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CAPÍTULO NOVE

Prahlāda Apazigua o Senhor Nṛsiṁhadeva com Orações

Como relata este capítulo, Prahlāda Mahārāja, seguindo a ordem do senhor Brahmā, apaziguou o Senhor quando Este estava extremamente irado após ter matado Hiraṇyakaśipu.

Depois que Hiraṇyakaśipu foi morto, o Senhor continuou irado, e os semideuses, encabeçados pelo senhor Brahmā, não conseguiram apaziguá-lO. Nem mesmo mãe Lakṣmī, a deusa da fortuna, a companheira constante de Nārāyaṇa, ousava aparecer diante do Senhor Nṛsiṁhadeva. Então, o senhor Brahmā pediu que Prahlāda Mahārāja se adiantasse para aplacar a ira do Senhor. Prahlāda Mahārāja, confiando na benevolência de seu amo, o Senhor Nṛsiṁhadeva, não estava temeroso de modo algum. Com muito respeito, apresentou-se diante dos pés de lótus do Senhor e Lhe ofereceu respeitosas reverências. O Senhor Nṛsiṁhadeva, tendo muita afeição por Prahlāda Mahārāja, colocou Sua mão na cabeça de Prahlāda, e, como foi pessoalmente tocado pelo Senhor, Prahlāda Mahārāja de imediato alcançou brahma-jñāna, o conhecimento espiritual. Assim, ofereceu suas orações ao Senhor com pleno conhecimento espiritual e em completo êxtase devocional. São as seguintes as instruções que Prahlāda Mahārāja deu em forma de oração.

Prahlāda disse: “Não me orgulho de poder oferecer orações à Suprema Personalidade de Deus. Simplesmente me refugio na misericórdia do Senhor, pois, sem devoção, ninguém pode apaziguá-lO. Ninguém pode satisfazer a Suprema Personalidade de Deus simplesmente à força de parentesco elevado ou de grande opulência, sabedoria, austeridade, penitência ou poder místico. Na verdade, nada disso jamais satisfaz o Senhor Supremo, pois só pode agradá-lO o serviço devocional puro. Mesmo que um não-devoto seja um brāhmaṇa dotado de todas as qualidades bramânicas, ele não é muito querido ao Senhor, ao passo que, se alguém nascido em família de comedores de cães, for um devoto, o Senhor aceita suas orações. O Senhor não precisa das orações de ninguém, mas, se o devoto oferece orações ao Senhor, o devoto se beneficia imensamente. Portanto, pessoas ignorantes, nascidas em famílias baixas, podem oferecer sinceras orações ao Senhor, e o Senhor as aceitará. Tão logo alguém oferece suas orações ao Senhor, ele se situa na plataforma Brahman.”

O Senhor Nṛsiṁhadeva apareceu para o benefício de toda a sociedade humana, e não apenas para o benefício exclusivo de Prahlāda. A aterradora forma do Senhor Nṛsiṁhadeva talvez pareça muito terrível para o não-devoto, mas, para o devoto, essa forma do Senhor é sempre afetuosa, como o são Suas outras formas. A vida condicionada no mundo material é de fato extremamente assustadora, mas o devoto, em verdade, nada teme. O medo da existência material é algo que se deve ao falso ego. Portanto, a meta última da vida de toda entidade viva é alcançar a posição de servo do servo do Senhor. Somente a misericórdia do Senhor pode remediar a condição dolorosa das entidades vivas no mundo material. Embora existam os supostos protetores materiais, tais como o senhor Brahmā e os outros semideuses, ou mesmo o próprio pai, eles são incapazes de fazer qualquer coisa para proteger alguém que é negligenciado pela Suprema Personalidade de Deus. Entretanto, quem se refugiou plenamente nos pés de lótus do Senhor pode salvar-se das investidas da natureza material. Portanto, nenhuma entidade viva deve se deixar atrair pela aparente felicidade material, e todos devem, a qualquer custo, refugiar-se no Senhor. É esse o objetivo da vida humana. Deixar-se seduzir pelo gozo dos sentidos é simplesmente tolice. Ser um devoto do Senhor ou ser um não-devoto independe de nascimento em família superior ou inferior. Nem mesmo o senhor Brahmā ou a deusa da fortuna podem alcançar o completo favor do Senhor, mas o devoto pode se estabelecer muito facilmente nesse serviço devocional. A misericórdia do Senhor é outorgada a todos igualmente, não importando se alguém está situado em uma posição superior ou inferior. Como foi abençoado por Nārada Muni, Prahlāda Mahārāja se tornou um grande devoto. O Senhor sempre salva os devotos do poder dos impersonalistas e dos niilistas. Como a Superalma, o Senhor está presente no coração de todos para conferir ao ser vivo proteção e todos os benefícios. Assim, o Senhor age ora como matador, ora como protetor. Ninguém deve acusá-lO de alguma discrepância. Está incluído em Seu plano vermos muitas variedades de vida dentro deste mundo material. Todas elas, em última análise, são Sua misericórdia.

Muito embora toda a manifestação cósmica seja indiferenciada, o mundo material é diferente do mundo espiritual. É somente pela misericórdia do Senhor Supremo que alguém consegue entender como age a maravilhosa natureza material. Por exemplo, embora nascido do caule do lótus que brotou do abdômen de Garbhodakaśāyī Viṣṇu, o senhor Brahmā, depois de aparecer, não sabia o que fazer. Foi atacado por dois demônios, Madhu e Kaiṭabha, que lhe roubaram o conhecimento védico, mas o Senhor os matou e confiou ao senhor Brahmā o conhecimento védico. Assim, em cada milênio, o Senhor aparece na sociedade dos semideuses, dos seres humanos, dos animais, das plantas e dos seres aquáticos. Todas essas encarnações se destinam a proteger os devotos e matar os demônios, mas esse extermínio e proteção não significam que o Senhor Supremo esteja agindo com algum grau de parcialidade. A alma condicionada sempre se sente atraída pela energia externa. Portanto, está sujeita à luxúria e à cobiça e sofre as condições impostas pela natureza material. A misericórdia imotivada do Senhor para com Seu devoto é o único meio pelo qual alguém pode escapar da existência material. Quem quer que se ocupe em glorificar as atividades do Senhor jamais teme este mundo material, mas quem não consegue dedicar ao Senhor essa glorificação fica sujeito a se lamentar continuamente.

Aqueles que estão interessados em adorar silenciosamente o Senhor em lugares solitários podem qualificar-se para libertarem a si mesmos, mas o devoto puro sempre se aflige vendo o sofrimento alheio. Portanto, não se importando com sua própria liberação, ele está sempre ocupado em pregar as glórias do Senhor. Por conseguinte, Prahlāda Mahārāja tentou libertar seus colegas de classe através da pregação e jamais permaneceu silencioso. Embora ser silencioso, executar austeridades e penitências, aprender a literatura védica, submeter-se a cerimônias ritualísticas, viver em um lugar solitário e se dedicar à japa e à meditação transcendental sejam métodos aprovados que concedem a liberação, são reservados aos não-devotos ou enganadores que querem viver às custas dos outros. Entretanto, como está livre dessas atividades superficiais, o devoto puro se torna apto para ver o Senhor face a face.

A teoria atômica da composição da manifestação cósmica não é verdadeira. O Senhor é a causa de tudo e, portanto, Ele é a causa desta criação. Logo, todos devem ocupar-se sempre em serviço devocional, prestando respeitosas reverências ao Senhor, oferecendo orações, trabalhando para o Senhor, adorando o Senhor no templo, lembrando-se sempre do Senhor e sempre ouvindo Suas atividades transcendentais. Sem essas seis espécies de atividades, ninguém pode alcançar o serviço devocional.

Então, Prahlāda Mahārāja ofereceu suas orações ao Senhor Supremo, implorando Sua misericórdia a cada passo. O Senhor Nṛsiṁhadeva foi apaziguado pelas orações de Prahlāda Mahārāja e quis conceder-lhe bênçãos com as quais Prahlāda pudesse obter toda classe de facilidades materiais. Prahlāda Mahārāja, entretanto, não se deixou desencaminhar pelas facilidades materiais. Ao contrário, desejava permanecer sempre um servo do servo do Senhor.

Texto

śrī-nārada uvāca
evaṁ surādayaḥ sarve
brahma-rudra-puraḥ sarāḥ
nopaitum aśakan manyu-
saṁrambhaṁ sudurāsadam

Sinônimos

śrī-nāradaḥ uvāca — o grande sábio, o santo Nārada Muni, disse; evam — assim; sura-ādayaḥ — os grupos de semideuses; sarve — todos; brahma-rudra-puraḥ sarāḥ — representados pelo senhor Brahmā e pelo senhor Śiva; na — não; upaitum — de ficar diante do Senhor; aśakan — capazes; manyu-saṁrambham — em um temperamento completamente irado; su-durāsadam — muito difícil de se aproximarem (do Senhor Nṛsiṁhadeva).

Tradução

O grande santo Nārada Muni continuou: Os semideuses, encabeçados pelo senhor Brahmā, pelo senhor Śiva e por outros grandes semideuses, não ousaram apresentar-se diante do Senhor, que, naquele momento, estava extremamente irado.

Comentário

SIGNIFICADO—Em seu Prema-bhakti-candrikā, Śrīla Narottama Dāsa Ṭhākura canta que ‘krodha’ bhakta-dveṣi-jane: a ira deve ser usada para punir os demônios que invejam os devotos. Kāma, krodha, lobha, moha, mada e mātsarya – luxúria, ira, cobiça, ilusão, orgulho e inveja – todos são devidamente empregados pela Suprema Personalidade de Deus e Seu devoto. O devoto do Senhor não tolera blasfêmias contra o Senhor ou contra outros devotos do Senhor, tampouco o Senhor tolera blasfêmias contra o devoto. Portanto, o Senhor Nṛsiṁhadeva estava tão irado que grandes devotos como o senhor Brahmā e o senhor Śiva, e inclusive a deusa da fortuna, a companheira constante do Senhor, não conseguiram apaziguá-lO, mesmo após oferecerem orações de glorificação e louvor. Ninguém foi capaz de aplacar a ira do Senhor, mas, visto que o Senhor queria manifestar Sua afeição por Prahlāda Mahārāja, todos os semideuses e demais presentes diante do Senhor incentivaram Prahlāda Mahārāja a apaziguá-lO.

Texto

sākṣāt śrīḥ preṣitā devair
dṛṣṭvā taṁ mahad adbhutam
adṛṣṭāśruta-pūrvatvāt
sā nopeyāya śaṅkitā

Sinônimos

sākṣāt — diretamente; śrīḥ — a deusa da fortuna; preṣitā — sendo solicitada a se apresentar diante do Senhor; devaiḥ — por todos os semideuses (encabeçados pelo senhor Brahmā e pelo senhor Śiva); dṛṣṭvā — após ver; tam — a Ele (o Senhor Nṛsiṁhadeva); mahat — muito grande; adbhutam — maravilhosa; adṛṣṭa — nunca vista; aśruta — nunca mencionada; pūrvatvāt — devido a ser anteriormente; — a deusa da fortuna, Lakṣmī; na — não; upeyāya — ficou diante do Senhor; śaṅkitā — tendo muito medo.

Tradução

Todos os semideuses presentes solicitaram à deusa da fortuna, Lakṣmījī, que se apresentasse diante do Senhor, pois eles, sentindo muito medo, não ousavam fazê-lo. Porém, mesmo ela jamais vira essa forma tão maravilhosa e extraordinária do Senhor, de modo que nem mesmo tentou aproximar-se dEle.

Comentário

SIGNIFICADO—O Senhor possui ilimitadas formas e aspectos físicos (advaitam acyutam anādim ananta-rūpam), todos os quais estão situados em Vaikuṇṭha. Entretanto, Lakṣmīdevī, a deusa da fortuna, sendo inspirada por līlā-śakti, não pôde apreciar essa forma monumental do Senhor. Com relação a isso, Śrīla Madhvācārya recita os seguintes versos do Brahmāṇḍa Purāṇa:

adṛṣṭāśruta-pūrvatvād
anyaiḥ sādhāraṇair janaiḥ
nṛsiṁhaṁ śaṅkiteva śrīr
loka-mohāyano yayau
prahrāde caiva vātsalya-
darśanāya harer api
jñātvā manas tathā brahmā
prahrādaṁ preṣayat tadā
ekatraikasya vātsalyaṁ
viśeṣād darśayed dhariḥ
avarasyāpi mohāya
krameṇaivāpi vatsalaḥ

Em outras palavras, para os homens comuns, a forma do Senhor como Nṛsiṁhadeva é certamente desconhecida e maravilhosa, mas, para um devoto como Prahlāda Mahārāja, tal forma terrível do Senhor não é extraordinária de modo algum. Pela graça do Senhor, o devoto pode entender muito facilmente como o Senhor decide aparecer sob qualquer forma que deseje. Portanto, o devoto jamais teme semelhante forma. Devido ao favor especial concedido a Prahlāda Mahārāja, ele permaneceu silencioso e destemido, muito embora todos os semideuses, incluindo Lakṣmīdevī, temessem o Senhor Nṛsiṁhadeva. Nārāyaṇa-parāḥ sarve na kutaścana bibhyati. (Śrīmad-Bhāgavatam 6.17.28) Tal qual Prahlāda, um devoto puro de Nārāyaṇa não apenas se mantém destemido nas condições perigosas da vida material, como também, se o Senhor aparece para mitigar o medo sentido pelo devoto, este mantém seu estado de destemor em quaisquer circunstâncias.

Texto

prahrādaṁ preṣayām āsa
brahmāvasthitam antike
tāta praśamayopehi
sva-pitre kupitaṁ prabhum

Sinônimos

prahrādam — a Prahlāda Mahārāja; preṣayām āsa — solicitou; brahmā — o senhor Brahmā; avasthitam — estando situado; antike — muito perto; tāta — meu querido filho; praśamaya — simplesmente procura tranquilizar; upehi — aproxima-te de; sva-pitre — devido às atividades de teu pai demoníaco; kupitam — muitíssimo irado; prabhum — o Senhor.

Tradução

Depois disso, o senhor Brahmā pediu a Prahlāda Mahārāja, que estava de pé bem perto dele: Meu querido filho, o Senhor Nṛsiṁhadeva está com extrema raiva de teu pai demoníaco. Por favor, adianta-te e tranquiliza o Senhor.

Texto

tatheti śanakai rājan
mahā-bhāgavato ’rbhakaḥ
upetya bhuvi kāyena
nanāma vidhṛtāñjaliḥ

Sinônimos

tathā — que seja isto; iti — aceitando assim as palavras do senhor Brahmā; śanakaiḥ — muito vagarosamente; rājan — ó rei (Yudhiṣṭhira); mahā-bhāgavataḥ — o grande e sublime devoto (Prahlāda Mahārāja); arbhakaḥ — embora apenas um menininho; upetya — aproximando-se lentamente; bhuvi — no chão; kāyena — com seu corpo; nanāma — ofereceu respeitosas reverências; vidhṛta-añjaliḥ — de mãos postas.

Tradução

Nārada Muni prosseguiu: Ó rei, embora fosse apenas um menininho, o sublime devoto Prahlāda Mahārāja aceitou as palavras do senhor Brahmā. Lentamente, ele procedeu em direção ao Senhor Nṛsiṁhadeva e se abaixou para oferecer suas respeitosas reverências de mãos postas.

Texto

sva-pāda-mūle patitaṁ tam arbhakaṁ
vilokya devaḥ kṛpayā pariplutaḥ
utthāpya tac-chīrṣṇy adadhāt karāmbujaṁ
kālāhi-vitrasta-dhiyāṁ kṛtābhayam

Sinônimos

sva-pāda-mūle — a Seus pés de lótus; patitam — caído; tam — a ele (Prahlāda Mahārāja); arbhakam — apenas um menininho; vilokya — vendo; devaḥ — Senhor Nṛsiṁhadeva; kṛpayā — por Sua misericórdia imotivada; pariplutaḥ — muito aflito (em êxtase); utthāpya — erguendo; tat-śīrṣṇi — sobre sua cabeça; adadhāt — colocou; kara-ambujam — Sua mão de lótus; kāla-ahi — da serpente mortífera, o tempo (que pode causar a morte imediata); vitrasta — com medo; dhiyām — a todos aqueles cuja mente; kṛta-abhayam — que causa destemor.

Tradução

Ao ver o menininho Prahlāda Mahārāja prostrado aos Seus pés de lótus, o Senhor Nṛsiṁhadeva ficou embevecido em afeição por Seu devoto. Erguendo Prahlāda, o Senhor colocou Sua mão de lótus sobre a cabeça do menino, porque Sua mão sempre produz destemor em todos os Seus devotos.

Comentário

SIGNIFICADO—Há quatro necessidades a serem supridas no mundo material – āhāra, nidrā, bhaya e maithuna (comer, dormir, defender-se e acasalar-se). Neste mundo material, todos sentem medo (sadā samudvigna-dhiyām), e o único meio de todos se tornarem destemidos é adotar a consciência de Kṛṣṇa. Quando o Senhor Nṛsiṁhadeva apareceu, todos os devotos ficaram destemidos. O recurso de que o devoto se vale para se tornar destemido é cantar o santo nome do Senhor Nṛsiṁhadeva. Yato yato yāmi tato nṛsiṁhaḥ: onde quer que estejamos, devemos sempre pensar em Nṛsiṁhadeva. Assim, o devoto do Senhor jamais sentirá medo.

Texto

sa tat-kara-sparśa-dhutākhilāśubhaḥ
sapady abhivyakta-parātma-darśanaḥ
tat-pāda-padmaṁ hṛdi nirvṛto dadhau
hṛṣyat-tanuḥ klinna-hṛd-aśru-locanaḥ

Sinônimos

saḥ — ele (Prahlāda Mahārāja); tat-kara-sparśa — porque foi tocado na cabeça pela mão de lótus de Nṛsiṁhadeva; dhuta — sendo limpo; akhila — toda; aśubhaḥ — desventura ou desejos materiais; sapadi — imediatamente; abhivyakta — manifesta; para-ātma-darśanaḥ — compreensão acerca da Alma Suprema (conhecimento espiritual); tat-pāda-padmam — os pés de lótus do Senhor Nṛsiṁhadeva; hṛdi — no âmago do coração; nirvṛtaḥ — cheio de bem-aventurança transcendental; dadhau — fixou; hṛṣyat-tanuḥ — com a transcendental bem-aventurança extática manifesta no corpo; klinna-hṛt — cujo coração suavizou-se devido ao êxtase transcendental; aśru-locanaḥ — com lágrimas nos olhos.

Tradução

Quando a mão do Senhor Nṛsiṁhadeva entrou em contato com a cabeça de Prahlāda Mahārāja, Prahlāda se livrou por completo de todas as contaminações e desejos, como se ele tivesse sido exaustivamente purificado. Portanto, ele se situou de imediato na transcendência, e todos os sintomas de êxtase se manifestaram em seu corpo. Seu coração se encheu de amor, e seus olhos, de lágrimas, e assim ele conseguiu fixar firmemente os pés de lótus do Senhor no âmago de seu coração.

Comentário

SIGNIFICADO—Como se afirma na Bhagavad-gītā (14.26):

māṁ ca yo ’vyabhicāreṇa
bhakti-yogena sevate
sa guṇān samatītyaitān
brahma-bhūyāya kalpate

“Aquele que se ocupa em serviço devocional pleno e não falha em circunstância alguma, transcende de imediato os modos da natureza material e chega, então, ao nível de Brahman.” Em outra passagem da Bhagavad-gītā (9.32), o Senhor diz:

māṁ hi pārtha vyapāśritya
ye ’pi syuḥ pāpa-yonayaḥ
striyo vaiśyās tathā śūdrās
te ’pi yānti parāṁ gatim

“Ó filho de Pṛthā, mesmo que sejam de nascimento inferior – as mulheres, os vaiśyas [comerciantes], bem como os śūdras [trabalhadores braçais] –, todos aqueles que se refugiam em Mim podem aproximar-se do destino supremo.”

Em virtude desses versos da Bhagavad-gītā, fica evidente que, embora tivesse nascido em família demoníaca e embora em suas veias praticamente corresse sangue demoníaco, Prahlāda Mahārāja ficou limpo de toda a contaminação material corpórea devido à sua elevada posição de devoto. Em outras palavras, tais obstáculos ao caminho espiritual não podiam impedi-lo de progredir, pois ele estava em contato direto com a Suprema Personalidade de Deus. Aqueles que estão física e mentalmente contaminados pelo ateísmo não podem situar-se na plataforma transcendental, mas logo que alguém se livra da contaminação material, torna-se um forte aspirante ao serviço devocional.

Texto

astauṣīd dharim ekāgra-
manasā susamāhitaḥ
prema-gadgadayā vācā
tan-nyasta-hṛdayekṣaṇaḥ

Sinônimos

astauṣīt — ele começou a oferecer orações; harim — à Suprema Personalidade de Deus; ekāgra-manasā — a mente estando fixa apenas nos pés de lótus do Senhor; su-samāhitaḥ — muito atento (sem se distrair com algum outro tema); prema-gadgadayā — embargada porque ele sentia bem-aventurança transcendental; vācā — com a voz; tat-nyasta — estando completamente dedicado a Ele (Senhor Nṛsiṁhadeva); hṛdaya-īkṣaṇaḥ — com o coração e o olhar.

Tradução

Em transe total e com plena atenção, Prahlāda Mahārāja fixou sua mente e visão no Senhor Nṛsiṁhadeva. Com a mente indesviável, ele começou a oferecer orações amorosas, e sua voz estava embargada.

Comentário

SIGNIFICADO—A palavra su-samāhitaḥ significa “muito atento” ou “inteiramente fixo”. A habilidade de fixar a mente dessa maneira resulta de yoga-siddhi, perfeição mística. Como se afirma no Śrīmad-Bhāgavatam (12.13.1), dhyānāvasthita-tad-gatena manasā paśyanti yaṁ yoginaḥ. Atinge a perfeição ióguica quem se livra de todas as distrações materiais e fixa a sua mente nos pés de lótus do Senhor. Isso se chama samādhi, ou transe. Prahlāda Mahārāja alcançou esse estágio além dos sentidos. Como estava ocupado em serviço, ele se sentiu situado na transcendência, em razão do que sua mente e atenção naturalmente se impregnaram de transcendência. Foi então que ele passou a oferecer as seguintes orações.

Texto

śrī-prahrāda uvāca
brahmādayaḥ sura-gaṇā munayo ’tha siddhāḥ
sattvaikatāna-gatayo vacasāṁ pravāhaiḥ
nārādhituṁ puru-guṇair adhunāpi pipruḥ
kiṁ toṣṭum arhati sa me harir ugra-jāteḥ

Sinônimos

śrī-prahrādaḥ uvāca — Prahlāda Mahārāja orou; brahma-ādayaḥ — encabeçados pelo senhor Brahmā; sura-gaṇāḥ — os habitantes dos sistemas planetários superiores; munayaḥ — as grandes pessoas santas; atha — assim também (como os quatro Kumāras e outros); siddhāḥ — que alcançaram a perfeição ou o conhecimento completo; sattva — a existência espiritual; ekatāna-gatayaḥ — a que chegaram porque não se absorveram em nenhuma atividade material; vacasām — das descrições ou palavras; pravāhaiḥ — sucessivas; na — não; ārādhitum — de satisfazer; puru-guṇaiḥ — embora plenamente qualificados; adhunā — até agora; api — mesmo; pipruḥ — foram capazes; kim — se; toṣṭum — de ficar satisfeito; arhati — é capaz; saḥ — Ele (o Senhor); me — meu; hariḥ — a Suprema Personalidade de Deus; ugra-jāteḥ — que nasci em família de asuras.

Tradução

Prahlāda Mahārāja orou: Como é possível que eu, tendo nascido em família de asuras, ofereça orações convenientes, capazes de satisfazer a Suprema Personalidade de Deus? Agora mesmo, nenhum dos semideuses, encabeçados pelo senhor Brahmā, e nenhuma das pessoas santas, conseguiram satisfazer o Senhor pronunciando belas palavras, embora tais pessoas sejam muito qualificadas, visto que se situam no modo da bondade. Então, o que será de mim? Afinal, não sou nem um pouco qualificado!

Comentário

SIGNIFICADO—Muito embora seja plenamente qualificado para servir ao Senhor, o vaiṣṇava se julga extremamente baixo nas orações que oferece ao Senhor. Por exemplo, Kṛṣṇadāsa Kavirāja Gosvāmī, autor do Caitanya-caritāmṛta, declara:

jagāi mādhāi haite muñi se pāpiṣṭha
purīṣera kīṭa haite muñi se laghiṣṭha

(Cc. Ādi 5.205)

Ou seja, ele se considera desqualificado, mais baixo do que os vermes no excremento, e mais pecaminoso do que Jagāi e Mādhāi. É esse o pensamento que realmente invade o vaiṣṇava puro. Do mesmo modo, embora fosse um vaiṣṇava puro e glorioso, Prahlāda Mahārāja se julgava inteiramente desqualificado para oferecer orações ao Senhor Supremo. Mahājano yena gataḥ sa panthāh. Todo vaiṣṇava puro deve pensar assim. Ninguém deve vangloriar-se de suas qualificações vaiṣṇavas. Śrī Caitanya Mahāprabhu, portanto, instrui-nos:

tṛṇād api sunīcena
taror api sahiṣṇunā
amāninā mānadena
kīrtanīyaḥ sadā hariḥ

“É em um estado mental humilde que se devem cantar os santos nomes do Senhor, julgando-se inferior à palha na rua; deve-se ser mais tolerante do que a árvore, desprovido de todo o senso de falso prestígio, e se deve estar disposto a oferecer todo respeito aos outros. Nesse estado mental, pode-se cantar os santos nomes do Senhor constantemente.” Quem não é manso e humilde terá muita dificuldade em progredir na vida espiritual.

Texto

manye dhanābhijana-rūpa-tapaḥ-śrutaujas-
tejaḥ-prabhāva-bala-pauruṣa-buddhi-yogāḥ
nārādhanāya hi bhavanti parasya puṁso
bhaktyā tutoṣa bhagavān gaja-yūtha-pāya

Sinônimos

manye — considero; dhana — riquezas; abhijana — família aristocrática; rūpa — beleza pessoal; tapaḥ — austeridade; śruta — conhecimento obtido através do estudo dos Vedas; ojaḥ — poder sensorial; tejaḥ — refulgência corpórea; prabhāva — influência; bala — força corpórea; pauruṣa — diligência; buddhi — inteligência; yogāḥ — poder místico; na — não; ārādhanāya — para satisfazer; hi — na verdade; bhavanti — são; parasya — da transcendente; puṁsaḥ — Suprema Personalidade de Deus; bhaktyā — simplesmente através do serviço devocional; tutoṣa — ficou satisfeito; bhagavān — a Suprema Personalidade de Deus; gaja-yūtha-pāya — com o rei dos elefantes (Gajendra).

Tradução

Prahlāda Mahārāja continuou: Talvez alguém possua riquezas, família aristocrática, beleza, austeridade, educação, habilidade sensorial, esplendor, influência, força física, desvelo, inteligência e poder místico ióguico, mas julgo que, mesmo com essas qualificações, ele não poderá satisfazer a Suprema Personalidade de Deus. Contudo, qualquer pessoa pode satisfazer o Senhor simplesmente através do serviço devocional. Gajendra seguiu esse processo, em decorrência do que o Senhor ficou satisfeito com ele.

Comentário

SIGNIFICADO—Nenhuma classe de qualificação material é credenciamento para alguém satisfazer a Suprema Personalidade de Deus. Como se afirma na Bhagavad-gītā, somente através do serviço devocional é que o Senhor pode ser conhecido (bhaktyā mām abhijānāti). A menos que fique satisfeito com o serviço prestado pelo devoto, o Senhor não Se revela (nāhaṁ prakāśaḥ sarvasya yoga-māyā-samāvṛtaḥ). Esse é o veredito de todos os śāstras. Nem mediante especulação ou qualificações materiais pode alguém entender a Suprema Personalidade de Deus ou se aproximar dEle.

Texto

viprād dvi-ṣaḍ-guṇa-yutād aravinda-nābha-
pādāravinda-vimukhāt śvapacaṁ variṣṭham
manye tad-arpita-mano-vacanehitārtha-
prāṇaṁ punāti sa kulaṁ na tu bhūrimānaḥ

Sinônimos

viprāt — do que um brāhmaṇa; dvi-ṣaṭ-guṇa-yutāt — que possui as doze qualidades bramânicas; aravinda-nābha — o Senhor Viṣṇu, que tem uma flor de lótus que brota de Seu umbigo; pāda-aravinda — aos pés de lótus do Senhor; vimukhāt — não querendo prestar serviço devocional; śva-pacam — alguém nascido em família baixa, ou um comedor de cachorro; variṣṭham — mais glorioso; manye — considero; tat-arpita — tributou aos pés de lótus do Senhor; manaḥ — sua mente; vacana — palavras; īhita — todo esforço; artha — riqueza; prāṇam — e vida; punāti — purifica; saḥ — ele (o devoto); kulam — sua família; na — não; tu — mas; bhūrimānaḥ — quem falsamente se julga como estando em uma posição prestigiosa.

Tradução

Se um brāhmaṇa possui todas as doze qualificações bramânicas [como são descritas no livro Sanat-sujāta], mas não é um devoto e sente aversão pelos pés de lótus do Senhor, decerto é mais baixo do que um devoto que é comedor de cachorro, mas que dedicou tudo – mente, palavras, atividades, riqueza e vida – ao Senhor Supremo. Tal devoto é melhor do que esse brāhmaṇa porque o devoto pode purificar toda a sua família, enquanto o pretenso brāhmaṇa, deixando-se ficar em posição de falso prestígio, não consegue purificar nem mesmo a si próprio.

Comentário

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SIGNIFICADO—Eis uma afirmação de Prahlāda Mahārāja, uma das doze autoridades, na qual ele especifica a diferença entre um devoto e um brāhmaṇa hábil em karma-kāṇḍa, ou cerimônias ritualísticas védicas. Existem quatro varṇas e quatro āśramas que definem a sociedade humana, mas o princípio central é que a pessoa se torne um devoto puro e do mais alto nível. No Hari-bhakti-sudhodaya, afirma-se:

bhagavad-bhakti-hīnasya
jātiḥ śāstraṁ japas tapaḥ
aprāṇasyaiva dehasya
maṇḍanaṁ loka-rañjanam

“Se alguém nasce em uma família nobre, tal como a de um brāhmaṇa, kṣatriya ou vaiśya, mas não é devoto do Senhor, todas as suas boas qualificações de brāhmaṇa, kṣatriya ou vaiśya são nulas e sem valor. Na verdade, são consideradas enfeites em um cadáver.”

Neste verso, Prahlāda Mahārāja menciona os vipras, os brāhmaṇas eruditos. O brāhmaṇa erudito é considerado o melhor entre as classes de brāhmaṇa, kṣatriya, vaiśya e śūdra, mas um devoto nascido em uma baixa família caṇḍāla é melhor do que esses brāhmaṇas e, portanto, bem melhor do que os kṣatriyas, vaiśyas e outros. O devoto é melhor do que qualquer pessoa, pois, estando situado na plataforma Brahman, sua posição é transcendental.

māṁ ca yo vyabhicāreṇa
bhakti-yogena sevate
sa guṇān samatītyaitān
brahma-bhūyāya kalpate

“Aquele que se ocupa em serviço devocional pleno, que não cai em nenhuma circunstância, transcende de imediato os modos da natureza material e, então, chega ao nível do Brahman.” (Bhagavad-gītā 14.26) As doze qualidades de um brāhmaṇa de primeira classe, como descritas no livro Sanat-sujāta, são as seguintes:

jñānaṁ ca satyaṁ ca damaḥ śrutaṁ ca
hy amātsaryaṁ hrīs titikṣānasūyā
yajñaś ca dānaṁ ca dhṛtiḥ śamaś ca
mahā-vratā dvādaśa brāhmaṇasya

Os devotos europeus e americanos no movimento da consciência de Kṛṣṇa às vezes são aceitos como brāhmaṇas, mas os brāhmaṇas de casta sentem muita inveja deles. Em resposta a essa inveja, Prahlāda Mahārāja diz que alguém que nasceu em família brāhmaṇa, mas é falsamente orgulhoso de sua posição prestigiosa, não pode nem mesmo purificar a si mesmo e, muito menos, terá condições de purificar a sua família, ao passo que, se um caṇḍāla, uma pessoa de nascimento baixo, for um devoto plenamente rendido aos pés de lótus do Senhor, poderá purificar toda a sua família. Temos verdadeira experiência de como americanos e europeus, devido à sua completa consciência de Kṛṣṇa, purificaram verdadeiramente suas famílias, tanto que, na hora de sua morte, a mãe de um devoto perguntou sobre Kṛṣṇa ao dar o último suspiro. Portanto, é teoricamente verdade e ficou provado na prática que o devoto pode prestar o melhor serviço à sua família, comunidade, sociedade e nação. Apenas um tolo acusaria o devoto de seguir os princípios de escapismo, mas a verdade é que o devoto é a pessoa certa para elevar sua família. O devoto ocupa tudo a serviço do Senhor, de modo que ele é sempre uma personalidade elevada.

Texto

naivātmanaḥ prabhur ayaṁ nija-lābha-pūrṇo
mānaṁ janād aviduṣaḥ karuṇo vṛṇīte
yad yaj jano bhagavate vidadhīta mānaṁ
tac cātmane prati-mukhasya yathā mukha-śrīḥ

Sinônimos

na — nem; eva — decerto; ātmanaḥ — para Seu benefício pessoal; prabhuḥ — Senhor; ayam — este; nija-lābha-pūrṇaḥ — está sempre satisfeito em Seu íntimo (Ele não precisa que o serviço alheio Lhe traga contentamento); mānam — respeito; janāt — de uma pessoa; aviduṣaḥ — que não sabe que a meta da vida é satisfazer o Senhor Supremo; karuṇaḥ — (a Suprema Personalidade de Deus), que é tão bondoso com essa pessoa tola e ignorante; vṛṇīte — aceita; yat yat — tudo o que; janaḥ — uma pessoa; bhagavate — à Suprema Personalidade de Deus; vidadhīta — pode oferecer; mānam — adoração; tat — esta; ca — na verdade; ātmane — para seu próprio benefício; prati-mukhasya — do reflexo do rosto no espelho; yathā — assim como; mukha-śrīḥ — o enfeite no rosto.

Tradução

O Senhor Supremo, a Suprema Personalidade de Deus, está sempre plenamente satisfeito em Seu íntimo. Assim, quando algo Lhe é oferecido, a oferenda, pela misericórdia do Senhor, é para o benefício do devoto, pois o Senhor não precisa do serviço de ninguém. Citando um exemplo, se o rosto de uma pessoa está enfeitado, o reflexo de seu rosto no espelho também será visto enfeitado.

Comentário

SIGNIFICADO—Em bhakti-yoga, recomenda-se que o devoto siga nove princípios: śravaṇaṁ kīrtanaṁ viṣṇoḥ smaraṇaṁ pāda-sevanam/ arcanaṁ vandanaṁ dāsyaṁ sakhyam ātma-nivedanam. Esse serviço de glorificar o Senhor, ouvindo, cantando e assim por diante, não é, evidentemente, destinado ao benefício do Senhor; esse serviço devocional é recomendado para o benefício do devoto. O Senhor é sempre glorioso, quer o devoto O glorifique, quer não o faça, mas, se o devoto se ocupa em glorificar o Senhor, o próprio devoto automaticamente se torna glorioso. Ceto-darpaṇa-mārjanaṁ bhava-mahā-dāvāgni-nirvāpaṇam. Glorificando o Senhor constantemente, a entidade viva purifica o âmago de seu coração e, em consequência disso, pode entender que não pertence ao mundo material, senão que é uma alma espiritual cuja verdadeira atividade é avançar em consciência de Kṛṣṇa para que possa livrar-se das garras materiais. Assim, o fogo abrasante da existência material se extingue imediatamente (bhava-mahā-dāvāgni-nirvāpaṇam). Somente quem é tolo fica perplexo quando Kṛṣṇa ordena que sarva-dharmān parityajya mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja: “Abandona todas as variedades de atividades religiosas e simplesmente rende-te a Mim.” Alguns eruditos tolos chegam ao ponto de dizer que isso é exigir demais. Mas essa exigência não é para o benefício da Suprema Personalidade de Deus; ao contrário, é para o benefício da sociedade humana. Se os seres humanos, individual e coletivamente, e agindo em plena consciência de Kṛṣṇa, tributarem tudo à Suprema Personalidade de Deus, toda a sociedade humana se beneficiará. Quem não dedica tudo ao Senhor Supremo é apontado neste verso como aviduṣa, patife. Na Bhagavad-gītā (7.15), o próprio Senhor fala nesses mesmos termos:

na māṁ duṣkṛtino mūḍhāḥ
prapadyante narādhamāḥ
māyayāpahṛta-jñānā
āsuraṁ bhāvam āśritāḥ

“Os canalhas que são grosseiramente tolos, que são os mais baixos da humanidade, cujo conhecimento é roubado pela ilusão e que compartilham da natureza ateísta dos demônios, não se rendem a Mim.” Devido à ignorância e ao infortúnio, os ateístas e os narādhamas, os homens mais baixos, não se rendem à Suprema Personalidade de Deus. Portanto, embora seja pleno em Si mesmo, Kṛṣṇa, o Senhor Supremo, aparece em diferentes yugas para propor rendição às almas condicionadas de modo que elas se beneficiem, livrando-se das garras materiais. Em conclusão, quanto mais nos ocupamos em consciência de Kṛṣṇa e prestamos serviço ao Senhor, mais nos beneficiamos. Kṛṣṇa não precisa do serviço de nenhum de nós.

Texto

tasmād ahaṁ vigata-viklava īśvarasya
sarvātmanā mahi gṛṇāmi yathā manīṣam
nīco ’jayā guṇa-visargam anupraviṣṭaḥ
pūyeta yena hi pumān anuvarṇitena

Sinônimos

tasmāt — portanto; aham — eu; vigata-viklavaḥ — tendo abandonado a ideia de que sou incapaz; īśvarasya — da Suprema Personalidade de Deus; sarva-ātmanā — em total rendição; mahi — glória; gṛṇāmi — cantarei ou descreverei; yathā manīṣam — de acordo com o meu grau de inteligência; nīcaḥ — embora de nascimento baixo (meu pai sendo um grande demônio, desprovido de todas as boas qualidades); ajayā — devido à ignorância; guṇa-visargam — o mundo material (onde a entidade viva nasce de acordo com a sua contaminação nos modos da natureza); anupraviṣṭaḥ — entrou em; pūyeta — pode purificar-se; yena — através da qual (a glória do Senhor); hi — na verdade; pumān — uma pessoa; anuvarṇitena — sendo cantada ou recitada.

Tradução

Portanto, embora eu tenha nascido em uma família demoníaca, não há dúvidas de que posso esforçar-me totalmente para oferecer orações ao Senhor, usando o máximo da minha capacidade intelectual. Toda pessoa que a ignorância tenha forçado a entrar no mundo material pode purificar-se da vida material caso ofereça orações ao Senhor e ouça as glórias do Senhor.

Comentário

SIGNIFICADO—Compreende-se claramente que o devoto não precisa nascer em família muito elevada, ser rico, aristocrata ou muito belo. Nenhuma dessas qualificações o credenciaria ao serviço devocional. O devoto deve sentir: “Deus é grande, e eu sou muito pequeno. Portanto, compete-me oferecer orações ao Senhor.” Somente com base nisso é que alguém pode entender o Senhor e Lhe prestar serviço. Como o Senhor diz na Bhagavad-gītā (18.55):

bhaktyā mām abhijānāti
yāvān yaś cāsmi tattvataḥ
tato māṁ tattvato jñātvā
viśate tad-anantaram

“Unicamente através do serviço devocional é que se pode entender a Suprema Personalidade de Deus como Ele é. E quando, através dessa devoção, alguém se estabelece em plena consciência do Senhor Supremo, pode ingressar no reino de Deus.” Assim, sem se preocupar com sua posição material, Prahlāda Mahārāja decidiu oferecer ao Senhor suas melhores orações.

Texto

sarve hy amī vidhi-karās tava sattva-dhāmno
brahmādayo vayam iveśa na codvijantaḥ
kṣemāya bhūtaya utātma-sukhāya cāsya
vikrīḍitaṁ bhagavato rucirāvatāraiḥ

Sinônimos

sarve — todos; hi — decerto; amī — esses; vidhi-karāḥ — executores de ordens; tava — Vossos; sattva-dhāmnaḥ — estando sempre situado no mundo transcendental; brahma-ādayaḥ — os semideuses, encabeçados pelo senhor Brahmā; vayam — nós; iva — como; īśa — o meu Senhor; na — não; ca — e; udvijantaḥ — que temos medo (do Vosso aparecimento assustador); kṣemāya — para a proteção; bhūtaye — para a melhoria; uta — está dito; ātma-sukhāya — para a satisfação pessoal através desses passatempos; ca — também; asya — deste (mundo material); vikrīḍitam — manifestos; bhagavataḥ — de Vossa Onipotência; rucira — muito agradáveis; avatāraiḥ — por Vossas encarnações.

Tradução

Ó meu Senhor, todos os semideuses, encabeçados pelo senhor Brahmā, são servos sinceros de Vossa Onipotência, pois estais situado em uma posição transcendental. Portanto, eles não são como nós [Prahlāda e seu pai, o demônio Hiraṇyakaśipu]. Ao aparecerdes nessa forma assustadora, executais Vosso passatempo para Vosso próprio prazer. Tal encarnação sempre se destina à proteção e melhoria do universo.

Comentário

SIGNIFICADO—Prahlāda Mahārāja queria asseverar que seu pai e os outros membros de sua família eram todos desafortunados porque eram demoníacos, ao passo que os devotos do Senhor sempre são afortunados porque estão sempre prontos a seguir as ordens do Senhor. Ao aparecer neste mundo material em Suas várias encarnações, o Senhor Supremo cumpre duas funções – salvar o devoto e aniquilar o demônio (paritrāṇāya sādhūnāṁ vināśāya ca duṣkṛtām). O Senhor Nṛsiṁhadeva, por exemplo, apareceu para a proteção de Seu devoto. Passatempos tais como os de Nṛsiṁhadeva decerto não se destinam a criar medo nos devotos, mas os devotos, sendo muito simples e fiéis, ficaram com medo da feroz encarnação do Senhor. Portanto, Prahlāda Mahārāja, na oração seguinte, pede ao Senhor que descontinue a Sua ira.

Texto

tad yaccha manyum asuraś ca hatas tvayādya
modeta sādhur api vṛścika-sarpa-hatyā
lokāś ca nirvṛtim itāḥ pratiyanti sarve
rūpaṁ nṛsiṁha vibhayāya janāḥ smaranti

Sinônimos

tat — portanto; yaccha — por favor, abandonai; manyum — Vossa ira; asuraḥ — meu pai, Hiraṇyakaśipu, o grande demônio; ca — também; hataḥ — morto; tvayā — por Vós; adya — hoje; modeta — sente prazer; sādhuḥ api — mesmo uma pessoa santa; vṛścika-sarpa-hatyā — com a morte de uma serpente ou de um escorpião; lokāḥ — todos os planetas; ca — na verdade; nirvṛtim — prazer; itāḥ — obtiveram; pratiyanti — estão esperando (a pacificação de Vossa ira); sarve — todos eles; rūpam — esta forma; nṛsiṁha — ó Senhor Nṛsiṁhadeva; vibhayāya — para lhes mitigar o medo; janāḥ — todas as pessoas do universo; smaranti — elas se lembrarão de.

Tradução

Meu Senhor Nṛsiṁhadeva, por favor, portanto, cessai Vossa ira agora que meu pai, o grande demônio Hiraṇyakaśipu, foi morto. Uma vez que até mesmo as pessoas santas sentem prazer quando é morto um escorpião ou uma serpente, todos os mundos obtiveram imensa satisfação com a morte deste demônio. Agora, eles sabem que serão felizes e, como não quererão voltar a sentir medo, sempre se lembrarão de Vossa encarnação auspiciosa.

Comentário

SIGNIFICADO—O ponto mais importante deste verso é que, embora jamais desejem a morte de alguma entidade viva, as pessoas santas sentem prazer quando se exterminam entidades vivas invejosas, tais como serpentes e escorpiões. Hiraṇyakaśipu foi morto porque era pior do que uma serpente ou um escorpião, e, portanto, todos se sentiram felizes. Agora, não havia necessidade de o Senhor continuar irado. Quando estão em perigo, os devotos sempre podem lembrar-se da forma de Nṛsiṁhadeva, de maneira que o aparecimento de Nṛsiṁhadeva não foi nem um pouco inauspicioso. Para todas as pessoas e devotos sensatos, o aparecimento do Senhor sempre é adorável e auspicioso.

Texto

nāhaṁ bibhemy ajita te ’tibhayānakāsya-
jihvārka-netra-bhrukuṭī-rabhasogra-daṁṣṭrāt
āntra-srajaḥ-kṣataja-keśara-śaṅku-karṇān
nirhrāda-bhīta-digibhād ari-bhin-nakhāgrāt

Sinônimos

na — não; aham — eu; bibhemi — tenho medo; ajita — ó suprema pessoa vitoriosa, que jamais sois conquistado por ninguém; te — Vossa; ati — muito; bhayānaka — aterradora; āsya — boca; jihvā — língua; arka-netra — olhos que brilham como o Sol; bhrukuṭī — sobrancelhas (franzidas); rabhasa — fortes; ugra-daṁṣṭrāt — dentes ferozes; āntra-srajaḥ — enguirlandado com intestinos; kṣataja — ensanguentadas; keśara — jubas; śaṅku-karṇāt — orelhas cuneiformes; nirhrāda — por um rugido (causado por Vós); bhīta — amedrontados; digibhāt — com o qual, mesmo os grandes elefantes; ari-bhit — trespassando o inimigo; nakha-agrāt — as pontas de cujas unhas.

Tradução

Meu Senhor, que jamais sois conquistado por ninguém, decerto não temo Vossa boca e língua ferozes, Vossos olhos brilhantes como o Sol ou Vossas sobrancelhas franzidas. Não temo Vossos dentes agudos e dilaceradores, Vossa guirlanda de intestinos, Vossa juba salpicada de sangue ou Vossas orelhas grandes e cuneiformes. Tampouco temo Vosso rugido estrondoso, que faz os elefantes fugirem para lugares distantes, ou Vossas unhas, que se prestam a matar Vossos inimigos.

Comentário

SIGNIFICADO—O implacável aparecimento do Senhor Nṛsiṁhadeva decerto era muito perigoso para os não-devotos, mas esse aparecimento aterrador não causou nenhum distúrbio a Prahlāda Mahārāja. O leão é muito temível para os outros animais, mas seus filhotes não têm nenhum medo dele. A água do mar certamente apavora todas as entidades que vivem na terra, mas, dentro do mar, mesmo um pequeno peixe não sente medo. Por quê? Porque ele se refugiou no grande oceano. Afirma-se que, embora os grandes elefantes sejam arrastados pelas águas caudalosas do rio, o pequeno peixe nada contra a corrente. Portanto, embora às vezes o Senhor assuma uma feroz presença para matar os duṣkṛtīs, os devotos adoram-nO. Keśava dhṛta-nara-hari-rūpa jaya jagadīśa hare. O devoto sempre sente prazer em adorar o Senhor e glorificar qualquer forma do Senhor, agradável ou feroz.

Texto

trasto ’smy ahaṁ kṛpaṇa-vatsala duḥsahogra-
saṁsāra-cakra-kadanād grasatāṁ praṇītaḥ
baddhaḥ sva-karmabhir uśattama te ’ṅghri-mūlaṁ
prīto ’pavarga-śaraṇaṁ hvayase kadā nu

Sinônimos

trastaḥ — amedrontado; asmi — estou; aham — eu; kṛpaṇa-vatsala — ó meu Senhor, que sois tão bondoso com as almas caídas (que não têm conhecimento espiritual); duḥsaha — intolerável; ugra — implacável; saṁsāra-cakra — do ciclo de nascimentos e mortes; kadanāt — dessa condição dolorosa; grasatām — entre outras almas condicionadas, que devoram umas às outras; praṇītaḥ — sendo atirado; baddhaḥ — atado; sva-karmabhiḥ — a sequência das reações de minhas próprias atividades; uśattama — ó grande e invencível; te — Vossos; aṅghri-mūlam — às solas dos pés de lótus; prītaḥ — estando satisfeito (comigo); apavarga-śaraṇam — que são o refúgio destinado a nos libertar dessa horrível condição de existência material; hvayase — Vós chamareis (a mim); kadā — quando; nu — de fato.

Tradução

Ó poderosíssimo e invencível Senhor, que sois bondoso com as almas caídas, como resultado de minhas atividades, fui posto na associação de demônios e, portanto, tenho muito medo de minhas condições de vida dentro deste mundo material. Quando chegará o momento em que me chamareis para ficar ao refúgio de Vossos pés de lótus, que, sendo a meta última, liberta-nos da vida condicionada?

Comentário

SIGNIFICADO—Estar no mundo material decerto é algo doloroso, mas, quando alguém é posto na companhia dos asuras, ou homens ateístas, a situação se torna mais intolerável. Pode-se perguntar por que a entidade viva é posta no mundo material. Às vezes, na verdade, os tolos acusam o Senhor de tê-los colocado aqui. De fato, todos são postos na vida condicionada de acordo com seu karma. Portanto, representando todas as outras almas condicionadas, Prahlāda Mahārāja reconhece que foi admitido entre os asuras devido aos resultados de seu karma. O Senhor é conhecido como kṛpaṇa-vatsala porque é extremamente bondoso com as almas condicionadas. Por conseguinte, como se afirma na Bhagavad-gītā, o Senhor aparece sempre que ocorrem distúrbios na execução dos princípios religiosos (yadā yadā hi dharmasya glānir bhavati bhārata... tadātmānaṁ sṛjāmy aham). O Senhor está extremamente ansioso por libertar as almas condicionadas e, portanto, Ele ensina todos nós a retornarmos ao lar, retornarmos ao Supremo (sarva-dharmān parityajya mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja). Assim, Prahlāda Mahārāja esperava que, por Sua bondade, o Senhor o chamaria de volta ao refúgio de Seus pés de lótus. Em outras palavras, todos devem estar ansiosos por voltar ao lar, por voltar ao Supremo, refugiando-se nos pés de lótus do Senhor e se tornando, por conseguinte, plenamente treinados em consciência de Kṛṣṇa.

Texto

yasmāt priyāpriya-viyoga-saṁyoga-janma-
śokāgninā sakala-yoniṣu dahyamānaḥ
duḥkhauṣadhaṁ tad api duḥkham atad-dhiyāhaṁ
bhūman bhramāmi vada me tava dāsya-yogam

Sinônimos

yasmāt — devido ao fato de (existir no mundo material); priya — agradáveis; apriya — desagradáveis; viyoga — pela separação; saṁyoga — e pela combinação; janma — cujo nascimento; śoka-agninā — pelo fogo da lamentação; sakala-yoniṣu — em toda espécie de corpo; dahyamānaḥ — sendo queimado; duḥkha-auṣadham — medidas remediadoras contra a vida dolorosa; tat — isto; api — também; duḥkham — sofrimento; a-tat-dhiyā — aceitando o corpo como o eu; aham — eu; bhūman — ó grandiosíssimo; bhramāmi — estou vagando (dentro do ciclo de nascimentos e mortes); vada — por favor, instruí; me — a mim; tava — Vossas; dāsya-yogam — atividades de serviço.

Tradução

Ó pessoa grandiosa, ó Senhor Supremo, devido ao contato com circunstâncias agradáveis e desagradáveis e devido ao fato de ter que se separar delas, todos são postos em condições das mais deploráveis, vivendo em planetas celestiais ou infernais, como se estivessem ardendo em um fogo de lamentação. Embora haja muitos remédios que ajudem alguém a escapar da vida de sofrimento, todos esses remédios encontrados no mundo material são mais problemáticos do que os próprios problemas. Portanto, creio que o único remédio é estar ocupado a Vosso serviço. Por favor, instruí-me nesse serviço.

Comentário

SIGNIFICADO—Prahlāda Mahārāja almejava ocupar-se no serviço aos pés de lótus do Senhor. Após a morte de seu pai, que era materialmente muito opulento, Prahlāda poderia ter herdado a propriedade de seu pai, a qual abrangia o mundo inteiro, mas Prahlāda não estava propenso a aceitar essa opulência material, pois, quer alguém esteja nos planetas celestiais, quer esteja nos planetas infernais; quer alguém seja filho de um homem rico, quer de um homem pobre, prevalecem condições materiais em toda parte. Portanto, nenhuma condição de vida é absolutamente satisfatória. Quem deseja sentir o prazer puro que há na vida bem-aventurada deve ocupar-se no transcendental serviço amoroso ao Senhor. Talvez a opulência material traga algum prazer fugaz, mas, para conseguir esse pouquinho de contentamento, a pessoa deve trabalhar com muito afinco. Ao enriquecer, um homem pobre fica mais bem situado, mas, para chegar a essa posição, ele teve que se submeter a muitos sofrimentos. O fato é que, na vida material, quer alguém se sinta feliz ou infeliz, ambas as condições são de infelicidade. Quem deseja uma vida realmente feliz e bem-aventurada deve adotar a consciência de Kṛṣṇa e sempre se ocupar no transcendental serviço amoroso ao Senhor. Esse é o verdadeiro remédio. O mundo inteiro está sob a ilusão de que as pessoas serão felizes quando conseguirem aplicar medidas materialistas capazes de anular as dores da vida condicionada, mas essa tentativa jamais será exitosa. A humanidade deve ser treinada a se ocupar no transcendental serviço amoroso ao Senhor. Esse é o propósito do movimento da consciência de Kṛṣṇa. Ninguém pode obter felicidade simplesmente mudando suas condições materiais, pois, em toda parte, há problemas e sofrimentos.

Texto

so ’haṁ priyasya suhṛdaḥ paradevatāyā
līlā-kathās tava nṛsiṁha viriñca-gītāḥ
añjas titarmy anugṛṇan guṇa-vipramukto
durgāṇi te pada-yugālaya-haṁsa-saṅgaḥ

Sinônimos

saḥ — isto; aham — eu (Prahlāda Mahārāja); priyasya — do mais querido; suhṛdaḥ — benquerente; paradevatāyāḥ — da Suprema Personalidade de Deus; līlā-kathāḥ — narrações dos passatempos; tava — Vossos; nṛsiṁha — ó meu Senhor Nṛsiṁhadeva; viriñca-gītāḥ — proferidas pelo senhor Brahmā através da sucessão discipular; añjaḥ — facilmente; titarmi — transporei; anugṛṇan — descrevendo o tempo todo; guṇa — pelos modos da natureza; vipramuktaḥ — especificamente não estando contaminado; durgāṇi — todas as condições de sofrimento encontradas na vida; te — Vossos; pada-yuga-ālaya — absorto em plena meditação nos pés de lótus; haṁsa-saṅgaḥ — desfrutando da companhia dos haṁsas, ou pessoas liberadas (que não têm ligação com as atividades materiais).

Tradução

Ó meu Senhor Nṛsiṁhadeva, ocupando-me em Vosso transcendental serviço amoroso na companhia de devotos que são almas liberadas [haṁsas], conseguirei livrar-me totalmente da associação com os três modos da natureza material e serei capaz de cantar as glórias de Vossa Onipotência, que sois tão querido a mim. Cantarei Vossas glórias, seguindo exatamente os passos do senhor Brahmā e de sua sucessão discipular. Dessa maneira, sem dúvida, poderei cruzar o oceano de ignorância.

Comentário

SIGNIFICADO—Nesta passagem, explica-se muito bem a vida e o desejo do devoto. Logo que pode cantar o santo nome e as glórias do Senhor Supremo, o devoto por certo chega à posição liberada. O apego à glorificação do Senhor, ouvindo e cantando os santos nomes e as atividades do Senhor (śravaṇaṁ kīrtanaṁ viṣṇoḥ), decerto coloca a pessoa na posição onde não existe contaminação material. Devem-se cantar as canções autênticas, recebidas através da sucessão discipular. Na Bhagavad-gītā, afirma-se que o canto é poderoso quando é respeitada a sucessão discipular (evaṁ paramparā-prāptam imaṁ rājarṣayo viduḥ). Inventar muitas maneiras de cantar jamais surtirá algum efeito benéfico. Entretanto, cantar canções ou narrações legadas pelos ācāryas anteriores (mahājano yena gataḥ sa panthāḥ) é muitíssimo eficaz, e semelhante processo é muito fácil. Neste verso, portanto, Prahlāda Mahārāja usa a palavra añjaḥ (“facilmente”). Aceitar os pensamentos das grandes autoridades incorporadas na sucessão discipular decerto é muito mais fácil do que o método de especulação mental, através do qual alguém tenta inventar um meio para se entender a Verdade Absoluta. O melhor processo é aceitar as instruções dos ācāryas anteriores e segui-las. Então, compreender Deus e obter a autorrealização se tornam extremamente fáceis. Seguindo esse método fácil, todos podem libertar-se da contaminação produzida pelos modos da natureza material e, assim, podem cruzar o oceano de ignorância, no qual há muitas condições dolorosas. Quem segue os passos dos grandes ācāryas se associa com os haṁsas ou paramahaṁsas, aqueles que estão inteiramente livres da contaminação material. Na verdade, seguindo as instruções dos ācāryas, todos podem permanecer sempre livres de qualquer contaminação material e, assim, serem bem-sucedidos, pois alcançarão a meta da vida. Não importa o padrão de vida em que alguém esteja situado: este mundo material é sempre doloroso. Quanto a isso, não há dúvida. As tentativas de recorrer a métodos materiais para eliminar os sofrimentos da existência material nunca serão exitosas. Todos devem adotar a consciência de Kṛṣṇa para se tornarem verdadeiramente felizes; caso contrário, a felicidade é impossível. Alguém poderia argumentar que avançar na vida espiritual também envolve tapasya, aceitação voluntária de inconveniências. Entretanto, tais inconveniências não são tão perigosas como as tentativas materiais que visam mitigar todos os sofrimentos.

Texto

bālasya neha śaraṇaṁ pitarau nṛsiṁha
nārtasya cāgadam udanvati majjato nauḥ
taptasya tat-pratividhir ya ihāñjaseṣṭas
tāvad vibho tanu-bhṛtāṁ tvad-upekṣitānām

Sinônimos

bālasya — de uma criancinha; na — não; iha — neste mundo; śaraṇam — refúgio (proteção); pitarau — o pai e a mãe; nṛsiṁha — ó meu Senhor Nṛsiṁhadeva; na — nem; ārtasya — de uma pessoa que sofre de alguma doença; ca — também; agadam — remédio; udanvati — na água do oceano; majjataḥ — de alguém que está se afogando; nauḥ — o barco; taptasya — de uma pessoa que se submete ao sofrimento material; tat-pratividhiḥ — a anulação (inventada para acabar com o sofrimento presente na existência material); yaḥ — aquilo que; iha — neste mundo material; añjasā — muito facilmente; iṣṭaḥ — aceito (como remédio); tāvat — igualmente; vibho — ó meu Senhor, o Supremo; tanu-bhṛtām — das entidades vivas que aceitaram corpos materiais; tvat-upekṣitānām — que são desamparadas por Vós e não são aceitas por Vós.

Tradução

Meu Senhor Nṛsiṁhadeva, ó Supremo, devido ao conceito de vida corporal, as almas corporificadas, desamparadas por Vós, nada podem fazer em prol de sua melhora. Todos os remédios que venham a aceitar, embora talvez produzam benefícios temporários, decerto são impermanentes. Por exemplo, o pai e a mãe não podem proteger o filho, o médico e o remédio não podem aliviar o sofrimento do paciente, e o barco no oceano não pode proteger um homem que se afoga.

Comentário

SIGNIFICADO—Através do cuidado parental, através de remédios para diferentes espécies de doenças, e através dos meios de proteção aquáticos, aéreos ou terrestres, sempre há esforços para aliviar várias classes de sofrimento no mundo material, mas nenhuma dessas medidas é garantia de proteção. Talvez elas tragam benefícios temporários, mas esses nunca são permanentes. Apesar da presença do pai ou da mãe, a criança não pode ser protegida da morte acidental, da doença e de vários outros sofrimentos. Ninguém pode ajudar, nem mesmo os pais. Em última análise, o refúgio é o Senhor, e todo aquele que se refugia no Senhor é protegido. Isso é garantido pelas palavras do Senhor na Bhagavad-gītā (9.31), kaunteya pratijānīhi na me bhaktaḥ praṇaśyati: “Ó filho de Kuntī, declara ousadamente que Meu devoto jamais perece.” Portanto, a menos que alguém seja protegido pela misericórdia do Senhor, nenhuma medida reparadora poderá agir efetivamente. Por conseguinte, deve-se procurar depender por completo da imotivada misericórdia do Senhor. Embora por questão de dever rotineiro devem-se, evidentemente, aceitar outras medidas remediadoras, ninguém pode proteger alguém desamparado pela Suprema Personalidade de Deus. Neste mundo material, todos estão tentando suprimir as investidas da natureza material, mas, por fim, todos são plenamente controlados pela natureza material. Portanto, muito embora tentem repelir os violentos ataques da natureza material, os pretensos filósofos e cientistas não conseguiram lograr o seu intento. Na Bhagavad-gītā (13.9), Kṛṣṇa diz que são quatro os verdadeiros sofrimentos do mundo material – janma-mṛtyu-jarā-vyādhi (nascimento, morte, velhice e doença). Na história do mundo, ninguém jamais conseguiu suprimir esses sofrimentos impostos pela natureza material. Prakṛteḥ kriyamāṇāni guṇaiḥ karmāṇi sarvaśaḥ. A natureza (prakṛti) é tão forte que ninguém pode revogar suas severas leis. Portanto, os supostos cientistas, filósofos, religiosos e políticos devem concluir que não podem oferecer facilidades para as pessoas em geral. Eles devem empreender vigorosa propaganda para despertar a população e elevá-la à plataforma da consciência de Kṛṣṇa. Nossa humilde tentativa de propagar no mundo inteiro o movimento da consciência de Kṛṣṇa é o único remédio que pode produzir uma vida pacífica e feliz. Jamais poderemos ser felizes sem a misericórdia do Senhor Supremo (tvad-upekṣitānām). Se insistirmos em contrariar nosso pai supremo, jamais seremos felizes dentro deste mundo material, seja nos sistemas planetários superiores, seja nos inferiores.

Texto

yasmin yato yarhi yena ca yasya yasmād
yasmai yathā yad uta yas tv aparaḥ paro vā
bhāvaḥ karoti vikaroti pṛthak svabhāvaḥ
sañcoditas tad akhilaṁ bhavataḥ svarūpam

Sinônimos

yasmin — em qualquer condição de vida; yataḥ — por causa do que quer que seja; yarhi — em qualquer tempo (passado, presente ou futuro); yena — por algo; ca — também; yasya — em relação com qualquer pessoa; yasmāt — de qualquer representante causal; yasmāt — a qualquer pessoa (sem discriminação no que diz respeito a lugar, pessoa ou tempo); yathā — de qualquer maneira; yat — qualquer coisa que seja; uta — decerto; yaḥ — todo aquele que; tu — mas; aparaḥ — o outro; paraḥ — supremo; — ou; bhāvaḥ — o ser; karoti — faz; vikaroti — mudanças; pṛthak — separada; svabhāvaḥ — natureza (sob a influência dos três modos da natureza material); sañcoditaḥ — sendo influenciado; tat — isto; akhilam — tudo; bhavataḥ — de Vossa Onipotência; svarūpam — proveniente de Vossas diversas energias.

Tradução

Meu querido Senhor, todos neste mundo material estão sob os modos da natureza material, sendo influenciados pela bondade, paixão e ignorância. Todos – desde a maior personalidade, o senhor Brahmā, até a pequena formiga – trabalham sob a influência desses modos. Portanto, todos neste mundo material são influenciados por Vossa energia. A causa pela qual eles trabalham, o lugar onde trabalham, o tempo em que trabalham, o impulso devido ao qual trabalham, a meta da vida que consideram definitiva e o processo que utilizam para obter essa meta – tudo não passa de manifestações de Vossa energia. Na verdade, como a energia e o energético são idênticos, tudo é apenas Vossa manifestação.

Comentário

SIGNIFICADO—Quer alguém se julgue protegido pelos seus pais, pelo governo, por algum lugar ou por algum outro agente, tudo se deve às várias potências da Suprema Personalidade de Deus. Tudo o que é feito, seja nos sistemas planetários superiores, intermediários ou inferiores, deve-se à supervisão ou controle exercido pelo Senhor Supremo. Portanto, afirma-se que karmaṇā daiva-netreṇa jantur dehopapattaye. A Suprema Personalidade de Deus, a Superalma no âmago do coração de todos, move a ação de acordo com a mentalidade individual. Todas essas mentalidades são meras facilidades que Kṛṣṇa oferece à pessoa atuante. Portanto, a Bhagavad-gītā diz que mattaḥ smṛtir jñānam apohanaṁ ca: todos trabalham de acordo com a inspiração dada pela Superalma. Porque cada qual tem uma meta diferente na vida, cada indivíduo age de maneira diferente, conforme guiado pela Suprema Personalidade de Deus.

As palavras yasmin yato yarhi yena ca yasya yasmāt denotam que todas as atividades, quaisquer que sejam, não passam de diferentes aspectos da Suprema Personalidade de Deus. Todas elas são criadas pela entidade viva, mas concretizadas pela misericórdia do Senhor. Muito embora todas essas atividades não sejam diferentes do Senhor, o Senhor propõe que sarva-dharmān parityajya mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja: “Abandona todos os outros deveres e rende-te a Mim.” Ao aceitarmos essa orientação fornecida pelo Senhor, poderemos realmente ser felizes. Enquanto trabalharmos de acordo com nossos sentidos materiais, estaremos mergulhados na vida material, mas logo que agirmos de acordo com a verdadeira e transcendental orientação do Senhor, nossa posição será espiritual. As atividades de bhakti, o serviço devocional, estão sob o controle direto da Suprema Personalidade de Deus. O Nārada-pañcarātra afirma:

sarvopādhi-vinirmuktaṁ
tat-paratvena nirmalam
hṛṣīkeṇa hṛṣīkeśa-
sevanaṁ bhaktir ucyate

Quando alguém abandona as posições materialmente designadas e trabalha sob a orientação direta da Suprema Personalidade de Deus, sua vida espiritual é revivida. Isso é descrito como svarūpena avasthiti, situar-se na posição constitucional original. Essa é a verdadeira descrição de mukti, ou estar livre do cativeiro material.

Texto

māyā manaḥ sṛjati karmamayaṁ balīyaḥ
kālena codita-guṇānumatena puṁsaḥ
chandomayaṁ yad ajayārpita-ṣoḍaśāraṁ
saṁsāra-cakram aja ko ’titaret tvad-anyaḥ

Sinônimos

māyā — a energia externa da Suprema Personalidade de Deus; manaḥ — a mente; sṛjati — cria; karma-mayam — produzindo centenas e milhares de desejos e agindo de acordo como eles determinam; balīyaḥ — muitíssimo poderoso e intransponível; kālena — pelo tempo; codita-guṇa — cujos três modos da natureza material são agitados; anumatena — permitidos pela misericórdia do olhar (tempo); puṁsaḥ — da porção plenária, Senhor Viṣṇu, a expansão do Senhor Kṛṣṇa; chandaḥ-mayam — influenciados principalmente pelas orientações dos Vedas; yat — os quais; ajayā — devido à profunda ignorância; arpita — oferecidos; ṣoḍaśa — dezesseis; aram — os raios; saṁsāra-cakram — a roda de repetidos nascimentos e mortes em diferentes espécies de vida; aja — ó Senhor não-nascido; kaḥ — quem (está lá); atitaret — capaz de escapar; tvat-anyaḥ — sem se refugiar em Vossos pés de lótus.

Tradução

Ó Senhor, ó eterno supremo, expandindo Vossa porção plenária, criastes os corpos sutis das entidades vivas por intermédio de Vossa energia externa, que é agitada pelo tempo. Assim, a mente enreda a entidade viva em ilimitadas variedades de desejos a serem satisfeitos através das orientações védicas de karma-kāṇḍa [atividades fruitivas] e através dos dezesseis elementos. Quem poderá escapar deste enredamento a menos que se refugie em Vossos pés de lótus?

Comentário

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SIGNIFICADO—Se a mão da Suprema Personalidade de Deus está presente em tudo, como defender que alguém precisa libertar-se do enredamento material e aderir a uma vida espiritual e bem-aventurada? Kṛṣṇa de fato é a fonte de tudo, como o próprio Kṛṣṇa nos ensina na Bhagavad-gītā (ahaṁ sarvasya prabhavaḥ). Todas as atividades nos mundos espiritual e material decerto são conduzidas sob o impulso das naturezas material ou espiritual e por ordem da Suprema Personalidade de Deus. Como se confirma na Bhagavad-gītā (9.10), mayādhyakṣeṇa prakṛtiḥ sūyate sacarācaram: sem a orientação do Senhor Supremo, a natureza material nada pode fazer; ela não pode agir independentemente. A princípio, portanto, a entidade viva queria desfrutar da energia material, e, para dar toda a facilidade à entidade viva, Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, criou este mundo material e forneceu à entidade viva condições propícias para ela recorrer à mente e inventar diversas ideias e planos. Essas facilidades oferecidas pelo Senhor à entidade viva constituem as dezesseis classes de suportes pervertidos, apresentados em termos dos sentidos com os quais se adquire conhecimento, dos sentidos funcionais, da mente e dos cinco elementos materiais. A roda de repetidos nascimentos e mortes é criada pela Suprema Personalidade de Deus, mas, para que as entidades vivas confusas possam orientar-se, progredindo rumo à liberação de acordo com as várias etapas de avanço, os Vedas fornecem várias instruções (chandomayam). Se alguém quiser elevar-se aos sistemas planetários superiores, pode seguir as orientações védicas. Como o Senhor afirma na Bhagavad-gītā (9.25):

yānti deva-vratā devān
pitṝn yānti pitṛ-vratāḥ
bhūtāni yānti bhūtejyā
yānti mad-yājino ’pi mām

“Aqueles que adoram os semideuses nascerão entre os semideuses, aqueles que adoram os ancestrais irão ter com os ancestrais, aqueles que adoram os fantasmas e espíritos nascerão entre tais seres, e aqueles que Me adoram viverão coMigo.” O verdadeiro objetivo dos Vedas é orientar todos a voltar ao lar, voltar ao Supremo, mas, desconhecendo a verdadeira meta de sua vida, a entidade viva ora quer ir a um lugar, ora quer ir a outra parte, ora faz isso, ora faz aquilo. Dessa maneira, ela vagueia por todo o universo, aprisionada em várias espécies de corpos e se ocupando em várias atividades cujas reações terá que sofrer. Śrī Caitanya Mahāprabhu, portanto, diz:

brahmāṇḍa bhramite kona bhāgyavān jīva
guru-kṛṣṇa-prasāde pāya bhakti-latā-bīja

(Cc. Madhya 19.151)

A entidade viva caída e condicionada, presa à energia externa, perambula pelo mundo material, mas, se tiver a boa fortuna de se encontrar com um representante genuíno do Senhor, capaz de lhe dar a semente do serviço devocional, e, se souber tirar proveito desse guru, ou representante de Deus, receberá a bhakti-lata-bīja, a semente do serviço devocional. Se cultivar de modo apropriado a consciência de Kṛṣṇa, ela se elevará pouco a pouco ao mundo espiritual. A conclusão definitiva é que a pessoa deve render-se aos princípios de bhakti-yoga, pois então, gradualmente, alcançará a liberação. Caso contrário, não lhe será possível escapar da luta pela existência material.

Texto

sa tvaṁ hi nitya-vijitātma-guṇaḥ sva-dhāmnā
kālo vaśī-kṛta-visṛjya-visarga-śaktiḥ
cakre visṛṣṭam ajayeśvara ṣoḍaśāre
niṣpīḍyamānam upakarṣa vibho prapannam

Sinônimos

saḥ — esta (a pessoa supremamente independente que, através de Sua energia externa, criou a mente material, que é a causa de todos os sofrimentos neste mundo material); tvam — Vós (sois); hi — na verdade; nitya — eternamente; vijita-ātma — derrotada; guṇaḥ — cuja propriedade da inteligência; sva-dhāmnā — por Vossa energia espiritual pessoal; kālaḥ — o elemento tempo (que cria e aniquila); vaśī-kṛta — trazido sob Vosso controle; visṛjya — mediante o qual todos os efeitos; visarga — e causas; śaktiḥ — a energia; cakre — na roda do tempo (a repetição de nascimentos e mortes); visṛṣṭam — sendo arremessada; ajayā — por Vossa energia externa, o modo da ignorância; īśvara — ó controlador supremo; ṣoḍaśa-are — com dezesseis raios (os cinco elementos materiais, os dez sentidos, e o líder dos sentidos, a saber, a mente); niṣpīḍyamānam — sendo esmagado (sob essa roda); upakarṣa — por favor, tomai-me (ao refúgio dos Vossos pés de lótus); vibho — ó grandioso supremo; prapannam — que estou plenamente rendido a Vós.

Tradução

Meu querido Senhor, ó supremamente grandioso, criastes este mundo material formado de dezesseis componentes, mas sois transcendental às suas qualidades materiais. Em outras palavras, essas qualidades materiais estão sob Vosso completo controle, e jamais sois dominado por elas. Portanto, o elemento tempo é Vossa representação. Meu Senhor, ó Supremo, ninguém pode superar-Vos. Quanto a mim, entretanto, estou sendo esmagado pela roda do tempo e, portanto, rendo-me completamente a Vós. Agora, por favor, colocai-me sob a proteção de Vossos pés de lótus.

Comentário

SIGNIFICADO—A roda dos sofrimentos materiais também é uma criação da Suprema Personalidade de Deus, mas Ele não está sob o controle da energia material. Ao contrário, Ele é o controlador da energia material, ao passo que nós, as entidades vivas, estamos sob o controle desta. Quando abandonamos nossa posição constitucional (jīvera ‘svarūpa’ haya — kṛṣṇera ‘nitya-dāsa’), a Suprema Personalidade de Deus cria esta energia material que passa a exercer sua influência sobre a alma condicionada. Portanto, Ele é o Supremo, e somente Ele pode libertar a alma condicionada, afastando-a das investidas da natureza material (mām eva ye prapadyante māyām etāṁ taranti te). Māyā, a energia externa, continuamente impõe às almas condicionadas o sofrimento acarretado pelas três classes de sofrimentos deste mundo material. Portanto, no verso anterior, Prahlāda Mahārāja orou ao Senhor: “Com exceção de Vossa Onipotência, ninguém poderá salvar-me.” Prahlāda Mahārāja também explicou que os protetores de uma criança, ou seja, seus pais, não podem salvá-la do ataque empreendido sob a forma de nascimentos e mortes, tampouco podem o remédio e o médico salvar alguém da morte, nem pode um barco ou outro recurso protetor salvar alguém que está se afogando, pois tudo é controlado pela Suprema Personalidade de Deus. Portanto, a humanidade sofredora deve render-se a Kṛṣṇa, como o próprio Kṛṣṇa expõe na última instrução da Bhagavad-gītā (18.66):

sarva-dharmān parityajya
mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja
ahaṁ tvāṁ sarva-pāpebhyo
mokṣayiṣyāmi mā śucaḥ

“Abandona todas as variedades de religião e simplesmente rende-te a Mim. Eu te libertarei de todas as reações pecaminosas. Não temas.” Toda a sociedade humana deve tirar proveito desta oferta e, então, aceitar que Kṛṣṇa a salve do perigo de ser esmagada pela roda do tempo, a roda do passado, do presente e do futuro.

A palavra niṣpīḍyamānam (“sendo esmagado”) é muito expressiva. Toda entidade viva na condição material está sendo realmente esmagada repetidas vezes, e, para escapar dessa situação embaraçosa, a pessoa deve refugiar-se na Suprema Personalidade de Deus. Somente então, ela será feliz. A palavra prapannam também é muito significativa, pois, a menos que alguém se renda plenamente ao Senhor Supremo, não poderá evitar seu esmagamento. Um criminoso é posto na prisão e punido pelo governo, mas o mesmo governo, se assim o quiser, pode soltar o criminoso. Do mesmo modo, devemos saber definitivamente que nossa condição de sofrimento material nos foi designada pela Suprema Personalidade de Deus, e, se quisermos salvar-nos deste sofrimento, devemos recorrer ao mesmo controlador e, dessa maneira, poderemos livrar-nos desta condição material.

Texto

dṛṣṭā mayā divi vibho ’khila-dhiṣṇya-pānām
āyuḥ śriyo vibhava icchati yāñ jano ’yam
ye ’smat pituḥ kupita-hāsa-vijṛmbhita-bhrū-
visphūrjitena lulitāḥ sa tu te nirastaḥ

Sinônimos

dṛṣṭāḥ — foram vistos na prática; mayā — por mim; divi — nos sistemas planetários superiores; vibho — ó meu Senhor; akhila — todos; dhiṣṇya-pānām — dos líderes dos diferentes Estados ou planetas; āyuḥ — a duração da vida; śriyaḥ — as opulências; vibhavaḥ — glórias, influência; icchati — desejo; yān — todos os quais; janaḥ ayam — essas pessoas em geral; ye — todas as quais (duração de vida, opulência etc.); asmat pituḥ — de nosso pai Hiraṇyakaśipu; kupita-hāsa — por sua risada escarnecedora quando irado; vijṛmbhita — expandindo-se; bhrū — das sobrancelhas; visphūrjitena — pelo simples aspecto; lulitāḥ — destroçados ou acabados; saḥ — ele (meu pai); tu — mas; te — por Vós; nirastaḥ — completamente exterminado.

Tradução

Meu querido Senhor, as pessoas em geral querem elevar-se aos sistemas planetários superiores, onde possam obter uma longa duração de vida, opulência e gozo, mas vi tudo isso através das atividades de meu pai. Quando meu pai estava irado e ria com sarcasmo dos semideuses, eles logo eram aniquilados simplesmente por verem o movimento de suas sobrancelhas. Entretanto, em apenas um momento, meu pai, que era tão poderoso, foi exterminado por Vós.

Comentário

SIGNIFICADO—Neste mundo material, a experiência prática mostra o pouco valor da opulência material, da longevidade e do prestígio. Temos experiências reais de que, mesmo neste planeta, houve muitos políticos e comandantes militares grandiosos, tais como Napoleão, Hitler, Shubhash Chandra Bose e Gandhi, mas logo que suas vidas terminaram, sua popularidade, influência e tudo mais também se esvaiu. Em outra oportunidade, Prahlāda Mahārāja obteve a mesma experiência, vendo as atividades de Hiraṇyakaśipu, seu grande pai. Portanto, Prahlāda Mahārāja não dava nenhuma importância a coisa alguma deste mundo material. Ninguém pode manter perpetuamente o seu corpo ou conquistas materiais. O vaiṣṇava sabe que nada dentro deste mundo material, nem mesmo aquilo que é poderoso, opulento ou influente, pode perdurar. A qualquer momento, essas coisas podem acabar. E quem as aniquila? A Suprema Personalidade de Deus. Portanto, deve-se entender conclusivamente que ninguém é maior do que o Grande Supremo. Uma vez que o Grande Supremo determina que sarva-dharmān parityajya mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja, todo homem inteligente deve concordar com essa proposta. De modo a se salvarem da roda de repetidos nascimentos, mortes, velhice e doença, todos devem se render ao Senhor.

Texto

tasmād amūs tanu-bhṛtām aham āśiṣo ’jña
āyuḥ śriyaṁ vibhavam aindriyam āviriñcyāt
necchāmi te vilulitān uruvikrameṇa
kālātmanopanaya māṁ nija-bhṛtya-pārśvam

Sinônimos

tasmāt — portanto; amūḥ — todas essas (opulências); tanu-bhṛtām — com referência às entidades vivas que possuem corpos materiais; aham — eu; āśiṣaḥ ajñaḥ — conhecendo muito bem os resultados dessas bênçãos; āyuḥ — uma longa duração de vida; śriyam — opulências materiais; vibhavam — prestígio e glória; aindriyam — todos destinados ao gozo dos sentidos; āviriñcyāt — começando com o senhor Brahmā (e indo até a formiguinha); na — não; icchāmi — quero; te — por Vós; vilulitān — sujeitos a serem aniquilados; uru-vikrameṇa — que sois extremamente poderoso; kāla-ātmanā — como o mestre do fator tempo; upanaya — por favor, levai para; mām — a mim; nija-bhṛtya pārśvam — a associação de Vosso servo fiel, de Vosso devoto.

Tradução

Meu querido Senhor, agora conheço por completo o que é opulência mundana, poderes místicos, longevidade e outros prazeres materiais desfrutados por todas as entidades vivas, desde o senhor Brahmā até a formiga. Como o tempo poderoso, destruís tudo isso. Portanto, devido à minha experiência, não desejo possuí-los. Meu querido Senhor, peço-Vos que me coloqueis em contato com Vosso devoto puro e me deis a permissão de que eu o sirva como um servo sincero.

Comentário

SIGNIFICADO—Estudando o Śrīmad-Bhāgavatam, todo homem inteligente pode, através dos incidentes históricos mencionados nesta grande literatura de conhecimento espiritual, obter a mesma experiência de Prahlāda Mahārāja. Seguindo os passos de Prahlāda Mahārāja, deve-se obter completa experiência de que toda a opulência material pode acabar a qualquer momento. Mesmo este corpo, para o qual tentamos adquirir tantos prazeres sensuais, está sujeito a perecer a qualquer instante. A alma, entretanto, é eterna. Na hanyate hanyamāne śarīre: a alma nunca é aniquilada, mesmo quando o corpo é destruído. O homem inteligente, portanto, deve valorizar a felicidade da alma espiritual, e não a felicidade do corpo. Mesmo que alguém receba um corpo muito duradouro, como os corpos do senhor Brahmā e de outros grandes semideuses, esse também será destruído, daí o homem inteligente dever interessar-se pela alma espiritual imperecível.

De maneira a se salvar, todos devem refugiar-se no devoto puro. Portanto, Narottama Dāsa Ṭhākura diz: chāḍiyā vaiṣṇava-sevā nistāra pāyeche kebā. Quem deseja salvar-se das investidas da natureza material, que surgem devido ao corpo material, deve tornar-se consciente de Kṛṣṇa e tentar entender Kṛṣṇa plenamente. Como se afirma na Bhagavad-gītā (4.9), janma karma ca me divyam evaṁ yo vetti tattvataḥ. Todos devem entender Kṛṣṇa de verdade, e é apenas mediante o serviço prestado ao devoto puro que alguém pode atingir esse objetivo. Portanto, Prahlāda Mahārāja pede que, em vez de conceder-lhe opulência material, o Senhor Nṛsiṁhadeva o coloque em contato com um devoto e servo puro. Todo homem inteligente dentro deste mundo material deve seguir Prahlāda Mahārāja. Mahājano yena gataḥ sa panthāḥ. Prahlāda Mahārāja não queria desfrutar da herança deixada pelo seu pai; ao contrário, queria tornar-se um servo do servo do Senhor. A civilização humana ilusória, que perpetuamente se esforça para obter felicidade através do avanço material, é rejeitada por Prahlāda Mahārāja e por aqueles que seguem estritamente seus passos.

Existem diferentes classes de opulência material, conhecidas tecnicamente como bhukti, mukti e siddhi. Bhukti se refere a estar situado em uma ótima posição, como a posição dos semideuses nos sistemas planetários superiores, onde é possível obter o máximo de desfrute sensorial. Mukti se refere a estar desgostoso com o avanço material e, assim, desejar tornar-se uno com o Supremo. Siddhi se refere à realização de severas espécies de meditação, como fazem os yogīs que desejam alcançar alguma classe de perfeição (aṇimā, laghimā, mahimā etc.). Todos aqueles que desejam algum avanço material através de bhukti, mukti ou siddhi sujeitam-se a serem punidos no devido curso do tempo e retornam às atividades materiais. Prahlāda Mahārāja rejeitou tudo isso; ele simplesmente queria ocupar-se como um aprendiz sob a orientação de um devoto puro.

Texto

kutrāśiṣaḥ śruti-sukhā mṛgatṛṣṇi-rūpāḥ
kvedaṁ kalevaram aśeṣa-rujāṁ virohaḥ
nirvidyate na tu jano yad apīti vidvān
kāmānalaṁ madhu-lavaiḥ śamayan durāpaiḥ

Sinônimos

kutra — onde; āśiṣaḥ — bênçãos; śruti-sukhāḥ — agradáveis de ouvir sobre; mṛgatṛṣṇi-rūpāḥ — exatamente como uma miragem no deserto; kva — onde; idam — isto; kalevaram — corpo; aśeṣa — ilimitadas; rujām — de doenças; virohaḥ — o lugar para gerar; nirvidyate — ficarem saciadas; na — não; tu — mas; janaḥ — pessoas em geral; yat api — embora; iti — assim; vidvān — os supostos filósofos, cientistas e políticos eruditos; kāma-analam — o fogo abrasante dos desejos luxuriosos; madhu-lavaiḥ — com gotas de mel (felicidade); śamayan — controlando; durāpaiḥ — muito difícil de obter.

Tradução

Neste mundo material, toda entidade viva deseja alguma felicidade futura, que é exatamente como uma miragem no deserto. Onde encontrar água em um deserto, ou, em outras palavras, onde encontrar felicidade neste mundo material? Quanto a este corpo, qual o seu valor? Ele é mera fonte de várias doenças. Os supostos filósofos, cientistas e políticos sabem disso muito bem, mas aspiram à felicidade temporária. Embora a felicidade seja muito difícil de ser obtida, como são incapazes de controlar os sentidos, eles buscam a aparente felicidade material e nunca chegam à conclusão correta.

Comentário

SIGNIFICADO—Na língua bengali, existe uma canção que diz: “Construí este lar para ser feliz, mas, por infortúnio, houve um incêndio, e agora tudo se reduziu a cinzas.” Isso ilustra a natureza da felicidade material. Embora todos saibam disso, preferem ouvir algo muito agradável e ficar pensando nisso. Infelizmente, todos os nossos planos são aniquilados no decorrer do tempo. Houve muitos políticos que planejaram impérios, supremacia e controle sobre o mundo, mas, no decorrer do tempo, todos os seus planos e impérios – e inclusive os próprios políticos – foram aniquilados. Todos devem aprender com Prahlāda Mahārāja a lição de que não convém fazer esforços físicos em troca do gozo dos sentidos que nos dará a oportunidade de nos ocuparmos na aparente felicidade temporária. Todos nós fazemos planos e mais planos, todos os quais se malogram. Portanto, não devemos continuar com esses planos.

Assim como ninguém pode deter o fogo abrasador derramando sempre ghī sobre ele, tampouco pode alguém se satisfazer multiplicando seus planos de gozo dos sentidos. O fogo abrasador é bhava-mahā-dāvāgni, o incêndio na floresta da existência material. Esse incêndio na floresta ocorre automaticamente, sem que seja necessário provocá-lo. Queremos ser felizes no mundo material, mas isso jamais será possível; simplesmente aumentaremos o fogo dos desejos abrasadores. Nossos desejos não podem ser satisfeitos através de pensamentos e planos ilusórios; ao contrário, devemos seguir as instruções do Senhor Kṛṣṇa: sarva-dharmān parityajya mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja. Nós, então, seremos felizes. Caso contrário, em nome de felicidade, continuaremos a nos submeter a condições dolorosas.

Texto

kvāhaṁ rajaḥ-prabhava īśa tamo ’dhike ’smin
jātaḥ suretara-kule kva tavānukampā
na brahmaṇo na tu bhavasya na vai ramāyā
yan me ’rpitaḥ śirasi padma-karaḥ prasādaḥ

Sinônimos

kva — onde; aham — eu (estou); rajaḥ-prabhavaḥ — tendo nascido em um corpo cheio de paixão; īśa — ó meu Senhor; tamaḥ — o modo da ignorância; adhike — excedendo em; asmin — neste; jātaḥ — nascido; sura-itara-kule — em família de ateístas ou demônios (que são subordinados aos devotos); kva — onde; tava — Vossa; anukampā — misericórdia imotivada; na — não; brahmaṇaḥ — do senhor Brahmā; na — não; tu — mas; bhavasya — do senhor Śiva; na — nem; vai — mesmo; ramāyāḥ — da deusa da fortuna; yat — que; me — minha; arpitaḥ — oferecidas; śirasi — sobre a cabeça; padma-karaḥ — mãos de lótus; prasādaḥ — o símbolo da misericórdia.

Tradução

Ó meu Senhor, ó Supremo, porque nasci em família cheia de qualidades materiais e infernais manifestas através da paixão e da ignorância, qual a minha posição? E o que dizer de Vossa imotivada misericórdia, que jamais foi oferecida nem mesmo ao senhor Brahmā, ao senhor Śiva ou à deusa da fortuna, Lakṣmī? Embora nunca tenhais colocado Vossas mãos de lótus sobre suas cabeças, puseste-la sobre a minha.

Comentário

SIGNIFICADO—Prahlāda Mahārāja estava surpreso com a imotivada misericórdia do Senhor Supremo, a Personalidade de Deus, pois, embora Prahlāda tivesse nascido em família demoníaca e embora o Senhor jamais tivesse posto Sua mão de lótus sobre a cabeça de Brahmā, Śiva ou da deusa da fortuna, Sua companheira constante, o Senhor Nṛsiṁhadeva bondosamente colocou Sua mão sobre a cabeça de Prahlāda. Este é o significado da misericórdia imotivada. A imotivada misericórdia da Suprema Personalidade de Deus pode ser outorgada a qualquer pessoa, não importando qual seja a sua posição neste mundo material. Todos podem reunir condições de adorar o Senhor Supremo, qualquer que seja sua posição material. Confirma isso a Bhagavad-gītā (14.26):

māṁ ca yo ’vyabhicāreṇa
bhakti yogena sevate
sa guṇān samatītyaitān
brahma-bhūyāya kalpate

“Aquele que se ocupa em serviço devocional pleno e não falha em circunstância alguma, transcende de imediato os modos da natureza material e chega, então, ao nível de Brahman.” Todo aquele que se ocupa no contínuo serviço devocional ao Senhor está situado no mundo espiritual e nada tem a ver com as qualidades materiais (sattva-guṇa, rajo-guṇa e tamo-guṇa).

Como estava situado na plataforma espiritual, Prahlāda Mahārāja nada tinha a ver com o seu corpo, que nascera dos modos da paixão e da ignorância. As características da paixão e da ignorância são especificadas no Śrīmad-Bhāgavatam (1.2.19) como luxúria e anseio (tadā rajas tamo-bhāvāḥ kāma-lobhādayaś ca ye). Prahlāda Mahārāja, sendo um grande devoto, julgava que o corpo que recebera de seu pai nascera da paixão e da ignorância, mas, como Prahlāda estava inteiramente ocupado a serviço do Senhor, seu corpo não pertencia ao mundo material. Mesmo nesta vida, o corpo do vaiṣṇava puro já é espiritualizado. Por exemplo, posto em contato com o fogo, o ferro se torna incandescente e, deixando de ser ferro, passa a ser fogo. Igualmente, os aparentes corpos materiais dos devotos que se ocupam em pleno serviço devocional ao Senhor, estando constantemente no fogo da vida espiritual, nada têm a ver com a matéria, senão que são espiritualizados.

Śrīla Madhvācārya enfatiza que a deusa da fortuna, a mãe do universo, não pôde obter misericórdia semelhante àquela oferecida a Prahlāda Mahārāja, pois, embora a deusa da fortuna seja a companheira inseparável do Senhor Supremo, o Senhor é mais propenso aos Seus devotos. Em outras palavras, o serviço devocional é tão imponente que, mesmo quando oferecido por pessoas nascidas de famílias inferiores, o Senhor o aceita como sendo mais valioso do que o serviço prestado pela deusa da fortuna. O senhor Brahmā, o rei Indra e os outros semideuses, que vivem nos sistemas planetários superiores, estão situados em um espírito de consciência diferente, de modo que, às vezes, são afligidos pelos demônios, mas o devoto, mesmo que esteja situado nos planetas inferiores, goza da vida em consciência de Kṛṣṇa em quaisquer circunstâncias. Parataḥ svataḥ karmataḥ: à medida que ele age, à medida que é instruído pelos outros ou à medida que executa suas atividades materiais, ele goza da vida sob todos os aspectos. Com relação a isso, Madhvācārya cita os seguintes versos, que são mencionados no Brahma-tarka.

śrī-brahma-brāhmīvīndrādi-
tri-katat strī-puru-ṣṭutāḥ
tad anye ca kramādeva
sadā muktau smṛtāv api
hari-bhaktau ca taj-jñāne
sukhe ca niyamena tu
parataḥ svataḥ karmato vā
na kathañcit tad anyathā

Texto

naiṣā parāvara-matir bhavato nanu syāj
jantor yathātma-suhṛdo jagatas tathāpi
saṁsevayā surataror iva te prasādaḥ
sevānurūpam udayo na parāvaratvam

Sinônimos

na — não; eṣā — isso; para-avara — do superior ou do inferior; matiḥ — tal discriminação; bhavataḥ — de Vossa Onipotência; nanu — na verdade; syāt — pode haver; jantoḥ — das entidades vivas comuns; yathā — como; ātma-suhṛdaḥ — de alguém que é o amigo; jagataḥ — de todo o mundo material; tathāpi — mas mesmo assim (existe semelhante demonstração de intimidade ou diferença); saṁsevayā — de acordo com o grau de serviço prestado pelo devoto; surataroḥ iva — como acontece com a árvore-dos-desejos existente em Vaikuṇṭhaloka (que oferece frutos de acordo com os desejos do devoto); te — Vossa; prasādaḥ — bênção; sevā-anurūpam — de acordo com a categoria de serviço que alguém presta ao Senhor; udayaḥ — manifestação; na — não; para-avaratvam — discriminação devida a níveis superior ou inferior.

Tradução

Diferentemente da entidade viva comum, meu Senhor, não discriminais entre amigo ou inimigo, favorável ou desfavorável, porque não há conceito de superior e inferior para Vós. Entretanto, ofereceis Vossas bênçãos de acordo com o nível do serviço de alguém, exatamente como uma árvore-dos-desejos concede frutos segundo os desejos de alguém e não faz distinção entre superior e inferior.

Comentário

SIGNIFICADO—Na Bhagavad-gītā (4.11), o Senhor diz explicitamente que ye yathā māṁ prapadyante tāṁs tathaiva bhajāmy aham: “À medida que alguém se rende a Mim, Eu o recompenso de acordo.” Como afirma Śrī Caitanya Mahāprabhu, jīvera ‘svarūpa’ haya — kṛṣṇera ‘nitya-dāsa’: todo ser vivo é servo eterno de Kṛṣṇa. De acordo com o serviço que a entidade viva executa, ela automaticamente recebe as bênçãos de Kṛṣṇa, que não faz distinções, pensando: “Eis uma pessoa em relação íntima coMigo, e ali está alguém de quem não gosto.” Kṛṣṇa aconselha todos a se renderem a Ele (sarva-dharmān parityajya mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja). A relação que alguém estabelece com o Senhor Supremo vinga em proporção com a sua rendição e com o serviço que presta ao Senhor. Assim, no mundo inteiro, as posições superior ou inferior das entidades vivas são escolhidas por elas próprias. Se alguém tem propensões a determinar que o Senhor lhe dê algo, receberá bênçãos de acordo com o seu desejo. Se alguém quer ser elevado aos sistemas planetários superiores, aos planetas celestiais, pode ser promovido ao lugar que deseja, mas, se prefere ser um porco ou leitão na Terra, o Senhor satisfará também esse desejo. Portanto, a posição de todos é determinada pelos seus desejos; o Senhor não é responsável pelos graus superior ou inferior de nossa existência. Continuando este ponto, o próprio Senhor o explica de maneira definitiva na Bhagavad-gītā (9.25):

yānti deva-vratā devān
pitṝn yānti pitṛ-vratāḥ
bhūtāni yānti bhūtejyā
yānti mad-yājino ’pi mām

Alguns querem elevar-se aos planetas celestiais, outros querem ser promovidos a Pitṛloka, e há os que preferem permanecer na Terra, mas, se alguém está interessado em retornar ao lar, em retornar ao Supremo, pode também ser admitido no reino de Deus. De acordo com os pedidos de um devoto em particular, ele recebe o resultado que lhe é concedido pela graça do Senhor. O Senhor não discrimina, pensando: “Eis uma pessoa favorável a Mim, e ali está alguém que é desfavorável.” Ao contrário, Ele satisfaz os desejos de todos. Portanto, os śāstras prescrevem:

akāmaḥ sarva-kāmo vā
mokṣa-kāma udāra-dhīḥ
tīvreṇa bhakti-yogena
yajeta puruṣaṁ param

“Quer alguém não tenha desejos [a condição dos devotos], quer deseje todos os resultados fruitivos, quer busque a liberação, ele deve envidar todos os esforços para adorar a Suprema Personalidade de Deus e obter a completa perfeição, que culmina na consciência de Kṛṣṇa.” (Śrīmad-Bhāgavatam 2.3.10) De acordo com a posição de alguém, quer ele seja um devoto, um karmī ou um jñānī, tudo o que desejar, poderá obter, caso se ocupe plenamente a serviço do Senhor.

Texto

evaṁ janaṁ nipatitaṁ prabhavāhi-kūpe
kāmābhikāmam anu yaḥ prapatan prasaṅgāt
kṛtvātmasāt surarṣiṇā bhagavan gṛhītaḥ
so ’haṁ kathaṁ nu visṛje tava bhṛtya-sevām

Sinônimos

evam — assim; janam — pessoas em geral; nipatitam — caído; prabhava — da existência material; ahi-kūpe — no poço camuflado, cheio de serpentes; kāma-abhikāmam — desejando os objetos dos sentidos; anu — seguindo; yaḥ — a pessoa que; prapatan — caindo (nesta condição); prasaṅgāt — devido à má associação ou à intensa associação com os desejos materiais; kṛtvā ātmasāt — levando-me a (adquirir qualidades espirituais como ele próprio, Śrī Nārada); sura-ṛṣiṇā — pelo grande santo (Nārada); bhagavan — ó meu Senhor; gṛhītaḥ — aceita; saḥ — esta pessoa; aham — eu; katham — como; nu — na verdade; visṛje — posso abandonar; tava — Vosso; bhṛtya-sevām — o serviço a Vosso devoto puro.

Tradução

Meu querido Senhor, ó Suprema Personalidade de Deus, devido à minha associação com sucessivos desejos materiais, eu estava pouco a pouco caindo em um poço camuflado, cheio de serpentes, seguindo a população em geral. Mas Vosso servo, Nārada Muni, bondosamente me aceitou como discípulo e me instruiu sobre como alcançar essa posição transcendental. Portanto, meu primeiro dever é servi-lo. Como eu poderia deixar de servi-lo?

Comentário

SIGNIFICADO—Como se verá nos versos seguintes, muito embora Nṛsiṁhadeva tivesse oferecido diretamente a Prahlāda Mahārāja todas as bênçãos que desejasse, Prahlāda se recusou a aceitar essas ofertas que lhe foram feitas pela Suprema Personalidade de Deus. Ao contrário, pediu ao Senhor que o ocupasse no serviço ao Seu servo Nārada Muni. Essa característica é de um devoto puro. Todos devem primeiramente servir ao mestre espiritual. Ninguém deve pensar que pode prescindir do mestre espiritual e, então, servir ao Senhor Supremo. Esse princípio não é vaiṣṇava. Narottama Dāsa Ṭhākura diz:

tāṅdera caraṇa sevi bhakta-sane vāsa
janame janame haya, ei abhilāṣa

Ninguém deve estar ansioso por oferecer serviço direto ao Senhor. Śrī Caitanya Mahāprabhu aconselhava que cada qual procurasse tornar-se um servo do servo do servo do Senhor (gopī-bhartuḥ pada-kamalayor dāsa-dāsānudāsaḥ). Esse é o procedimento para alguém se aproximar do Senhor. O primeiro serviço deve ser prestado ao mestre espiritual para que, por sua misericórdia, a pessoa possa aproximar-se da Suprema Personalidade de Deus e oferecer seus serviços. Enquanto ensinava Rūpa Gosvāmī, Śrī Caitanya Mahāprabhu disse que guru-kṛṣṇa-prasāde pāya bhakti-latā-bīja: pode-se alcançar a semente do serviço devocional pela misericórdia do guru, do mestre espiritual, e depois, pela misericórdia de Kṛṣṇa. Esse é o segredo do sucesso. Primeiramente, deve-se tentar satisfazer o mestre espiritual e, depois, deve-se procurar satisfazer a Suprema Personalidade de Deus. Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura também diz: yasya prasādād bhagavat-prasādo. Ninguém deve recorrer à sua imaginação para tentar satisfazer a Suprema Personalidade de Deus. Primeiramente, a pessoa deve estar preparada para servir ao mestre espiritual e, quando estiver qualificada, automaticamente se situará na plataforma do serviço direto ao Senhor. Portanto, Prahlāda Mahārāja se ofereceu para se ocupar no serviço a Nārada Muni. Ele nunca propôs ocupar-se no serviço direto ao Senhor. Essa conclusão é correta. Portanto, ele disse que so ’haṁ kathaṁ nu visṛje tava bhṛtya-sevām: “Como posso deixar de servir ao meu mestre espiritual, que me favoreceu a tal ponto que agora sou capaz de ver-Vos face a face?” Prahlāda Mahārāja pediu ao Senhor que lhe fosse permitido continuar ocupado no serviço ao seu mestre espiritual, Nārada Muni.

Texto

mat-prāṇa-rakṣaṇam ananta pitur vadhaś ca
manye sva-bhṛtya-ṛṣi-vākyam ṛtaṁ vidhātum
khaḍgaṁ pragṛhya yad avocad asad-vidhitsus
tvām īśvaro mad-aparo ’vatu kaṁ harāmi

Sinônimos

mat-prāṇa-rakṣaṇam — salvando-me a vida; ananta — ó pessoa ilimitada, reservatório de ilimitadas qualidades transcendentais; pituḥ — do meu pai; vadhaḥ ca — e matando; manye — considero; sva-bhṛtya — de Vossos servos imaculados; ṛṣi-vākyam — e as palavras do grande santo Nārada; ṛtam — verazes; vidhātum — para provar; khaḍgam — espada; pragṛhya — empunhando; yat — uma vez que; avocat — meu pai disse; asat-vidhitsuḥ — desejando agir muito impiamente; tvām — a ti; īśvaraḥ — algum controlador supremo; mat-aparaḥ — que não seja eu; avatu — que ele salve; kam — tua cabeça; harāmi — agora separarei.

Tradução

Meu Senhor, ó reservatório ilimitado de qualidades transcendentais, matastes meu pai Hiraṇyakaśipu e me salvastes de sua espada. Ele havia dito com muita ira: “Se há algum controlador supremo que não seja eu, que Ele te salve. Agora te decapitarei.” Portanto, creio que, tanto ao salvar-me quanto ao matá-lo, agistes simplesmente para provar a veracidade das palavras do Vosso devoto. Não há outra explicação.

Comentário

SIGNIFICADO—Na Bhagavad-gītā (9.29), o Senhor diz:

samo ’haṁ sarva-bhūteṣu
na me dveṣyo ’sti na priyaḥ
ye bhajanti tu māṁ bhaktyā
mayi te teṣu cāpy aham

Sem dúvidas, a Suprema Personalidade de Deus é igual com todos. Ele não tem amigo nem inimigo, mas, quando alguém deseja obter benefícios do Senhor, o Senhor fica muito satisfeito em concedê-los. As posições inferiores e superiores em que estão situadas as diferentes entidades vivas devem-se aos seus desejos, pois o Senhor, sendo igual com todos, satisfaz os desejos de todos. O extermínio imposto a Hiraṇyakaśipu e a salvação de Prahlāda Mahārāja também seguiram estritamente essa lei das atividades do controlador supremo. Quando estava sob a proteção de Nārada, a mãe de Prahlāda, esposa de Hiraṇyakaśipu, Kayādhu, orou, pedindo a proteção de seu filho contra o inimigo, e Nārada Muni lhe garantiu que Prahlāda Mahārāja sempre seria salvo das mãos do inimigo. Portanto, quando Hiraṇyakaśipu estava tentando matar Prahlāda Mahārāja, o Senhor salvou Prahlāda, para cumprir o que Ele prometera na Bhagavad-gītā (kaunteya pratijānīhi na me bhaktaḥ praṇaśyati) e para provar a veracidade das palavras de Nārada. Através de uma única ação, o Senhor pode atender muitos propósitos. Assim, o extermínio de Hiraṇyakaśipu e a salvação de Prahlāda foram executados simultaneamente para provar a veracidade do devoto do Senhor e a fidelidade com que o Senhor cumpre Seu próprio propósito. O Senhor age unicamente para satisfazer os desejos de Seus devotos; de outra modo, Ele nada teria a fazer. Como se confirma na literatura védica, na tasya kāryaṁ karaṇaṁ ca vidyate: o Senhor nada tem a fazer pessoalmente, pois tudo é feito através de Suas diferentes potências (parāsya śaktir vividhaiva śrūyate). O Senhor tem energias múltiplas, através das quais tudo é levado a efeito. Logo, quando Ele faz algo pessoalmente, Ele o faz apenas para satisfazer o Seu devoto. O Senhor é conhecido como bhakta-vatsala porque Ele favorece muito o Seu devotado servo.

Texto

ekas tvam eva jagad etam amuṣya yat tvam
ādy-antayoḥ pṛthag avasyasi madhyataś ca
sṛṣṭvā guṇa-vyatikaraṁ nija-māyayedaṁ
nāneva tair avasitas tad anupraviṣṭaḥ

Sinônimos

ekaḥ — único; tvam — Vós; eva — somente; jagat — a manifestação cósmica; etam — isto; amuṣya — de (todo o universo); yat — uma vez que; tvam — Vós; ādi — no começo; antayoḥ — no fim; pṛthak — separadamente; avasyasi — existis (como a causa); madhyataḥ ca — também no período intermediário (a duração entre o começo e o fim); sṛṣṭvā — criando; guṇa-vyatikaram — a transformação dos três modos da natureza material; nija-māyayā — por Vossa própria energia externa; idam — isto; nānā iva — como muitas variedades; taiḥ — por eles (os modos); avasitaḥ — experimentado; tat — isto; anupraviṣṭaḥ — entrando em.

Tradução

Meu querido Senhor, sozinho, Vós Vos apresentais sob a forma de toda a manifestação cósmica, pois existíeis antes da criação, existis após a aniquilação e sois o mantenedor desde o começo até o fim. Tudo isso é levado a efeito por Vossa energia externa através das reações dos três modos da natureza material. Portanto, tudo o que existe – externa e internamente – é apenas Vossa pessoa.

Comentário

SIGNIFICADO—Como se afirma na Brahma-saṁhitā (5.35):

eko ’py asau racayituṁ jagad-aṇḍa-koṭiṁ
yac-chaktir asti jagad-aṇḍa-cayā yad-antaḥ
aṇḍāntara-stha-paramāṇu-cayāntara-sthaṁ
govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi

“Adoro Govinda, a Personalidade de Deus, que, através de uma de Suas porções plenárias, entra na existência de todo o universo e de toda partícula atômica e, assim, manifesta ilimitadamente, em toda a criação material, Sua energia infinita.” Para criar essa manifestação cósmica, Govinda, a Suprema Personalidade de Deus, expande Sua energia externa e, depois, entra em tudo o que existe dentro do universo, incluindo as partículas atômicas. Dessa maneira, Ele está presente em toda a manifestação cósmica. Portanto, as atividades em que a Suprema Personalidade de Deus mantém Seus devotos são transcendentais, e não materiais. Ele existe em tudo como a causa e o efeito, mas Ele está à parte, existindo acima desta manifestação cósmica. Também se confirma isso na Bhagavad-gītā (9.4):

mayā tatam idaṁ sarvaṁ
jagad avyakta-mūrtinā
mat-sthāni sarva-bhūtāni
na cāhaṁ teṣv avasthitaḥ

Toda a manifestação cósmica é uma mera expansão da energia do Senhor; tudo repousa nEle, no entanto, Ele existe à parte, além desta criação, manutenção e aniquilação. As muitas variedades da criação são realizadas por Sua energia externa. Porque a energia e o energético são unos, tudo é uno (sarvaṁ khalv idaṁ brahma). Portanto, sem Kṛṣṇa, o Parabrahman, nada pode existir. A diferença entre os mundos material e espiritual é que Sua energia externa se manifesta no mundo material, ao passo que Sua energia espiritual existe no mundo espiritual. Ambas as energias, entretanto, pertencem ao Senhor Supremo, e, portanto, em um sentido mais profundo, não há manifestação de energia material porque tudo é energia espiritual. A energia na qual a onipenetrância do Senhor não é percebida chama-se material. De qualquer modo, tudo é espiritual. Portanto, em sua oração, Prahlāda diz que ekas tvam eva jagad etam: “Sois tudo.”

Texto

tvaṁ vā idaṁ sadasad īśa bhavāṁs tato ’nyo
māyā yad ātma-para-buddhir iyaṁ hy apārthā
yad yasya janma nidhanaṁ sthitir īkṣaṇaṁ ca
tad vaitad eva vasukālavad aṣṭi-tarvoḥ

Sinônimos

tvam — Vós; — ou; idam — o universo inteiro; sat-asat — consistindo em causa e efeito (Vós sois a causa, e Vossa energia, o efeito); īśa — ó meu Senhor, controlador supremo; bhavān — Vós mesmo; tataḥ — do universo; anyaḥ — situado à parte (a criação é feita pelo Senhor, mas Ele permanece além da criação); māyā — a energia que aparece como uma criação distinta; yat — da qual; ātma-para-buddhiḥ — conceito do que é meu e do que é de outrem; iyam — isto; hi — na verdade; apārthā — não tem significado (tudo é Vossa Onipotência e, portanto, não há cabimento em usar as expressões “meu” e “teu”); yat — a substância do qual; yasya — da qual; janma — criação; nidhanam — aniquilação; sthitiḥ — manutenção; īkṣaṇam — manifestação; ca — e; tat — esta; — ou; etat — isto; eva — decerto; vasukāla-vat — como a qualidade de ser a terra e, além disso, o elemento sutil da terra (aroma); aṣṭi-tarvoḥ — a semente (a causa) e a árvore (o efeito da causa).

Tradução

Meu querido Senhor, ó Suprema Personalidade de Deus, toda a criação cósmica é causada por Vós, e a manifestação cósmica é um efeito de Vossa energia. Embora todo o cosmo se resuma apenas a Vós, mantendes-Vos alheio a ele. O conceito de “meu e teu” decerto é uma classe de ilusão [māyā] porque tudo é uma emanação Vossa e, portanto, nada é diferente de Vós. Na verdade, a manifestação cósmica não é diferente de Vós, e a aniquilação também é causada por Vós. Essa relação entre Vossa Onipotência e o cosmo é ilustrada pelo exemplo da semente e da árvore, ou da causa sutil e da manifestação grosseira.

Comentário

SIGNIFICADO—Na Bhagavad-gītā (7.10), o Senhor diz:

bījaṁ māṁ sarva-bhūtānāṁ
viddhi pārtha sanātanam

“Ó filho de Pṛthā, fica sabendo que Eu sou a semente da qual se originam todas as existências.” A literatura védica diz: īśāvāsyam idaṁ sarvam, yato vā imāni bhūtāni jāyante e sarvaṁ khalv idaṁ brahma. Toda essa informação védica indica que existe apenas um Deus e que tudo se resume a Ele. Os filósofos māyāvādīs explicam isso a seu próprio modo, mas a Suprema Personalidade de Deus afirma a verdade de que Ele é tudo, mas é distinto de tudo. Essa é a filosofia de Śrī Caitanya Mahāprabhu, a qual se chama acintya-bhedābheda-tattva. Tudo é uno, ou seja, tudo é o Senhor Supremo, mas tudo está situado à parte do Senhor. Essa é a maneira de entender a unidade e a diferença.

O exemplo dado a esse respeito – vasukālavad aṣṭi-tarvoḥ – é  muito fácil de compreender. Tudo existe no tempo, mas existem diferentes fases do fator tempo – presente, passado e futuro. Presente, passado e futuro são unos. Todos os dias podemos perceber o fator tempo manifesto sob a forma de manhã, tarde e noite, e, embora a manhã seja diferente da tarde, que, por sua vez, é diferente da noite, tomadas como um todo, elas formam uma unidade. O fator tempo é uma energia da Suprema Personalidade de Deus, mas o Senhor é distinto do fator tempo. Tudo é criado, mantido e aniquilado pelo fator tempo, mas o Senhor Supremo, a Personalidade de Deus, não tem começo nem fim. Ele é nityaḥ śāśvataḥ – eterno, permanente. Tudo passa pelas fases do tempo, as quais são o presente, o passado e o futuro, mas o Senhor é sempre o mesmo. Indubitavelmente, portanto, existe diferença entre o Senhor e a manifestação cósmica, mas, na verdade, eles não são diferentes. Aceitá-los como diferentes se chama avidyā, ignorância.

A verdadeira unidade, entretanto, não se insere no conceito dos māyāvādīs. A verdadeira compreensão é que as diferenças são manifestas através da energia da Suprema Personalidade de Deus. A semente se manifesta como árvore, que apresenta variedades em seu tronco, ramos, folhas, flores e frutos. Portanto, Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura canta que keśava tuyā jagata vicitra: “Meu querido Senhor, Vossa criação está repleta de variedades.” As variedades são unas e, ao mesmo tempo, diferentes. Essa é a filosofia de acintya-bhedābheda-tattva. A conclusão dada na Brahma-saṁhitā é esta:

īśvaraḥ paramaḥ kṛṣṇaḥ
sac-cid-ānanda-vigrahaḥ
anādir ādir govindaḥ
sarva-kāraṇa-kāraṇam

“Kṛṣṇa, conhecido como Govinda, é o controlador supremo. Ele tem um corpo espiritual eterno e bem-aventurado. Ele é a origem de tudo. Ele não tem alguma origem extrínseca, pois Ele é a causa primordial de todas as causas.” Porque o Senhor é a causa suprema, tudo é uno com Ele, mas, ao considerarmos as variedades, observamos que um objeto é diferente de outro.

Podemos concluir, portanto, que não há diferença entre uma coisa e outra, mas há diferenças nas variedades. Com relação a isso, Madhvācārya apresenta o exemplo referente a uma árvore velha e uma árvore nova. Embora idênticas, elas parecem diferentes devido ao fator tempo. O fator tempo está sob o controle do Senhor Supremo, de modo que o Senhor Supremo é diferente do tempo. Consequentemente, o devoto avançado não distingue entre felicidade e infelicidade. Como se afirma no Śrīmad-Bhāgavatam (10.14.8):

tat te ’nukampāṁ susamīkṣamāṇo
bhuñjāna evātma-kṛtaṁ vipākam

Quando está em condições de aparente infelicidade, o devoto considera isso como uma dádiva ou bênção da Suprema Personalidade de Deus. Quando, em qualquer condição de vida, o devoto se estabelece firmemente nesse nível de consciência de Kṛṣṇa, ele é descrito como mukti-pade sa dāya-bhāk, um candidato perfeitamente qualificado para voltar ao lar, voltar ao Supremo. A palavra dāya-bhāk quer dizer “herança”. O filho herda a propriedade paterna. Do mesmo modo, quando tem plena consciência de Kṛṣṇa e jamais se deixa perturbar pelas dualidades, é certo que o devoto retorna ao lar, retorna ao Supremo, assim como alguém que herda a propriedade paterna.

Texto

nyasyedam ātmani jagad vilayāmbu-madhye
śeṣetmanā nija-sukhānubhavo nirīhaḥ
yogena mīlita-dṛg-ātma-nipīta-nidras
turye sthito na tu tamo na guṇāṁś ca yuṅkṣe

Sinônimos

nyasya — arremessando; idam — isto; ātmani — em Vosso próprio eu; jagat — manifestação cósmica criada por Vós; vilaya-ambu-madhye — no Oceano Causal, onde tudo é preservado em estado de energia latente; śeṣe — agis como se estivésseis dormindo; ātmanā — por Vós próprio; nija — Vossa própria; sukha-anubhavaḥ — experimentando o estado de bem-aventurança espiritual; nirīhaḥ — parecendo não fazer nada; yogena — pelo poder místico; mīlita-dṛk — os olhos parecendo fechados; ātma — por Vossa própria manifestação; nipīta — impedido; nidraḥ — cujo sono; turye — em condição transcendental; sthitaḥ — mantendo (Vós próprio); na — não; tu — mas; tamaḥ — a condição material de sono; na — nem; guṇān — os modos materiais; ca — e; yuṅkṣe — Vós Vos ocupais em.

Tradução

Ó meu Senhor, ó Suprema Personalidade de Deus, após a aniquilação, a energia criadora é mantida em Vós, que pareceis dormir com olhos semicerrados. Na verdade, entretanto, não dormis como um ser humano comum, pois sempre estais em uma condição transcendental, situado além da criação do mundo material, e sempre sentis bem-aventurança transcendental. Como Kāraṇodakaśāyī Viṣṇu, permaneceis em Vosso estado transcendental, não mantendo contato com os objetos materiais. Embora pareçais dormir, esse sono é distinto do sono da ignorância.

Comentário

SIGNIFICADO—Consta claramente na Brahma-saṁhitā (5.47):

yaḥ kāraṇārṇava-jale bhajati sma yoga-
nidrām ananta-jagad-aṇḍa-sa-roma-kūpaḥ
ādhāra-śaktim avalambya parāṁ sva-mūrtiṁ
govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi

“Adoro Govinda, o Senhor primordial, que, em Sua porção plenária como Mahā-Viṣṇu, repousa no Oceano Causal, com todos os universos sendo gerados dos poros do Seu corpo transcendental, e que experimenta o sono místico da eternidade.” O ādi-puruṣa, a original Suprema Personalidade de Deus – Kṛṣṇa, Govinda –, expande-Se como Mahā-Viṣṇu. Após a aniquilação desta manifestação cósmica, Ele Se mantém em bem-aventurança transcendental. A palavra yoga-nidrā se aplica à Suprema Personalidade de Deus. Todos devem entender que essa nidrā, ou sono, não é como a nossa nidrā no modo da ignorância. O Senhor sempre está situado em transcendência. Ele é sac-cid-ānanda – eternamente em bem-aventurança –, e assim Ele não é perturbado pelo sono que aflige os seres humanos comuns. Deve-se compreender que, em qualquer etapa, a Suprema Personalidade de Deus está em bem-aventurança transcendental. Śrīla Madhvācārya afirma concisamente que o Senhor é turya-sthitaḥ, sempre situado em transcendência. Na transcendência, não existem fenômenos tais como jāgaraṇa-nidrā-suṣupti – vigília, sono e sono profundo.

A prática de yoga é semelhante ao yoga-nidrā de Mahā-Viṣṇu. Os yogīs são aconselhados a se manterem de olhos semicerrados, mas esse estado não chega a ser o sono, embora os yogīs de imitação, especialmente na era moderna, durmam durante a prática de seu dito yoga. Os śāstras descrevem o yoga como dhyānāvasthita, um estado de plena meditação, mas se deve meditar na Suprema Personalidade de Deus. Dhyānāvasthita-tad-gatena manasā: a mente sempre deve situar-se aos pés de lótus do Senhor. A prática de yoga não significa dormir. A mente deve sempre estar ativamente fixa nos pés de lótus do Senhor. Então, a prática de yoga será exitosa.

Texto

tasyaiva te vapur idaṁ nija-kāla-śaktyā
sañcodita-prakṛti-dharmaṇa ātma-gūḍham
ambhasy ananta-śayanād viramat-samādher
nābher abhūt sva-kaṇikā-vaṭavan-mahābjam

Sinônimos

tasya — desta Suprema Personalidade de Deus; eva — decerto; te — Vosso; vapuḥ — o corpo cósmico; idam — este (universo); nija-kāla-śaktyā — pelo potente fator tempo; sañcodita — agitado; prakṛti-dharmaṇaḥ — dEle, por quem os três guṇas, ou qualidades da natureza material; ātma-gūḍham — adormecidas em Vós próprio; ambhasi — na água conhecida como o Oceano Causal; ananta-śayanāt — do leito conhecido como Ananta (outro de Vossos aspectos); viramat-samādheḥ — tendo despertado do samādhi (transe ióguico); nābheḥ — do umbigo; abhūt — apareceu; sva-kaṇikā — da semente; vaṭa-vat — como uma grande figueira-de-bengala; mahā-abjam — o grande lótus dos mundos (igualmente surgiu).

Tradução

Esta manifestação cósmica, o mundo material, também é Vosso corpo. Esta porção total de matéria é agitada por Vossa potente energia, conhecida como kāla-śakti, e, assim, os três modos da natureza material se manifestam. Vós despertais do leito de Śeṣa, Ananta, e, a partir de Vosso umbigo, nasce uma pequena semente transcendental. É dessa semente que surge a flor de lótus do gigantesco universo, exatamente como uma figueira-de-bengala surge de uma pequena semente.

Comentário

SIGNIFICADO—As três diferentes formas de Mahā-Viṣṇu – a saber, Kāraṇodakaśāyī Viṣṇu, Garbhodakaśāyī Viṣṇu e Kṣīrodakaśāyī Viṣṇu, que respondem pela criação e manutenção – estão sendo gradualmente descritas. A partir de Mahā-Viṣṇu, é gerado Garbhodakaśāyī Viṣṇu, e, de Garbhodakaśāyī Viṣṇu, expande-Se Kṣīrodakaśāyī Viṣṇu aos poucos. Assim, Mahā-Viṣṇu é a causa que origina Garbhodakaśāyī Viṣṇu, e dEste surge a flor de lótus da qual o senhor Brahmā se manifesta. Portanto, Viṣṇu é a causa da qual tudo se origina, em consequência do que a manifestação cósmica não é diferente de Viṣṇu. Isso é confirmado na Bhagavad-gītā (10.8), onde Kṛṣṇa diz que ahaṁ sarvasya prabhavo mattaḥ sarvaṁ pravartate: “Eu sou a fonte de todos os mundos materiais e espirituais. Tudo emana de Mim.” Garbhodakaśāyī Viṣṇu é uma expansão de Kāraṇodakaśāyī Viṣṇu, que, por Sua vez, é uma expansão de Saṅkarṣaṇa. Dessa maneira, em última análise, Kṛṣṇa é a causa de todas as causas (sarva-kāraṇa-kāraṇam). A conclusão é que tanto o mundo material quanto o mundo espiritual são considerados como o corpo do Senhor Supremo. É fácil entender que, causado pelo corpo espiritual, o corpo material é, portanto, uma expansão do corpo espiritual. Logo, quando alguém exerce atividades espirituais, todo o seu corpo material é espiritualizado. Do mesmo modo, neste mundo material, quando o movimento da consciência de Kṛṣṇa se expande, todo o mundo material se espiritualiza. Enquanto não compreendermos isso, estaremos vivendo no mundo material, mas, quando estivermos plenamente conscientes de Kṛṣṇa, deixaremos de viver no mundo material e nos situaremos no mundo espiritual.

Texto

tat-sambhavaḥ kavir ato ’nyad apaśyamānas
tvāṁ bījam ātmani tataṁ sa bahir vicintya
nāvindad abda-śatam apsu nimajjamāno
jāte ’ṅkure katham uhopalabheta bījam

Sinônimos

tat-sambhavaḥ — que foi gerado dessa flor de lótus; kaviḥ — aquele que pode compreender a causa sutil da criação (senhor Brahmā); ataḥ — desse (lótus); anyat — alguma outra coisa; apaśyamānaḥ — incapaz de ver; tvām — Vossa Onipotência; bījam — a causa do lótus; ātmani — nele próprio; tatam — expandido; saḥ — ele (senhor Brahmā); bahiḥ vicintya — considerando como externo; na — não; avindat — compreendeu (a Vós); abda-śatam — durante cem anos, na contagem dos semideuses; apsu — na água; nimajjamānaḥ — mergulhando; jāte aṅkure — quando a semente frutifica e se manifesta como uma trepadeira; katham — como; uha — ó meu Senhor; upalabheta — pode-se perceber; bījam — a semente que já frutificou.

Tradução

Dessa grande flor de lótus, Brahmā foi gerado, mas é certo que tudo o que ele conseguia ver era o lótus. Portanto, pensando que estáveis fora, o senhor Brahmā mergulhou na água e, durante cem anos, tentou encontrar a fonte do lótus. Entretanto, ele não pôde encontrar nenhum vestígio Vosso, pois, quando uma semente frutifica, a semente original deixa de ser visível.

Comentário

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SIGNIFICADO—Esta é a descrição da manifestação cósmica. O desenvolvimento da manifestação cósmica é como a germinação de uma semente. Quando se transforma em fio, o algodão deixa de ser visível, e quando se tece a roupa com o fio, o fio não é mais visível. Do mesmo modo, é extremamente fácil compreendermos que, quando a semente que foi gerada do umbigo de Garbhodakaśāyī Viṣṇu se manifestou sob a forma da criação cósmica, ninguém podia descobrir onde estava a causa da manifestação cósmica. Os cientistas modernos tentam explicar a origem da criação através da teoria da massa amorfa, mas ninguém pode explicar como essa massa explodiu. A literatura védica, entretanto, afirma claramente que a totalidade da energia material, sob o impulso do olhar lançado pelo Senhor Supremo, foi agitada pelos três modos da natureza material. Em outras palavras, em termos da teoria da massa amorfa, sua explosão foi causada pela Suprema Personalidade de Deus. Logo, deve-se aceitar a causa suprema, o Senhor Viṣṇu, como a causa de todas as causas.

Texto

sa tv ātma-yonir ativismita āśrito ’bjaṁ
kālena tīvra-tapasā pariśuddha-bhāvaḥ
tvām ātmanīśa bhuvi gandham ivātisūkṣmaṁ
bhūtendriyāśayamaye vitataṁ dadarśa

Sinônimos

saḥ — ele (senhor Brahmā); tu — mas; ātma-yoniḥ — que nasceu sem a ajuda de uma mãe (gerado diretamente por seu pai, o Senhor Viṣṇu); ati-vismitaḥ — muito surpreso (não descobrindo qual a fonte do seu nascimento); āśritaḥ — situado sobre; abjam — o lótus; kālena — no decorrer do tempo; tīvra-tapasā — mediante rigorosas austeridades; pariśuddha-bhāvaḥ — estando inteiramente purificado; tvām — a Vós; ātmani — em seu corpo e existência; īśa — ó meu Senhor; bhuvi — dentro da terra; gandham — aroma; iva — como; ati-sūkṣmam — muito sutil; bhūta-indriya — composto de elementos e sentidos; āśayamaye — e que encheu de desejos (a mente); vitatam — inserido; dadarśa — encontrou.

Tradução

O senhor Brahmā, que é célebre como ātma-yoni, pois nasceu sem a participação de uma mãe, ficou maravilhado. Portanto, ele se refugiou na flor de lótus e, tendo-se purificado após se submeter a rigorosas austeridades durante muitas centenas de anos, pôde ver que a causa de todas as causas, a Suprema Personalidade de Deus, permeava-lhe todo o corpo e sentidos, assim como o aroma, embora muito sutil, penetra toda a terra.

Comentário

SIGNIFICADO—Aqui, a afirmação prototípica de autorrealização, ahaṁ brahmāsmi, que é interpretada pela filosofia māyāvāda como significando: “Eu sou o Senhor Supremo”, é esclarecida. O Senhor Supremo é a semente que origina tudo (janmādy asya yataḥ; ahaṁ sarvasya prabhavo mattaḥ sarvaṁ pravartate). Assim, o Senhor Supremo espalha-Se por toda parte, mesmo através de nossos corpos, porque eles são compostos de energia material, a energia do Senhor que é distinta dEle. Deve-se entender que, como o Senhor Supremo espalha-Se por todo o corpo físico e como a alma individual é parte do Senhor Supremo, tudo é Brahman (sarvaṁ khalv idaṁ brahma). Após se purificar, o senhor Brahmā alcançou essa compreensão, e todos podem obter o mesmo resultado. Quem conhece plenamente o que é ahaṁ brahmāsmi, pensa: “Sou parte do Senhor Supremo, meu corpo é composto de Sua energia material e, portanto, não tenho uma existência separada. Contudo, embora o Senhor Supremo esteja espalhado por toda parte, Ele é diferente de mim.” Essa é a filosofia de acintya-bhedābheda-tattva. Um exemplo dado a esse respeito é o exemplo do aroma da terra. Na terra, existem aromas e cores, mas ninguém pode vê-los. Na verdade, observamos que, ao brotarem da terra, as flores aparecem com diferentes cores e aromas, que certamente obtiveram da terra, embora não possamos vê-los na terra. Igualmente, o Senhor Supremo, através de Suas diferentes energias, espalha-Se por todo o corpo e alma, embora não possamos vê-lO. O homem inteligente, entretanto, pode ver que o Senhor Supremo existe em toda parte. Aṇḍāntara-stha-paramāṇu-cayāntara-stham: através de Suas diferentes energias, o Senhor está dentro do universo e do átomo. Esta é a verdadeira maneira de o homem inteligente ver o Senhor Supremo. Através de seu tapasya, austeridade, Brahmā, a primeira criatura, tornou-se a pessoa mais inteligente e, assim, chegou a essa compreensão. Portanto, todo o nosso conhecimento deve provir de Brahmā, que se aperfeiçoou mediante seu tapasya.

Texto

evaṁ sahasra-vadanāṅghri-śiraḥ-karoru-
nāsādya-karṇa-nayanābharaṇāyudhāḍhyam
māyāmayaṁ sad-upalakṣita-sanniveśaṁ
dṛṣṭvā mahā-puruṣam āpa mudaṁ viriñcaḥ

Sinônimos

evam — dessa maneira; sahasra — milhares e milhares; vadana — de rostos; aṅghri — pés; śiraḥ — cabeças; kara — mãos; uru — coxas; nāsa-ādya — narizes etc.; karṇa — ouvidos; nayana — olhos; ābharaṇa — muitas variedades de adornos; āyudha — muitas variedades de armas; āḍhyam — dotado com; māyā-mayam — todos manifestos através de potência ilimitada; sat-upalakṣita — aparecendo como diferentes características; sanniveśam — combinados; dṛṣṭvā — vendo; mahā-puruṣam — a Suprema Personalidade de Deus; āpa — alcançou; mudam — bem-aventurança transcendental; viriñcaḥ — senhor Brahmā.

Tradução

Então, o senhor Brahmā pôde ver que Vós possuíeis milhares e milhares de rostos, e de pés, cabeças, mãos, coxas, narizes, ouvidos e olhos. Estáveis vestido com muito esmero, decorado e cravejado por muitas variedades de adornos e armas. Vendo a Vossa forma de Senhor Viṣṇu, com Vossas características e forma transcendentais, e Vossas pernas se estendendo a partir dos planetas inferiores, o senhor Brahmā alcançou a bem-aventurança transcendental.

Comentário

SIGNIFICADO—O senhor Brahmā, sendo inteiramente puro, pôde ver a forma original do Senhor como Viṣṇu, tendo muitos milhares de rostos e aspectos. Esse processo se chama autorrealização. A autorrealização genuína não consiste em perceber a refulgência impessoal do Senhor, mas em ver a forma transcendental do Senhor face a face. Como se menciona distintamente aqui, o senhor Brahmā viu o Senhor Supremo como mahā-puruṣa, a Suprema Personalidade de Deus. Arjuna também viu essa mesma forma de Kṛṣṇa. Portanto, ele diz ao Senhor que paraṁ brahma paraṁ dhāma pavitraṁ paramaṁ bhavān puruṣaṁ śāśvataṁ divyam: “Sois o Brahman Supremo, o definitivo, a morada suprema e o purificador, a Verdade Absoluta e a divina pessoa eterna.” O Senhor é parama-puruṣa, a forma suprema. Puruṣaṁ śāśvatam: Ele é eternamente o desfrutador supremo. Ninguém deve pensar que o Brahman impessoal assume uma forma; ao contrário, a refulgência Brahman impessoal emana da forma suprema do Senhor. Ao se purificar, Brahmā pôde ver a forma suprema do Senhor. O Brahman impessoal não possui cabeças, narizes, ouvidos, mãos e pernas, pois, afinal, esses atributos compõem a forma do Senhor.

A palavra māyāmayam significa “conhecimento espiritual”. Isso é explicado por Madhvācārya. Māyāmayaṁ jñāna-svarūpam. A palavra māyāmayam, que descreve a forma do Senhor, não deve ser interpretada como significando ilusão. Ao contrário, a forma do Senhor é real, e vê essa forma somente quem possui o conhecimento perfeito. Confirma isso a Bhagavad-gītābahūnāṁ janmanām ante jñānavān māṁ prapadyate. A palavra jñānavān se refere àquele que está em perfeito conhecimento. Como pode ver a Personalidade de Deus, tal pessoa se rende ao Senhor. O fato de o Senhor ser caracterizado como possuidor de rosto, nariz, ouvido e assim por diante é algo eterno. Sem essa forma, ninguém consegue ser bem-aventurado. O Senhor, entretanto, é sac-cid-ānanda-vigraha, como afirmam os śāstras (īśvaraḥ paramaḥ kṛṣṇaḥ sac-cid-ānanda-vigrahaḥ). Quando alguém está em perfeita bem-aventurança transcendental, pode ver a suprema forma (vigraha) do Senhor. Com relação a isso, Śrīla Madhvācārya diz:

gandhākhyā devatā yadvat
pṛthivīṁ vyāpya tiṣṭhati
evaṁ vyāptaṁ jagad viṣṇuṁ
brahmātma-sthaṁ dadarśa ha

O senhor Brahmā percebeu que, assim como os aromas e as cores se insinuam por toda a terra, a Suprema Personalidade de Deus, sob uma forma sutil, permeia a manifestação cósmica.

Texto

tasmai bhavān haya-śiras tanuvaṁ hi bibhrad
veda-druhāv atibalau madhu-kaiṭabhākhyau
hatvānayac chruti-gaṇāṁś ca rajas tamaś ca
sattvaṁ tava priyatamāṁ tanum āmananti

Sinônimos

tasmai — para o senhor Brahmā; bhavān — Vossa Onipotência; haya-śiraḥ — tendo cabeça e pescoço de cavalo; tanuvam — a encarnação; hi — na verdade; bibhrat — aceitando; veda-druhau — dois demônios que se contrapunham aos princípios védicos; ati-balau — extremamente poderosos; madhu-kaiṭabha-ākhyau — conhecidos como Madhu e Kaiṭabha; hatvā — matando; anayat — entregastes; śruti-gaṇān — todos os diferentes Vedas (Sāma, Yajur, Ṛg e Atharva); ca — e; rajaḥ tamaḥ ca — representando os modos da paixão e ignorância; sattvam — bondade transcendental pura; tava — Vossa; priya-tamām — queridíssima; tanum — forma (de Hayagrīva); āmananti — eles glorificam.

Tradução

Meu querido Senhor, quando aparecestes como Hayagrīva, ou seja, com a cabeça de cavalo, matastes dois demônios conhecidos como Madhu e Kaiṭabha, que estavam repletos dos modos da paixão e da ignorância. Então, entregastes o conhecimento védico para o senhor Brahmā. Por essa razão, todos os grandes santos aceitam Vossas formas como transcendentais, sem o estigma das qualidades materiais.

Comentário

SIGNIFICADO—A Suprema Personalidade de Deus, sob Sua forma transcendental, está sempre pronto para proteger Seus devotos. Como se menciona nesta passagem, o Senhor, sob a forma de Hayagrīva, matou dois demônios chamados Madhu e Kaiṭabha, que haviam atacado o senhor Brahmā. Os demônios modernos pensam que não havia vida no começo da criação, mas, através do Śrīmad-Bhāgavatam, tomamos conhecimento de que o primeiro ser vivo criado pela Suprema Personalidade de Deus foi o senhor Brahmā, que é pleno de compreensão védica. Infelizmente, aqueles que estão encarregados de distribuir o conhecimento védico, tais como os devotos ocupados em espalhar a consciência de Kṛṣṇa, podem ser hostilizados pelos demônios algumas vezes, mas devem ter plena certeza de que os ataques demoníacos não conseguirão perturbá-los, pois o Senhor está sempre preparado para protegê-los. Os Vedas apresentam o conhecimento através do qual podemos entender a Suprema Personalidade de Deus (vedaiś ca sarvair aham eva vedyaḥ). Os devotos do Senhor sempre estão dispostos a divulgar o conhecimento mediante o qual é possível entender o Senhor através da consciência de Kṛṣṇa, mas os demônios, incapazes de entender o Senhor Supremo, estão cheios de ignorância e paixão. Assim, o Senhor, cuja forma é transcendental, sempre está pronto para matar os demônios. Cultivando o modo da bondade, pode-se entender a posição do Senhor transcendental e como Ele está sempre preparado para remover todos os obstáculos encontrados no caminho que nos leva a compreendê-lo.

Em suma, sempre que encarna, o Senhor aparece sob Sua forma transcendental original. Como o Senhor diz na Bhagavad-gītā (4.7):

yadā yadā hi dharmasya
glānir bhavati bhārata
abhyutthānam adharmasya
tadātmānaṁ sṛjāmy aham

“Sempre e onde quer que haja um declínio na prática religiosa, ó descendente de Bharata, e uma ascensão predominante de irreligião – aí então Eu próprio desço.” É mera tolice pensar que o Senhor é originalmente impessoal, mas aceita um corpo material ao aparecer como uma encarnação pessoal. Sempre que aparece, o Senhor apresenta-Se sob Sua forma transcendental original, que é espiritual e bem-aventurada. Mas os homens sem inteligência, tais como os māyāvādīs, não podem entender a forma transcendental do Senhor, daí o Senhor os castigar dizendo que avajānanti māṁ mūḍhā mānuṣīṁ tanum āśritam: “Os tolos zombam de Mim quando faço Meu advento na forma humana.” Sempre que o Senhor aparece, seja como peixe, tartaruga, javali ou qualquer outra forma, deve-se entender que Ele mantém Sua posição transcendental e que Sua única atividade, como se afirma aqui, é hatvā – matar os demônios. O Senhor aparece para proteger os devotos e matar os demônios (paritrāṇāya sādhūnāṁ vināśāya ca duṣkṛtām). Como estão sempre dispostos a se opor à civilização védica, os demônios certamente serão mortos pela forma transcendental do Senhor.

Texto

itthaṁ nṛ-tiryag-ṛṣi-deva-jhaṣāvatārair
lokān vibhāvayasi haṁsi jagat pratīpān
dharmaṁ mahā-puruṣa pāsi yugānuvṛttaṁ
channaḥ kalau yad abhavas tri-yugo ’tha sa tvam

Sinônimos

ittham — dessa maneira; nṛ — como ser humano (tal como o Senhor Kṛṣṇa e o Senhor Rāmacandra); tiryak — como animais (tal como o javali); ṛṣi — como grande santo (Paraśurāma); deva — como semideuses; jhaṣa — como ser aquático (tal como o peixe e a tartaruga); avatāraiḥ — por meio dessas diferentes encarnações; lokān — todos os diferentes sistemas planetários; vibhāvayasi — protegeis; haṁsi — Vós (às vezes) matais; jagat pratīpān — pessoas que simplesmente criam problemas neste mundo; dharmam — os princípios religiosos; mahā-puruṣa — ó grande personalidade; pāsi — protegeis; yuga-anuvṛttam — de acordo com os diferentes milênios; channaḥ — disfarçado; kalau — na era de Kali; yat — uma vez que; abhavaḥ — tendes sido (e sereis no futuro); tri-yugaḥ — chamado Triyuga; atha — portanto; saḥ — a mesma personalidade; tvam — Vós.

Tradução

Dessa maneira, meu Senhor, sob várias encarnações, apareceis como ser humano, animal, grande santo, semideus, peixe ou tartaruga, mantendo, então, toda a criação em diferentes sistemas planetários e aniquilando os princípios demoníacos. De acordo com a era, ó meu Senhor, protegeis os princípios religiosos. Na era de Kali, entretanto, não Vos apresentais como a Suprema Personalidade de Deus e, portanto, sois conhecido como Triyuga, ou o Senhor que aparece nos três yugas.

Comentário

SIGNIFICADO—Assim como o Senhor apareceu simplesmente para impedir que o senhor Brahmā fosse atacado por Madhu e Kaiṭabha, apareceu também para proteger o grande devoto Prahlāda Mahārāja. Do mesmo modo, o Senhor Caitanya fez o Seu advento para proteger as degradadas almas de Kali-yuga. Existem quatro yugas, ou milênios: Satya, Tretā, Dvāpara e Kali. Com exceção de Kali-yuga, o Senhor aparece em todos os yugas sob várias encarnações e Se estabelece como a Suprema Personalidade de Deus, mas, embora o Senhor Śrī Caitanya Mahāprabhu, que aparece em Kali-yuga, seja a Suprema Personalidade de Deus, Ele nunca declarou que o era. Ao contrário, sempre que alguém dizia que Ele estava no mesmo nível de Kṛṣṇa, Śrī Caitanya Mahāprabhu tapava os ouvidos com as mãos, negando ser Kṛṣṇa, porque estava desempenhando o papel de um devoto. O Senhor Caitanya sabia que, em Kali-yuga, haveria muitas falsas encarnações que fingiriam ser Deus e, portanto, Ele evitou estabelecer-Se como a Suprema Personalidade de Deus. Entretanto, o Senhor Caitanya Mahāprabhu é aceito como Suprema Personalidade de Deus em muitos textos védicos, especialmente no Śrīmad-Bhāgavatam (11.5.32):

kṛṣṇa-varṇaṁ tviṣākṛṣṇaṁ
sāṅgopāṅgāstra-pārṣadam
yajñaiḥ saṅkīrtana-prāyair
yajanti hi sumedhasaḥ

Em Kali-yuga, os homens inteligentes adoram a Suprema Personalidade de Deus, manifesto sob a forma de Śrī Caitanya Mahāprabhu, que sempre está acompanhado de Seus associados, tais como Nityānanda, Advaita, Gadādhara e Śrīvāsa. Todo o movimento da consciência de Kṛṣṇa se baseia nos princípios do movimento de saṅkīrtana, inaugurado por Śrī Caitanya Mahāprabhu. Portanto, todo aquele que, por intermédio do movimento de saṅkīrtana, procura entender a Suprema Personalidade de Deus, conhece tudo perfeitamente. Ele é sumedhas, uma pessoa de inteligência marcante.

Texto

naitan manas tava kathāsu vikuṇṭha-nātha
samprīyate durita-duṣṭam asādhu tīvram
kāmāturaṁ harṣa-śoka-bhayaiṣaṇārtaṁ
tasmin kathaṁ tava gatiṁ vimṛśāmi dīnaḥ

Sinônimos

na — decerto que não; etat — isto; manaḥ — mente; tava — Vossos; kathāsu — nos tópicos transcendentais; vikuṇṭha-nātha — ó Senhor de Vaikuṇṭha, onde não há ansiedade; samprīyate — fica apaziguada ou passa a se interessar por; durita — pelas atividades pecaminosas; duṣṭam — contaminada; asādhu — desonesta; tīvram — muito difícil de controlar; kāma-āturam — sempre cheia de muitos desejos e propensões luxuriosas; harṣa-śoka — ora jubilante, ora infeliz; bhaya — ora com medo; eṣaṇā — e pelo desejo; ārtam — atormentado; tasmin — neste estado mental; katham — como; tava — Vossas; gatim — atividades transcendentais; vimṛśāmi — considerarei e tentarei entender; dīnaḥ — que sou muito pobre e caído.

Tradução

Meu querido Senhor dos planetas Vaikuṇṭha, o lugar sem ansiedades; minha mente é muitíssimo pecaminosa e luxuriosa, ora aparentando ser feliz, ora infeliz. Minha mente está repleta de lamentação e medo, e sempre busca por mais e mais dinheiro. Portanto, ela se tornou muito contaminada e nunca está satisfeita com tópicos referentes a Vós. Por conseguinte, sou muito pobre e caído. Nesta condição em que vivo, como serei capaz de comentar Vossas atividades?

Comentário

SIGNIFICADO—Aqui, Prahlāda Mahārāja se apresenta como um homem comum, embora ele de fato nada tenha a ver com este mundo material. Prahlāda sempre está situado nos planetas Vaikuṇṭha do mundo espiritual, mas, em prol das almas caídas, pergunta como ele poderá discorrer sobre a posição transcendental do Senhor quando a sua mente sempre estiver perturbada por coisas materiais. A mente se torna pecaminosa porque estamos sempre ocupados em atividades pecaminosas. Deve-se entender que tudo o que não está relacionado com a consciência de Kṛṣṇa é pecaminoso. Na verdade, Kṛṣṇa propõe na Bhagavad-gītā (18.66):

sarva-dharmān parityajya
mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja
ahaṁ tvāṁ sarva-pāpebhyo
mokṣayiṣyāmi mā śucaḥ

“Abandona todas as variedades de religião e simplesmente rende-te a Mim. Eu te libertarei de todas as reações pecaminosas. Não temas.” Logo que alguém se rende a Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa imediatamente o livra das reações das atividades pecaminosas. Portanto, quem não é rendido aos pés de lótus do Senhor deve ser tido como pecaminoso, tolo, degradado entre os homens e destituído de todo o verdadeiro conhecimento, pois ele está sob o influxo de propensões ateístas. Isso é confirmado na Bhagavad-gītā (7.15):

na māṁ duṣkṛtino mūḍhāḥ
prapadyante narādhamāḥ
māyayāpahṛta-jñānā
āsuraṁ bhāvam āśritāḥ

Portanto, especialmente nesta era de Kali, deve-se limpar a mente, e isso só é possível mediante o canto do mahā-mantra Hare Kṛṣṇa. Ceto-darpaṇa-mārjanam. Nesta era, o processo de cantar o mahāmantra Hare Kṛṣṇa é o único método pelo qual se pode limpar a mente pecaminosa. Quando alguém elimina da mente todas as reações pecaminosas, pode entender seu dever de ser humano. O movimento da consciência de Kṛṣṇa se propõe a educar os homens pecaminosos para que eles possam tornar-se piedosos simplesmente cantando o mahā-mantra Hare Kṛṣṇa.

harer nāma harer nāma
harer nāmaiva kevalam
kalau nāsty eva nāsty eva
nāsty eva gatir anyathā

Para limpar o coração de modo que a pessoa se torne sóbria e sábia nesta era de Kali, não se recomenda nenhum outro método que não seja o método de se cantar o mahā-mantra Hare Kṛṣṇa. Em versos anteriores, Prahlāda Mahārāja confirmou esse processo. Tvad-vīrya-gāyana-mahāmṛta-magna-cittaḥ. Prahlāda corrobora também que, se a mente de alguém está sempre absorta em pensar em Kṛṣṇa, essa mesma qualificação o purificará e o manterá sempre puro. Para entender o Senhor e Suas atividades, todos devem eliminar da mente toda a contaminação do mundo material, e isso pode ser alcançado pelo simples cantar dos santos nomes do Senhor. Assim, todos podem livrar-se por completo do cativeiro material.

Texto

jihvaikato ’cyuta vikarṣati māvitṛptā
śiśno ’nyatas tvag-udaraṁ śravaṇaṁ kutaścit
ghrāṇo ’nyataś capala-dṛk kva ca karma-śaktir
bahvyaḥ sapatnya iva geha-patiṁ lunanti

Sinônimos

jihvā — a língua; ekataḥ — a um lado; acyuta — ó meu Senhor infalível; vikarṣati — atrai; — a mim; avitṛptā — não estando satisfeito; śiśnaḥ — os órgãos genitais; anyataḥ — a outro lado; tvak — a pele (para tocar objetos suaves); udaram — o estômago (por várias classes de alimentos); śravaṇam — o ouvido (para ouvir alguma melodia agradável); kutaścit — a algum outro lado; ghrāṇaḥ — o nariz (para cheirar); anyataḥ — a mais outro lado; capala-dṛk — a visão inquieta; kva ca — em alguma parte; karma-śaktiḥ — os sentidos ativos; bahvyaḥ — muitas; sa patnyaḥ — co-esposas; iva — como; geha-patim — um chefe de família; lunanti — aniquilam.

Tradução

Meu querido Senhor infalível, minha posição se assemelha àquela de uma pessoa que tem muitas esposas, todas as quais tentam atraí-lo à sua própria maneira. Por exemplo, a língua se sente atraída a pratos saborosos, os órgãos genitais se atraem à prática sexual com uma mulher fascinante, e o tato gosta de acariciar coisas suaves. O estômago, embora cheio, deseja mais alimento, e o ouvido, não procurando ouvir sobre Vós, em geral se sente atraído por canções cinematográficas. O olfato se sente atraído por odores agradáveis, os olhos inquietos se sentem atraídos por cenas de gozo dos sentidos, e os sentidos ativos se deixam atrair por alguma outra parte. Desse modo, só me resta o constrangimento.

Comentário

SIGNIFICADO—Na forma de vida humana, pode-se compreender Deus, mas esse processo, que começa com śravaṇaṁ kīrtanaṁ viṣṇoḥ – ouvir e cantar os santos nomes do Senhor –, é prejudicado enquanto os nossos sentidos experimentarem atrações materiais. Portanto, serviço devocional significa purificar os sentidos. No estado condicionado, nossos sentidos são atordoados pelo gozo sensorial material, e, enquanto a pessoa não estiver treinada em purificar seus sentidos, não poderá tornar-se um devoto. Em nosso movimento da consciência de Kṛṣṇa, portanto, aconselhamos que, desde o começo, todos restrinjam as atividades sensoriais, especialmente as atividades da língua, a qual Śrīla Bhaktivinoda Ṭhakura descreve como sendo muito voraz e insaciável. Para acabar com essa gula da língua, a pessoa é insistentemente aconselhada a não aceitar carne ou coisas desse gênero, nem deve permitir que a língua queira beber ou fumar. Nem mesmo se permite o uso de chá ou café. Igualmente, os órgãos genitais devem ser refreados do sexo ilícito. Sem restringir os sentidos, ninguém pode avançar em consciência de Kṛṣṇa. O único método para se controlar os sentidos é cantar e ouvir os santos nomes do Senhor; caso contrário, a pessoa estará sempre perturbada, tal qual um chefe de família com mais de uma esposa é perturbado pelas demandas de suas mulheres por gozo dos sentidos.

Texto

evaṁ sva-karma-patitaṁ bhava-vaitaraṇyām
anyonya-janma-maraṇāśana-bhīta-bhītam
paśyañ janaṁ sva-para-vigraha-vaira-maitraṁ
hanteti pāracara pīpṛhi mūḍham adya

Sinônimos

evam — dessa maneira; sva-karma patitam — caído devido às reações de suas próprias atividades materiais; bhava — comparado ao mundo de ignorância (nascimento, morte, velhice e doença); vaitaraṇyām — no rio conhecido como Vaitaraṇī (que fica diante do portal de Yamarāja, o superintendente da morte); anyaḥ anya — um após outro; janma — nascimento; maraṇa — morte; āśana — diferentes classes de alimentos; bhīta-bhītam — tendo medo excessivo; paśyan — vendo; janam — a entidade viva; sva — sua própria; para — de outros; vigraha — no corpo; vaira-maitram — considerando amizade e inimizade; hanta — oh!; iti — dessa maneira; pāracara — ó meu Senhor, que estais no outro lado do rio da morte; pīpṛhi — por favor, salvai todos nós (dessa condição perigosa); mūḍham — que somos todos tolos, destituídos de conhecimento espiritual; adya — hoje (porque estais pessoalmente aqui).

Tradução

Meu querido Senhor, estais sempre transcendentalmente situado no outro lado do rio da morte, mas, devido às reações de nossas próprias atividades, estamos sofrendo deste lado. Na verdade, caímos neste rio e repetidas vezes estamos padecendo as dores do nascimento e da morte e comendo alimentos asquerosos. Então, por favor, olhai por nós – não apenas por mim, mas por todas as outras pessoas que estão sofrendo –, e, por Vossa imotivada misericórdia e compaixão, libertai-nos e mantende-nos.

Comentário

SIGNIFICADO—Prahlāda Mahārāja, um vaiṣṇava puro, ora ao Senhor não apenas em prol de si próprio, senão que o faz em favor de todas as outras entidades vivas sofredoras. Existem duas classes de vaiṣṇavas – os bhajanānandīs e os goṣṭhy-ānandīs. Os bhajanānandīs adoram o Senhor apenas a troco de seu próprio benefício, mas os goṣṭhy-ānandīs tentam elevar todos os outros à consciência de Kṛṣṇa para que estes possam salvar-se. Aqueles tolos que não percebem a existência de repetidos nascimentos e mortes e os outros sofrimentos da vida material não podem ter certeza do que lhes acontecerá em seu próximo nascimento. Na verdade, esses patifes tolos e materialmente contaminados inventaram um modo de vida irresponsável que não leva em consideração a próxima vida. Eles não sabem que, de acordo com suas atividades, todos estão sujeitos a receber um dos corpos incluídos entre as 8.400.000 espécies. A Bhagavad-gītā descreve esses patifes como duṣkṛtino mūḍhāh. Os não-devotos, aqueles que não estão em consciência de Kṛṣṇa, fatalmente se ocupam em atividades pecaminosas e, portanto, são mūḍhas – tolos e patifes. Eles são tão tolos que nem ao menos sabem o que lhes acontecerá em sua próxima vida. Embora vejam muitas variedades de criaturas vivas comendo coisas abomináveis – porcos comendo excremento, crocodilos comendo toda espécie de carne, e assim por diante –, eles não percebem que eles próprios, devido à sua prática de comer toda classe de imundície nesta vida, estão fadados a comer as coisas mais repugnantes em sua vida seguinte. O vaiṣṇava sempre teme uma vida tão abjeta e, para se livrar dessas condições horríveis, ocupa-se em serviço devocional ao Senhor. O Senhor tem compaixão dessas pessoas e, portanto, aparece para beneficiá-las.

yadā yadā hi dharmasya
glānir bhavati bhārata
abhyutthānam adharmasya
tadātmānaṁ sṛjāmy aham

“Sempre e onde quer que haja um declínio na prática religiosa, ó descendente de Bharata, e uma ascensão predominante de irreligião – aí então Eu próprio desço.” (Bhagavad-gītā 4.7) O Senhor sempre está disposto a ajudar as almas caídas, mas, porque elas são tolas e infames, não adotam a consciência de Kṛṣṇa, nem acatam as instruções de Kṛṣṇa. Portanto, embora seja pessoalmente o Supremo Senhor Kṛṣṇa, Śrī Caitanya Mahāprabhu vem como um devoto para pregar o movimento da consciência de Kṛṣṇa. Yāre dekha, tāre kaha ‘kṛṣṇa’-upadeśa. Portanto, todos devem tornar-se servos sinceros de Kṛṣṇa. Āmāra ājñāya guru hañā tāra’ ei deśa. (Caitanya-caritāmṛta, Madhya 7.128) As pessoas devem tornar-se gurus e espalhar a consciência de Kṛṣṇa no mundo inteiro, simplesmente pregando os ensinamentos da Bhagavad-gītā.

Texto

ko nv atra te ’khila-guro bhagavan prayāsa
uttāraṇe ’sya bhava-sambhava-lopa-hetoḥ
mūḍheṣu vai mahad-anugraha ārta-bandho
kiṁ tena te priya-janān anusevatāṁ naḥ

Sinônimos

kaḥ — o que é isto; nu — na verdade; atra — neste assunto; te — de Vossa Onipotência; akhila-guro — ó supremo mestre espiritual de toda a criação; bhagavan — ó Senhor Supremo, ó Personalidade de Deus; prayāsaḥ — esforço; uttāraṇe — para a liberação dessas almas caídas; asya — disto; bhava-sambhava — da criação e da manutenção; lopa — e da aniquilação; hetoḥ — da causa; mūḍheṣu — dos tolos que apodrecem neste mundo material; vai — na verdade; mahat-anugrahaḥ — compaixão sentida pelo Supremo; ārta-bandho — ó amigo das entidades vivas sofredoras; kim — qual é a dificuldade; tena — disto; te — de Vossa Onipotência; priya-janān — as pessoas queridas (devotos); anusevatām — daqueles sempre ocupados em servir; naḥ — como nós (que estamos ocupados nisso).

Tradução

Ó meu Senhor, ó Suprema Personalidade de Deus, original mestre espiritual do mundo inteiro, visto que administrais os afazeres do universo, que dificuldade teríeis em libertar as almas caídas, ocupadas em Vosso serviço devocional? Sois o amigo de toda a humanidade sofredora, e é próprio das grandes personalidades mostrarem misericórdia para com os tolos. Portanto, creio que mostrareis Vossa misericórdia espontânea para pessoas como nós, que nos ocupamos em Vosso serviço.

Comentário

SIGNIFICADO—Aqui, as palavras priya-janān anusevatāṁ naḥ denotam que o Senhor Supremo, a Suprema Personalidade de Deus, é muito favorável aos devotos que agem de acordo com as instruções de Seu devoto puro. Em outras palavras, a pessoa deve tornar-se servo do servo do servo do Senhor. Se alguém quiser se tornar diretamente servo do Senhor, isso não lhe será tão proveitoso como se ocupar a serviço do servo do Senhor. Essa é a orientação dada por Śrī Caitanya Mahāprabhu, que nos mostrou o caminho para nos tornarmos gopī-bhartuḥ pada-kamalayor dāsa-dāsānudāsaḥ. Ninguém deve ficar orgulhoso querendo tornar-se diretamente um servo da Suprema Personalidade de Deus. Ao contrário, deve-se buscar um devoto puro, que é servo do Senhor, e se ocupar a serviço desse servo. Quanto mais alguém se torna servo do servo, mais se aperfeiçoa em serviço devocional. Esse preceito também consta na Bhagavad-gītāevaṁ paramparā-prāptam imaṁ rājarṣayo viduḥ. Pode-se entender a ciência da Suprema Personalidade de Deus simplesmente através do sistema paramparā. Com relação a isso, Śrīla Narottama Dāsa Ṭhākura diz que tāṅdera caraṇa sevi bhakta-sane vāsa: “Que eu sirva os pés de lótus dos devotos do Senhor, e que eu viva com os devotos.” Janame janame haya, ei abhilāṣa. Seguindo Narottama Dāsa Ṭhākura, vida após vida, a pessoa deve querer tornar-se servo do servo do Senhor. Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura também canta que tumi ta’ ṭhākura, tomāra kukura, baliyā jānaha more: “Ó meu senhor, ó vaiṣṇava, por favor, considera-me teu cachorro.” Devemos tornar-nos o cão de um vaiṣṇava, de um devoto puro, pois o devoto puro pode nos dar Kṛṣṇa facilmente. Kṛṣṇa se tomāra, kṛṣṇa dite pāra. Kṛṣṇa é propriedade de Seu devoto puro e, se nos refugiarmos no devoto puro, Ele poderá nos dar Kṛṣṇa sem dificuldade alguma. Prahlāda deseja ocupar-se em servir ao devoto e, portanto, ora a Kṛṣṇa: “Meu querido Senhor, por favor, dai-me o refúgio de Vosso queridíssimo devoto para que eu possa ocupar-me em seu serviço e, então, fiqueis satisfeito.” Mad-bhakta-pūjābhyadhikā. (Śrīmad-Bhāgavatam 11.19.21) O Senhor diz: “Ocupar-se em servir o Meu devoto é melhor do que tentar prestar-Me serviço devocional diretamente.”

Outro aspecto importante deste verso é que, através do serviço devocional, Prahlāda Mahārāja não quer beneficiar-se sozinho. Ao contrário, ele ora ao Senhor pedindo que todos nós, almas condicionadas neste mundo material, ocupemo-nos, pela graça do Senhor, em servir ao Seu servo e, assim, sejamos libertos. A graça do Senhor não é, de modo algum, difícil de ser concedida pelo Senhor, daí Prahlāda Mahārāja querer salvar o mundo inteiro espalhando a consciência de Kṛṣṇa.

Texto

naivodvije para duratyaya-vaitaraṇyās
tvad-vīrya-gāyana-mahāmṛta-magna-cittaḥ
śoce tato vimukha-cetasa indriyārtha-
māyā-sukhāya bharam udvahato vimūḍhān

Sinônimos

na — não; eva — decerto; udvije — estou perturbado ou temeroso; para — ó Supremo; duratyaya — intransponível ou muito difícil de atravessar; vaitaraṇyāḥ — do Vaitaraṇī, o rio do mundo material; tvatvīrya — das glórias e atividades de Vossa Onipotência; gāyana — de cantar ou distribuir; mahā-amṛta — no grande oceano de nectárea bem-aventurança espiritual; magna-cittaḥ — cuja consciência está absorta; śoce — estou simplesmente lamentando; tataḥ — disso; vimukha-cetasaḥ — os tolos e patifes que são desprovidos de consciência de Kṛṣṇa; indriya-artha — no gozo dos sentidos; māyā-sukhāya — para a felicidade temporária e ilusória; bharam — a falsa carga ou responsabilidade (de manter a família, a sociedade e a nação e elaborar esquemas com este propósito); udvahataḥ — que estão erguendo (fazendo grandes planos na tentativa de concretizar seus arranjos); vimūḍhān — embora todos eles não passem de tolos e patifes (também estou pensando neles).

Tradução

Ó melhor das grandes personalidades, não temo nem um pouco a existência material, pois, em qualquer lugar onde eu permaneça, estarei plenamente absorto em pensar em Vossas gloriosas atividades. Preocupo-me apenas com os tolos e patifes que fazem planos elaborados para obterem a felicidade material e manter suas famílias, sociedades e países. Preocupo-me com eles porque lhes quero bem.

Comentário

SIGNIFICADO—Pelo mundo inteiro, todos estão fazendo grandes planos na tentativa de solucionar os sofrimentos do mundo material, e isso se dá no presente, no passado e no futuro. Contudo, embora as pessoas tracem elaborados planos políticos, sociais e culturais, todas elas são aqui descritas como vimūḍhas – tolos. A Bhagavad-gītā descreve o mundo material como duḥkhālayam aśāśvatam – temporário e doloroso –, mas esses tolos estão tentando tornar o mundo material sukhālayam, um lugar de felicidade, pois ignoram como é que tudo age segundo o arranjo da natureza material, a qual funciona a seu próprio modo.

prakṛteḥ kriyamāṇāni
guṇaiḥ karmāṇi sarvaśaḥ
ahaṅkāra-vimūḍhātmā
kartāham iti manyate

“Confusa, a alma espiritual que está sob a influência do falso ego julga-se a autora das atividades que, de fato, são executadas pelos três modos da natureza material.” (Bhagavad-gītā 3.27)

A natureza material, pessoalmente conhecida como Durgā, foi planejada de tal maneira que os demônios não deixem de ser punidos. Embora lutem pela existência, os asuras, os demônios ímpios, são implacavelmente acossados pela deusa Durgā, que em suas dez mãos porta diferentes classes de armas utilizadas para puni-los. Ela está montada no seu carregador: um leão, ou os modos da paixão e ignorância. Todos se estabelecem nos modos da paixão e ignorância e lutam muito arduamente, tentando triunfar sobre a natureza material, mas, no final, são aniquilados pelas leis da natureza.

Entre os mundos material e espiritual, existe um rio conhecido como Vaitaraṇī, e, para alcançar o outro lado, ou o mundo espiritual, deve-se cruzar esse rio. Essa tarefa é extremamente árdua. Como o Senhor diz na Bhagavad-gītā (7.14), daivī hy eṣā guṇamayī mama māyā duratyayā: “Esta Minha energia divina, que consiste nos três modos da natureza material, é difícil de ser suplantada.” A mesma palavra duratyaya, que significa “muito difícil”, é usada aqui. Portanto, a não ser que alguém receba a misericórdia do Senhor Supremo, ninguém pode superar as estritas leis da natureza material. Entretanto, embora sempre fracassem em seus planos, os materialistas insistem em tentar ser felizes neste mundo material. É por isso que eles são descritos como vimūḍhas – tolos de primeira classe. No que diz respeito a Prahlāda Mahārāja, ele não era infeliz de modo algum, pois, embora estivesse no mundo material, era plenamente consciente de Kṛṣṇa. Aqueles que estão em consciência de Kṛṣṇa, esforçando-se para servir ao Senhor, não são infelizes, ao passo que alguém desprovido de consciência de Kṛṣṇa e que está lutando pela existência é não apenas tolo, mas também extremamente infeliz. Prahlāda Mahārāja era feliz e infeliz ao mesmo tempo. Ele sentia felicidade e bem-aventurança transcendental porque era consciente de Kṛṣṇa, mas sentia muita infelicidade por causa dos tolos e patifes que traçam planos elaborados na tentativa de serem felizes neste mundo material.

Texto

prāyeṇa deva munayaḥ sva-vimukti-kāmā
maunaṁ caranti vijane na parārtha-niṣṭhāḥ
naitān vihāya kṛpaṇān vimumukṣa eko
nānyaṁ tvad asya śaraṇaṁ bhramato ’nupaśye

Sinônimos

prāyeṇa — de um modo geral, ou em quase todos os casos; deva — ó meu Senhor; munayaḥ — as grandes pessoas santas; sva — pessoal, ou própria; vimukti-kāmāḥ — desejosas de conseguir a liberação escapando deste mundo material; maunam — em silêncio; caranti — elas vagueiam (em lugares como as florestas dos Himalaias, onde não se entra em contato com as atividades dos materialistas); vijane — em lugares solitários; na — não; para-artha-niṣṭhāḥ — interessadas em trabalhar para os outros, dando-lhes o benefício do movimento da consciência de Kṛṣṇa, iluminando-os com a consciência de Kṛṣṇa; na — não; etān — esses; vihāya — deixando de lado; kṛpaṇān — tolos e patifes (que, ocupados em atividades materialistas, não conhecem o valor da forma de vida humana); vimumukṣe — desejo libertar-me e retornar ao lar, retornar ao Supremo; ekaḥ — sozinho; na — não; anyam — outro; tvat — diferente de Vós; asya — desse; śaraṇam — refúgio; bhramataḥ — da entidade viva que gira e vagueia em todos os universos materiais; anupaśye — consigo ver.

Tradução

Meu querido Senhor Nṛsiṁhadeva, vejo que, na verdade, existem muitas pessoas santas, mas elas estão interessadas unicamente em sua própria liberação. Não se preocupando com as grandes cidades e províncias, elas, sob voto de silêncio [mauna-vrata], vão aos Himalaias ou às florestas para meditar. Elas não estão interessadas em libertar os outros. Quanto a mim, entretanto, não quero me libertar sozinho e deixar de lado todos esses pobres tolos e patifes. Sei que, sem a consciência de Kṛṣṇa, sem se refugiar em Vossos pés de lótus, ninguém pode ser feliz. Portanto, desejo trazer todos de volta ao refúgio de Vossos pés de lótus.

Comentário

SIGNIFICADO—Esta é a determinação do vaiṣṇava, do devoto puro do Senhor. Mesmo que tenha de permanecer neste mundo material, isso não constitui nenhum problema para ele, pois sua única atividade é se manter consciente de Kṛṣṇa. A pessoa em consciência de Kṛṣṇa não deixa de ser feliz mesmo que esteja no inferno. Logo, Prahlāda Mahārāja disse que naivodvije para duratyaya-vaitaraṇyāḥ: “Ó melhor das grandes personalidades, não estou nem um pouco com medo da existência material.” Em nenhuma condição de vida, o devoto puro se sente infeliz. Confirma-se isso no Śrīmad-Bhāgavatam (6.17.28):

nārāyaṇa-parāḥ sarve
na kutaścana bibhyati
svargāpavarga-narakeṣv
api tulyārtha-darśinaḥ

“Os devotos ocupados única e exclusivamente no serviço devocional à Suprema Personalidade de Deus, Nārāyaṇa, jamais temem alguma condição de vida. Para eles, os planetas celestiais, a liberação e os planetas infernais são a mesma coisa, pois esses devotos estão interessados apenas em servir ao Senhor.”

Para o devoto, não existe diferença entre ficar nos planetas celestiais ou nos planetas infernais, pois o devoto não vive nem no céu nem no inferno, mas com Kṛṣṇa, no mundo espiritual. Os karmīs e os jñānīs não conseguem entender o segredo do sucesso do devoto. Os karmīs, portanto, tentam ser felizes através de medidas materiais, e os jñānīs tentam ser felizes se tornando unos com o Supremo. O devoto não tem nenhum desses interesses. Ele não está interessado em praticar meditação nos Himalaias ou na floresta. Ao contrário, seu interesse se concentra nas regiões mais atarefadas do mundo, onde se possa ensinar às pessoas a consciência de Kṛṣṇa. O movimento da consciência de Kṛṣṇa existe com este propósito. Não ensinamos pessoa alguma a meditar em um lugar solitário simplesmente para que ela possa mostrar que se tornou muito avançada e fique orgulhosa de sua suposta meditação transcendental, embora se ocupe em toda espécie de atividades materiais tolas. Um vaiṣṇava como Prahlāda Mahārāja não está interessado nesse tipo de avanço espiritual, o qual é mero embuste. Ao contrário, ele está interessado em iluminar as pessoas com a consciência de Kṛṣṇa porque esta é a única maneira de se tornarem felizes. Prahlāda Mahārāja diz claramente que nānyaṁ tvad asya śaraṇaṁ bhramato ’nupaśye: “Sei que, sem a consciência de Kṛṣṇa, sem se refugiar nos Vossos pés de lótus, ninguém pode ser feliz.” Embora, vida após vida, alguém vagueie dentro do universo, se ele tiver a fortuna de se encontrar com um devoto, um servo de Śrī Caitanya Mahāprabhu, conseguirá desvendar o segredo da consciência de Kṛṣṇa e, então, não somente se tornará feliz neste mundo, mas também retornará ao lar, retornará ao Supremo. Essa é a verdadeira meta da vida. Os membros do movimento da consciência de Kṛṣṇa não têm qualquer interesse em praticar meditação nos Himalaias ou na floresta, onde apenas se fará um espetáculo, tampouco estão interessados em abrir nas cidades escolas de yoga e de meditação. Ao contrário, todo membro do movimento da consciência de Kṛṣṇa procura ir de porta em porta esforçando-se por apresentar às pessoas os ensinamentos do Bhagavad-gītā Como Ele É e as mensagens do Senhor Caitanya. Eis o propósito do movimento Hare Kṛṣṇa. Os membros do movimento da consciência de Kṛṣṇa devem ter plena convicção de que, sem Kṛṣṇa, ninguém pode ser feliz. Assim, a pessoa consciente de Kṛṣṇa evita toda classe de espiritualistas, transcendentalistas, meditadores, monistas, filósofos e filantropos farsantes.

Texto

yan maithunādi-gṛhamedhi-sukhaṁ hi tucchaṁ
kaṇḍūyanena karayor iva duḥkha-duḥkham
tṛpyanti neha kṛpaṇā bahu-duḥkha-bhājaḥ
kaṇḍūtivan manasijaṁ viṣaheta dhīraḥ

Sinônimos

yat — aquilo que (se presta ao gozo dos sentidos materiais); maithuna-ādi — representado pelas conversas referentes a sexo, pela leitura de publicações sobre sexo ou pelo desfrute da vida sexual (no lar ou fora, tal como em um clube); gṛhamedhi-sukham — toda espécie de felicidade material baseada no apego à família, sociedade, amizade etc.; hi — na verdade; tuccham — insignificante; kaṇḍūyanena — com a coceira; karayoḥ — das duas mãos (para aliviar a coceira); iva — como; duḥkha-duḥkham — diferentes classes de infelicidade (pelas quais a pessoa tem que passar após essa coceira de gozo sensorial); tṛpyanti — ficam satisfeitas; na — nunca; iha — no gozo dos sentidos materiais; kṛpaṇāḥ — as pessoas tolas; bahu-duḥkha-bhājaḥ — sujeitas a várias espécies de infelicidade material; kaṇḍūti-vat — se alguém consegue aprender com essa coceira; manasi-jam — que é uma simples invenção mental (não existe verdadeira felicidade); viṣaheta — tolera (tal coceira); dhīraḥ — (ele pode tornar-se) uma pessoa muito perfeita e sóbria.

Tradução

A vida sexual se compara ao atrito de duas mãos para o alívio de uma coceira. Os gṛhamedhis, os pretensos gṛhasthas que não têm conhecimento espiritual, pensam que essa coceira é o nível máxima de felicidade, embora, na verdade, seja uma fonte de angústia. Os kṛpaṇas, os tolos que são exatamente o oposto dos brāhmaṇas, não se fartam de mergulhar no gozo sensual. Entretanto, aqueles que são dhīras, os indivíduos sóbrios que toleram essa coceira, não estão sujeitos aos sofrimentos dos tolos e patifes.

Comentário

SIGNIFICADO—Os materialistas pensam que se entregar ao gozo sexual é a maior felicidade neste mundo material e, portanto, elaboram planos para satisfazer os seus sentidos, em especial os órgãos genitais. De um modo geral, isso ocorre em toda parte, notadamente no mundo ocidental, onde se fazem arranjos regulares para que a vida sexual vigore de qualquer maneira. Na verdade, contudo, ninguém jamais conseguiu ser feliz com isso. Nem mesmo os hippies, que abandonaram todos os confortos materiais propiciados por seus pais e avós, não podem dispensar a prazerosíssima felicidade da vida sexual. Tais pessoas são aqui descritas como kṛpaṇas, avaros. A forma de vida humana é uma grande dádiva, pois, nessa forma de vida, pode-se alcançar a meta da existência. Infelizmente, entretanto, devido à falta de educação e de cultura, as pessoas se tornam vítimas da falsa felicidade da vida sexual. Prahlāda Mahārāja, portanto, aconselha que ninguém se deixe desencaminhar por essa civilização envolta em gozo dos sentidos, e muito menos alguém deve ficar sob o encanto da vida sexual. Ao contrário, todos devem ser sóbrios, evitar o gozo dos sentidos e ter consciência de Kṛṣṇa. A pessoa luxuriosa, que é comparada a um avaro estúpido, jamais obtém felicidade através do gozo dos sentidos. A influência da natureza material é muito difícil de ser superada, mas, como Kṛṣṇa afirma na Bhagavad-gītā (7.14), mām eva ye prapadyante, māyām etāṁ taranti te: se alguém se submete voluntariamente aos pés de lótus de Kṛṣṇa, pode salvar-se com muita facilidade.

Com referência à insignificante felicidade da vida sexual, Yāmunācārya diz a esse respeito:

yadāvadhi mama cetaḥ kṛṣṇa-padāravinde
nava-nava-rasa-dhāmanudyata rantum āsīt
tadāvadhi bata nārī-saṅgame smaryamāne
bhavati mukha-vikāraḥ suṣṭu niṣṭhīvanaṁ ca

“Desde que me ocupei no transcendental serviço amoroso a Kṛṣṇa, obtendo nele um prazer que se renova a cada instante, sempre que penso em prazer sexual, cuspo no pensamento e meus lábios se contorcem de desgosto.” Anteriormente, Yāmunācārya fora um rei que desfrutara de felicidade sexual de várias maneiras, mas, desde o momento em que passou a se ocupar a serviço do Senhor, obteve bem-aventurança espiritual e passou a detestar pensar em vida sexual. Se pensamentos sexuais iam até ele, cuspia neles com desgosto.

Texto

mauna-vrata-śruta-tapo-’dhyayana-sva-dharma-
vyākhyā-raho-japa-samādhaya āpavargyāḥ
prāyaḥ paraṁ puruṣa te tv ajitendriyāṇāṁ
vārtā bhavanty uta na vātra tu dāmbhikānām

Sinônimos

mauna — silêncio; vrata — votos; śruta — conhecimento védico; tapaḥ — austeridade; adhyayana — estudo da escritura; sva-dharma — executar varṇāśrama-dharma; vyākhyā — explicar os śāstras; rahaḥ — viver em um lugar solitário; japa — cantar ou recitar mantras; samādhayaḥ — permanecer em transe; āpavargyāḥ — essas são as dez espécies de atividades para se avançar no caminho da liberação; prāyaḥ — em geral; param — o único meio; puruṣa — ó meu Senhor; te — todas elas; tu — mas; ajita-indriyāṇām — das pessoas que não podem controlar os sentidos; vārtāḥ — meios de subsistência; bhavanti — são; uta — assim está dito; na — não; — ou; atra — com relação a isso; tu — mas; dāmbhikānām — das pessoas que são falsamente orgulhosas.

Tradução

Ó Suprema Personalidade de Deus, existem dez métodos prescritos no caminho da liberação – permanecer silencioso, não falar com ninguém, cumprir votos, acumular toda espécie de conhecimento védico, submeter-se a austeridades, estudar os Vedas e outros textos védicos, executar os deveres do varṇāśrama-dharma, explicar os śāstras, permanecer em um lugar solitário, cantar mantras silenciosamente e se absorver em transe. Esses diferentes métodos de liberação, de um modo geral, são apenas uma prática profissional e um meio de subsistência para aqueles que não controlaram seus sentidos. Porque tais pessoas são falsamente orgulhosas, esses processos podem não funcionar.

Comentário

SIGNIFICADO—Como se afirma no Śrīmad-Bhāgavatam (6.1.15):

kecit kevalayā bhaktyā
vāsudeva-parāyaṇāḥ
aghaṁ dhunvanti kārtsnyena
nīhāram iva bhāskaraḥ

“São raras as pessoas que adotaram o completo e imaculado serviço devocional a Kṛṣṇa e que podem, então, extirpar as ervas daninhas, as reações pecaminosas, e impedir que elas reapareçam. Elas conseguem isso simplesmente executando serviço devocional, assim como, com seus raios, o Sol pode dissipar de imediato um nevoeiro.” O verdadeiro propósito da vida humana consiste em a pessoa se libertar do enredamento material. Tal liberação pode ser alcançada por muitos métodos (tapasā brahmacaryeṇa śamena ca damena ca), mas todos eles, em maior ou menor grau, dependem de tapasya, austeridade, o que começa com o celibato. Śukadeva Gosvāmī diz que aqueles que são vāsudeva parāyaṇa, plenamente rendidos aos pés de lótus do Senhor Vāsudeva, Kṛṣṇa, também alcançam os resultados de mauna (silêncio), vrata (votos) e outros desses métodos, bastando-lhes executar serviço devocional. Em outras palavras, esses métodos não são muito poderosos, pois, se alguém adota o serviço devocional, todos eles estarão muito facilmente incluídos.

Mauna, por exemplo, não significa que alguém deva simplesmente parar de falar. A língua foi feita para falar, embora, algumas vezes, para fazer uma grande exibição, a pessoa permanece calada. Existem muitos que praticam o silêncio em algum dia da semana. Contudo, os vaiṣṇavas não observam tal silêncio. O silêncio significa não falar tolices. Oradores em assembleias, conferências e reuniões, de um modo geral, falam tolamente, tais como sapos. Śrīla Rūpa Gosvāmī descreve isso como vāco vegam. Quem deseja dizer algo pode apresentar-se como um grande orador, mas, em vez de continuar falando coisas sem sentido, é melhor que se cale. Esse método de silêncio, portanto, é recomendado às pessoas muito apegadas a falar bobagens. Aquele que não é devoto fatalmente irá dizer tolices, pois não tem a capacidade de falar sobre as glórias de Kṛṣṇa. Portanto, tudo o que ele diz sofre influência da energia ilusória e se compara ao coaxar de uma rã. Em contraste, quem fala sobre as glórias do Senhor não precisa ficar calado. Caitanya Mahāprabhu recomenda que kīrtanīyaḥ sadā hariḥ: todos devem dedicar-se a cantar as glórias do Senhor vinte e quatro horas por dia. Não há necessidade de se tornar mauna, ou silencioso.

Os dez processos de liberação ou aperfeiçoamento no caminho da liberação não se destinam aos devotos. Kevalayā bhaktyā: quem se ocupa em serviço devocional ao Senhor automaticamente executa todos os dez métodos de liberação. Prahlāda Mahārāja sugere que tais processos podem ser recomendados aos ajitendriyas, aqueles que não podem controlar seus sentidos. Os devotos, contudo, já subjugaram seus sentidos. Sarvopādhi-vinirmuktaṁ tat-paratvena nirmalam: o devoto já está livre da contaminação material. Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura, portanto, diz:

duṣṭa mana! tumi kisera vaiṣṇava?
pratiṣṭhāra tare, nirjanera ghare,
tava harināma kevala kaitava

Existem muitas pessoas que gostam de cantar o mantra Hare Kṛṣṇa em um lugar silencioso e solitário, mas quem não está interessado em pregar ou falar constantemente aos não-devotos dificilmente poderá superar a influência dos modos da natureza. Portanto, a menos que alguém seja extremamente avançado em consciência de Kṛṣṇa, não deve imitar Haridāsa Ṭhākura, cuja única ocupação consistia em sempre cantar o santo nome, vinte e quatro horas por dia. Prahlāda Mahārāja não condena esse processo; ele o aceita. Contudo, sem serviço ativo ao Senhor, simplesmente através desses métodos, de um modo geral, não se pode alcançar a liberação. Ninguém pode alcançar a liberação simplesmente através de orgulho falso.

Texto

rūpe ime sad-asatī tava veda-sṛṣṭe
bījāṅkurāv iva na cānyad arūpakasya
yuktāḥ samakṣam ubhayatra vicakṣante tvāṁ
yogena vahnim iva dāruṣu nānyataḥ syāt

Sinônimos

rūpe — sob as formas; ime — essas duas; sat-asatī — a causa e o efeito; tava — Vossas; veda-sṛṣṭe — explicadas nos Vedas; bīja-aṅkurau — a semente e o rebento; iva — como; na — nunca; ca — também; anyat — nenhuma outra; arūpakasya — de Vós, que não possuís forma material; yuktāḥ — aqueles ocupados em Vosso serviço devocional; samakṣam — diante dos próprios olhos; ubhayatra — de ambas as maneiras (espiritual e materialmente); vicakṣante — podem realmente ver; tvām — a Vós; yogena — mediante o simples método do serviço devocional; vahnim — fogo; iva — como; dāruṣu — na madeira; na — não; anyataḥ — de alguma outra maneira; syāt — é possível.

Tradução

Através do conhecimento védico autorizado, todos podem ver que as formas de causa e efeito, presentes na manifestação cósmica, pertencem à Suprema Personalidade de Deus, pois a manifestação cósmica é uma energia dEle. Tanto a causa quanto o efeito não passam de energias do Senhor. Portanto, ó meu Senhor, assim como um homem sábio, ponderando a causa e o efeito, pode ver como o fogo permeia a madeira, aqueles que estão ocupados em serviço devocional entendem como Vós sois tanto a causa quanto o efeito.

Comentário

SIGNIFICADO—Como se descreveu nos versos anteriores, muitos supostos estudantes da doutrina espiritual seguem os dez diferentes métodos conhecidos como mauna-vrata-śruta-tapo-’dhyayana-sva-dharma-vyākhyā-raho-japa-samādhayaḥ. Talvez eles sejam muito atrativos, mas, seguindo esses métodos, ninguém pode realmente entender a verdadeira causa e efeito e a causa que origina tudo (janmādy asya yataḥ). A fonte da qual tudo se origina é a própria Suprema Personalidade de Deus (sarva-kāraṇa-kāraṇam). Essa fonte que origina tudo é Kṛṣṇa, o governante supremo. Īśvaraḥ paramaḥ kṛṣṇaḥ sac-cid-ānanda-vigrahaḥ. Ele tem Sua forma eterna e espiritual. Na verdade, Ele é a raiz de tudo (bījaṁ māṁ sarva-bhūtānām). Todas as manifestações que existem são produzidas pela Suprema Personalidade de Deus. Isso não pode ser entendido pelo falso silêncio ou por qualquer outro método complicado. A causa suprema pode ser entendida unicamente mediante o serviço devocional, como se afirma na Bhagavad-gītā (bhaktyā mām abhijānāti). Em outra passagem do Śrīmad-Bhāgavatam (11.14.21), a Divindade Suprema diz pessoalmente que bhaktyāham ekayā grāhyaḥ: pode-se entender a causa que origina todas as causas, a Pessoa Suprema, unicamente através do serviço devocional, e não através de um exibicionismo extravagante.

Texto

tvaṁ vāyur agnir avanir viyad ambu mātrāḥ
prāṇendriyāṇi hṛdayaṁ cid anugrahaś ca
sarvaṁ tvam eva saguṇo viguṇaś ca bhūman
nānyat tvad asty api mano-vacasā niruktam

Sinônimos

tvam — Vós (sois); vāyuḥ — ar; agniḥ — fogo; avaniḥ — terra; viyat — céu; ambu — água; mātrāḥ — os objetos dos sentidos; prāṇa — os ares vitais; indriyāṇi — os sentidos; hṛdayam — a mente; cit — a consciência; anugrahaḥ ca — e o falso ego ou os semideuses; sarvam — tudo; tvam — Vós; eva — apenas; sa-guṇaḥ — natureza material com seus três modos; viguṇaḥ — a centelha espiritual e a Superalma, que estão situadas além da natureza material; ca — e; bhūman — ó meu grande Senhor; na — não; anyat — outro; tvat — que não sejais Vós; asti — é; api — embora; manaḥ-vacasā — com a mente e palavras; niruktam — tudo manifesto.

Tradução

Ó Senhor Supremo, realmente sois o ar, a terra, o fogo, o céu e a água. Sois os objetos da percepção sensorial, os ares vitais, os cinco sentidos, a mente, a consciência e o falso ego. Na verdade, sois todas as coisas sutis e grosseiras. Os elementos materiais e tudo o que se pode expressar, seja com palavras, seja com a mente, sois Vós e nada mais.

Comentário

SIGNIFICADO—Essa é a concepção onipenetrante da Suprema Personalidade de Deus, a qual explica como Ele está presente em toda e qualquer parte. Sarvaṁ khalv idaṁ brahma: tudo é Brahman – o Brahman Supremo, Kṛṣṇa. Sem Ele, nada existe. Como o Senhor diz na Bhagavad-gītā (9.4):

mayā tatam idaṁ sarvaṁ
jagad avyakta-mūrtinā
mat-sthāni sarva-bhūtāni
na cāhaṁ teṣv avasthitaḥ

“Eu existo em toda parte, e tudo existe em Mim, mas Eu não sou visível em toda parte.” O Senhor pode ser visível apenas através do serviço devocional. Tatra tiṣṭhāmi nārada yatra gāyanti mad-bhaktāḥ: o Senhor Supremo permanece somente onde Seus devotos cantam Suas glórias.

Texto

naite guṇā na guṇino mahad-ādayo ye
sarve manaḥ prabhṛtayaḥ sahadeva-martyāḥ
ādy-antavanta urugāya vidanti hi tvām
evaṁ vimṛśya sudhiyo viramanti śabdāt

Sinônimos

na — nem; ete — todas essas; guṇāḥ — três qualidades da natureza material; na — nem; guṇinaḥ — as deidades que predominam os três modos da natureza material (a saber, o senhor Brahmā, a deidade que predomina a paixão, e o senhor Śiva, a deidade que exerce domínio sobre a ignorância); mahat-ādayaḥ — os cinco elementos, os sentidos e os objetos dos sentidos; ye — aqueles que; sarve — todos; manaḥ — a mente; prabhṛtayaḥ — e assim por diante; saha-deva-martyāḥ — com os semideuses e os seres humanos mortais; ādi-anta-vantaḥ — todos os quais têm começo e fim; urugāya — ó Senhor Supremo, que sois glorificado por todas as pessoas santas; vidanti — entendem; hi — na verdade; tvām — Vossa Onipotência; evam — assim; vimṛśya — considerando; sudhiyaḥ — todos os homens sábios; viramanti — cessam; śabdāt — de estudar ou procurar compreender os Vedas.

Tradução

Nem os três modos da natureza material [sattva-guṇa, rajo-guṇa e tamo-guṇa], nem as deidades predominantes que controlam esses três modos, nem os cinco elementos grosseiros, nem a mente, nem os semideuses, nem os seres humanos podem entender Vossa Onipotência, pois todos eles estão sujeitos ao nascimento e à aniquilação. Considerando isso, as pessoas espiritualmente avançadas passaram a adotar o serviço devocional. Tais homens sábios praticamente não se preocupam com o estudo védico. Em vez disso, ocupam-se em serviço devocional prático.

Comentário

SIGNIFICADO—Como se afirma em diversas passagens, bhaktyā mām abhijānāti: somente através do serviço devocional é que o Senhor Supremo pode ser compreendido. A pessoa inteligente, o devoto, não se importa muito com as práticas mencionadas no verso 46 (mauna-vrata-śruta-tapo-’dhyayana-sva-dharma). Após compreender o Senhor Supremo através do serviço devocional, tais devotos deixam de se interessar pelo estudo dos Vedas. Na verdade, isso é confirmado nos próprios Vedas. Os Vedas dizem: kim arthā vayam adhyeṣyāmahe kim arthā vayam vakṣyāmahe. Qual a utilidade do estudo de tantos textos védicos? Que proveito há em explicá-los de diferentes maneiras? Vayam vakṣyāmahe. Não é necessário continuar estudando os textos védicos, tampouco é preciso descrevê-los através da especulação filosófica. A Bhagavad-gītā (2.52) também diz:

yadā te moha-kalilaṁ
buddhir vyatitariṣyati
tadā gantāsi nirvedaṁ
śrotavyasya śrutasya ca

Quando alguém entende a Suprema Personalidade de Deus através da execução do serviço devocional, ele deixa de praticar o estudo da literatura védica. Em outra passagem, afirma-se: ārādhito yadi haris tapasā tataḥ kim. Se alguém pode entender a Suprema Personalidade de Deus e se ocupar a Seu serviço, não precisa continuar com rigorosas austeridades, penitências e assim por diante. Entretanto, se, após executar severas austeridades e penitências, alguém não entende a Suprema Personalidade de Deus, suas práticas são inúteis.

Texto

tat te ’rhattama namaḥ stuti-karma-pūjāḥ
karma smṛtiś caraṇayoḥ śravaṇaṁ kathāyām
saṁsevayā tvayi vineti ṣaḍ-aṅgayā kiṁ
bhaktiṁ janaḥ paramahaṁsa-gatau labheta

Sinônimos

tat — portanto; te — a Vós; arhat-tama — ó suprema entre todas as pessoas adoráveis; namaḥ — respeitosas reverências; stuti-karma-pūjāḥ — adorar Vossa Onipotência, oferecendo-Vos orações e outras atividades devocionais; karma — atividades dedicadas a Vós; smṛtiḥ — lembrança constante; caraṇayoḥ — dos Vossos pés de lótus; śravaṇam — sempre ouvindo; kathāyām — em tópicos (sobre Vós); saṁsevayā — semelhante serviço devocional; tvayi — a Vós; vinā — sem; iti — assim; ṣaṭ-aṅgayā — tendo seis diferentes partes; kim — como; bhaktim — serviço devocional; janaḥ — uma pessoa; paramahaṁsa-gatau — acessível ao paramahaṁsa; labheta — pode alcançar.

Tradução

Portanto, ó Suprema Personalidade de Deus, ó melhor de todas as pessoas a quem se dedicam orações, ofereço-Vos minhas respeitosas reverências porque, sem Vos prestar seis classes de serviço devocional – a saber, oferecer orações, dedicar os resultados de todas as atividades, adorar-Vos, trabalhar para Vós, sempre se lembrar dos Vossos pés de lótus e ouvir Vossas glórias –, quem pode alcançar aquilo que se destina aos paramahaṁsas?

Comentário

SIGNIFICADO—Os Vedas prescrevem: nāyam ātmā pravacanena labhyo na medhayā na bahunā śrutena. Ninguém pode entender a Suprema Personalidade de Deus simplesmente estudando os Vedas e oferecendo orações. Somente pela graça do Senhor Supremo pode-se compreendê-lO. Portanto, o processo para compreender o Senhor é bhakti. Sem bhakti, nada adiantará tentar entender a Verdade Absoluta se valendo dos preceitos védicos. O processo de bhakti é entendido pelo paramahaṁsa, aquele que aceita a essência de tudo. Os resultados de bhakti se reservam a esses paramahaṁsas, e o único processo védico através do qual alguém consegue atingir essa etapa é o serviço devocional. Outros processos, tais como jñāna e yoga, só podem ser exitosos quando se insere bhakti neles. Quando falamos de jñāna-yoga, karma-yoga e dhyāna-yoga, a palavra yoga se refere a bhakti. Bhakti-yoga, ou buddhi-yoga, executada com inteligência e conhecimento completo, é o único método exitoso para voltarmos ao lar, voltarmos ao Supremo. Se alguém deseja libertar-se das dores da existência material, deve adotar o serviço devocional, em consequência do que alcançará rapidamente essa meta.

Texto

śrī-nārada uvāca
etāvad varṇita-guṇo
bhaktyā bhaktena nirguṇaḥ
prahrādaṁ praṇataṁ prīto
yata-manyur abhāṣata

Sinônimos

śrī-nāradaḥ uvāca — Śrī Nārada Muni disse; etāvat — até este ponto; varṇita — descritas; guṇaḥ — qualidades transcendentais; bhaktyā — com devoção; bhaktena — pelo devoto (Prahlāda Mahārāja); nirguṇaḥ — o Senhor transcendental; prahrādam — para Prahlāda Mahārāja; praṇatam — que era rendido aos pés de lótus do Senhor; prītaḥ — estando satisfeito; yata-manyuḥ — controlando a ira; abhāṣata — começou a falar (o seguinte).

Tradução

O grande santo Nārada disse: Então, o Senhor Nṛsiṁhadeva foi apaziguado pelo devoto Prahlāda Mahārāja, que Lhe ofereceu orações de cunho transcendental. O Senhor acalmou a Sua ira e, mostrando-Se muito bondoso com Prahlāda, que, prostrado, oferecia-Lhe humildes reverências, falou-lhe as seguintes palavras.

Comentário

SIGNIFICADO—A palavra nirguṇa é importante. Os filósofos māyāvādīs aceitam a Verdade Absoluta como nirguṇa ou nirākāra. A palavra nirguṇa se refere a alguém que não possui qualidades materiais. O Senhor, sendo repleto de qualidades espirituais, aplacou toda a Sua ira e dirigiu a palavra a Prahlāda.

Texto

śrī-bhagavān uvāca
prahrāda bhadra bhadraṁ te
prīto ’haṁ te ’surottama
varaṁ vṛṇīṣvābhimataṁ
kāma-pūro ’smy ahaṁ nṛṇām

Sinônimos

śrī-bhagavān uvāca — a Suprema Personalidade de Deus disse; prahrāda — ó Meu querido Prahlāda; bhadra — és tão gentil; bhadram — toda a boa fortuna; te — a ti; prītaḥ — satisfeito; aham — Eu (estou); te — contigo; asura-uttama — ó melhor dos devotos em família de asuras (ateístas); varam — bênção; vṛṇīṣva — simplesmente pede (a Mim); abhimatam — desejada; kāma-pūraḥ — que satisfaz os desejos de todos; asmi — sou; aham — Eu; nṛṇām — de todos os homens.

Tradução

A Suprema Personalidade de Deus disse: Meu querido Prahlāda, és muitíssimo cortês e és o melhor da família dos asuras! Desejo-te toda a boa fortuna! Estou muito satisfeito contigo. É Meu passatempo satisfazer os desejos de todos os seres vivos, de modo que podes pedir-Me qualquer bênção que desejes receber.

Comentário

SIGNIFICADO—A Suprema Personalidade de Deus é conhecida como bhakta-vatsala, a Personalidade Suprema que tem muita afeição por Seus devotos. Não é nada extraordinário que o Senhor ofereça todas as bênçãos a Seus devotos. Com efeito, a Suprema Personalidade de Deus disse: “Satisfaço os desejos de todos. Como és Meu devoto, tudo o que quiseres a ti, naturalmente te será dado, mas, se orares em prol de outrem, essa oração também será satisfeita.” Assim, caso nos aproximemos do Senhor Supremo ou de Seu devoto, ou se formos abençoados pelo devoto, é muito natural que alcancemos as bênçãos do Senhor Supremo. Yasya prasādād bhagavat-prasādaḥ. Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura diz que, se alguém satisfizer o mestre espiritual vaiṣṇava, todos os seus desejos se concretizarão.

Texto

mām aprīṇata āyuṣman
darśanaṁ durlabhaṁ hi me
dṛṣṭvā māṁ na punar jantur
ātmānaṁ taptum arhati

Sinônimos

mām — a Mim; aprīṇataḥ — não satisfazendo; āyuṣman — ó Prahlāda de longa vida; darśanam — vendo; durlabham — muito raro; hi — na verdade; me — de Mim; dṛṣṭvā — após ver; mām — a Mim; na — não; punaḥ — novamente; jantuḥ — a entidade viva; ātmānam — em prol dela própria; taptum — lamentar; arhati — merece.

Tradução

Meu querido Prahlāda, que tenhas uma longa vida. Ninguém pode apreciar-Me ou entender-Me sem Me satisfazer, mas a pessoa que Me viu ou satisfez não tem mais motivos para se lamentar pedindo por algo para o seu agrado pessoal.

Comentário

SIGNIFICADO—Enquanto não satisfizer a Suprema Personalidade de Deus, ninguém poderá ser feliz em circunstância alguma, mas quem aprendeu como satisfazer o Senhor Supremo não precisa continuar lamentando-se por sua condição material.

Texto

prīṇanti hy atha māṁ dhīrāḥ
sarva-bhāvena sādhavaḥ
śreyas-kāmā mahā-bhāga
sarvāsām āśiṣāṁ patim

Sinônimos

prīṇanti — tentam satisfazer; hi — na verdade; atha — por causa disso; mām — a Mim; dhīrāḥ — aqueles que são sóbrios e muito inteligentes; sarva-bhāvena — em todos os aspectos e nos diferentes modos de serviço devocional; sādhavaḥ — pessoas que têm um ótimo comportamento (perfeitas em todos os sentidos); śreyas-kāmāḥ — desejando o maior benefício da vida; mahā-bhāga — ó pessoa afortunadíssima; sarvāsām — de todas; āśiṣām — as espécies de bênçãos; patim — o mestre (Eu).

Tradução

Meu querido Prahlāda, és afortunadíssimo. Por favor, ouve enquanto te digo que aqueles que são muito sábios e estão em uma posição muito elevada tentam satisfazer-Me em todas as diferentes classes de doçuras, pois sou a única pessoa que pode satisfazer todos os desejos de todos.

Comentário

SIGNIFICADO—As palavras dhīrāḥ sarva-bhāvena não significam “da maneira como te aprouver”. Bhāva é a condição preliminar do amor a Deus.

athāsaktis tato bhāvas
tataḥ premābhyudañcati
sādhakānām ayaṁ premṇaḥ
prādurbhāve bhavet kramaḥ

(Bhakti-rasāmṛta-sindhu 1.4.16)

A fase de bhāva é a última etapa antes de alguém alcançar amor a Deus. A palavra sarva-bhāva significa que se pode amar a Suprema Personalidade de Deus através de diferentes doçuras transcendentais, começando com dāsya, sakhya, vātsalya e mādhurya. Na fase de śānta, a pessoa se situa adjacente ao serviço amoroso ao Senhor. O amor puro a Deus começa com dāsya e progride para sakhya, vātsalya e, em seguida, mādhurya. Contudo, em qualquer uma dessas cinco doçuras, pode-se prestar serviço amoroso ao Senhor Supremo. Como nossa principal incumbência é amar a Suprema Personalidade de Deus, pode-se prestar serviço em qualquer uma das plataformas de amor acima mencionadas.

Texto

śrī-nārada uvāca
evaṁ pralobhyamāno ’pi
varair loka-pralobhanaiḥ
ekāntitvād bhagavati
naicchat tān asurottamaḥ

Sinônimos

śrī-nāradaḥ uvāca — o grande santo Nārada disse; evam — assim; pralobhyamānaḥ — sendo impelido ou induzido; api — embora; varaiḥ — pelas bênçãos; loka — do mundo; pralobhanaiḥ — por diferentes classes de ofertas; ekāntitvāt — por ser rendido unicamente; bhagavati — à Suprema Personalidade de Deus; na aicchat — não quis; tān — essas bênçãos; asura-uttamaḥ — Prahlāda Mahārāja, o melhor da família dos asuras.

Tradução

Nārada Muni disse: Prahlāda Mahārāja era a melhor pessoa na família dos asuras, que sempre almejam a felicidade material. Entretanto, embora recebesse ofertas da Suprema Personalidade de Deus, que colocou à sua disposição todas as bênçãos que lhe pudessem trazer a felicidade material, Prahlāda, devido à sua imaculada consciência de Kṛṣṇa, não quis receber nenhum benefício material que lhe concedesse o gozo dos sentidos.

Comentário

SIGNIFICADO—Em nenhuma fase de seu serviço devocional, os devotos puros, tais como Prahlāda Mahārāja e Dhruva Mahārāja, aspiram a algum benefício material. Quando o Senhor esteve presente diante de Dhruva Mahārāja, este não quis receber do Senhor nenhum benefício material: svāmin kṛtārtho ’smi varaṁ na yāce. Sendo um devoto puro, ele preferiu não pedir nenhum benefício material ao Senhor. Com relação a isso, Śrī Caitanya Mahāprabhu nos instruiu:

na dhanaṁ na janaṁ na sundarīṁ
kavitāṁ vā jagad-īśa kāmaye
mama janmani janmanīśvare
bhavatād bhaktir ahaitukī tvayi

“Ó meu Senhor, Jagadīśa, não peço bênçãos através das quais possa obter riqueza, popularidade ou beleza materiais. Meu único desejo é servir-Te. Por favor, ocupa-me em servir ao servo do Teu servo.”

Neste ponto, encerram-se os Significados Bhaktivedanta do sétimo canto, nono capítulo, do Śrīmad-Bhāgavatam, intitulado “Prahlāda Apazigua o Senhor Nṛsiṁhadeva com Orações”.