como mahā-bhāgavata, um grande devoto. O dever de um grande devoto é cumprir a ordem do mestre espiritual, ou do mestre espiritual do mestre espiritual no sistema de paramparā. Como descreve a Bhagavad-gītā (4.2), evaṁ paramparā prāptam: todos precisam receber instruções do Senhor Supremo através da corrente discipular de mestres espirituais. O devoto do Senhor sempre se considera servo do servo do servo do Senhor.

Texto

bhagavān api manunā yathāvad upakalpitāpacitiḥ priyavrata-nāradayor aviṣamam abhisamīkṣamāṇayor ātmasam avasthānam avāṅ-manasaṁ kṣayam avyavahṛtaṁ pravartayann agamat.

Sinônimos

bhagavān — o poderosíssimo senhor Brahmā; api — também; manunā — por Manu; yathāvat — como merecia; upakalpita-apacitiḥ — sendo adorado; priyavrata-nāradayoḥ — na presença de Priyavrata e Nārada; aviṣamam — sem aversão; abhisamīkṣamāṇayoḥ — contemplando; ātmasam — conveniente à sua posição; avasthānam — à sua morada; avāk-manasam — além da descrição da mente e das palavras; kṣayam — o planeta; avyavahṛtam — situado em posição extraordiná­ria; pravartayan — partindo; agamat — retornou.

Tradução

Então, o senhor Brahmā foi adorado por Manu, que, com todo o respeito, o agradou da melhor maneira que pôde. Priyavrata e Nārada também contemplaram Brahmā sem nenhum resquício de ressentimento. Tendo levado Priyavrata a aceitar o pedido de seu pai, o senhor Brahmā regressou à sua morada, Satyaloka, que o esforço mental ou palavras mundanas são incapazes de descrever.

Comentário

SIGNIFICADO—Manu certamente ficou muito satisfeito com o fato de o senhor Brahmā ter persuadido seu neto Priyavrata (filho de Manu) a assumir a responsabilidade de governar o mundo. Priyavrata e Nārada também ficaram muito satisfeitos. Embora Brahmā tivesse forçado Priyavrata a aceitar a administração de assuntos mundanos, que­brando, assim, seu voto de permanecer brahmacārī para ocupar-se plenamente em serviço devocional, Nārada e Priyavrata não alimen­taram ressentimentos contra Brahmā. Nārada não ficou de maneira alguma pesaroso por ter sido frustrado na tentativa de fazer de Priya­vrata um discípulo. Tanto Priyavrata quanto Nārada eram perso­nalidades elevadas que sabiam como respeitar o senhor Brahmā. Portanto, em vez de ficarem ressentidos com Brahmā, eles, do fundo do coração, prestaram-lhe seus respeitos. Então, o senhor Brahmā regressou à sua morada celestial, conhecida como Satyaloka, apresentada aqui como impecável e indescritível por palavras.

Neste verso, afirma-se que o senhor Brahmā regressou à sua residência, a qual é tão importante como sua própria personalidade. O senhor Brahmā é o criador deste universo e a personalidade mais elevada dentro dele. Sua duração de vida é descrita na Bhagavad-gītā (8.17): sahasra-yuga-paryantam ahar yad brahmaṇo viduḥ. A duração total dos quatro yugas é de 4.300.000 anos, e esse valor multipli­cado por mil equivale a doze horas na vida de Brahmā. Portanto, a verdade é que não podemos fazer ideia do que sejam até mesmo apenas doze horas na vida de Brahmā, isso para não mencionar os 100 anos que constituem toda a duração de sua vida. Como, então, poderemos entender sua morada? Os textos védicos descrevem que não há nascimento, morte, velhice ou doença em Satyaloka. Em outras palavras, como Satyaloka encontra-se perto de Brahmaloka, ou da refulgência Brahman, ela é quase igual a Vaikuṇṭhaloka. A morada do senhor Brahmā é praticamente indescritível a partir desta nossa condição presente. Logo, ela é apresentada como avāṅ-manasa-gocara, ou seja, está além da descrição de nossas palavras ou de nossa imaginação mental. Os textos védicos descrevem a morada do senhor Brahmā do seguinte modo: yad dvai parārdhyaṁ tad u pārameṣṭhyaṁ na yatra śoko na jarā na mṛtyur nārtir na codvegaḥ. “Em Satyaloka, situada a muitos milhões e bilhões de anos de distância, não existe lamen­tação, nem velhice nem morte nem ansiedade, tampouco a influência de inimigos.”

Texto

manur api pareṇaivaṁ pratisandhita-manorathaḥ surarṣi-varānumatenātmajam akhila-dharā-maṇḍala-sthiti-guptaya āsthāpya svayam ati-viṣama-viṣaya-viṣa-jalāśayāśāyā upararāma.

Sinônimos

manuḥ — Svāyambhuva Manu; api — também; pareṇa — pelo senhor Brahmā; evam — assim; pratisandhita — satisfez; manaḥ-rathaḥ — sua aspiração mental; sura-ṛṣi-vara — do grande sábio Nārada; anumatena — com a permissão; ātma-jam — seu filho; akhila — de todo o universo; dharā-maṇḍala — dos planetas; sthiti — manutenção; guptaye — para a proteção; āsthāpya — estabelecendo; svayam — pessoalmente; ati-viṣama — perigosíssimos; viṣaya — assuntos materiais; viṣa — do ve­neno; jala-āśaya — oceano; āśāyāḥ — de desejos; upararāma — livrou-se.

Tradução

Svāyambhuva Manu, com a assistência do senhor Brahmā, realizou assim os seus desejos. Com a permissão do grande sábio Nārada, ele delegou a seu filho a responsabilidade governamental de manter e proteger todos os planetas do universo. Dessa maneira, livrou-se do perigosíssimo e venenoso oceano de desejos materiais.

Comentário

SIGNIFICADO—Svāyambhuva Manu estava praticamente desesperançado, pois uma personalidade da magnitude de Nārada Muni estava instruindo seu filho Priyavrata a que não aceitasse a vida familiar. Por isso, ficou muito satisfeito com a interferência do senhor Brahmā, que induziu seu filho a aceitar a responsabilidade de liderar o governo do universo. A Bhagavad-gītā informa-nos que Vaivasvata Manu era filho do deus do Sol e que seu filho, Mahārāja lkṣvāku, governou este planeta Terra. Contudo, Svāyambhuva Manu, ao que parece, estava encarregado de todo o universo, e ele confiou a seu filho, Mahārāja Priyavrata, a responsabilidade de manter e proteger todos os sistemas planetários. Dharā-maṇḍala significa “planeta”. Esta Terra, por exemplo, chama-se dharā-mandala. Akhila, contudo, significa “todo” ou “universal”. Portanto, é difícil entender como Mahārāja Priyavrata estava situado, haja vista que, de acordo com esta lite­ratura, não restam dúvidas de que sua posição parece superior à de Vaivasvata Manu, dado que lhe foi confiada a administração de todos os sistemas planetários de todo o universo.

Outra afirmação significativa é que Svāyambhuva Manu sentiu grande satisfação ao aliviar-se da responsabilidade de governar todos os sistemas planetários do universo. Hoje em dia, os políticos anseiam apossar-se da liderança governamental, e mandam seus homens fazerem campanha de porta em porta em busca de votos, de maneira a garantirem a presidência ou um setor de igual estatura. Diferente disso, contudo, vemos aqui que foi preciso o senhor Brahmā persuadir o rei Priyavrata para que esse aceitasse o posto de imperador de todo o universo. Do mesmo modo, seu pai, Svāyambhuva Manu, sentiu-se aliviado ao confiar o governo uni­versal a Priyavrata. Isso prova que os reis e líderes executivos do governo na era védica nunca aceitavam suas posições visando ao gozo dos sentidos. Esses grandes reis, que eram conhecidos como rājarṣis, governavam apenas para manter e proteger o reino, preocupados com o bem-estar dos cidadãos. A história de Priyavrata e Svāyam­bhuva Manu descreve-os como monarcas responsáveis e exemplares, cumpridores dos deveres do governo sem interesses egoístas, e se mantendo sempre à parte da contaminação do apego material.

Compara-se aqui os assuntos materiais a um oceano de veneno. Descrição semelhante encontramos em uma das canções de Śrīla Narottama Dāsa Ṭhākura:

saṁsāra-viṣānale, divā-niśi hiyā jvale,
juḍāite nā kainu upāya

“Embora meu coração esteja sempre ardendo no fogo da existência material, eu não tomei providências para escapar dele.”

golokera prema-dhana, hari-nāma-saṅkīrtana,
rati nā janmila kene tāya

“O único remédio é hari-nāma-saṅkīrtana, o cantar do mahā-mantra Hare Kṛṣṇa, que é importado do mundo espiritual, Goloka Vṛndā­vana. Quão desventurado eu sou por não sentir nenhuma atração por isso.” Manu queria refugiar-se aos pés de lótus do Senhor, e por isso, quando o seu filho Priyavrata se encarregou de seus afazeres mundanos, Manu se sentiu muito aliviado. Assim funciona a civili­zação védica. No final da vida, a pessoa deve despojar-se dos afazeres mundanos e ocupar-se plenamente em servir ao Senhor.

A palavra surarṣi-vara-anumatena também é significativa. Manu confiou o governo ao seu filho com a permissão do grande santo Nārada. Menciona-se esse detalhe específico porque, embora Nāra­da quisesse que Priyavrata se libertasse de todos os assuntos mate­riais, quando Priyavrata se encarregou do universo a pedido do senhor Brahmā e de Manu, Nārada também ficou muito satisfeito.

Texto

iti ha vāva sa jagatī-patir īśvarecchayādhiniveśita-karmādhikāro ’khila-jagad-bandha-dhvaṁsana-parānubhāvasya bhagavata ādi-puruṣasyāṅghri-yugalānavarata-dhyānānubhāvena parirandhita-kaṣāyāśayo ’vadāto ’pi māna-vardhano mahatāṁ mahītalam anuśaśāsa.

Sinônimos

iti — assim; ha vāva — de fato; saḥ — ele; jagatī-patiḥ — o imperador do universo inteiro; īśvara-icchayā — por ordem da Suprema Perso­nalidade de Deus; adhiniveśita — completamente ocupado; karma-­adhikāraḥ — em afazeres materiais; akhila-jagat — de todo o universo; bandha — cativeiro; dhvaṁsana — destruindo; para — transcendental; anubhāvasya — cuja influência; bhagavataḥ — da Suprema Personalidade de Deus; ādi-puruṣasya — a pessoa original; aṅghri — nos pés de lótus; yugala — dois; anavarata — constante; dhyānaanubhāvena – pela meditação; parirandhita — destruídas; kaṣāya — todas as sujeiras; āśayaḥ — em seu coração; avadātaḥ — completamente puro; api­ — embora; māna-vardhanaḥ — somente para acatar; mahatām — os superiores; mahītalam — o mundo material; anuśaśāsa — governou.

Tradução

Seguindo a ordem da Suprema Personalidade de Deus, Mahārāja Priyavrata se ocupou plenamente em afazeres mundanos, mas sempre pensava nos pés de lótus do Senhor, que fazem com que nos libertemos de todo apego material. Embora Priyavrata Mahārāja estivesse completamente livre de toda a contaminação material, ele governou o mundo material apenas para acatar as ordens de seus superiores.

Comentário

SIGNIFICADO—As palavras māna-vardhano mahatām, “só para acatar os superiores”, são muito significativas. Muito embora Mahārāja Priyavrata fosse uma pessoa já liberada e não sentisse nenhuma atração pelas coisas materiais, dedicou-se aos assuntos governamentais somente para mostrar respeito ao senhor Brahmā. Arjuna também agiu da mesma maneira. Arjuna não desejava participar de afazeres políticos ou da guerra em Kurukṣetra, mas, ao receber de Kṛṣṇa, o Senhor Supremo, a ordem de fazê-lo, ele executou muito bem esses deveres. Quem sempre pensa nos pés de lótus do Senhor por certo está acima de toda a contaminação do mundo material. Como afirma a Bhagavad-gītā (6.47):

yoginām api sarveṣāṁ
mad-gatenāntarātmanā
śraddhāvān bhajate yo māṁ
sa me yuktatamo mataḥ

“De todos os yogīs, aquele que sempre se refugia em Mim com muita fé, adorando-Me em transcendental serviço amoroso, está muito inti­mamente unido a Mim em yoga e é o mais elevado de todos.” Mahārāja Priyavrata, portanto, era uma pessoa liberada e estava incluído entre os yogīs mais elevados, mas, mesmo assim, externa­mente, tornou-se o imperador do universo de acordo com a ordem do senhor Brahmā. Demonstrar respeito por seu superior desta maneira era outra de suas extraordinárias qualificações. Segundo afirma o Śrīmad-Bhāgavatam (6.17.28):

nārāyaṇa-parāḥ sarve
na kutaścana bibhyati
svargāpavarga-narakeṣv
api tulyārtha-darśinaḥ

Um devoto realmente avançado não teme nada, desde que tenha a oportunidade de cumprir a ordem da Suprema Personalidade de Deus. Essa é a explicação correta do motivo pelo qual Priyavrata se ocupou em afazeres mundanos embora fosse uma pessoa liberada. Além disso, é apenas devido a esse princípio que um mahā-bhāgavata, o qual nada tem a ver com o mundo material, desce à segunda plataforma de serviço devocional para pregar as glórias do Senhor no mundo inteiro.

Texto

atha ca duhitaraṁ prajāpater viśvakarmaṇa upayeme barhiṣmatīṁ nāma tasyām u ha vāva ātmajān ātma-samāna-śīla-guṇa-karma-rūpa-vīryodārān daśa bhāvayām babhūva kanyāṁ ca yavīyasīm ūrjasvatīṁ nāma.

Sinônimos

atha — depois disso; ca — também; duhitaram — a filha; prajā­pateḥ — de um dos prajāpatis incumbidos de aumentar a população; viśvakarmaṇaḥ — chamado Viśvakarmā; upayeme — desposou; barhiṣmatīm — Barhiṣmatī; nāma — chamada; tasyām — com ela; u ha — conforme celebram; vāva — maravilhoso; ātma-jān — filhos; ātma-­samāna — exatamente iguais a ele; śīla — caráter; guṇa — qualidade; karma — atividades; rūpa — beleza; vīrya — poder; udārān — cuja magnanimidade; daśa — dez; bhāvayām babhūva — ele gerou; kanyām — filha; ca — também; yavīyasīm — a caçula; ūrjasvatīm — Ūrjasvatī; nāma — chamada.

Tradução

Depois disso, Mahārāja Priyavrata se casou com Barhiṣmatī, a filha do prajāpati chamado Viśvakarmā. Com ela, ele teve dez filhos iguais a ele em beleza, caráter, magnanimidade e outras boas quali­dades. Ele também gerou uma filha, a caçula, chamada Ūrjasvatī.

Comentário

SIGNIFICADO—Mahārāja Priyavrata não somente cumpriu a ordem do senhor Brahmā, aceitando os deveres do governo, como também se casou com Barhiṣmatī, a filha de Viśvakarmā, um dos prajāpatis. Como Mahārāja Priyavrata era bem treinado em conhecimento transcendental, ele poderia ter voltado ao lar para gerir os negócios do governo como um brahmacārī. Ao contrário, entretanto, quando regressou à vida doméstica, ele aceitou uma esposa. É princípio consagrado que, tornando-se alguém um gṛhastha, deve viver perfeitamente nessa ordem, o que significa que ele deve conviver em harmonia com a esposa e os filhos. Quando a primeira esposa de Caitanya Mahāprabhu morreu, Sua mãe Lhe pediu que Se casasse novamente. Ele tinha vinte anos e iria tomar sannyāsa aos vinte e quatro anos de idade, mas, mesmo assim, a pedido de Sua mãe, Ele Se casou. “Enquanto estiver na vida familiar”, disse Ele a Sua mãe, “terei uma esposa, pois vida familiar não significa apenas morar em uma casa. Verdadeira vida familiar significa viver no lar na companhia da esposa.”

Três palavras deste verso são muito significativas – u ha vāva. Essas palavras são usadas para expressar admiração. Priyavrata Mahārāja havia feito um voto de renúncia, e aceitar esposa e gerar filhos nada têm a ver com o caminho da renúncia; tratam-se de atividades próprias do caminho do desfrute. Causou grande espanto, por­tanto, o fato de Priyavrata Mahārāja, que seguia o caminho da renúncia, ter agora aderido o caminho do desfrute.

Às vezes, somos criticados porque, apesar de eu ser um sannyāsī, celebro as cerimônias de casamento de meus discípulos. Deve-se explicar, contudo, que, como começamos uma sociedade consciente de Kṛṣṇa e como a sociedade humana também precisa de matrimô­nios ideais, a fim de estabelecer corretamente uma sociedade ideal, temos que celebrar o matrimônio de alguns de seus membros, embora tenhamos aceitado o caminho da renúncia. Isso pode ser espantoso para pessoas que não estão muito interessadas em estabelecer daiva-varṇāśrama, o sistema transcendental de quatro ordens sociais e quatro ordens espirituais. Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura, entretanto, queria restabelecer daiva-varṇāśrama. Em daiva-varṇāśrama, não pode haver reconhecimento do status social de acordo com o direito hereditário, pois, na Bhagavad-gītā, afirma-se que as considerações determinantes são guṇa e karma, as qualidades e o trabalho de cada um. É esse daiva-varṇāśrama que deve ser estabe­lecido em todo o mundo para recomeçar uma perfeita sociedade consciente de Kṛṣṇa. Isso pode parecer espantoso para os críticos tolos, mas é uma das funções de uma sociedade consciente de Kṛṣṇa.

Texto

āgnīdhredhmajihva-yajñabāhu-mahāvīra-hiraṇyareto-ghṛtapṛṣṭha-savana-medhātithi-vītihotra-kavaya iti sarva evāgni-nāmānaḥ.

Sinônimos

āgnīdhra — Āgnīdhra; idhma-jihva — Idhmajihva; yajña-bāhu — Yajñabāhu; mahā-vīra — Mahāvīra; hiraṇya-retaḥ — Hiraṇyaretā; ghṛta-pṛṣṭha — Ghṛtapṛṣṭha; savana — Savana; medhā-tithi — Medhātithi; vīti-hotra — Vītihotra; kavayaḥ — e Kavi; iti — assim; sarve­ — todos estes; eva — decerto; agni — do semideus que controla o fogo; nāmānaḥ — nomes.

Tradução

Os dez filhos de Mahārāja Priyavrata se chamavam Āgnīdhra, ldhmajihva, Yajñabāhu, Mahāvīra, Hiraṇyaretā, Ghṛtapṛṣṭha, Sava­na, Medhātithi, Vītihotra e Kavi. Esses também são nomes de Agni, o deus do fogo.

Texto

eteṣāṁ kavir mahāvīraḥ savana iti traya āsann ūrdhva-retasas ta ātma-vidyāyām arbha-bhāvād ārabhya kṛta-paricayāḥ pāramahaṁsyam evāśramam abhajan.

Sinônimos

eteṣām — destes; kaviḥ — Kavi; mahāvīraḥ — Mahāvīra; savanaḥ — Savana; iti — assim; trayaḥ — três; āsan — eram; ūrdhva-retasaḥ — perfeitos celibatários; te — eles; ātma-vidyāyām — no conhecimento transcendental; arbhabhāvāt – da infância; ārabhya — começo; kṛta­-paricayāḥ — muito versados; pāramahaṁsyam — da perfeição espiri­tual máxima da vida humana; eva — com certeza; āśramam — a ordem; abhajan — realizaram.

Tradução

Três entre esses dez – a saber, Kavi, Mahāvīra e Savana – viveram em perfeito celibato. Treinados assim na vida de brahmacārī desde o início de sua infância, eles eram muito versados na perfeição máxima, conhecida como paramahaṁsa-āśrama.

Comentário

SIGNIFICADO—Neste verso, a palavra ūrdhva-retasaḥ é muito significativa. Ūrdhva­-retaḥ refere-se àquele que pode controlar a vida sexual e que, em vez de desperdiçar o sêmen, ejaculando-o, pode usar essa importantís­sima substância acumulada no corpo para enriquecer o cérebro. Uma pessoa capaz de controlar completamente a vida sexual pode fazer prodígios com seu cérebro, especialmente no que se refere à memória. Assim, para alguns estudantes, bastava ouvirem seu mestre falar uma só vez as instruções védicas para lembrarem-se delas com exatidão, sem precisar de livros, os quais, portanto, não existiam nos tempos antigos.

Outra palavra significativa é arbha-bhāvāt, que significa “desde a infância”. Outro significado da mesma expressão é “por ser muito afetuoso com os filhos”. Em outras palavras, a vida de paramahaṁsa é dedicada a fazer o bem aos outros. Assim como um pai sacrifica muitas coisas por afeição ao seu filho, os grandes santos sacrificam todas as classes de conforto corpóreo para o benefício da sociedade humana. A esse respeito, existe um verso referente aos seis Gosvāmīs:

tyaktvā tūrṇam aśeṣa-maṇḍala-pati-śreṇīṁ sadā tucchavat
bhūtvā dīna-gaṇeśakau karuṇayā kaupīna-kanthāśritau

Devido à sua compaixão pelas pobres almas caídas, os seis Gosvāmīs abandonaram suas elevadas posições de ministros e aceitaram o voto de serem mendicantes. Assim, reduzindo ao mínimo suas necessidades corpóreas, cada um deles se contentou em ter apenas uma tanga e uma cuia de esmolas. Deste modo, eles permaneceram em Vṛndāvana para cumprir as ordens de Śrī Caitanya Mahāprabhu, escrevendo e publicando diversos textos vaiṣṇavas.

Texto

tasminn u ha vā upaśama-śīlāḥ paramarṣayaḥ sakala-jīva-nikāyāvāsasya bhagavato vāsudevasya bhītānāṁ śaraṇa-bhūtasya śrīmac-caraṇāravindāvirata-smaraṇāvigalita-parama-bhakti-yogānu-bhāvena paribhāvitāntar-hṛdayādhigate bhagavati sarveṣāṁ bhūtānām ātma-bhūte pratyag-ātmany evātmanas tādātmyam aviśeṣeṇa samīyuḥ.

Sinônimos

tasmin — neste paramahaṁsa-āśrama; u — decerto; ha — tão famosos; — na verdade; upaśama-śīlāḥ — na ordem de vida renunciada; parama-ṛṣayaḥ — os grandes sábios; sakala — todas; jīva — das entida­des vivas; nikāya — na totalidade; āvāsasya — a residência; bhaga­vataḥ — da Suprema Personalidade de Deus; vāsudevasya — Senhor Vāsudeva; bhītānām — daqueles que temem a existência material; śaraṇa-bhūtasya — aquele que é o único refúgio; śrīmat — da Suprema Personalidade de Deus; caraṇa-aravinda — os pés de lótus; avirata — constantemente; smaraṇa — lembrando-se; avigalita — livre de qual­quer contaminação; parama — supremo; bhakti-yoga — do serviço devocional místico; anubhāvena — pela potência; paribhāvita — purificados; antaḥ — dentro de; hṛdaya — o coração; adhigate — perceberam; bhagavati — a Suprema Personalidade de Deus; sarveṣām — de todas; bhūtānām — entidades vivas; ātma-bhūte — situado dentro do corpo; pratyak — diretamente; ātmani — com a Suprema Superalma; eva — decerto; ātmanaḥ — do eu; tādātmyam — igualdade qualitativa; aviśeṣeṇa — sem diferenças; samīyuḥ — compreenderam.

Tradução

Situados assim na ordem renunciada desde o início de suas vidas, todos os três mantiveram perfeito controle das atividades de seus sentidos, tornando-se, portanto, grandes santos. Eles sempre concentravam a mente nos pés de lótus da Suprema Personalidade de Deus, que é o lugar de repouso da totalidade das entidades vivas e que, por isso, é famoso como Vāsudeva. O Senhor Vāsudeva é o único refúgio daqueles que realmente temem a existência material. Pensando constantemente em Seus pés de lótus, esses três filhos de Mahārāja Priyavrata avançaram em serviço devocional puro. Pela potência de seu serviço devocional, puderam perceber direta­mente a Suprema Personalidade de Deus, que Se encontra no cora­ção de todos como a Superalma, e puderam compreender que, em termos qualitativos, não havia nenhuma diferença entre eles próprios e Ele.

Comentário

SIGNIFICADO—A fase de paramahaṁsa é a posição máxima que se pode atingir na vida renunciada. Em sannyāsa, a ordem renunciada, existem quatro fases – kuṭīcaka, bahūdaka, parivrājakācārya e paramahaṁsa. Segundo o sistema védico, tão logo alguém aceite a ordem renunciada, ele permanece fora de sua vila em uma cabana, e suas necessidades, especialmente sua alimentação, sua família fornece. Essa fase se chama kuṭīcaka. Ao avançar um pouco mais, o sannyāsī já não aceita mais os donativos da família, passando, então, a coletar para as suas necessidades, especialmente seu alimento, em todo lugar onde vai. Esse sistema se chama mādhukarī, que significa, literalmente, “a profissão das abelhas”. Assim como as abelhas colhem o mel de muitas flores, um pouco de cada uma, o sannyāsī deve mendigar de porta em porta, mas sem aceitar muito alimento de uma só casa. Ele deve conseguir um pou­quinho em cada casa. Essa fase se chama bahūdaka. O sannyāsī ainda mais experiente viaja pelo mundo inteiro para pregar as glórias do Senhor Vāsudeva, e passa a ser conhecido como parivrājakācārya. O sannyāsī alcança a fase de paramahaṁsa quando encerra seu traba­lho de pregação e se estabelece em um lugar, com o objetivo exclusivo de avançar na vida espiritual. O verdadeiro paramahaṁsa tem per­feito controle de seus sentidos e ocupa-se em serviço imaculado ao Senhor. Portanto, todos esses três filhos de Priyavrata, a saber, Kavi, Mahāvīra e Savana, encontravam-se na fase de paramahaṁsa desde o início. Seus sentidos não os perturbavam, pois estavam plenamente ocupados a serviço do Senhor. Portanto, este verso descreve os três irmãos como upaśama-śīlāḥ. Upaśama significa “dominados por completo”. Por terem perfeito controle sobre seus sentidos, eles são tidos como grandes sábios e santos.

Após controlarem os sentidos, os três irmãos concentraram a mente nos pés de lótus de Vāsudeva, o Senhor Kṛṣṇa. Como afirma a Bhagavad-gītā (7.19), vāsudevaḥ sarvam iti. Os pés de lótus de Vāsudeva são tudo. O Senhor Vāsudeva é o reservatório de todas as entidades vivas. Quando esta manifestação cósmica se dissolve, todas as entidades vivas entram no corpo supremo do Senhor, Garbhodakaśāyī Viṣṇu, que imerge no corpo de Mahā-Viṣṇu. Esses dois viṣṇu-tattvas são vāsudeva-tattvas, motivo pelo qual os grandes sábios Kavi, Mahāvīra e Savana concentravam-se sempre nos pés de lótus do Senhor Vāsudeva, Kṛṣṇa. Dessa maneira, eles puderam entender que a Superalma dentro do coração é a Suprema Personalidade de Deus, reconhecendo, assim, a identificação que tinham com Ele. A descrição completa dessa percepção é que, pelo simples fato de realizar a forma imaculada de serviço devocional, qualquer pessoa pode compreender perfeitamente o seu eu. O parama-bhakti-yoga mencio­nado neste verso se refere ao fato de uma entidade viva, devido ao serviço devocional imaculado, não ter outro interesse além de servir ao Senhor, como se descreve na Bhagavad-gītā (vāsudevaḥ sarvam iti). Mediante o parama-bhakti-yoga, elevando-nos à plataforma máxima de serviço amoroso, podemos livrar-nos naturalmente do conceito de vida corpórea e ver a Suprema Personalidade de Deus face a face. Como confirma a Brahma-saṁhitā:

premāñjana-cchurita-bhakti-vilocanena
santaḥ sadaiva hṛdayeṣu vilokayanti
yaṁ śyāmasundaram acintya-guṇa-svarūpaṁ
govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi

O devoto avançado, conhecido como sat, ou santo, sempre pode ver, no âmago de seu coração, a Suprema Personalidade de Deus, face a face. Kṛṣṇa, Śyāmasundara, expande-Se através de Sua porção plenária, permitindo que o devoto O veja sempre em seu coração.

Texto

anyasyām api jāyāyāṁ trayaḥ putrā āsann uttamas tāmaso raivata iti manvantarādhipatayaḥ.

Sinônimos

anyasyām — outra; api — também; jāyāyām — com a esposa; trayaḥ — três; putrāḥ — filhos; āsan — houve; uttamaḥ tāmasaḥ rai­vataḥ — Uttama, Tāmasa e Raivata; iti — assim; manu-antara — do milênio manvantara; adhipatayaḥ — governantes.

Tradução

Com sua outra esposa, Mahārāja Priyavrata teve três filhos, chamados Uttama, Tāmasa e Raivata. Mais tarde, todos eles se encarregaram de milênios manvantaras.

Comentário

SIGNIFICADO—Cada dia de Brahmā tem quatorze manvantaras. Um manvantara, a vida de um Manu, dura setenta e um yugas, e cada yuga tem 4.320.000 anos. Quase todos os Manus escolhidos para governar os manvantaras eram descendentes da família de Mahārāja Priyavrata. Três deles são particularmente mencionados aqui, a saber, Uttama, Tāmasa e Raivata.

Texto

evam upaśamāyaneṣu sva-tanayeṣv atha jagatī-patir jagatīm arbudāny ekādaśa parivatsarāṇām avyāhatākhila-puruṣa-kāra-sāra-sambhṛta-dor-daṇḍa-yugalāpīḍita-maurvī-guṇa-stanita-viramita-dharma-pratipakṣo barhiṣmatyāś cānudinam edhamāna-pramoda-prasaraṇa-yauṣiṇya-vrīḍā-pramuṣita-hāsāvaloka-rucira-kṣvely-ādibhiḥ parābhūyamāna-viveka ivānavabudhyamāna iva mahāmanā bubhuje.

Sinônimos

evam — assim; upaśama-ayaneṣu — todos muito qualificados; sva­-tanayeṣu — seus próprios filhos; atha — depois disso; jagatī-patiḥ — o amo do universo; jagatīm — o universo; arbudāniarbudas (um arbuda equivale a cem milhões); ekādaśa — onze; parivatsarāṇām — de anos; avyāhata — sem ser interrompido; akhila — universal; puruṣa-­kāra — poder; sāra — força; sambhṛta — dotado de; doḥ-daṇḍaḥ — de braços poderosos; yugala — pelo par; āpīḍita — sendo recolhida; maurvī-guṇa — da corda do arco; stanita — pelo som alto; viramita — derrotava; dharma — os princípios religiosos; pratipakṣaḥ — aqueles que são contrários; barhiṣmatyāḥ — de sua esposa Barhiṣmatī; ca — e; anudinam — diariamente; edhamāna — aumentando; pramoda — inter­curso agradável; prasaraṇa — amabilidade; yauṣiṇya — comportamen­to feminino; vrīḍā — pelo recato; pramuṣita — contido; hāsa — risos; avaloka — olhar; rucira — agradáveis; kṣveli-ādibhiḥ — pelas trocas de afetos amorosos; parābhūyamāna — estando derrotado; vivekaḥ — seu verdadeiro conhecimento; iva — como; anavabudhyamānaḥ — uma pessoa menos inteligente; iva — como; mahā-manāḥ — a grande alma; bubhuje — governava.

Tradução

Depois de Kavi, Mahāvīra e Savana terem se tornado perfeitamen­te treinados na fase de vida paramahaṁsa, Mahārāja Priyavrata governou o universo durante onze arbudas de anos. Sempre que ele decidia fixar sua flecha no arco com seus dois braços poderosos, todos os oponentes dos princípios reguladores da vida religiosa fugiam de sua presença, com medo da inigualável bravura por ele demonstrada enquanto governava o universo. Ele tinha muito amor por sua esposa Barhiṣmatī, e, com o passar dos dias, a troca de amor nupcial entre eles se intensificava. Pelas maneiras femininas com que se vestia, caminhava, levantava, sorria e olhava, a rainha Barhiṣmatī aumentava a energia do rei. Assim, embora ele fosse uma grande alma, parecia seduzido pela conduta feminina de sua esposa. Comportava-se com ela assim como um homem comum, mas, na verdade, era uma grande alma.

Comentário

SIGNIFICADO—Neste verso, a expressão dharma-pratipakṣaḥ, “oponentes dos princípios religiosos”, refere-se à desobediência, não a uma fé específica, mas sim ao varṇāśrama-dharma, a divisão da sociedade, social e espiritualmente, em quatro varṇas (brāhmaṇa, kṣatriya, vaiśya e śūdra) e em quatro āśramas (brahmacarya, gṛhastha, vānaprastha e sannyāsa). Para manter a devida ordem social e ajudar os cidadãos a progredirem pouco a pouco rumo à meta da vida – a saber, a compreensão espiritual –, é preciso aceitar os princípios de varṇāśrama-dharma. A julgar por esse verso, Mahārāja Priyavrata parece ter sido tão estrito na manutenção dessa instituição de varṇāśrama-dharma que qualquer pessoa que a transgredisse imediatamente teria de fugir de sua presença para que o rei não a censurasse, lutando ou aplicando-lhe punições leves. Na verdade, Mahārāja Priyavrata não precisava lutar, pois, graças à sua forte determinação, ninguém ousava desobedecer às regras e regulações do varṇāśrama-dharma. Segundo se diz, a menos que a sociedade humana seja regulada pelo varṇāśrama-dharma, ela não é melhor do que uma sociedade animal de cães e gatos. Mahārāja Priyavrata, portanto, manteve estritamente o varṇāśrama-dharma através de sua bravura extraordinária e inigualável.

Para manter uma vida de tão estrita vigilância, o homem precisa do estímulo de sua esposa. No sistema de varṇāśrama-dharma, certas classes, tais como os brāhmaṇas e os sannyāsīs, não precisam do estímulo do outro sexo. Os kṣatriyas e gṛhasthas, contudo, realmente precisam do estímulo de suas esposas para cumprirem seus deveres. Na realidade, um gṛhastha ou kṣatriya não pode cumprir devidamente seus deveres sem a companhia de sua esposa. Śrī Caitanya Mahā­prabhu admitiu pessoalmente que o gṛhastha deve viver com a esposa. Os kṣatriyas, inclusive, tinham autorização de ter muitas esposas que os encorajassem no desempenho dos deveres do governo. A associação com uma boa esposa é necessária em uma vida de karma e assuntos políticos. Portanto, a fim de cumprir devidamente os seus deveres, Mahārāja Priyavrata tirava proveito de sua boa esposa Barhiṣmatī, a qual era sempre muito hábil em satisfazer seu grande esposo, vestindo-se bem, sorrindo e exibindo suas feições corpóreas femini­nas. A rainha Barhiṣmatī sempre mantinha Mahārāja Priyavrata muito motivado, de maneira que ele cumpria seu dever governamental muito adequadamente. Neste verso, usa-se iva duas vezes para indicar que Mahārāja Priyavrata agia tal qual um esposo apegado, tanto que parecia ter perdido seu senso de responsabilidade humana. Na verdade, contudo, ele tinha plena consciência de sua posição de alma espiritual, embora aparentemente se comportasse como um esposo karmī submisso. Deste modo, Mahārāja Priyavrata governou o universo durante onze arbudas de anos. Um arbuda consiste em cem milhões de anos, e Mahārāja Priyavrata governou o universo durante onze desses arbudas.

Texto

yāvad avabhāsayati sura-girim anuparikrāman bhagavān ādityo vasudhā-talam ardhenaiva pratapaty ardhenāvacchādayati tadā hi bhagavad-upāsanopacitāti-puruṣa-prabhāvas tad anabhinandan samajavena rathena jyotirmayena rajanīm api dinaṁ kariṣyāmīti sapta-kṛt vastaraṇim anuparyakrāmad dvitīya iva pataṅgaḥ.

Sinônimos

yāvat — enquanto; avabhāsayati — ilumina; sura-girim — a colina Sumeru; anuparikrāman — circundando; bhagavān — o poderosíssimo; ādityaḥ — deus do Sol; vasudhā-talam — o sistema plane­tário inferior; ardhena — pela metade; eva — com certeza; pratapati — ofusca; ardhena — pela metade; avacchādayati — escurece; tadā — neste momento; hi — com certeza; bhagavat-upāsanā — adorando a Suprema Personalidade de Deus; upacita — satisfazendo-O perfeitamente; ati-puruṣa — sobre-humana; prabhāvaḥ — influência; tat — esta; anabhi­nandan — sem apreciar; samajavena — com a igualmente poderosa; rathena — montado em uma quadriga; jyotiḥ-mayena — iluminando; rajanīm — noite; api — também; dinam — dia; kariṣyāmi — eu a transformarei; iti — assim; sapta-kṛt — sete vezes; vastaraṇim — seguindo exatamente a órbita do Sol; anuparyakrāmat — circundou; dvitīyaḥ — segundo; iva — como; pataṅgaḥ — Sol.

Tradução

Enquanto governava o universo de modo tão excelente, o rei Priya­vrata certa vez ficou insatisfeito com a maneira como o poderosís­simo deus do Sol fazia sua volta. Circundando a colina Sumeru montado em sua quadriga, o deus do Sol ilumina todos os sistemas planetários circunjacentes. Contudo, quando o Sol se encontra­ no lado setentrional da colina, o sul recebe menos luz, e, quando o Sol encontra-se no sul, o norte recebe menos luz. Desagradado com essa situação, o rei Priyavrata decidiu iluminar a parte do universo onde era noite. Montado em uma brilhante quadriga, ele seguiu a órbita do deus do Sol e, assim, satisfez seu desejo. Ele era capaz de realizar atividades muito maravilhosas devido ao poder que obtivera adorando a Suprema Personalidade de Deus.

Comentário

SIGNIFICADO—Há um ditado bengali que declara que alguém pode ser tão poderoso que chegue a ser capaz de transformar a noite em dia e o dia em noite. Esse ditado tornou-se popular devido às proezas de Priyavrata. Suas atividades demonstram quão poderoso ele se tornou adorando a Suprema Personalidade de Deus. O Senhor Kṛṣṇa é conhecido como Yogeśvara, o senhor de todos os poderes místicos. A Bhagavad-gītā (18.78) afirma que, onde quer que esteja o senhor de todos os poderes místicos (yatra yogeśvaraḥ kṛṣṇaḥ), a vitória, a fortuna e todas as outras opulências estarão presentes. O serviço devocional é igualmente poderoso. Quando um devoto obtém o que deseja, isso não se deve ao seu próprio poder místico, mas à graça do mestre do poder místico, o Senhor Kṛṣṇa; por Sua graça, o devoto pode realizar coisas maravilhosas, que nem o mais poderoso cientista poderia imaginar.

A partir do que descreve este verso, parece que o Sol se move. Segundo os astrônomos modernos, o Sol está fixo em um lugar, cercado pelo sistema solar, mas aqui somos informados de que o Sol não é estacionário; ele gira em uma órbita prescrita. Esse fato é corroborado pela Brahma-saṁhitā (5.52), yasyājñayā bhramati saṁbhṛta-kāla-cakraḥ: o Sol gira em sua órbita determinada segundo a ordem da Suprema Personalidade de Deus. Conforme declara o Jyotir Veda, a ciência da astronomia na literatura védica, o Sol se move durante seis meses no lado setentrional da colina Sumeru e, durante seis meses, no lado meridional. Temos experiência prática, neste planeta, que, enquanto no norte é verão, no sul é inverno, e vice-versa. Os cientistas materialistas modernos às vezes se apresentam como conhecedores de todos os componentes do Sol, mas são incapazes de proporcionar um segundo sol como o de Mahārāja Priyavrata.

Embora Mahārāja Priyavrata tivesse projetado uma poderosíssima quadriga, tão brilhante como o Sol, não era seu desejo competir com o deus do Sol, pois um vaiṣṇava jamais deseja suplantar outro vaiṣṇava. Ele intencionava oferecer benefícios abundantes no âmbito da existência material. Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura observa que, durante os meses de abril e maio, os raios do brilhante sol de Mahārāja Priyavrata eram agradáveis como os raios da Lua, e, du­rante os meses de outubro e novembro, tanto de manhã quanto à tardinha, aquele sol fornecia mais calor do que a luz solar. Em suma, como Mahārāja Priyavrata era extremamente poderoso, suas ações expandiam seu poder em todas as direções.

Texto

ye vā u ha tad-ratha-caraṇa-nemi-kṛta-parikhātās te sapta sindhava āsan yata eva kṛtāḥ sapta bhuvo dvīpāḥ.

Sinônimos

ye — isto; u ha — com certeza; tat-ratha — de sua quadriga; caraṇa — das rodas; nemi — pelos aros; kṛta — feitos; parikhātāḥ — sulcos; te — aqueles; sapta — sete; sindhavaḥ — oceanos; āsan — tornaram-se; yataḥ — devido aos quais; eva — decerto; kṛtāḥ — foram feitas; sapta — sete; bhuvaḥ — de Bhū-maṇḍala; dvīpāḥ — ilhas.

Tradução

Enquanto Priyavrata conduzia sua quadriga atrás do Sol, os aros das rodas dessa quadriga criaram sulcos que mais tarde transformaram-se em sete oceanos, dividindo o sistema planetário conhecido como Bhū-maṇḍala em sete ilhas.

Comentário

SIGNIFICADO—Às vezes, os planetas no espaço exterior são chamados de ilhas. Temos experiência de várias espécies de ilhas no oceano, mas é igualmente verdade que os vários planetas, divididos em quatorze lokas, são ilhas no oceano do espaço. Conforme Priyavrata perseguia a órbita do Sol montado em sua quadriga, ele criou sete diferentes espécies de oceanos e sistemas planetários, os quais, conjuntamente, são conhecidos como Bhū-maṇḍala, ou Bhūloka. No mantra Gāyatrī, cantamos: oṁ bhūr bhuvaḥ svaḥ tat savitur vareṇyam. Acima do sistema planetário Bhūloka, encontra-se Bhuvarloka, e, acima desse, está Svargaloka, o sistema planetário celestial. É Savitā, o deus do Sol, quem controla todos esses sistemas planetários. Cantando o mantra Gāyatrī, logo após acordar, de manhã bem cedo, adoramos o deus do Sol.

Texto

jambū-plakṣa-śālmali-kuśa-krauñca-śāka-puṣkara-saṁjñās teṣāṁ parimāṇaṁ pūrvasmāt pūrvasmād uttara uttaro yathā-saṅkhyaṁ dvi-guṇa-mānena bahiḥ samantata upakḷptāḥ.

Sinônimos

jambū — Jambū; plakṣa — Plakṣa; śālmali — Śālmali; kuśa — Kuśa; krauñca — Krauñca; śāka — Śāka; puṣkara — Puṣkara; saṁjñāḥ — conhecidas como; teṣām — delas; parimāṇam — medida; pūrvasmāt pūrvasmāt — da anterior; uttaraḥ uttaraḥ — a seguinte; yathā — de acordo com; saṅkhyam — número; dvi-guṇa — duas vezes maior; mānena — com uma medida; bahiḥ — externa; samantataḥ — por toda a volta; upakḷptāḥ — produzida.

Tradução

Os nomes das ilhas são Jambū, Plakṣa, Śālmali, Kuśa, Krauñca, Śāka e Puṣkara. Cada ilha é duas vezes maior do que a precedente, e cada uma delas está rodeada por um elemento líquido, além do qual se encontra a ilha seguinte.

Comentário

SIGNIFICADO—O oceano de cada sistema planetário tem uma diferente espécie de líquido. O verso seguinte explica a situação de cada um deles.

Texto

kṣārodekṣu-rasoda-suroda-ghṛtoda-kṣīroda-dadhi-maṇḍoda-śuddhodāḥ sapta jaladhayaḥ sapta dvīpa-parikhā ivābhyantara-dvīpa-samānā ekaikaśyena yathānupūrvaṁ saptasv api bahir dvīpeṣu pṛthak parita upakalpitās teṣu jambv-ādiṣu barhiṣmatī-patir anuvratānātmajān āgnīdhredhmajihva-yajñabāhu-hiraṇyareto-ghṛtapṛṣṭha-medhātithi-vītihotra-saṁjñān yathā-saṅkhyenaikaikasminn ekam evādhi-patiṁ vidadhe.

Sinônimos

kṣāra — sal; uda — água; ikṣu-rasa — o líquido extraído da cana-de-açúcar; uda — água; surā — bebida alcóolica; uda — água; ghṛta — manteiga clarificada; uda — água; kṣīra — leite; uda — água; dadhi-maṇḍa — iogurte emulsificado; uda — água; śuddha-udāḥ — e água potável; sapta — sete; jala-dhayaḥ — oceanos; sapta — sete; dvīpa — ilhas; parikhāḥ — sulcos; iva — como; abhyantara — internas; dvīpa — ilhas; samānāḥ — iguais a; eka-ekaśyena — um após outro; yathā-anupūrvam — em ordem cro­nológica; saptasu — sete; api — embora; bahiḥ — externa; dvīpeṣu­ — em ilhas; pṛthak — separadas; paritaḥ — por toda a volta; upakal­pitāḥ — situados; teṣu — dentro deles; jambū-ādiṣu — a começar de Jambū; barhiṣmatī — de Barhiṣmatī; patiḥ — o esposo; anuvratān — que eram realmente seguidores dos princípios do pai; ātma-jān — filhos; āgnīdhra-idhmajihva yajñabāhu-hiraṇyaretaḥ-ghṛtapṛṣṭha­-medhātithi-vītihotra-saṁjñān — chamados Āgnīḍhra, Idhmajihva, Yajñabāhu, Hiraṇyaretā, Ghṛtapṛṣṭha, Medhātithi e Vītihotra; yathā­-saṅkhyena — pelo mesmo número; eka-ekasmin — em cada ilha; ekam — um; eva — decerto; adhi-patim — rei; vidadhe — ele fez.

Tradução

Os sete oceanos contêm, respectivamente, água salgada, caldo-de-cana, bebida alcóolica, manteiga clarificada, leite, iogurte emulsificado e água doce potável. Todas as ilhas estão completamente cercadas por esses oceanos, e cada oceano equivale em largura à ilha que o cerca. Mahā­rāja Priyavrata, o esposo da rainha Barhiṣmatī, delegou a sobera­nia sobre essas ilhas aos seus respectivos filhos, a saber, Āgnīdhra, Idhmajihva, Yajñabāhu, Hiraṇyaretā, Ghṛtapṛṣṭha, Medhātithi e Vītihotra. Assim, todos eles se tornaram reis por ordem de seu pai.

Comentário

SIGNIFICADO—Entenda-se que todos os dvīpas, ou ilhas, estão cercados por diferentes espécies de oceanos. Além disso, este verso diz que a largura de cada oceano é a mesma da ilha que ele cerca. A extensão dos ocea­nos, entretanto, não pode ser igual ao comprimento das ilhas. Segundo Vīrarāghava Ācārya, a largura da primeira ilha é 100.000 yojanas. Um yojana equivale a doze quilômetros, de modo que se calcula que a largura da primeira ilha seja de 1.200.000 quilômetros. A água que a cerca deve ter a mesma largura, mas seu comprimento deve ser diferente.

Texto

duhitaraṁ corjasvatīṁ nāmośanase prāyacchad yasyām āsīd devayānī nāma kāvya-sutā.

Sinônimos

duhitaram — a filha; ca — também; ūrjasvatīm — Ūrjasvatī; nāma­ — chamada; uśanase — ao grande sábio Uśanā (Śukrācārya); prāyac­chat — ele deu; yasyām — a quem; āsīt — houve; devayānī — Devayānī; nāma — chamada; kāvya-sutā — a filha de Śukrācārya.

Tradução

Então, o rei Priyavrata deu a mão de sua filha, Ūrjasvatī, a Śukrā­cārya, que com ela teve uma filha chamada Devayānī.

Texto

naivaṁ-vidhaḥ puruṣa-kāra urukramasya
puṁsāṁ tad-aṅghri-rajasā jita-ṣaḍ-guṇānām
citraṁ vidūra-vigataḥ sakṛd ādadīta
yan-nāmadheyam adhunā sa jahāti bandham

Sinônimos

na — não; evam-vidhaḥ — assim; puruṣa-kāraḥ — influência pessoal; uru-kramasya — da Suprema Personalidade de Deus; puṁsām — dos devotos; tat-aṅghri — de Seus pés de lótus; rajasā — pela poeira; jita-ṣaṭ-guṇānām — que conquistou a influência das seis espécies de açoites materiais; citram — maravilhoso; vidūra-vigataḥ — a pessoa de quinta classe, ou o intocável; sakṛt — uma única vez; ādadīta — caso pronun­cie; yat — cujo; nāmadheyam — santo nome; adhunā — imediatamente; saḥ — ele; jahāti — abandona; bandham — cativeiro material.

Tradução

Meu querido rei, um devoto que tenha se refugiado na poeira dos pés de lótus do Senhor pode transcender a influência dos seis açoites materiais – a saber, fome, sede, lamentação, ilusão, velhice e morte – e pode conquistar a mente e os cinco sentidos. Contudo, para um devoto puro do Senhor, isso não é tão maravilhoso assim, pois, mesmo uma pessoa fora da jurisdição das quatro castas – em outras palavras, um intocável – livra-se imediatamente do cati­veiro da existência material caso pronuncie, mesmo uma só vez, o santo nome do Senhor.

Comentário

SIGNIFICADO—Śukadeva Gosvāmī falava a Mahārāja Parīkṣit sobre as atividades do rei Priyavrata, e, já que o rei podia ter dúvidas sobre essas atividades maravilhosas e incomuns, Śukadeva Gosvāmī lhe garantiu: “Meu querido rei”, disse ele, “não duvides das maravilhosas ativi­dades de Priyavrata. Para um devoto da Suprema Personalidade de Deus, tudo é possível porque o Senhor também é conhecido como Urukrama.” Urukrama é um dos nomes do Senhor Vāmanadeva, que fez o prodígio de ocupar os três mundos com três de Seus passos. O Senhor Vāmanadeva solicitou três passos de terra a Mahārāja Bali, e, tendo este concordado em cedê-los, o Senhor imediatamente abrangeu o mundo inteiro com dois de Seus passos. Com o terceiro passo, Ele colocou Seu pé sobre a cabeça de Bali Mahārāja. Śrī Jayadeva Gosvāmī diz:

chalayasi vikramaṇe balim adbhuta-vāmana
pada-nakha-nīra-janita-jana-pāvana
keśava dhṛta-vāmana-rūpa jaya jagadīśa hare

“Todas as glórias ao Senhor Keśava, que assumiu a forma de um anão. Ó Senhor do universo, Vós afastais tudo o que é inauspicioso para os devotos! Ó maravilhoso Vāmanadeva, enganastes o grande demônio Bali Mahārāja com Vossos passos. Sob a forma do rio Ganges, a água que tocou as unhas de Vossos pés de lótus, quando ultrapassastes a cobertura do universo, purifica todas as entidades vivas.”

Sendo todo-poderoso, o Senhor Supremo pode fazer coisas que parecem maravilhosas aos olhos do homem comum. Da mesma maneira, um devoto que tenha se refugiado aos pés de lótus do Senhor também pode fazer prodígios, os quais o homem comum mal pode imaginar, pela graça da poeira daqueles pés de lótus. Caitanya Mahā­prabhu, portanto, ensina-nos a refugiarmo-nos aos pés de lótus do Senhor:

ayi nanda-tanuja kiṅkaraṁ
patitaṁ māṁ viṣame bhavāṁbudhau
kṛpayā tava pāda-paṅkaja-
sthita-dhūlī-sadṛśaṁ vicintaya

“Ó filho de Nanda Mahārāja, sou Teu servo eterno, mas, de alguma forma, caí no oceano de nascimentos e mortes. Por favor, tira-me deste oceano de morte e coloca-me como um dos átomos aos Teus pés de lótus.” O Senhor Caitanya nos ensina a entrar em contato com a poeira dos pés de lótus do Senhor, visto que assim teremos todo o sucesso, indubitavelmente.

Em razão do corpo material, toda entidade viva na existência material é sempre perturbada por ṣaḍ-guṇa, os seis açoites – fome, sede, lamentação, ilusão, invalidez e morte. Além disso, outro ṣaḍ-guṇa é o conjunto da mente e os cinco órgãos dos sentidos. Se mesmo o caṇḍāla, o pária ou intocável, livra-se imediatamente do cativeiro material caso pronuncie, mesmo uma só vez, o santo nome do Senhor, o que dizer, então, do devoto santo? Às vezes, os brāhmaṇas de casta argumentam que, a menos que alguém troque de corpo, não pode ser aceito como brāhmaṇa, pois, como o corpo atual é obtido como resultado de ações passadas, alguém que no passado agiu como brāhmaṇa nasce em família de brāhmaṇas. Portanto, argumentam eles, sem um corpo bramânico, ninguém pode ser aceito como brāhmaṇa. Nesta passagem se diz, contudo, que mesmo o vidūra-vigata, o caṇḍāla – um intocável de quinta classe – liberta-se caso pronuncie, mesmo uma única vez, o santo nome. Libertar-se signi­fica dizer que a pessoa muda de corpo imediatamente. Sanātana Gosvāmī confirma isso:

yathā kāñcanatāṁ yāti
kāṁsyaṁ rasa-vidhānataḥ
tathā dīkṣā-vidhānena
dvijatvaṁ jāyate nṛṇām

Quando alguém, muito embora seja caṇḍāla, é iniciado por um de­voto puro no cantar do santo nome do Senhor, seu corpo se modifica na medida em que ele segue as instruções do mestre espiritual. Em­bora não possamos ver como ocorre essa mudança, devemos aceitar, com base nas afirmações autorizadas dos śāstras, que ele muda de corpo. Devemos compreender isso sem precisar recorrer a argumen­tos. Este verso diz claramente que sa jahāti bandham: “Ele abandona seu cativeiro material.” O corpo é uma representação simbólica do cativeiro material, de acordo com o karma de cada um. Embora, às vezes, não possamos ver o corpo grosseiro modificar-se, o cantar do santo nome do Senhor Supremo modifica de imediato o corpo sutil, e, como o corpo sutil se modifica, a entidade viva se liberta prontamente do cativeiro material. Além do mais, as transformações pelas quais o corpo grosseiro passa são conduzidas pelo corpo sutil. Após a destruição do corpo grosseiro, o corpo sutil leva a entidade viva de seu presente corpo grosseiro para outro. No corpo sutil, é a mente quem predomina, de modo que, se a mente de alguém está sempre absorta em lembrar-se das atividades ou dos pés de lótus do Senhor, subentende-se que essa pessoa já modificou seu corpo atual e se purificou. Portanto, é irrefutável que um caṇḍāla, ou qualquer pessoa caída ou de nascimento baixo, pode tornar-se um brāhmaṇa por meio do simples método da iniciação genuína.

Texto

sa evam aparimita-bala-parākrama ekadā tu devarṣi-caraṇānuśayanānu-patita-guṇa-visarga-saṁsargeṇānirvṛtam ivātmānaṁ manyamāna ātma-nirveda idam āha.

Sinônimos

saḥ — ele (Mahārāja Priyavrata); evam — assim; aparimita — inigualável; bala — força; parākramaḥ — cuja influência; ekadā — certa vez; tu — então; deva-ṛṣi — do grande santo Nārada; caraṇa-anuśaya­na — rendendo-se aos pés de lótus; anu — depois disso; patita — caído; guṇa-visarga — com afazeres materiais (criados pelos três modos materiais da natureza); saṁsargeṇa — com a ligação; anirvṛtam — insatisfeito; iva — como; ātmānam — ele próprio; manyamānaḥ — pensando assim; ātma — eu; nirvedaḥ — possuindo renúncia; idam — isso; āha — disse.

Tradução

Enquanto desfrutava de suas opulências materiais com força e in­fluência plenas, Mahārāja Priyavrata certa vez se colocou a considerar que, apesar de ter-se rendido plenamente ao grande santo Nārada e de estar de fato trilhando o caminho da consciência de Kṛṣṇa, ele, de alguma forma, havia se enredado novamente em atividades ma­teriais. Isso deixou sua mente inquieta, e, movido por um espírito de renúncia, ele começou a falar.

Comentário

SIGNIFICADO—No Śrīmad-Bhāgavatam (1.5.17), afirma-se:

tyaktvā sva-dharmaṁ caraṇāmbujaṁ harer
bhajann apakvo ’tha patet tato yadi
yatra kva vābhadram abhūd amuṣya kiṁ
ko vārtha āpto ’bhajatāṁ sva-dharmataḥ

“Aquele que abandonou suas ocupações materiais para ocupar-se em serviço devocional ao Senhor pode, às vezes, cair enquanto se encontra em um estágio imaturo, mas não há risco de que seja malsucedido. Por outro lado, o não-devoto, mesmo que plenamente de­dicado a seus deveres ocupacionais, nada ganha.” Se alguém, de alguma forma, buscando o refúgio de um grande vaiṣṇava, adota a consciência de Kṛṣṇa por sentimentalismo ou por compreensão filo­sófica, mas, no decorrer do tempo, cai em virtude de um entendimento imaturo, ele não é realmente caído, pois o fato de ter-se ocupado em consciência de Kṛṣṇa se torna um bem permanente. Se alguém cai, portanto, seu progresso pode ser interrompido por algum tempo, mas se manifestará outra vez, no momento oportuno. Embora Priyavrata Mahārāja estivesse prestando seu serviço de acordo com as instruções de Nārada Muni, que lhe garantiam a volta ao lar, a volta ao Supremo, ele retomou os afazeres materiais a pedido de seu pai. Oportunamente, contudo, sua consciência de servir a Kṛṣṇa redespertou, pela graça de Nārada, seu mestre espiritual.

Como afirma a Bhagavad-gītā (6.41), śucīnāṁ śrīmatāṁ gehe yoga-bhraṣṭo ’bhijāyate. Quem cai do processo de bhakti-yoga recebe no­vamente a opulência dos semideuses e, após desfrutar dessa opu­lência material, recebe a oportunidade de nascer, ou na família nobre de um brāhmaṇa puro, ou em uma família rica, para ter a oportunidade de reviver sua consciência de Kṛṣṇa. Foi exatamente isso que aconte­ceu na vida de Priyavrata; ele representa um exemplo muito glorioso dessa verdade. Passado algum tempo, ele já não queria desfrutar de suas opulências materiais e de sua esposa, reino e filhos, senão que queria renunciar tudo isso. Portanto, após ter descrito as opulências materiais de Mahārāja Priyavrata, Śukadeva Gosvāmī, neste verso, descreve sua tendência à renúncia.

As palavras devarṣi-caraṇānuśayana indicam que Mahārāja Priya­vrata, tendo se rendido plenamente ao grande sábio Devarṣi Nārada, estava seguindo estritamente todos os processos devocionais e princípios reguladores sob sua orientação. Com relação a seguir estritamen­te os princípios reguladores, Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura diz: daṇḍavat praṇāmās tān anupatitaḥ. Prestando de imediato suas reverências (daṇḍavat) ao mestre espiritual e seguindo estritamente as orientações dele, o discípulo avança. Mahārāja Priyavrata fazia tudo isso regularmente.

Enquanto alguém estiver no mundo material, estará fatalmente sob a influência dos modos da natureza material (guṇa-visarga). Não é verdade que Mahārāja Priyavrata estava livre da influência mate­rial porque possuía todas as opulências materiais. Neste mundo material, tanto os muito pobres quanto os muito ricos estão sob as influências materiais, pois riqueza e pobreza são criações dos modos da natureza material. Como afirma a Bhagavad-gītā (3.27), prakṛteḥ kriyamāṇāni guṇaiḥ karmāṇi sarvaśaḥ. Conforme os modos da na­tureza material que adquirimos, a natureza material nos fornece recursos para o gozo material.

Texto

aho asādhv anuṣṭhitaṁ yad abhiniveśito ’ham indriyair avidyā-racita-viṣama-viṣayāndha-kūpe tad alam alam amuṣyā vanitāyā vinoda-mṛgaṁ māṁ dhig dhig iti garhayāṁ cakāra.

Sinônimos

aho — ai de mim; asādhu — ruim; anuṣṭhitam — executado; yat — porque; abhiniveśitaḥ — estando totalmente absorto; aham — eu; indriyaiḥ — em troca de gozo dos sentidos; avidyā — pela ignorância; racita — feito; viṣama — causando aflição; viṣaya — gozo dos sentidos; andha-kūpe — no poço escuro; tat — esse; alam — insignificante; alam — de nenhuma importância; amuṣyāḥ — desta; vanitāyāḥ­ — esposa; vinoda-mṛgam — tal qual um macaco dançarino; mām — para mim; dhik — toda condenação; dhik — toda condenação; iti — assim; garhayām — críticas; cakāra — ele fez.

Tradução

O rei, então, colocou-se a criticar-se: Ai de mim! Quão condenado me tornei devido ao gozo dos sentidos! Agora estou caído no gozo material, que é exatamente como um poço camuflado. Agora basta! Não desfrutarei mais. Vede só como me tornei um macaco dan­çarino nas mãos de minha esposa. Em razão disso, estou condenado.

Comentário

SIGNIFICADO—Pelo comportamento de Mahārāja Priyavrata, pode-se entender quão condenado é o avanço do conhecimento material. Ele fez pro­dígios, tais como criar outro sol, que brilhava durante a noite, e criar uma quadriga tão imensa que suas rodas formavam vastos oceanos. Essas atividades são tão grandiosas que os cientistas modernos mal podem imaginar como tais coisas puderam acontecer. No campo das atividades materiais, Mahārāja Priyavrata agiu de maneira prodigiosa, mas, como estava lidando com o gozo dos sentidos – governando seu reino e dançando de acordo com as sugestões de sua bela esposa –, ele se condenou. Analisando este exemplo de Mahārāja Priyavrata, podemos entender o quanto é degra­dada a civilização moderna de avanço materialista. Os pretensos cientistas modernos e outros materialistas estão muito satisfeitos porque podem construir grandes pontes, estradas e máquinas, mas essas atividades são insignificantes caso comparadas com as de Mahārāja Priyavrata. Se Mahārāja Priyavrata condenou-se apesar de suas atividades maravilhosas, quão condenados somos nós, em nosso pretenso avanço de civilização material. Podemos concluir que esse avanço nada tem a ver com os problemas da entidade viva enclau­surada neste mundo material. Infelizmente, o homem moderno não percebe seu enredamento e o quanto é condenado, tampouco sabe que classe de corpo terá na próxima vida. Do ponto de vista espiri­tual, um grande reino, uma bela esposa e maravilhosas atividades mate­riais – tudo é impedimento ao avanço espiritual. Mahārāja Priyavrata havia servido ao grande sábio Nārada com muita sinceridade. Por­tanto, apesar de ter aceitado opulências materiais, não se desviou de sua tarefa pessoal. Retomou a consciência de Kṛṣṇa. Como afirma a Bhagavad-gītā (2.40):

nehābhikrama-nāśo ’sti
pratyavāyo na vidyate
svalpam apy asya dharmasya
trāyate mahato bhayāt

“Neste esforço, não há perda nem diminuição, e um pequeno progresso neste caminho pode proteger a pessoa do mais perigoso tipo de medo.” Uma renúncia como a de Mahārāja Priyavrata só é possível pela graça da Suprema Personalidade de Deus. Em geral, quando as pessoas são poderosas ou quando têm uma linda esposa, um belo lar e popularidade material, enredam-se cada vez mais. Priyavrata Mahārāja, contudo, tendo sido completamente treinado pelo grande sábio Nārada, recuperou sua consciência de Kṛṣṇa apesar de todos os obstáculos.

Texto

para-devatā-prasādādhigatātma-pratyavamarśenānupravṛttebhyaḥ putrebhya imāṁ yathā-dāyaṁ vibhajya bhukta-bhogāṁ ca mahiṣīṁ mṛtakam iva saha mahā-vibhūtim apahāya svayaṁ nihita-nirvedo hṛdi gṛhīta-hari-vihārānubhāvo bhagavato nāradasya padavīṁ punar evānusasāra.

Sinônimos

para-devatā — da Suprema Personalidade de Deus; prasāda — pela misericórdia; adhigata — obtida; ātma-pratyavamarśena — pela autor­realização; anupravṛttebhyaḥ — que seguem exatamente o seu caminho; putrebhyaḥ — a seus filhos; imām — esta Terra; yathā-dāyam — exatamente de acordo com a herança; vibhajya — dividindo; bhukta-­bhogām — a qual ele desfrutara de tantas maneiras; ca — também; mahiṣīm — a rainha; mṛtakam iva — exatamente como um corpo morto; saha — com; mahā-vibhūtim — grande opulência; apahāya — abandonando; svayam — ele próprio; nihita — perfeitamente assumi­da; nirvedaḥ — renúncia; hṛdi — no coração; gṛhīta — aceita; hari — da Suprema Personalidade de Deus; vihāra — passatempos; anubhāvaḥ­ — com tal atitude; bhagavataḥ — do grande santo; nāradasya — do santo Nārada; padavīm — posição; punaḥ — de novo; eva — decerto; anusa­sāra — passou a seguir.

Tradução

Pela graça da Suprema Personalidade de Deus, Mahārāja Priyavrata voltou à razão. Ele dividiu todas as suas posses mundanas entre seus filhos obedientes. Abandonou tudo, incluindo sua esposa, com a qual desfrutara tanto, e seu grande e opulento reino, e renunciou completamente a todo apego. Seu coração, uma vez purificado, tornou-­se um lugar de passatempos para a Suprema Personalidade de Deus. Assim, ele conseguiu retomar o caminho da consciência de Kṛṣṇa, da vida espiritual, e reassumiu a posição atingida pela graça do grande santo Nārada.

Comentário

SIGNIFICADO—Como enuncia Śrī Caitanya Mahāprabhu em Seu Śikṣāṣṭaka, ceto­-darpaṇa-mārjanaṁ bhava-mahā-dāvāgni-nirvāpaṇam: quando é limpo o coração de alguém, o fogo abrasador da existência material extingue-se de imediato. Nosso coração se destina aos passatempos da Suprema Personalidade de Deus. Isso quer dizer que devemos ser plenamente conscientes de Kṛṣṇa, pensando em Kṛṣṇa, tal qual Ele próprio aconselha (man-manā bhava mad-bhakto mad-yājī māṁ namaskuru). Esta deve ser a nossa única preocupação. Aquele cujo coração não é limpo não consegue pensar nos passatempos trans­cendentais do Senhor Supremo, porém, se puder novamente colocar a Suprema Personalidade de Deus em seu coração, terá muita facili­dade para qualificar-se a renunciar ao apego material. Os filósofos māyāvādīs, os yogīs e os jñānīs tentam abandonar este mundo material simplesmente falando brahma satyaṁ jagan mithyā: “Este mundo é falso. Ele não possui utilidade. Vamos para o Brahman.” Esse conhecimento teórico não ajudará ninguém. Se acreditamos que o Brahman é a verdade concreta, temos que acomodar dentro de nosso coração os pés de lótus de Śrī Kṛṣṇa, como fez Mahārāja Ambarīṣa (sa vai manaḥ kṛṣṇa padāravindayoḥ). É necessário que fixemos os pés de lótus do Senhor dentro de nosso coração. Só assim teremos forças para livrar-nos do enredamento material.

Mahārāja Priyavrata conseguiu abandonar seu opulento reino, e também abandonou a companhia de sua bela esposa, como se essa fosse um cadáver. Por mais bela que seja a esposa de alguém e por mais atraentes que sejam suas feições corpóreas, ele não con­segue mais interessar-se por ela quando o corpo dela está morto. Elogiamos uma bela mulher por seu corpo, mas esse mesmo corpo, quando desprovido de uma alma espiritual, não desperta nenhum interesse em nenhum homem luxurioso. Mahārāja Priya­vrata era tão forte, pela graça do Senhor, que, muito embora sua bela esposa ainda estivesse viva, ele conseguiu abandonar sua companhia, exatamente como alguém que se vê forçado a abandonar a companhia de uma esposa morta. Śrī Caitanya Mahāprabhu diz:

na dhanaṁ na janaṁ na sundarīṁ
kavitāṁ vā jagadīśa kāmaye
mama janmani janmanīśvare
bhavatād bhaktir ahaitukī tvayi

Ó Senhor todo-poderoso, não ambiciono acumular riquezas, nem desejo belas mulheres, nem quero muitos seguidores. Tudo o que desejo é Teu serviço devocional imotivado, nascimento após nascimento.” Para quem deseja avançar na vida espiritual, o apego à opulência material e o apego a uma bela esposa são dois grandes obstáculos. Esses apegos são mais condenáveis do que o suicídio. Portanto, qualquer pessoa que deseje transpor a ignorância material, deve, pela graça de Kṛṣṇa, livrar-se do apego a mulheres e ao dinheiro. Ao se libertar completamente desses apegos, Mahārāja Priyavrata pôde, mais uma vez, seguir pacificamente os princípios recebidos do grande sábio Nārada.

Texto

tasya ha vā ete ślokāḥ —
priyavrata-kṛtaṁ karma
ko nu kuryād vineśvaram
yo nemi-nimnair akaroc
chāyāṁ ghnan sapta vāridhīn

Sinônimos

tasya — suas; ha — decerto; ete — todos esses; ślokāḥ — versos; priyavrata — pelo rei Priyavrata; kṛtam — feitas; karma — atividades; kaḥ — quem; nu — então; kuryāt — pode realizar; vinā — sem; īśvaram — a Suprema Personalidade de Deus; yaḥ — aquele que; nemi — do aro das rodas de sua quadriga; nimnaiḥ — pelas depressões; akarot — feitas; chāyām — escuridão; ghnan — dissipando; sapta — sete; vāri­dhīn — oceanos.

Tradução

Existem muitos versos famosos a respeito das atividades de Mahā­rāja Priyavrata: “Ninguém senão a Suprema Personalidade de Deus poderia fazer o que Mahārāja Priyavrata fez. Mahārāja Priyavrata dissipou a es­curidão da noite e, com os aros de sua imensa quadriga, escavou sete oceanos.”

Comentário

SIGNIFICADO—Existem muitos versos excelentes, famosos mundialmente e que se relacionam com as atividades de Mahārāja Priyavrata. Ele é tão célebre que suas atividades são comparadas às da Suprema Personalidade de Deus. Às vezes, um sincero servo e devoto do Senhor também é conhecido como bhagavān. Śrī Nārada é chamado de bhagavān, e o senhor Śiva e Vyāsadeva às vezes também são chamados de bhaga­vān. Essa designação, bhagavān, às vezes é conferida a um devoto puro pela graça do Senhor, para que ele seja tido em alta estima. Mahārāja Priyavrata foi um desses devotos.

Texto

bhū-saṁsthānaṁ kṛtaṁ yena
sarid-giri-vanādibhiḥ
sīmā ca bhūta-nirvṛtyai
dvīpe dvīpe vibhāgaśaḥ

Sinônimos

bhū-saṁsthānam — a situação da Terra; kṛtam — feita; yena — por quem; sarit — pelos rios; giri — pelas colinas e montanhas; vana-­ādibhiḥ — pelas florestas e assim por diante; sīmā — fronteiras; ca — também; bhūta — de diferentes nações; nirvṛtyai — para cessar as lutas; dvīpe dvīpe — nas várias ilhas; vibhāgaśaḥ — separadamente.

Tradução

“A fim de parar as brigas entre diferentes povos, Mahārāja Priyavrata estabeleceu limites nos rios e nos sopés das montanhas e das florestas, de modo que ninguém ultrapassasse a propriedade alheia.”

Comentário

SIGNIFICADO—O exemplo estabelecido por Mahārāja Priyavrata, delimitando diferentes estados, é seguido ainda hoje. Como se indica nesta passagem, diferentes tipos de homens estão destinados a viver em diferentes áreas, de modo que os limites das diversas regiões, que são descritas aqui como ilhas, devem ser definidos por certos rios, florestas e colinas. Isso também é mencionado com relação a Mahārāja Pṛthu, que, através da manipulação de grandes sábios, nascera do cadáver de seu pai. Como o pai de Mahārāja Pṛthu era muito pecaminoso, o pri­meiro filho que nasceu de seu cadáver foi um homem negro chamado Niṣāda. A raça naiṣāda recebeu um lugar na floresta porque, por natureza, eles são ladrões e trapaceiros. Assim como as feras recebem lugares em várias florestas e colinas, homens que são como animais também se destinam a viver ali. Ninguém pode ser promovido à vida civilizada sem que adote a consciência de Kṛṣṇa, pois, por natureza, cada um se destina a viver em uma situação específica de acordo com seu karma e seu contato com os modos da natureza. Se os homens quiserem viver em paz e harmonia, deverão adotar a consciência de Kṛṣṇa, pois não poderão atingir o padrão máximo enquanto estiverem absortos no conceito de vida corpórea. Mahārāja Priyavrata dividiu a superfície do globo em di­ferentes ilhas para que cada classe de homem pudesse viver pacifi­camente e não entrasse em conflito com os demais. A ideia moderna de nacionalidades desenvolveu-se pouco a pouco, a partir das divisões feitas por Mahārāja Priyavrata.

Texto

bhaumaṁ divyaṁ mānuṣaṁ ca
mahitvaṁ karma-yogajam
yaś cakre nirayaupamyaṁ
puruṣānujana-priyaḥ

Sinônimos

bhaumam — dos planetas inferiores; divyam — celestiais; mānu­ṣam — dos seres humanos; ca — também; mahitvam — todas as opulên­cias; karma — pelas atividades fruitivas; yoga — pelo poder místico; jam — nascido; yaḥ — aquele que; cakre — fez; niraya — com inferno; aupamyam — comparação ou igualdade; puruṣa — da Suprema Personalidade de Deus; anujana — ao devoto; priyaḥ — muito querido.

Tradução

“Como grande seguidor e devoto do sábio Nārada, Mahārāja Priyavrata considerava infernais as opulências que obtivera devido às atividades fruitivas e ao poder místico, quer nos sistemas planetá­rios inferiores, quer nos celestiais, quer na sociedade humana.”

Comentário

SIGNIFICADO—Śrīla Rūpa Gosvāmī diz que a posição do devoto é tão estupenda que, para ele, nenhuma opulência material é digna de ser possuída. Existem diferentes classes de opulências na Terra, nos planetas celestiais e mesmo no sistema planetário inferior, conhecido como Pātāla. O devoto, entretanto, sabe que todas elas são materiais, em consequência do que não está de modo algum interessado nelas. Como afirma a Bhagavad-gītā, paraṁ dṛṣṭvā nivartate. Às vezes, os yogīs e os jñānīs abandonam voluntariamente todas as opulências materiais para praticar seu sistema de liberação e saborear a bem-aventurança espiritual. Contudo, é comum eles caírem porque a renúncia artificial às opulências materiais não pode perdurar. É necessário que sintamos o gosto superior da vida espiritual; só assim poderemos abandonar a opulência material. Como Mahārāja Priyavrata já saboreara a bem-aventurança espiritual, ele não tinha interesse em quaisquer recursos materiais disponíveis nos sistemas planetários inferior, superior ou intermediário.

Neste ponto, encerram-se os Significados Bhaktivedanta do quinto canto, primeiro capítulo, do Śrīmad-Bhāgavatam, intitulado “As Atividades de Mahārāja Priyavrata”.