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CAPÍTULO DEZESSEIS

Kṛṣṇa Castiga a Serpente Kāliya

Este capítulo descreve o passatempo em que o Senhor Śrī Kṛṣṇa subjuga a serpente Kāliya dentro do lago adjacente ao rio Yamunā e concede misericórdia a Kāliya em resposta às preces de suas esposas, as nāgapatnīs.

Para recuperar a pureza das águas do Yamunā, que haviam sido contaminadas pelo veneno de Kāliya, o Senhor Kṛṣṇa subiu em uma árvore kadamba à beira do rio e pulou na água. Então, Ele começou a brincar destemidamente na água como um elefante louco. Kāliya não pôde tolerar o fato de Kṛṣṇa ter invadido sua residência e, em virtude disso, logo foi até o Senhor e picou-Lhe o peito. Ao verem isso, os amigos de Kṛṣṇa caíram ao chão inconscientes. Naquele momento, toda espécie de mau agouro ocorreu em Vraja, tais como tremores de terra, estrelas cadentes e tremor dos membros esquerdos de várias criaturas.

Os residentes de Vṛndāvana pensaram: “Hoje Kṛṣṇa foi à floresta sem Balarāma; logo, não sabemos que grande desgraça pode tê-lO acometido.” Pensando dessa maneira, eles seguiram a trilha das pe­gadas de Kṛṣṇa até a beira do Yamunā. Dentro da água do lago adja­cente ao rio, eles viram o Senhor Kṛṣṇa, a própria essência de suas vidas, enroscado na cauda anelada de uma serpente negra. Os residen­tes pensaram que os três mundos tinham ficado vazios e preparam-­se todos para entrar na água. Contudo, o Senhor Balarāma, conhecendo bem o poder de Kṛṣṇa, impediu-os.

Então, o Senhor Kṛṣṇa, vendo quão perturbados estavam Seus amigos e parentes, expandiu grandemente Seu corpo e obrigou a serpente a afrouxar seus anéis apertados e soltá-lO. Em seguida, o Senhor começou a brincar de dançar sobre os capelos da serpen­te. Por meio desta dança magnífica e impetuosa, o Senhor Kṛṣṇa pisoteou os mil capelos da serpente até que seu corpo enfraque­ceu. Vomitando sangue, Kāliya enfim compreendeu que Kṛṣṇa era a personalidade primordial, o Senhor Nārāyaṇa, o mestre espiritual de todas as criaturas móveis e inertes e refugiou-se nEle.

Ao verem a enorme exaustão de Kāliya, suas esposas, as nāgapatnīs, prostraram-se aos pés de lótus do Senhor Kṛṣṇa. Então, ofere­ceram-Lhe várias orações na esperança de conseguir a liberdade de seu marido: “É muito apropriado o fato de terdes trazido nosso cruel marido a esta condição. Na verdade, em razão de Vossa ira, ele se beneficiou imensamente. Que piedade Kāliya deve ter acumulado em suas vidas anteriores! Hoje ele recebeu sobre a cabeça a poeira dos pés de lótus da Personalidade de Deus, algo que até a mãe do universo, a deusa Lakṣmī, tem dificuldade em obter. Por favor, tende a bon­dade de perdoar a ofensa que Kāliya cometeu devido à ignorância e permiti-lhe viver.”

Satisfeito com as orações das nāgapatnīs, Kṛṣṇa soltou Kāliya, que aos poucos recuperou seus poderes sensoriais e vitais. A seguir, Kāliya, com a voz aflita, reconheceu a ofensa que cometera e, por fim, ofereceu a Kṛṣṇa muitas orações e disse que estava pronto a aceitar Sua ordem. Kṛṣṇa mandou-o deixar o lago Yamunā e voltar com sua família à ilha Ramaṇaka.

Texto

śrī-śuka uvāca
vilokya dūṣitāṁ kṛṣṇāṁ
kṛṣṇaḥ kṛṣṇāhinā vibhuḥ
tasyā viśuddhim anvicchan
sarpaṁ tam udavāsayat

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; vilokya — vendo; dūṣitām — contaminado; kṛṣṇām — o rio Yamunā; kṛṣṇaḥ — o Senhor Śrī Kṛṣṇa; kṛṣṇa-ahinā — pela serpente negra; vibhuḥ — o Senhor onipotente; tasyāḥ — do rio; viśuddhim — a purificação; anvicchan — desejando; sarpam — serpente; tam — aquela; udavāsayat — mandou embora.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī disse: O Senhor Śrī Kṛṣṇa, a Suprema Per­sonalidade de Deus, vendo que o rio Yamunā fora contaminado pela serpente negra, Kāliya, desejou purificar o rio, em virtude do que o Senhor baniu Kāliya de lá.

Texto

śrī-rājovāca
katham antar-jale ’gādhe
nyagṛhṇād bhagavān ahim
sa vai bahu-yugāvāsaṁ
yathāsīd vipra kathyatām

Sinônimos

śrī-rājā uvāca — o rei Parīkṣit disse; katham — como; antaḥ-jale — dentro da água; agādhe — impenetrável; nyagṛhṇāt — subjugou; bha­gavān — a Suprema Personalidade de Deus; ahim — a serpente; saḥ — ele, Kāliya; vai — de fato; bahu-yuga — por muitas eras; āvāsam — tendo residência; yathā — como; āsīt — aconteceu; vipra — ó brāhma­ṇa erudito; kathyatām — por favor, explica.

Tradução

O rei Parīkṣit indagou: Ó sábio erudito, explica, por favor, como a Suprema Personalidade de Deus castigou a serpente Kāliya dentro das impenetráveis águas do Yamunā e como Kāliya viveu ali por tantas eras.

Texto

brahman bhagavatas tasya
bhūmnaḥ svacchanda-vartinaḥ
gopālodāra-caritaṁ
kas tṛpyetāmṛtaṁ juṣan

Sinônimos

brahman — ó brāhmaṇa; bhagavataḥ — do Senhor Supremo; tasya — dEle; bhūmnaḥ — o ilimitado; sva-chanda-vartinaḥ — que age segundo Seus próprios desejos; gopāla — como um vaqueirinho; udāra — magnânimos; caritam — os passatempos; kaḥ — quem; tṛpyeta — pode saciar-se; amṛtam — tal néctar; juṣan — partilhando de.

Tradução

Ó brāhmaṇa, a ilimitada Suprema Personalidade de Deus é livre para agir segundo Seus próprios desejos. Quem poderia saciar-se de ouvir o néctar dos magnânimos passatempos que Ele executou como um vaqueirinho em Vṛndāvana?

Texto

śrī-śuka uvāca
kālindyāṁ kāliyasyāsīd
hradaḥ kaścid viṣāgninā
śrapyamāṇa-payā yasmin
patanty upari-gāḥ khagāḥ

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; kālindyām — dentro do rio Yamunā; kāliyasya — da serpente Kāliya; āsīt — havia; hradaḥ — lago; kaścit — certo; viṣa — de seu veneno; agninā — pelo fogo; śrapyamāṇa — que aquecia e fervia; payāḥ — sua água; yasmin — dentro da qual; patanti — caíam; upari-gāḥ — que passavam por cima; kha­gāḥ — as aves.

Tradução

Śrī Śukadeva Gosvāmī disse: Dentro do rio Kālindī [Yamunā], havia um lago habitado pela serpente Kāliya, cujo veneno abrasador constantemente aquecia e fervia suas águas. De fato, os vapores assim criados eram tão venenosos que as aves que voavam sobre o lago contaminado caíam dentro dele.

Comentário

SIGNIFICADOA esse respeito, os ācāryas explicam que o lago de Kāliya estava si­tuado à parte da corrente principal do rio; caso contrário, as águas do Yamunā teriam ficado venenosas até mesmo em cidades como Mathurā e em outros lugares mais distantes.

Texto

vipruṣmatā viṣadormi-
mārutenābhimarśitāḥ
mriyante tīra-gā yasya
prāṇinaḥ sthira-jaṅgamāḥ

Sinônimos

vipruṭ-matā — o qual continha gotículas de água; viṣa-da — venenosas; ūrmi — (tendo tocado) as ondas; mārutena — pelo vento; abhi­marśitāḥ — contatadas; mriyante — morriam; tīra-gāḥ — presentes na margem; yasya — do qual; prāṇinaḥ — todas as entidades vivas; sthira-­jaṅgamāḥ — tanto as inertes quanto as móveis.

Tradução

O vento que soprava sobre aquele lago mortífero levava gotí­culas de água para a margem. Pelo simples contato com aquela brisa venenosa, toda a vegetação e criaturas da orla morriam.

Comentário

SIGNIFICADOA palavra sthira, “criaturas inertes”, refere-se a várias espécies de vegetação, incluindo as árvores, e jaṅgama refere-se às criatu­ras móveis, tais como bestas, répteis, aves e insetos. Śrīla Śrīdhara Svāmī citou outra descrição desse lago tirada do Śrī Hari-vaṁśa (Viṣṇu-parva 11.42, 44 e 46):

dīrghaṁ yojana-vistāraṁ
dustaraṁ tridaśair api
gambhīram akṣobhya-jalaṁ
niṣkampam iva sāgaram
duḥkhopasarpaṁ tīreṣu
sa-sarpair vipulair bilaiḥ
viṣāraṇi-bhavasyāgner
dhūmena pariveṣṭitam
tṛṇeṣv api patatsv apsu
jvalantam iva tejasā
samantād yojanaṁ sāgraṁ
tīreṣv api durāsadam

“O lago era bem grande – treze quilômetros de um lado a outro em alguns pontos – e nem mesmo os semideuses podiam atravessá-lo. A água do lago era muito profunda e, como as profundezas inalterá­veis do oceano, não podia ser agitada. Era difícil aproximar-se do lago, pois suas margens tinham muitos buracos, onde viviam serpen­tes. Por toda parte do lago, havia uma neblina gerada pelo fogo do veneno das serpentes; esse fogo poderoso queimava de imediato toda folha de relva que por acaso caísse na água. Até a distância de treze quilômetros do lago, a atmosfera era muito desagradável.”

Śrīla Sanātana Gosvāmī afirma que, por meio da ciência mística de jala-stambha, criar objetos sólidos a partir da água, Kāliya construíra sua própria cidade dentro do lago.

Texto

taṁ caṇḍa-vega-viṣa-vīryam avekṣya tena
duṣṭāṁ nadīṁ ca khala-saṁyamanāvatāraḥ
kṛṣṇaḥ kadambam adhiruhya tato ’ti-tuṅgam
āsphoṭya gāḍha-raśano nyapatad viṣode

Sinônimos

tam — a ele, Kāliya; caṇḍa-vega — de poder medonho; viṣa — o veneno; vīryam — cuja força; avekṣya — vendo; tena — por ele; duṣṭām — contaminado; nadīm — o rio; ca — e; khala — os demônios invejosos; saṁyamana — para subjugar; avatāraḥ — cujo advento do mundo espiritual; kṛṣṇaḥ — o Senhor Kṛṣṇa; kadambam — uma árvore kadamba; adhiruhya — subindo em; tataḥ — dela; ati-tuṅgam — muito alta; āsphoṭya — batendo com a palma da mão nos braços; gāḍha-raśanaḥ — amarrando firmemente Seu cinturão; nyapatat — saltou; viṣa-ude — na água envenenada.

Tradução

O Senhor Kṛṣṇa viu a poluição que a serpente Kāliya criara no rio Yamunā com seu poderosíssimo veneno. Visto que desce­ra do mundo espiritual especificamente para subjugar demônios invejosos, o Senhor Kṛṣṇa subiu sem demora ao topo de uma altíssima árvore kadamba e preparou-Se para o combate. Apertou o cinto, bateu com a palma da mão nos braços e, então, saltou na água envenenada.

Comentário

SIGNIFICADOSegundo os ācāryas, enquanto Se preparava para lutar com Kāliya, o Senhor Kṛṣṇa também prendeu para trás Seus cachos de cabelo.

Texto

sarpa-hradaḥ puruṣa-sāra-nipāta-vega-
saṅkṣobhitoraga-viṣocchvasitāmbu-rāśiḥ
paryak pluto viṣa-kaṣāya-bibhīṣaṇormir
dhāvan dhanuḥ-śatam ananta-balasya kiṁ tat

Sinônimos

sarpa-hradaḥ — o lago da serpente; puruṣa-sāra — da elevadíssima Suprema Personalidade de Deus; nipāta-vega — pela força da queda; saṅkṣobhita — completamente agitadas; uraga — das cobras; viṣa­ucchvasita — expirado com o veneno; ambu-rāśiḥ — em toda a água dele; paryak — por todos os lados; plutaḥ — inundando; viṣa-kaṣāya — por causa da contaminação do veneno; bibhīṣaṇa — medonhas; ūrmiḥ — cujas ondas; dhāvan — fluindo; dhanuḥ-śatam — a distância de cem arcos; ananta-balasya — para aquele cuja força é incomensurável; kim — o que; tat — isto.

Tradução

Quando a Suprema Personalidade de Deus caiu no lago da serpente, as cobras dali ficaram agitadíssimas e começaram a respi­rar pesadamente, poluindo-o ainda mais com volumosa quantidade de veneno. A força da queda do Senhor dentro do lago fez com que este transbordasse por todos os lados, e medonhas ondas ve­nenosas inundaram as terras circunjacentes até a distância de cem arcos. Contudo, isso não é nada espantoso, pois o Senhor Su­premo possui força infinita.

Texto

tasya hrade viharato bhuja-daṇḍa-ghūrṇa-
vār-ghoṣam aṅga vara-vāraṇa-vikramasya
āśrutya tat sva-sadanābhibhavaṁ nirīkṣya
cakṣuḥ-śravāḥ samasarat tad amṛṣyamāṇaḥ

Sinônimos

tasya — dEle; hrade — em seu lago; viharataḥ — que estava brincan­do; bhuja-daṇḍa — por Seus poderosos braços; ghūrṇa — revoluteada; vāḥ — da água; ghoṣam — o ressoar; aṅga — meu querido rei; vara­-vāraṇa — como um grande elefante; vikramasya — cuja proeza; āśru­tya — ouvindo; tat — isto; sva-sadana — de sua residência; abhibha­vam — a invasão; nirīkṣya — dando-Se conta de; cakṣuḥ-śravāḥ — Kāliya; samasarat — veio adiante; tat — isto; amṛṣyamāṇaḥ — sendo incapaz de tolerar.

Tradução

Kṛṣṇa começou a Se divertir no lago de Kāliya como um gran­dioso elefante – girando Seus poderosos braços e fazendo a água ressoar de várias maneiras. Ao ouvir esses sons, Kāliya entendeu que alguém estava invadindo seu lago. Sem poder tolerar essa invasão, a serpente logo apareceu.

Comentário

SIGNIFICADOSegundo os ācāryas, o Senhor Kṛṣṇa produzia maravilhosos sons musicais na água mediante o simples bater de Suas mãos e braços.

Texto

taṁ prekṣaṇīya-sukumāra-ghanāvadātaṁ
śrīvatsa-pīta-vasanaṁ smita-sundarāsyam
krīḍantam apratibhayaṁ kamalodarāṅghriṁ
sandaśya marmasu ruṣā bhujayā cachāda

Sinônimos

tam — a Ele; prekṣaṇīya — atrativo de olhar; su-kumāra — muito delicado; ghana — como uma nuvem; avadātam — branca resplandecente; śrīvatsa — usando a marca de Śrīvatsa; pīta — e amarelas; vasanam — roupas; smita — sorridente; sundara — belo; āsyam — cujo rosto; krīḍantam — que brincava; aprati-bhayam — sem medo de outros; kamala — de um lótus; udara — como o interior; aṅghrim — cujos pés; sanda­śya — picando; marmasu — o peito; ruṣā — com ira; bhujayā — com seus anéis de cobra; cachāda — envolveu.

Tradução

Kāliya viu que Śrī Kṛṣṇa, trajado em roupas de seda amarela, era muito delicado, Seu corpo atrativo brilhava como uma nuvem branca resplandecente, Seu peito trazia a marca de Śrīvatsa, Seu rosto mostrava um belo sorriso, e Seus pés assemelhavam-se ao verticilo de uma flor de lótus. O Senhor brincava destemida­mente na água. Apesar de Sua maravilhosa aparência, o invejoso Kāliya, cheio de ira, mordeu-Lhe o peito e depois envolveu-O por completo em seus anéis.

Texto

taṁ nāga-bhoga-parivītam adṛṣṭa-ceṣṭam
ālokya tat-priya-sakhāḥ paśupā bhṛśārtāḥ
kṛṣṇe ’rpitātma-suhṛd-artha-kalatra-kāmā
duḥkhānuśoka-bhaya-mūḍha-dhiyo nipetuḥ

Sinônimos

tam — a Ele; nāga — da serpente; bhoga — dentro dos anéis; parivī­tam — envolvido; adṛṣṭa-ceṣṭam — sem exibir movimento algum; ālo­kya — vendo; tat-priya-sakhāḥ — Seus amigos queridos; paśu-pāḥ — os vaqueiros; bhṛśa-ārtāḥ — muito perturbados; kṛṣṇe — ao Senhor Kṛṣṇa; arpita — oferecidos; ātma — o próprio eu deles; su-hṛt — seus parentes; artha — riqueza; kalatra — esposas; kāmāḥ — e todos os objetos desejáveis; duḥkha — por dor; anuśoka — remorso; bhaya — e medo; ha — confundida; dhiyaḥ — sua inteligência; nipetuḥ — caíram.

Tradução

Quando os membros da comunidade dos vaqueiros, que haviam aceitado Kṛṣṇa como seu mais querido amigo, viram-nO envol­vido nos anéis da serpente, imobilizado, ficaram muito pertur­bados. Eles tinham oferecido tudo a Kṛṣṇa – seu próprio eu, suas famílias, sua riqueza, esposas e todos os prazeres. Ao verem o Senhor nas garras da serpente Kāliya, sua inteligência ficou transtornada devido ao pesar, lamentação e medo, de modo que caíram ao chão.

Comentário

SIGNIFICADOŚrīla Sanātana Gosvāmī explica que os vaqueirinhos, junto com alguns vaqueiros e lavradores que porventura se encontravam nas proximidades e também eram devotos de Kṛṣṇa, caíram ao chão como árvores cortadas pela raiz.

Texto

gāvo vṛṣā vatsataryaḥ
krandamānāḥ su-duḥkhitāḥ
kṛṣṇe nyastekṣaṇā bhītā
rudantya iva tasthire

Sinônimos

gāvaḥ — as vacas; vṛṣāḥ — os touros; vatsataryaḥ — as novilhas; krandamānāḥ — berrando alto; su-duḥkhitāḥ — muito aflitos; kṛṣṇe — sobre o Senhor Kṛṣṇa; nyasta — fixaram; īkṣaṇāḥ — seus olhares; bhī­tāḥ — temerosos; rudantyaḥ — chorando; iva — como que: tasthire — estivessem imóveis.

Tradução

Em grande aflição, as vacas, touros e novilhas chamavam chorosamente por Kṛṣṇa. Fixando os olhos nEle, ficaram imóveis e amedrontados, como se prontos para chorar, mas chocados demais para derramar lágrimas.

Texto

atha vraje mahotpātās
tri-vidhā hy ati-dāruṇāḥ
utpetur bhuvi divy ātmany
āsanna-bhaya-śaṁsinaḥ

Sinônimos

atha — então; vraje — em Vṛndāvana; mahā-utpātāḥ — perturbações muito agourentas; tri-vidhāḥ — das três variedades; hi — de fato; ati­-dāruṇāḥ — muito assustadoras; utpetuḥ — surgiram; bhuvi — sobre a terra; divi — no céu; ātmani — nos corpos das criaturas vivas; āsanna — iminente; bhaya — perigo; saṁśinaḥ — anunciando.

Tradução

Na área de Vṛndāvana, apareceram então todas as três classes de presságios assustadores – os presságios na terra, no céu e nos corpos das criaturas vivas – anunciando um perigo imi­nente.

Comentário

SIGNIFICADODe acordo com Śrīla Śrīdhara Svāmī, os presságios eram os se­guintes: Na terra, havia tremores perturbadores; no céu, havia meteoros cadentes, e nos corpos das criaturas, havia arrepios, bem como palpi­tação do olho esquerdo e de outras partes do corpo. Esses presságios anunciam perigo iminente.

Texto

tān ālakṣya bhayodvignā
gopā nanda-purogamāḥ
vinā rāmeṇa gāḥ kṛṣṇaṁ
jñātvā cārayituṁ gatam
tair durnimittair nidhanaṁ
matvā prāptam atad-vidaḥ
tat-prāṇās tan-manaskās te
duḥkha-śoka-bhayāturāḥ
ā-bāla-vṛddha-vanitāḥ
sarve ’ṅga paśu-vṛttayaḥ
nirjagmur gokulād dīnāḥ
kṛṣṇa-darśana-lālasāḥ

Sinônimos

tān — estes sinais; ālakṣya — vendo; bhaya-udvignāḥ — agitados pelo medo; gopāḥ — os vaqueiros; nanda-puraḥ-gamāḥ — encabeçados por Nanda Mahārāja; vinā — sem; rāmeṇa — Balarāma; gāḥ — as vacas; kṛṣṇam — Kṛṣṇa; jñātvā — compreendendo; cārayitum — pastorear; gatam — ido; taiḥ — daqueles; durnimittaiḥ — maus agouros; nidha­nam — destruição; matvā — considerando; prāptam — atingido; atat­-vidaḥ — desconhecendo Suas opulências; tat-prāṇāḥ — tendo a Ele como sua própria fonte de vida; tat-manaskāḥ — suas mentes estan­do absortas nEle; te — eles; duḥkha — pela dor; śoka — infelicidade; bhaya — e medo; āturāḥ — oprimidos; ā-bāla — incluindo as crianças; vṛddha — pessoas idosas; vanitāḥ — e senhoras; sarve — todos; aṅga — meu querido rei Parīkṣit; paśu-vṛttayaḥ — comportando-se como uma vaca afetuosa com seu bezerro; nirjagmuḥ — saíram; gokulāt — de Go­kula; dīnāḥ — sentindo-se desditosos; kṛṣṇa-darśana — pela visão do Senhor Kṛṣṇa; lālasāḥ — ansiosos.

Tradução

Ao verem os inauspiciosos presságios, Nanda Mahārāja e os outros vaqueiros ficaram assustados, pois sabiam que, naquele dia, Kṛṣṇa fora apascentar as vacas sem Seu irmão mais velho, Balarāma. Porque haviam dedicado suas mentes a Kṛṣṇa, aceitando-O como sua própria vida, eles desconheciam Seu magnífico poder e opulência. Então, concluindo que os presságios inauspi­ciosos indicavam que Ele encontrara a morte, ficaram oprimidos pelo pesar, lamentação e temor. Todos os habitantes de Vṛndāvana, incluindo as crianças, mulheres e anciãos, pensavam em Kṛṣṇa como uma vaca pensa em seu bezerrinho indefeso, daí aquelas pobres pessoas aflitas terem corrido para fora da vila com a intenção de encontrá-lO.

Texto

tāṁs tathā kātarān vīkṣya
bhagavān mādhavo balaḥ
prahasya kiñcin novāca
prabhāva-jño ’nujasya saḥ

Sinônimos

tān — a eles; tathā — em tal condição; kātarān — aflitos; vīkṣya — vendo; bhagavān — a Suprema Personalidade de Deus; mādhavaḥ — o mestre de todo o conhecimento místico; balaḥ — o Senhor Balarāma; prahasya — sorrindo gentilmente; kiñcit — absolutamente nada; na — não; uvāca — disse; prabhāva-jñaḥ — conhecendo o poder; anu­jasya — de Seu irmão mais novo; saḥ — Ele.

Tradução

O Supremo Senhor Balarāma, o mestre de todo o conheci­mento transcendental, ao ver os residentes de Vṛndāvana em tal aflição, sorriu, mas não disse nada, pois compreendia o poder ex­traordinário de Seu irmão mais novo.

Comentário

SIGNIFICADOŚrī Balarāma é a expansão plenária do Senhor Kṛṣṇa e, portanto, não é diferente dEle. Eles são, de fato, a mesma Verdade Absoluta manifesta em formas separadas. Segundo Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura, o Senhor Balarāma ria porque estava pensando: “Kṛṣṇa nunca Se interessa em brincar coMigo em Minha forma de Śeṣa Nāga, mas agora está brincando com essa serpente comum e munda­na chamada Kāliya.”

Talvez alguém levante a questão: Por que Kṛṣṇa e Balarāma permi­tiram que Seus amorosos devotos sofressem tamanha angústia duran­te o aprisionamento temporário de Kṛṣṇa dentro dos anéis de Kāliya? Devemos lembrar que os habitantes de Vṛndāvana, por serem almas completamente liberadas, não experimentavam emoções materiais. Quando viram seu amado Kṛṣṇa em aparente perigo, seu amor por Ele se intensificou ao mais alto grau, e assim eles mergulharam por completo em um êxtase de amor por Ele. Toda a situação deve ser vista de um ponto de vista espiritual, ou, em verdade, não se verá nada.

Texto

te ’nveṣamāṇā dayitaṁ
kṛṣṇaṁ sūcitayā padaiḥ
bhagaval-lakṣaṇair jagmuḥ
padavyā yamunā-taṭam

Sinônimos

te — eles; anveṣamāṇāḥ — procurando; dayitam — seu mais querido; kṛṣṇam — Kṛṣṇa; sūcitayā — (ao longo do caminho) que estava marcado; padaiḥ — pelas pegadas dEle; bhagavat-lakṣaṇaiḥ — as marcas simbólicas da Personalidade de Deus; jagmuḥ — foram; padavyā — seguindo o caminho; yamunā-taṭam — até a beira do Yamunā.

Tradução

Os residentes de Vṛndāvana precipitaram-se em direção às margens do Yamunā em busca de seu queridíssimo Kṛṣṇa, seguindo o caminho marcado por Suas pegadas, que tinham os sinais distintivos da Personalidade de Deus.

Texto

te tatra tatrābja-yavāṅkuśāśani-
dhvajopapannāni padāni viś-pateḥ
mārge gavām anya-padāntarāntare
nirīkṣamāṇā yayur aṅga satvarāḥ

Sinônimos

te — eles; tatra tatra — aqui e ali; abja — com a flor de lótus; yava — grão de cevada; aṅkuśa — aguilhão para tanger elefantes; aśani — raio; dhvaja — e bandeira; upapannāni — adornadas; padāni — as pe­gadas; viṭ-pateḥ — do Senhor Kṛṣṇa, o mestre da comunidade pas­toril; mārge — sobre o caminho; gavām — das vacas; anya-pada — as outras pegadas; antara-antare — dispersas entre; nirīkṣamāṇāḥ — vendo; yuyuḥ — foram; aṅga — meu querido rei; sa-tvarāḥ — rapidamente.

Tradução

As pegadas do Senhor Kṛṣṇa, o mestre de toda a comunidade pastoril, tinham as marcas da flor de lótus, do grão de cevada, do aguilhão para tanger elefantes, do raio e da bandeira. Meu querido rei Parīkṣit, ao verem Suas pegadas no caminho junto com as marcas dos cascos das vacas, os residentes de Vṛndāvana puseram-se a correr a toda a velocidade.

Comentário

SIGNIFICADOŚrīla Sanātana Gosvāmī faz o seguinte comentário: “Visto que o Senhor Kṛṣṇa passara pelo caminho já havia algum tempo, por que Suas pegadas, que estavam rodeadas pelas pegadas das vacas, dos vaqueirinhos etc., não se apagaram nem desapareceram? Por que Suas pega­das não tinham sido cobertas por aquelas das bestas e aves da floresta de Vṛndāvana? Indica-se a resposta através da palavra viś-pati, que significa “mestre da comunidade pastoril”. Já que o Senhor Kṛṣṇa é de fato a riqueza de todos os seres vivos, todos os habitantes da floresta de Vraja con­servavam cuidadosamente Suas pegadas como grandes tesouros, os verdadeiros ornamentos da terra. Logo, nenhuma criatura dentro de Vṛndāvana jamais pisava nas pegadas do Senhor Kṛṣṇa.

Texto

antar hrade bhujaga-bhoga-parītam ārāt
kṛṣṇaṁ nirīham upalabhya jalāśayānte
gopāṁś ca mūḍha-dhiṣaṇān paritaḥ paśūṁś ca
saṅkrandataḥ parama-kaśmalam āpur ārtāḥ

Sinônimos

antaḥ — dentro; hrade — do lago; bhujaga — da serpente; bhoga — dentro do corpo; parītam — envolvido; ārāt — de longe; kṛṣṇam — o Senhor Kṛṣṇa; nirīham — que não Se movia; upalabhya — vendo; jala-āśaya — da extensão de água; ante — dentro; gopān — os vaqueirinhos; ca — e; mūḍha-dhiṣaṇān — inconscientes; paritaḥ — rodean­do; paśūn — os animais; ca — e; saṅkrandataḥ — clamando; parama­-kaśmalam — a maior perplexidade; āpuḥ — experimentaram; ārtāḥ­ — estando aflitos.

Tradução

Enquanto corriam pelo caminho em direção à beira do rio Yamunā, viram de longe que Kṛṣṇa estava no lago, imobilizado nos anéis da serpente negra. Viram ainda que os meninos pastores estavam desmaiados e que os animais, postados por todos os lados, clamavam por Kṛṣṇa. Vendo tudo isso, os residentes de Vṛndāvana foram dominados pela angústia e desorientação.

Comentário

SIGNIFICADOEm sua aflição e pânico, os residentes de Vṛndāvana tentavam descobrir se Kāliya arrastara à força o jovem Kṛṣṇa da margem para dentro da água, ou se o próprio Kṛṣṇa havia saltado da margem e sido dominado pela serpente. Eles não conseguiam entender nada da situa­ção, nem os vaqueirinhos amigos de Kṛṣṇa, estando inconscientes, eram capazes de lhes dizer algo. As vacas e bezerros clamavam por Kṛṣṇa, de modo que toda a situação era aflitiva e criava um estado de choque e pânico entre os residentes de Vṛndāvana.

Texto

gopyo ’nurakta-manaso bhagavaty anante
tat-sauhṛda-smita-viloka-giraḥ smarantyaḥ
graste ’hinā priyatame bhṛśa-duḥkha-taptāḥ
śūnyaṁ priya-vyatihṛtaṁ dadṛśus tri-lokam

Sinônimos

gopyaḥ — as vaqueirinhas; anurakta-manasaḥ — suas mentes muito apegadas a Ele; bhagavati — a Suprema Personalidade de Deus; anan­te — o ilimitado; tat — Seu; sauhṛda — amável; smita — sorriso; vilo­ka — olhares; giraḥ — e palavras; smarantyaḥ — lembrando; graste — sendo agarrado; ahinā — pela serpente; priya-tame — seu mais queri­do; bhṛśa — extremamente; duḥkha — pela dor; taptāḥ — atormentadas; śūnyam — vazios; priya-vyatihṛtam — privados de seu amado; da­dṛśuḥ — viram; tri-lokam — todos os três mundos (o universo inteiro).

Tradução

Quando as jovens gopīs, cujas mentes estavam sempre apega­das a Kṛṣṇa, o ilimitado Senhor Supremo, viram que Ele estava agora em poder da serpente, lembraram-se de Sua amorosa ami­zade, Seus olhares sorridentes e Suas conversas. Queimando devido ao grande sofrimento, viram o universo inteiro como se fosse vazio.

Texto

tāḥ kṛṣṇa-mātaram apatyam anupraviṣṭāṁ
tulya-vyathāḥ samanugṛhya śucaḥ sravantyaḥ
tās tā vraja-priya-kathāḥ kathayantya āsan
kṛṣṇānane ’rpita-dṛśo mṛtaka-pratīkāḥ

Sinônimos

tāḥ — aquelas senhoras; kṛṣṇa-mātaram — a mãe de Kṛṣṇa (Yaśodā); apatyam — sobre seu filho; anupraviṣṭām — fixando a visão; tulya — igualmente; vyathāḥ — sofrendo; samanugṛhya — retendo com firmeza; śucaḥ — enchentes de sofrimento; sravantyaḥ — derramando; tāḥ tāḥ — cada uma delas; vraja-priya — do amado de Vraja; kathāḥ — assuntos; kathayantyaḥ — falando; āsan — postaram-se; kṛṣṇa-ānane — à face do Senhor Kṛṣṇa; arpita — oferecidos; dṛśaḥ — seus olhos; mṛta­ka — cadáveres; pratīkāḥ — semelhantes a.

Tradução

Embora as gopīs mais velhas sofressem tanto quanto ela e derramassem uma enchente de lágrimas de dor, elas tinham de se esforçar para impedir a mãe de Kṛṣṇa de ir ao encontro dEle. A consciência de Yaśodā estava cem por cento absorta em seu filho. Postadas como cadáveres, com os olhos fixos em Seu rosto, essas gopīs se revezavam em narrar os passatempos do amado de Vraja.

Texto

kṛṣṇa-prāṇān nirviśato
nandādīn vīkṣya taṁ hradam
pratyaṣedhat sa bhagavān
rāmaḥ kṛṣṇānubhāva-vit

Sinônimos

kṛṣṇa-prāṇān — os homens cuja própria vida e alma era Kṛṣṇa; nirviśataḥ — entrando; nanda-ādīn — chefiados por Nanda Mahārāja; vīkṣya — vendo; tam — naquele; hradam — lago; pratyaṣedhat — proibiu; saḥ — Ele; bhagavān — o Senhor onipotente; rāmaḥ — Balarāma; kṛṣṇa — do Senhor Kṛṣṇa; anubhāva — o poder; vit — conhecendo bem.

Tradução

O Senhor Balarāma viu, então, que Nanda Mahārāja e os outros vaqueiros, que haviam dedicado suas próprias vidas a Kṛṣṇa, pre­paravam-se para entrar no lago da serpente. Visto ser a Supre­ma Personalidade de Deus, o Senhor Balarāma conhecia muito bem o poder verdadeiro do Senhor Kṛṣṇa e, por isso, deteve os vaqueiros.

Comentário

SIGNIFICADOŚrīla Sanātana Gosvāmī explica que o Senhor Balarāma conteve alguns dos vaqueiros mediante Suas palavras, conteve outros mediante Sua força física, e ainda outros Ele conteve mediante Seu poderoso olhar sorridente. Perturbados com a situação, preparavam-se para dar suas vidas pelo Senhor Kṛṣṇa entrando no lago da serpente.

Texto

ittham sva-gokulam ananya-gatiṁ nirīkṣya
sa-strī-kumāram ati-duḥkhitam ātma-hetoḥ
ājñāya martya-padavīm anuvartamānaḥ
sthitvā muhūrtam udatiṣṭhad uraṅga-bandhāt

Sinônimos

ittham — dessa maneira; sva-gokulam — Sua própria comunidade de Gokula; ananya-gatim — não tendo outra meta ou abrigo (além dEle); nirīkṣya — observando; sa-strī — incluindo as mulheres; kumāram — e crianças; ati-duḥkhitam — extremamente aflitos; ātma-hetoḥ — por causa dEle; ājñāya — compreendendo; martya-padavīm — o caminho dos mortais; anuvartamānaḥ — imitando; sthitvā — permanecendo; muhūrtam — por algum tempo; udatiṣṭhat — levantou-Se; uraṅga — da ser­pente; bandhāt — dos laços.

Tradução

O Senhor permaneceu algum tempo dentro dos anéis da serpente, imitando o comportamento de um mortal qualquer. Todavia, ao compreender que as mulheres, crianças e outros morado­res de Sua vila de Gokula sofriam intensamente por causa de seu amor por Ele, que era seu único abrigo e meta na vida, Ele Se ergueu de imediato das garras da serpente Kāliya.

Texto

tat-prathyamāna-vapuṣā vyathitātma-bhogas
tyaktvonnamayya kupitaḥ sva-phaṇān bhujaṅgaḥ
tasthau śvasañ chvasana-randhra-viṣāmbarīṣa-
stabdhekṣaṇolmuka-mukho harim īkṣamāṇaḥ

Sinônimos

tat — dEle, o Senhor Kṛṣṇa; prathyamāna — que Se expandia; va­puṣā — pelo corpo transcendental; vyathita — atormentado; ātma — seu próprio; bhogaḥ — o corpo da serpente; tyaktvā — soltando-O; unna­mayya — erguendo alto; kupitaḥ — irado; sva-phaṇān — seus capelos; bhujaṅga — a serpente; tasthau — ficou quieta; śvasan — respirando pesadamente; śvasana-randhra — suas narinas; viṣa-ambarīṣa — como dois recipientes para cozinhar veneno; stabdha — fixos; īkṣaṇa — seus olhos; ulmuka — como tições; mukhaḥ — seu rosto; harim — a Suprema Personalidade de Deus; īkṣamāṇaḥ — observando.

Tradução

Com seus anéis atormentados devido à expansão do corpo do Senhor, Kāliya soltou-O. Então, com grande ira, a serpente ergueu bem alto seus capelos e ficou parada, respirando pesadamente. Suas narinas pareciam recipientes para cozinhar veneno, e seus olhos arregalados pareciam tições. Era dessa maneira que a serpente olhava para o Senhor.

Texto

taṁ jihvayā dvi-śikhayā parilelihānaṁ
dve sṛkvaṇī hy ati-karāla-viṣāgni-dṛṣṭim
krīḍann amuṁ parisasāra yathā khagendro
babhrāma so ’py avasaraṁ prasamīkṣamāṇaḥ

Sinônimos

tam — ele, Kāliya; jihvayā — com a língua; dvi-śikhayā — de duas pontas; parilelihānam — lambendo repetidas vezes; dve — seus dois; sṛkvaṇī — lábios; hi — de fato; ati-karāla — terribilíssimo; viṣa-agni — cheio de fogo venenoso; dṛṣṭim — cujo olhar; krīḍan — brincando; amum — dele; parisasāra — movia-se ao redor; yathā — assim como; khaga-indraḥ — o rei das aves, Garuḍa; babhrāma — girava ao redor; saḥ — Kāliya; api — também; avasaram — a oportunidade (para atacar); prasamīkṣamāṇaḥ — procurando com cuidado.

Tradução

Repetidas vezes, Kāliya lambia os lábios com suas línguas bi­furcadas enquanto fitava Kṛṣṇa com um olhar cheio de um fogo terrível e venenoso. Mas Kṛṣṇa travessamente o rodeava, assim como Garuḍa brinca com uma serpente. Em resposta, Kāliya também se movia ao redor, à procura de uma oportunidade para morder o Senhor.

Comentário

SIGNIFICADOO Senhor Kṛṣṇa movia-Se ao redor da serpente com tanta destreza que Kāliya não conseguia encontrar uma oportunidade para abocanhá-lO. Assim, com Sua agilidade transcendental, Śrī Kṛṣṇa derrotou a serpente.

Texto

evaṁ paribhrama-hataujasam unnatāṁsam
ānamya tat-pṛthu-śiraḥsv adhirūḍha ādyaḥ
tan-mūrdha-ratna-nikara-sparśāti-tāmra-
pādāmbujo ’khila-kalādi-gurur nanarta

Sinônimos

evam — desta maneira; paribhrama — por causa do movimento do Senhor ao redor dele; hata — esgotada; ojasam — cuja força; unna­ta — erguidos bem alto; aṁsam — cujos ombros; ānamya — fazendo-o curvar-se; tat — dele; pṛthu-śiraḥsu — sobre as cabeças largas; adhirū­ḍhaḥ — tendo subido; ādyaḥ — a origem última de tudo; tat — suas; mūrdha — nas cabeças; ratna-nikara — as numerosas joias; sparśa — por tocar; ati-tāmra — muito avermelhados; pāda-ambujaḥ — cujos pés de lótus; akhila-kalā — de todas as artes; ādi-guruḥ — o mestre espiri­tual original; nanarta — começou a dançar.

Tradução

Tendo esgotado severamente a força da serpente com Seu giro implacável, Śrī Kṛṣṇa, a origem de tudo, empurrou para baixo os ombros erguidos de Kāliya e subiu em suas largas cabeças serpentinas. Então, com Seus pés de lótus muito avermelhados por tocar as numerosas joias sobre as cabeças da serpente, o Senhor Śrī Kṛṣṇa, o mestre original de todas as belas artes, começou a dançar.

Comentário

SIGNIFICADOAfirma-se no Śrī Hari-vaṁśa que śiraḥ sa kṛṣṇo jagrāha sva-hastenāvanamya: “Kṛṣṇa agarrou com a mão a cabeça de Kāliya e forçou-a a curvar-se.” Muita gente neste mundo reluta em se curvar diante da Pessoa Suprema, a Verdade Absoluta. No estado contami­nado chamado consciência material, nós, almas condicionadas, fica­mos orgulhosos de nossa posição insignificante e, por isso, relutamos em curvar a cabeça diante do Senhor. Contudo, exatamente como o Senhor Kṛṣṇa forçou Kāliya a baixar suas cabeças e assim o derro­tou, a energia do Senhor Supremo sob a forma do tempo irresistível mata todas as almas condicionadas e, dessa maneira, força-as a curvarem suas arrogantes cabeças. Devemos, portanto, abandonar a posição artificial da vida material e tornarmo-nos fiéis servos do Senhor Su­premo, prostrando-nos com entusiasmo a Seus pés de lótus.

Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura explica que os pés de lótus do Senhor Kṛṣṇa ficaram vermelhos como o cobre por causa do con­tato com as numerosas joias sobre as cabeças de Kāliya. O Senhor Kṛṣṇa, com esses reluzentes pés avermelhados, começou então a de­monstrar Sua habilidade artística dançando sobre a superfície instável e móvel dos capelos da serpente. Essa extraordinária demonstração da habilidade de dançar visava ao prazer das jovens de Vṛndāvana, que, nesta fase de seu relacionamento com Kṛṣṇa, estavam seriamente se apaixonando por Ele.

Texto

taṁ nartum udyatam avekṣya tadā tadīya-
gandharva-siddha-muni-cāraṇa-deva-vadhvaḥ
prītyā mṛdaṅga-paṇavānaka-vādya-gīta-
puṣpopahāra-nutibhiḥ sahasopaseduḥ

Sinônimos

tam — Lhe; nartum — em dançar; udyatam — ocupado; avekṣya — prestando atenção em; tadā — então; tadīya — Seus servos; gandharva­-siddha — os Gandharvas e Siddhas; muni-cāraṇa — os sábios e os Cāraṇas; deva-vadhvaḥ — as esposas dos semideuses; prītyā — com grande prazer; mṛdaṅga-paṇava-ānaka — de várias espécies de tambores; vādya — com acompanhamento musical; gīta — canto; puṣpa — flores; upahāra — outras apresentações; nutibhiḥ — e orações; saha­sā — de imediato; upaseduḥ — chegaram.

Tradução

Ao verem a dança do Senhor, Seus servos nos planetas celes­tiais – os Gandharvas, os Siddhas, os sábios, os Cāraṇas e as esposas dos semideuses – de imediato foram lá. Com grande prazer, eles começaram a acompanhar Sua dança, tocando tam­bores tais como mṛdaṅgas, paṇavas e ānakas e também a oferecer canções, flores e orações.

Comentário

SIGNIFICADOAo ficarem a par de que o Senhor Śrī Kṛṣṇa em pessoa estava apresentando uma demonstração maravilhosa da arte de dançar, os semideuses e outros residentes dos sistemas planetários superiores vieram sem demora oferecer seus serviços. A dança fica mais agra­dável e bela de observar quando acompanhada por habilidoso toque de tambor, cantos e recitação de orações. A atmosfera artística in­tensificava-se ainda mais com a chuva exuberante de flores sobre o Senhor Śrī Kṛṣṇa, que, com muita bem-aventurança, dedicava-Se a dançar sobre os capelos da serpente Kāliya.

Texto

yad yac chiro na namate ’ṅga śataika-śīrṣṇas
tat tan mamarda khara-daṇḍa-dharo ’ṅghri-pātaiḥ
kṣīṇāyuṣo bhramata ulbaṇam āsyato ’sṛṅ
nasto vaman parama-kaśmalam āpa nāgaḥ

Sinônimos

yat yat — quaisquer que; śiraḥ — cabeças; na namate — não se curvavam; aṅga — meu querido rei Parīkṣit; śata-eka-śīrṣṇaḥ — do que tinha cento e uma cabeças; tat tat — aquelas; mamarda — pisava; khara — sobre aqueles que são maus; daṇḍa — castigo; dharaḥ — o Senhor que inflige; aṅghri-pātaiḥ — com os golpes de Seus pés; kṣīṇa-āyuṣaḥ — de Kāliya, cuja vida estava esgotando-se; bhramataḥ — que ainda se movia; ulbaṇam — medonho; āsyataḥ — de suas bocas; asṛk — sangue; nastaḥ — de suas narinas; vaman — vomitando; parama — extrema; kaśmalam — perturbação; āpa — experimentou; nāgaḥ — a serpente.

Tradução

Meu querido rei, Kāliya tinha cento e uma cabeças proeminentes, e quando uma delas não queria curvar-se, o Senhor Śrī Kṛṣṇa, que inflige punição aos malfeitores cruéis, esmagava aque­la cabeça obstinada atingindo-a com Seus pés. Então, quando se iniciaram as convulsões de sua morte, Kāliya começou a girar suas cabeças e a vomitar um sangue aterrador de suas bocas e nari­nas. Desse modo, a serpente experimentou dores e sofrimentos extremos.

Texto

tasyākṣibhir garalam udvamataḥ śiraḥsu
yad yat samunnamati niḥśvasato ruṣoccaiḥ
nṛtyan padānunamayan damayāṁ babhūva
puṣpaiḥ prapūjita iveha pumān purāṇaḥ

Sinônimos

tasya — dele; akṣibhiḥ — dos olhos; garalam — rejeito venenoso; udvamataḥ — que estava vomitando; śiraḥsu — entre as cabeças; yat yat — qualquer uma; samunnamati — que se erguia; niḥśvasataḥ — que estava respirando; ruṣā — por causa da ira; uccaiḥ — pesadamente; nṛtyan — enquanto dançava; padā — com Seu pé; anunamayan — fa­zendo curvar; damayām babhūva — Ele subjugava; puṣpaiḥ — com flores; prapūjitaḥ — sendo adorado; iva — de fato; iha — nesta ocasião; pumān — a Personalidade de Deus; purāṇaḥ — original.

Tradução

Deixando escorrer um refugo venenoso de seus olhos, Kāliya ocasionalmente ousava erguer uma de suas cabeças, que respira­va com muita dificuldade devido à ira. Então, o Senhor dançava sobre ela e a subjugava, forçando-a com Seu pé a curvar-se. Os semideuses aproveitavam cada uma destas exibições como uma oportunidade de adorar Kṛṣṇa, a original Personalidade de Deus, com chuvas de flores.

Texto

tac-citra-tāṇḍava-virugna-phaṇā-sahasro
raktaṁ mukhair uru vaman nṛpa bhagna-gātraḥ
smṛtvā carācara-guruṁ puruṣaṁ purāṇaṁ
nārāyaṇaṁ tam araṇaṁ manasā jagāma

Sinônimos

tat — dEle; citra — espantosa; tāṇḍava — pela poderosa dança; vi­rugna — quebrados; phaṇā-sahasraḥ — seus mil capelos; raktam — sangue; mukhaiḥ — de suas bocas; uru — em profusão; vaman — vomitando; nṛpa — ó rei Parīkṣit; bhagna-gātraḥ — seus membros esmagados; smṛtvā — lembrando-se; cara-acara — de todos os seres móveis e inertes; gurum — o mestre espiritual; puruṣam — a Personalidade de Deus; purāṇam — antigo; nārāyaṇam — o Senhor Nārāyaṇa; tam — dEle; araṇam — para abrigo; manasā — em sua mente; jagāma — apro­ximou-se.

Tradução

Meu querido rei Parīkṣit, a admirável e poderosa dança do Senhor Kṛṣṇa pisoteou e quebrou todos os mil capelos de Kāliya. Então a serpente, vomitando muito sangue de suas bocas, enfim reconheceu que Śrī Kṛṣṇa era a eterna Personalidade de Deus, o mestre supremo de todos os seres móveis e inertes, Śrī Nārāyaṇa. Desse modo, Kāliya refugiou-se no Senhor em sua mente.

Comentário

SIGNIFICADONo capítulo dezesseis de Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, Śrīla Prabhupāda salienta que antes Kāliya vomita­va veneno, mas agora seu veneno se esgotou e ele começou a vomitar sangue. Dessa maneira, ele se purificara da contaminação imunda de seu coração, a qual havia se manifestado como veneno de serpente. A palavra smṛtvā, “lembrando-se”, é muito significativa neste con­texto. As esposas de Kāliya eram de fato devotas sinceras do Senhor Kṛṣṇa e, segundo os ācāryas, elas muitas vezes haviam tentado con­vencer seu marido a render-se a Ele. Finalmente, encontrando-se em uma insuportável agonia, Kāliya lembrou-se do conselho de suas esposas e refugiou-se no Senhor. Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura explica que o arquirrival de Kāliya fora tradicionalmente Garuḍa, o transpor­tador de Viṣṇu. Mas agora Kāliya compreendeu que estava enfrentando um adversário milhares de vezes mais forte do que Garuḍa e que, portanto, Ele só poderia ser a Suprema Personalidade de Deus. Kāliya, por isso, abrigou-se no Senhor Kṛṣṇa.

Texto

kṛṣṇasya garbha-jagato ’ti-bharāvasannaṁ
pārṣṇi-prahāra-parirugna-phaṇātapatram
dṛṣṭvāhim ādyam upasedur amuṣya patnya
ārtāḥ ślathad-vasana-bhūṣaṇa-keśa-bandhāḥ

Sinônimos

kṛṣṇasya — do Senhor Kṛṣṇa; garbha — em cujo abdômen; jaga­taḥ — encontra-se o universo inteiro; ati-bhara — pelo peso extremo; avasannam — exausta; pārṣṇi — de Seus calcanhares; prahāra — pelo bater; parirugna — espancados; phaṇā — seus capelos; ātapatram — que eram como sombrinhas; dṛṣṭvā — vendo; ahim — a serpente; ādyam — o Senhor primordial; upaseduḥ — aproximaram-se; amuṣya — de Kāliya; patnyaḥ — as esposas; ārtāḥ — sentindo-se aflitas; ślathat — em desalinho; vasana — suas roupas; bhūṣaṇa — ornamentos; keśa-bandhāḥ — e os cachos de cabelos.

Tradução

Quando as esposas de Kāliya viram como a serpente ficara tão exausta devido ao peso excessivo do Senhor Kṛṣṇa, que transpor­ta o universo inteiro em Seu abdômen, e como os capelos de Kāliya em forma de sombrinha foram espancados pelo bater dos calcanhares de Kṛṣṇa, elas sentiram grande aflição. Com suas roupas, adornos e cabelo em desalinho, elas se aproximaram da eterna Personalidade de Deus.

Comentário

SIGNIFICADOSegundo Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura, as esposas de Kāliya tinham ficado desgostosas com seu marido por causa das atividades demoníacas dele. Elas pensaram: “Se este ateísta for morto pelo castigo da Suprema Personalidade de Deus, então que morra. Ficaremos viúvas e nos dedicaremos a adorar o Senhor Supremo.” Mas então as senhoras notaram a expressão facial e outras características corpóreas de Kāliya, e compreenderam que Kāliya, dentro de sua mente, de fato se refugiara no Senhor. Ao verem que ele manifesta­va sintomas de humildade, remorso, pesar e dúvida, elas pensaram: “Vede só como somos afortunadas! Nosso esposo agora se tornou um vaiṣṇava. Devemos, portanto, esforçar-nos por protegê-lo.” Elas sen­tiram afeição por seu marido arrependido e grande aflição por causa da posição dolorosa em que ele se encontrava, daí terem ido todas juntas à presença do Senhor Supremo.

Texto

tās taṁ su-vigna-manaso ’tha puraskṛtārbhāḥ
kāyaṁ nidhāya bhuvi bhūta-patiṁ praṇemuḥ
sādhvyaḥ kṛtāñjali-puṭāḥ śamalasya bhartur
mokṣepsavaḥ śaraṇa-daṁ śaraṇaṁ prapannāḥ

Sinônimos

tāḥ — elas, as esposas de Kāliya; tam — a Ele; su-vigna — agitadíssimas; manasaḥ — suas mentes; atha — então; puraḥ-kṛta — colocando à frente; arbhāḥ — seus filhos; kāyam — seus corpos; nidhāya — pon­do; bhuvi — sobre o chão; bhūta-patim — ao Senhor de todas as criaturas; praṇemuḥ — prostraram-se; sādhvyaḥ — as senhoras santas; kṛta-añjali­-puṭāḥ — de mãos postas em súplica; śamalasya — que era pecador; bhartuḥ — de seu marido; mokṣa — a liberação; īpsavaḥ — desejando; śaraṇa-dam — Ele que concede abrigo; śaraṇam — para obter abrigo; prapannāḥ — aproximaram-se.

Tradução

Com suas mentes muito perturbadas, aquelas senhoras santas puseram seus filhos diante delas e, então, prostraram-se ante o Senhor de todas as criaturas, estirando seus corpos no chão. Elas desejavam a liberação de seu marido pecador e o abrigo do Senhor Supremo, que concede o abrigo último, e assim, de mãos postas em súplica, aproximaram-se dEle.

Texto

nāga-patnya ūcuḥ
nyāyyo hi daṇḍaḥ kṛta-kilbiṣe ’smiṁs
tavāvatāraḥ khala-nigrahāya
ripoḥ sutānām api tulya-dṛṣṭir
dhatse damaṁ phalam evānuśaṁsan

Sinônimos

nāga-patnyaḥ ūcuḥ — as esposas da serpente disseram; nyāyyaḥ — justo e correto; hi — de fato; daṇḍaḥ — castigo; kṛta-kilbiṣe — a ele que cometeu ofensa; asmin — esta pessoa; tava — Vosso; avatāraḥ — advento neste mundo; khala — dos invejosos; nigrahāya — para a subjugação; ripoḥ — para um inimigo; sutānām — a Vossos próprios filhos; api — também; tulya-dṛṣṭiḥ — tendo visão equânime; dhatse — dais; damam — castigo; phalam — o resultado último; eva — de fato; anu­śaṁsan — considerando.

Tradução

As esposas da serpente Kāliya disseram: O castigo a que este ofensor foi submetido é certamente justo. Afinal, encarnastes neste mundo para subjugar os invejosos e cruéis. Sois tão im­parcial que julgais com equanimidade Vossos inimigos e Vossos próprios filhos, pois, quando impondes um castigo a um ser vivo, sabeis que é para o seu benefício último.

Texto

anugraho ’yaṁ bhavataḥ kṛto hi no
daṇḍo ’satāṁ te khalu kalmaṣāpahaḥ
yad dandaśūkatvam amuṣya dehinaḥ
krodho ’pi te ’nugraha eva sammataḥ

Sinônimos

anugrahaḥ — misericórdia; ayam — esta; bhavataḥ — por Vós; kṛtaḥ — feita; hi — de fato; naḥ — a nós; daṇḍaḥ — castigo; asatām — dos perversos; te — por Vós; khalu — de fato; kalmaṣa-apahaḥ — o dissipar da contaminação deles; yat — porque; dandaśūkatvam — a condição de aparecer como serpente; amuṣya — deste Kāliya; dehinaḥ — a alma condicionada; krodhaḥ — ira; api — mesma; te — Vossa; anugrahaḥ — como misericórdia; eva — de fato; sammataḥ — é aceita.

Tradução

O que fizestes aqui é, na verdade, um ato de misericórdia para conosco, pois o castigo que infligis aos perversos com certeza erradica toda a contaminação deles. De fato, porque esta alma condicionada, nosso marido, é tão pecador que chegou a assumir o corpo de uma serpente, Vossa ira para com ele obviamente deve ser vista como misericórdia.

Comentário

SIGNIFICADOŚrīla Madhvācārya assinala a este respeito que, quando alguém pie­doso sofre neste mundo, ele compreende: “O castigo que o Senhor Supremo está me infligindo é de fato Sua misericórdia imotivada.” Homens invejosos, todavia, mesmo após serem punidos pelo Senhor para sua própria purificação, continuam a invejá-lO e a ter ressenti­mento, e essa atitude é a razão de seu contínuo fracasso em com­preender a Verdade Absoluta.

Texto

tapaḥ sutaptaṁ kim anena pūrvaṁ
nirasta-mānena ca māna-dena
dharmo ’tha vā sarva-janānukampayā
yato bhavāṁs tuṣyati sarva-jīvaḥ

Sinônimos

tapaḥ — austeridade; su-taptam — bem executada; kim — o que; ane­na — por este Kāliya; pūrvam — em vidas anteriores; nirasta-mānena — estando livre de falso orgulho; ca — e; māna-dena — oferecendo respeito aos outros; dharmaḥ — dever religioso; atha vā — ou então; sarva­-jana — para todas as pessoas; anukampayā — com compaixão; yataḥ — pela qual; bhavān — Vós; tuṣyati — ficais satisfeito; sarva-jīvaḥ — a fonte da vida de todos os seres.

Tradução

Será que nosso marido executou austeridades aprimoradas em uma vida anterior, com sua mente livre de orgulho e plena de respeito pelos outros? É por isso que estais satisfeito com ele? Ou será que, em alguma existência anterior, ele, com compaixão por todos os seres vivos, executou esmeradamente os deveres religio­sos, e é por isso que Vós, a vida de todos os seres vivos, estais agora satisfeito com ele?

Comentário

SIGNIFICADOA esse respeito, Śrīla Prabhupāda comenta em sua obra Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, capítulo dezesseis: “As nāgapatnīs confirmam que ninguém pode entrar em contato com Kṛṣṇa sem ter executado atividades piedosas em serviço devocional em suas vidas anteriores. Como o Senhor Caitanya aconselhou em Seu Śikṣāṣṭaka, devemos prestar o serviço devocional cantando com humildade o mantra Hare Kṛṣṇa, considerando-nos mais baixos do que a palha na rua e não esperando honra pessoal, mas oferecendo toda sorte de honra aos outros. As nāgapatnīs ficaram espantadas com o fato de que, muito embora Kāliya tivesse o corpo de uma serpente como resultado de atividades pecaminosas graves, ela estava em contato com o Senhor a ponto de ter os pés de lótus do Senhor tocando seus capelos. Decerto esse não era o resultado comum de atividades piedosas. Esses dois fatos contraditórios as espantaram.”

Texto

kasyānubhāvo ’sya na deva vidmahe
tavāṅghri-reṇu-sparaśādhikāraḥ
yad-vāñchayā śrīr lalanācarat tapo
vihāya kāmān su-ciraṁ dhṛta-vratā

Sinônimos

kasya — do que; anubhāvaḥ — um resultado; asya — da serpente (Kāliya); na — não; deva — meu Senhor; vidmahe — sabemos; tava — Vossos; aṅghri — dos pés de lótus; reṇu — a poeira; sparaśa — para tocar; adhikāraḥ — qualificação; yat — de que; vāñchayā — com o desejo; śrīḥ — a deusa da fortuna; lalanā — (a mais elevada) mulher; ācarat — executou; tapaḥ — austeridade; vihāya — abandonando; kā­mān — todos os desejos; su-ciram — por um longo tempo; dhṛta — manti­do; vratā — seu voto.

Tradução

Ó Senhor, não sabemos como a serpente Kāliya logrou esta grande oportunidade de ser tocado pela poeira de Vossos pés de lótus. Com esse objetivo, a deusa da fortuna executou austerida­des por séculos, abandonando todos os outros desejos e fazendo votos austeros.

Texto

na nāka-pṛṣṭhaṁ na ca sārva-bhaumaṁ
na pārameṣṭhyaṁ na rasādhipatyam
na yoga-siddhīr apunar-bhavaṁ vā
vāñchanti yat-pāda-rajaḥ-prapannāḥ

Sinônimos

na — não; nāka-pṛṣṭham — céus; na ca — nem; sārva-bhaumam — suprema soberania; na — não; pārameṣṭhyam — a elevadíssima posi­ção de Brahmā; na — não; rasa-adhipatyam — domínio sobre a Terra; na — não; yoga-siddhīḥ — as perfeições da prática de yoga; apunaḥ­-bhavam — livrar-se dos renascimentos; — ou; vāñchanti — desejam; yat — cujos; pāda — dos pés de lótus; rajaḥ — a poeira; prapannāḥ — aqueles que alcançaram.

Tradução

Aqueles que conseguiram a poeira de Vossos pés de lótus ja­mais desejam a realeza celestial, soberania ilimitada, a posição de Brahmā ou domínio sobre a Terra. Eles não se interessam nem pelas perfeições do yoga, nem pela própria liberação.

Texto

tad eṣa nāthāpa durāpam anyais
tamo-janiḥ krodha-vaśo ’py ahīśaḥ
saṁsāra-cakre bhramataḥ śarīriṇo
yad-icchataḥ syād vibhavaḥ samakṣaḥ

Sinônimos

tat — aquilo; eṣaḥ — este Kāliya; nātha — ó Senhor; āpa — conseguiu; durāpam — difícil de conseguir; anyaiḥ — por outros; tamaḥ-janiḥ — que nasceu no modo da ignorância; krodha-vaśaḥ — que estava sob o domínio da ira; api — até mesmo; ahi-īśaḥ — o rei das serpentes; saṁsāra-cakre — dentro do ciclo da existência material; bhramataḥ — divagando; śarīriṇaḥ — para a entidade viva corporificada; yat — pela qual (poeira de Vossos pés de lótus); icchataḥ — quem tem desejos materiais; syāt — manifesta; vibhavaḥ — todas as opulências; samakṣaḥ — diante de seus olhos.

Tradução

Ó Senhor, embora tenha nascido no modo da ignorância e seja controlado pela ira, este Kāliya, o rei das serpentes, conseguiu o que outros têm dificuldade em conseguir. Almas corporificadas, que estão cheias de desejos e que por isso divagam no ciclo de nascimentos e mortes, podem ter todas as bênçãos manifestadas diante de seus olhos pelo simples fato de receberem a poeira de Vossos pés de lótus.

Comentário

SIGNIFICADOÉ muito raro que uma alma condicionada se liberte da contami­nação da ilusão e, dessa maneira, seja estabelecida em perfeita consciên­cia da Verdade Absoluta. Ainda assim, a serpente Kāliya logrou essa bênção, pois o Senhor em pessoa dançou sobre os capelos dele com Seus pés de lótus. Embora nós, almas condicionadas, talvez não re­cebamos a misericórdia de ter o Senhor dançando sobre nossa cabeça, podemos receber a poeira dos pés de lótus do Absoluto através do representante do Senhor, o mestre espiritual genuíno, e desse modo voltar ao lar, voltar ao Supremo, livres para sempre do sofrimento e da ignorância do universo mundano.

Texto

namas tubhyaṁ bhagavate
puruṣāya mahātmane
bhūtāvāsāya bhūtāya
parāya paramātmane

Sinônimos

namaḥ — reverências; tubhyam — a Vós; bhagavate — a Suprema Personalidade de Deus; puruṣāya — que estais presente no íntimo como a Superalma; mahā-ātmane — que sois onipenetrante; bhūta-āvāsāya — que sois o refúgio dos elementos materiais (a começar com o céu etéreo); bhūtāya — que existis mesmo antes da criação; parāya — à causa suprema; parama-ātmane — que estais além de toda causa ma­terial.

Tradução

Oferecemos nossas reverências a Vós, a Suprema Personali­dade de Deus. Embora estejais presente no coração de todos os seres vivos como a Superalma, sois onipenetrante. Embora sejais o refúgio original de todos os elementos materiais criados, existis antes da criação deles. E embora sejais a causa de tudo, sois transcendental a toda causa e efeito materiais, por serdes a Alma Suprema.

Comentário

SIGNIFICADODeve-se cantar a bela poesia sânscrita deste verso em voz alta para o prazer transcendental do recitador e do ouvinte.

Texto

jñāna-vijñāna-nīdhaye
brahmaṇe ’nanta-śaktaye
aguṇāyāvikārāya
namas te prākṛtāya ca

Sinônimos

jñāna — da consciência; vijñāna — e potência espiritual; nidhaye — ao oceano; brahmaṇe — à Verdade Absoluta; ananta-śaktaye — cujas potências são ilimitadas; aguṇāya — àquele que jamais é afetado pelas qualidades da matéria; avikārāya — que não sofre nenhuma transformação material; namaḥ — reverências; te — a Vós; prākṛtāya — ao original agente motriz da natureza material; ca — e.

Tradução

Reverências a Vós, a Verdade Absoluta, que sois o reservatório de toda a consciência e potência transcendentais e o possuidor de ilimitadas energias. Embora completamente livre de qualidades e transformações materiais, sois o original agente motriz da na­tureza material.

Comentário

SIGNIFICADOAqueles que se consideram intelectuais, filosóficos ou racionais devem observar atentamente nesta passagem que a Verdade Absoluta, a Suprema Personalidade de Deus, é o oceano de todo o conhecimen­to e consciência. Logo, a rendição ao Senhor Supremo não implica abandonar o método de compreender racionalmente a realidade. Em vez disso, mergulha-se no oceano da compreensão racional, lógica. O Senhor Supremo é a perfeição de todas as ciências e de todas as formas de conhecimento, e apenas mentes invejosas e fúteis nega­riam esse fato óbvio.

Texto

kālāya kāla-nābhāya
kālāvayava-sākṣiṇe
viśvāya tad-upadraṣṭre
tat-kartre viśva-hetave

Sinônimos

kālāya — ao tempo; kāla-nābhāya — a Ele que é o abrigo do tempo; kāla-avayava — das várias fases do tempo; sākṣiṇe — à testemunha; viśvāya — à forma do universo; tad-upadraṣṭre — ao observador dela; tat-kartre — ao criador dela; viśva — do universo; hetave — à causa total.

Tradução

Reverências a Vós, que sois o próprio tempo, o abrigo do tempo e a testemunha do tempo em todas as suas fases. Sois o universo, e também seu observador à parte. Sois seu criador, bem como a totalidade de todas as suas causas.

Comentário

SIGNIFICADOA Suprema Personalidade de Deus, embora apareça em diferen­tes encarnações, jamais pode ser limitado pelo tempo, pois Ele é o próprio tempo, o abrigo do tempo e a testemunha do tempo em todas as suas fases.

Texto

bhūta-mātrendriya-prāṇa-
mano-buddhy-āśayātmane
tri-guṇenābhimānena
gūḍha-svātmānubhūtaye
namo ’nantāya sūkṣmāya
kūṭa-sthāya vipaścite
nānā-vādānurodhāya
vācya-vācaka-śaktaye

Sinônimos

bhūta — dos elementos físicos; mātra — o substrato sutil da percepção; indriya — os sentidos; prāṇa — o ar vital; manaḥ — a mente; buddhi — a inteligência; āśaya — e a consciência material; ātmane — à alma original; tri-guṇena — pelos três modos da natureza material; abhimānena — pela falsa identificação; gūḍha — que faz ficar encober­ta; sva — seu próprio; ātma — do eu; anubhūtaye — percepção; namaḥ — reverências; anantāya — ao Senhor ilimitado; sūkṣmāya — ao supremamente sutil; kūṭa-sthāya — que está fixo no centro; vipaścite — ao onisciente; nānā — várias; vāda — filosofias; anurodhāya — que sanciona; vācya — das ideias expressas; vācaka — e das palavras que as exprimem; śaktaye — que possui as potências.

Tradução

Reverências a Vós, que sois a alma original dos elementos fí­sicos, do substrato sutil da percepção, dos sentidos, do ar vital, da mente, da inteligência e da consciência. Em virtude de Vosso arranjo, as almas espirituais infinitesimais erroneamente se iden­tificam com os três modos da natureza material, em consequência do que a percepção que elas têm de seu verdadeiro eu fica encoberta. Oferecemos nossas reverências a Vós, o ilimitado Senhor Supre­mo, o supremamente sutil, a onisciente Personalidade de Deus, que estais sempre fixo em transcendência imutável, que sancio­nais as opiniões contraditórias das diferentes filosofias e que sois o poder mantenedor das ideias expressas e das palavras que as exprimem.

Texto

namaḥ pramāṇa-mūlāya
kavaye śāstra-yonaye
pravṛttāya nivṛttāya
nigamāya namo namaḥ

Sinônimos

namaḥ — reverências; pramāṇa — da evidência autorizada; mū­lāya — ao fundamento; kavaye — ao autor; śāstra — da escritura revela­da; yonaye — à fonte; pravṛttāya — que estimula o gozo dos sentidos; nivṛttāya — que estimula a renúncia; nigamāya — a Ele que é a origem de ambas as espécies de escritura; namaḥ namaḥ — repetidas reverências.

Tradução

Oferecemos nossas reverências repetidas vezes a Vós, que sois o fundamento de toda evidência autorizada, que sois o autor e fonte última das escrituras reveladas e que Vos manifestastes na­queles textos védicos que estimulam o gozo dos sentidos, bem como naqueles que estimulam a renúncia ao mundo material.

Comentário

SIGNIFICADOSe não tivéssemos os poderes de percepção e conhecimento, não se poderia transmitir a evidência, e se não tivéssemos tendência a acreditar em métodos específicos de evidência, não poderia haver a persuasão. Todos esses processos – percepção, conhecimento, persuasão e transmissão – efetuam-se através das várias potências do Senhor Supremo. O Supremo Senhor Kṛṣṇa é Ele próprio o mais eminente erudito e intelectual. Ele manifesta as escrituras transcen­dentais no coração de grandes devotos como Brahmā e Nārada e, além disso, encarna como Vedavyāsa, o compilador de todo o conhecimento védico. De múltiplas maneiras, o Senhor gera uma diversi­dade de escrituras religiosas que, pouco a pouco, através das várias fases de readmissão, levam as almas condicionadas para o reino de Deus.

Texto

namaḥ kṛṣṇāya rāmāya
vasudeva-sutāya ca
pradyumnāyāniruddhāya
sātvatāṁ pataye namaḥ

Sinônimos

namaḥ — reverências; kṛṣṇāya — ao Senhor Kṛṣṇa; rāmāya — ao Senhor Rāma; vasudeva-sutāya — ao filho de Vasudeva; ca — e; pradyumnāya — ao Senhor Pradyumna; aniruddhāya — ao Senhor Aniruddha; sātvatām — dos devotos; pataye — ao Senhor; namaḥ — reverências.

Tradução

Oferecemos nossas reverências ao Senhor Kṛṣṇa e ao Senhor Rāma, os filhos de Vasudeva, bem como ao Senhor Pradyumna e ao Senhor Aniruddha. Oferecemos nossas respeitosas reverências ao mestre de todos os santos devotos de Viṣṇu.

Texto

namo guṇa-pradīpāya
guṇātma-cchādanāya ca
guṇa-vṛtty-upalakṣyāya
guṇa-draṣṭre sva-saṁvide

Sinônimos

namaḥ — reverências; guṇa-pradīpāya — a Ele que manifesta várias qualidades; guṇa — com os modos materiais; ātma — a Si mesmo; chādanāya — que disfarça; ca — e; guṇa — dos modos; vṛtti — através do funcionamento; upalakṣyāya — que pode ser verificado; guṇa­-draṣṭre — à testemunha que se encontra à parte dos modos materiais; sva — por Seus próprios devotos; saṁvide — que é conhecido.

Tradução

Reverências a Vós, ó Senhor, que manifestais diversas quali­dades materiais e espirituais. Disfarçais-Vos com as qualidades materiais, mas o funcionamento dessas mesmas qualida­des materiais, em última análise, revela Vossa existência. Estais à parte das qualidades materiais como uma testemunha e só podeis ser conhecido na íntegra por Vossos devotos.

Comentário

SIGNIFICADOA palavra guṇa expressa vários significados: as três qualidades básicas da natureza material, isto é, bondade, paixão e ignorância; qualidades excelentes que alguém manifesta devido à piedade e ao êxito espiritual; ou os sentidos internos, tais como a mente e a inteligência. A palavra pradīpāya quer dizer “a Ele que manifesta ou ilumina”. Portanto, nesta passagem, as nāgapatnīs dirigem-se ao Senhor Supremo como “aquele que manifesta todas as qualidades materiais e espirituais e faz com que as entidades vivas sejam cons­cientes”. Pode ver o Senhor quem transpõe o véu da natureza ma­terial, daí Ele ser chamado guṇātma-cchādanāya. Se alguém estudar metódica e inteligentemente o funcionamento das qualidades materiais, terminará concluindo que existe uma Suprema Personali­dade de Deus e que Ele exibe sua potência ilusória para confundir aqueles que não se rendem a Ele.

Visto ser a testemunha dos modos da natureza, o Senhor jamais se deixa afetar por eles e, portanto, é chamado de guṇa-draṣṭre. A pa­lavra sva indica “seu próprio”, de maneira que sva-saṁvide significa que o Senhor Kṛṣṇa pode ser conhecido somente por Sua própria gente, os de­votos, e também que, em última análise, apenas o Senhor pode conhecer­-Se perfeitamente. Devemos, portanto, aceitar as instruções do Senhor Kṛṣṇa na Bhagavad-gītā e chegar de imediato à conclusão correta: a rendição completa aos pés de lótus do Senhor. Assim de­vemos glorificar o Senhor com humildade, seguindo o exemplo das nāgapatnīs.

Texto

avyākṛta-vihārāya
sarva-vyākṛta-siddhaye
hṛṣīkeśa namas te ’stu
munaye mauna-śīline

Sinônimos

avyākṛta-vihārāya — a Ele cujas glórias são insondáveis; sarva-­vyākṛta — a criação e manifestação de todas as coisas; siddhaye — a Ele cuja existência pode ser conhecida devido a; hṛṣīka-īśa — mo­tivador dos sentidos; namaḥ — reverências; te — a Vós; astu — que haja; munaye — ao silencioso; mauna-śīline — a Ele que age em silêncio.

Tradução

Ó Senhor Hṛṣīkeśa, amo dos sentidos, por favor, deixai-nos oferecer reverências a Vós cujos passatempos são inconcebivelmente gloriosos. Pode-se inferir Vossa existência devido à necessi­dade de haver um criador e revelador de todas as manifestações cósmicas. Porém, embora Vossos devotos possam compreender­-Vos dessa maneira, Vós permaneceis silencioso, absorto em autossatisfação, para os não-devotos.

Texto

parāvara-gati-jñāya
sarvādhyakṣāya te namaḥ
aviśvāya ca viśvāya
tad-draṣṭre ’sya ca hetave

Sinônimos

para-avara — de todas as coisas, tanto superiores como inferiores; gati — os destinos; jñāya — a Ele que conhece; sarva — de todas as coisas; adhyakṣāya — ao regulador; te — Vós; namaḥ — nossas reverências; aviśvāya — a Ele que é distinto do universo; ca — e; viśvāya — em quem se manifesta a ilusão da criação material; tat-draṣṭre — à testemunha de tal ilusão; asya — deste mundo; ca — e; hetave — à causa fundamental.

Tradução

Reverências a Vós, que conheceis o destino de todas as coisas, superiores e inferiores, e que sois o regulador e dirigente de tudo o que existe. Sois distinto da criação universal, apesar do que sois o fundamento sobre o qual se desenvolve a ilusão da criação ma­terial, e sois também a testemunha desta ilusão. De fato, sois a causa fundamental do mundo inteiro.

Comentário

SIGNIFICADOAs palavras para e avara indicam elementos sutis e superiores, e elementos grosseiros e inferiores. As palavras também indicam perso­nalidades superiores – devotos do Senhor – e personalidades infe­riores, que desconhecem as glórias de Deus. O Senhor Kṛṣṇa conhece o destino de todas as entidades superiores e inferiores, animadas e inanimadas, e, como a Suprema Verdade Absoluta, Ele permanece em Sua singular posição superior a tudo, conforme indica a expressão sarvādhyakṣāya.

Texto

tvaṁ hy asya janma-sthiti-saṁyamān vibho
guṇair anīho ’kṛta-kāla-śakti-dhṛk
tat-tat-svabhāvān pratibodhayan sataḥ
samīkṣayāmogha-vihāra īhase

Sinônimos

tvam — Vós; hi — de fato; asya — deste universo; janma-sthiti­-saṁyamān — a criação, manutenção e destruição; vibho — ó Senhor onipotente; guṇaiḥ — pelos modos da natureza; anīhaḥ — embora não envolvido em nenhum esforço material; akṛta — sem início; kāla-śakti — da potência do tempo; dhṛk — o mantenedor; tat-tat — de cada um dos modos; sva-bhāvān — as características distintas; pratibo­dhayan — despertando; sataḥ — que já estão presentes em seu estado adormecido; samīkṣayā — por Vosso olhar; amogha-vihāraḥ — cujas atividades divertidas são impecáveis; īhase — agis.

Tradução

Ó Senhor onipotente, embora não tenhais razão alguma para Vos envolverdes em atividades materiais, ainda assim agis através de Vossa potência eterna do tempo para providenciar a criação, manutenção e destruição deste universo. Fazeis isto despertan­do as funções distintas de cada um dos modos da natureza, as quais antes da criação jazem dormentes. Através de Vosso simples olhar, executais perfeitamente todas essas atividades de controle cósmico com uma disposição descontraída.

Comentário

SIGNIFICADOOs céticos talvez questionem por que o Senhor Supremo criou o mundo material, repleto de nascimento, manutenção e morte. Aqui, as nāgapatnīs salientam que os passatempos do Senhor são amogha, além de qualquer discrepância. Śrī Kṛṣṇa de fato deseja que todas as almas condicionadas vivam com Ele em Seu reino eterno, mas aquelas almas esquecidas que são hostis a seu relacionamento amo­roso com Deus têm de vir para o mundo material e sujeitar-se às con­dições do tempo. As almas condicionadas afortunadas são despertadas para a lembrança de sua posição verdadeira como servos amorosos do Senhor, e, de dentro do coração delas, o Senhor as incentiva a voltar ao lar, voltar ao Supremo, onde o tempo é conspícuo por sua ausência e onde a existência eterna e bem-aventurada suplanta as funções impressionantes, mas perturbadoras, da criação e aniquilação cósmicas.

Texto

tasyaiva te ’mūs tanavas tri-lokyāṁ
śāntā aśāntā uta mūḍha-yonayaḥ
śāntāḥ priyās te hy adhunāvituṁ satāṁ
sthātuś ca te dharma-parīpsayehataḥ

Sinônimos

tasya — dEle; eva — de fato; te — de Vós; amūḥ — esses; tanavaḥ — corpos materiais; tri-lokyām — por todos os três mundos; śāntāḥ — pacíficos (no modo da bondade); aśāntāḥ — não pacíficos (no modo da paixão); uta — e também; mūḍha-yonayaḥ — nascidos em espécies ignorantes; śāntāḥ — as pessoas pacíficas no modo da bondade; priyāḥ — queridas; te — a Vós; hi — decerto; adhunā — agora; avitum — para pro­teger; satām — dos devotos santos; sthātuḥ — que estais presente; ca — e; te — de Vós; dharma — seus princípios religiosos; parīpsayā — com o desejo de manter; īhataḥ — que está agindo.

Tradução

Portanto, todos os corpos materiais dentro dos três mundos – os que são pacíficos, no modo da bondade; os que são agitados, no modo da paixão; e os que são tolos, no modo da ignorância – são criações Vossas. No entanto, aquelas entidades vivas cujos corpos estão no modo da bondade são especialmente queridas a Vós, e é para mantê-las e proteger seus princípios religiosos que agora estais presente na Terra.

Texto

aparādhaḥ sakṛd bhartrā
soḍhavyaḥ sva-prajā-kṛtaḥ
kṣantum arhasi śāntātman
mūḍhasya tvām ajānataḥ

Sinônimos

aparādhaḥ — a ofensa; sakṛt — só uma vez; bhartrā — pelo amo; soḍhavyaḥ — deve ser tolerada; sva-prajā — por Vosso próprio súdito; kṛtaḥ — cometida; kṣantum — tolerar; arhasi — é conveniente para Vós; śānta-ātman — ó Vós que sois sempre pacífico; mūḍhasya — do tolo; tvām — a Vós; ajānataḥ — que não compreende.

Tradução

Ao menos uma vez, o amo deve tolerar uma ofensa cometida por seu filho ou súdito. Ó suprema Alma pacífica, deveis, portanto, perdoar a nosso tolo marido, que não compreendeu quem sois.

Comentário

SIGNIFICADOEm virtude de sua extrema ansiedade, as esposas de Kāliya mencionam duas vezes a mesma ideia neste verso: que o Senhor Supremo deve bondosamente perdoar seu tolo marido. O Senhor Supremo é śāntātmā, a Alma pacífica suprema, e é por isso que as nāgapatnīs sugerem que seria adequado que Ele deixasse passar, ao menos por esta vez, a grande ofensa cometida pelo ignorante Kāliya.

Texto

anugṛhṇīṣva bhagavan
prāṇāṁs tyajati pannagaḥ
strīṇāṁ naḥ sādhu-śocyānāṁ
patiḥ prāṇaḥ pradīyatām

Sinônimos

anugṛhṇīṣva — por favor, concedei a misericórdia; bhagavan — ó Senhor Supremo; prāṇān — seus ares vitais; tyajati — está abandonando; pan­nagaḥ — a serpente; strīṇām — para mulheres; naḥ — nós; sādhu-śocyā­nām — de quem as personalidades santas devem ter piedade; patiḥ — o marido; prāṇaḥ — a própria vida; pradīyatām — devem receber de volta.

Tradução

Ó Senhor Supremo, por favor, sede misericordioso. É adequa­do que os santos sintam compaixão de mulheres como nós. Esta serpente está prestes a abandonar a vida. Por favor, devolvei nosso marido, que é nossa vida e alma.

Texto

vidhehi te kiṅkarīṇām
anuṣṭheyaṁ tavājñayā
yac-chraddhayānutiṣṭhan vai
mucyate sarvato bhayāt

Sinônimos

vidhehi — por favor, ordenai; te — Vossas; kiṅkarīṇām — pelas servas; anuṣṭheyam — o que deve ser feito; tava — Vossa; ājñayā — pela ordem; yat — que; śraddhayā — com fé; anutiṣṭhan — executando; vai — com certeza; mucyate — a pessoa se libertará; sarvataḥ — de todo; bhayāt — o medo.

Tradução

Agora, por favor, dize a nós, Vossas servas, o que devemos fazer. É certo que quem executa Vossa ordem com fé livra-se automaticamente de todo o medo.

Comentário

SIGNIFICADOA rendição das esposas de Kāliya agora estava completa, e o Senhor Kṛṣṇa logo outorgou-lhes Sua misericórdia, como se descreve nos versos seguintes.

Texto

śrī-śuka uvāca
itthaṁ sa nāga-patnībhir
bhagavān samabhiṣṭutaḥ
mūrcchitaṁ bhagna-śirasaṁ
visasarjāṅghri-kuṭṭanaiḥ

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; ittham — dessa maneira; saḥ — Ele, o Senhor Kṛṣṇa; nāga-patnībhiḥ — pelas esposas de Kāliya; bhagavān — a Suprema Personalidade de Deus; samabhiṣṭu­taḥ — plenamente louvado; mūrcchitam — aquele que estava inconsciente; bhagna-śirasam — suas cabeças esmagadas; visasarja — soltou; aṅghri-kuṭṭanaiḥ — pelo bater de Seus pés.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī disse: Louvado dessa maneira pelas nāga­patnīs, a Suprema Personalidade de Deus soltou a serpente Kāliya, que caíra inconsciente, com suas cabeças contundidas pelo bater dos pés de lótus do Senhor.

Comentário

SIGNIFICADOSegundo Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura, o Senhor Kṛṣṇa, logo que tomou Sua decisão, pulou dos capelos de Kāliya e ficou de pé diante da serpente e de suas esposas. Devemos lembrar que, quando executou esses passatempos, o Senhor Kṛṣṇa era apenas um morador de vila em Vṛndāvana.

Texto

pratilabdhendriya-prāṇaḥ
kāliyaḥ śanakair harim
kṛcchrāt samucchvasan dīnaḥ
kṛṣṇaṁ prāha kṛtāñjaliḥ

Sinônimos

pratilabdha — recuperando; indriya — a função de seus sentidos; prāṇaḥ — e sua força vital; kāliyaḥ — Kāliya; śanakaiḥ — gradualmente; harim — à Suprema Personalidade de Deus; kṛcchrāt — com dificuldade; samucchvasan — respirando ruidosamente; dīnaḥ — o deplorável; kṛṣṇam — ao Senhor Kṛṣṇa; prāha — falou; kṛta-añjaliḥ — com humilde submissão.

Tradução

Kāliya aos poucos recuperou sua força vital e funções senso­riais. Então, respirando ruidosamente e com muita dor, a pobre serpente se dirigiu ao Senhor Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, com humilde submissão.

Texto

kāliya uvāca
vayaṁ khalāḥ sahotpattyā
tamasā dīrgha-manyavaḥ
svabhāvo dustyajo nātha
lokānāṁ yad asad-grahaḥ

Sinônimos

kāliyaḥ uvāca — Kāliya disse; vayam — nós; khalāḥ — invejosos; saha utpattyā — por nosso próprio nascimento; tāmasāḥ — de natureza ignorante; dīrgha-manyavaḥ — constantemente irados; svabhāvaḥ — a própria natureza material; dustyajaḥ — é muito difícil abandonar; nātha — ó Senhor; lokānām — para pessoas comuns; yat — por causa do que; asat — do irreal e impuro; grahaḥ — a aceitação.

Tradução

A serpente Kāliya disse: Nosso próprio nascimento como serpen­te fez-nos invejosos, ignorantes e sempre irados. Ó meu Senhor, é muito difícil para as pessoas abandonarem sua natureza condiciona­da, devido à qual elas se identificam com o que é irreal.

Comentário

SIGNIFICADOŚrīla Sanātana Gosvāmī salienta que, devido à sua condição deplo­rável, Kāliya era incapaz de compor orações originais para o Senhor, e por isso parafraseou algumas das orações oferecidas por suas es­posas. A expressão asad-graha indica que uma alma condicionada se agarra a coisas impermanentes e impuras tais como o próprio corpo, o corpo alheio e outras incontáveis variedades de objetos dos sentidos materiais. O resultado final desse apego material é frustra­ção, desapontamento e angústia – fato que agora ficou claro como cristal para a pobre serpente Kāliya.

Texto

tvayā sṛṣṭam idaṁ viśvaṁ
dhātar guṇa-visarjanam
nānā-svabhāva-vīryaujo-
yoni-bījāśayākṛti

Sinônimos

tvayā — por Vós; sṛṣṭam — criado; idam — este; viśvam — universo; dhātaḥ — o supremo provisor; guṇa — dos modos materiais; visarja­nam — a criação variada; nānā — várias; sva-bhāva — naturezas pes­soais; vīrya — variedades de força sensorial; ojaḥ — e força física; yoni — ventres; bīja — sementes; āśaya — mentalidades; ākṛti — e formas.

Tradução

Ó criador supremo, sois Vós que gerais este universo, compos­to do arranjo variado dos modos materiais, e neste processo ma­nifestais vários tipos de personalidades e espécies, variedades de força sensorial e física, e variedades de mães e pais com variadas mentalidades e formas.

Comentário

SIGNIFICADOEm seu comentário sobre este verso, Śrīla Madhvācārya citou a seguinte passagem do Nārada Purāṇa: “De Hiraṇyagarbha, Brahmā, vem a segunda criação deste universo, mas o universo é criado primariamente pelo próprio Viṣṇu. Então, Viṣṇu é o criador primário, e o Brahmā de quatro cabeças é apenas o criador secundário.”

Texto

vayaṁ ca tatra bhagavan
sarpā jāty-uru-manyavaḥ
kathaṁ tyajāmas tvan-māyāṁ
dustyajāṁ mohitāḥ svayam

Sinônimos

vayam — nós; ca — e; tatra — dentro da criação material; bhagavan — ó Suprema Personalidade de Deus; sarpāḥ — as serpentes; jāti — pelas espécies; uru-manyavaḥ — por demais absortas em ira; katham — como; tyajāmaḥ — podemos abandonar; tvat-māyām — Vossa potência ilusó­ria; dustyajām — que é impossível abandonar; mohitāḥ — confundidas; svayam — sozinhas.

Tradução

Ó Suprema Personalidade de Deus, dentre todas as espécies existentes em Vossa criação material, nós, as serpentes, somos por natureza sempre enfurecidas. Visto que nos encontramos assim iludidas por Vossa energia ilusória, que é muito difícil de abandonar, como podemos abandoná-la por nosso próprio empenho?

Comentário

SIGNIFICADOKāliya está aqui indiretamente suplicando a misericórdia do Senhor, percebendo que por si mesmo jamais poderá livrar-se da ilusão e do sofrimento. Somente através da rendição ao Senhor e da consecução de Sua misericórdia é que alguém poderá desvencilhar-se das dolo­rosas condições da vida material.

Texto

bhavān hi kāraṇaṁ tatra
sarva-jño jagad-īśvaraḥ
anugrahaṁ nigrahaṁ vā
manyase tad vidhehi naḥ

Sinônimos

bhavān — Vós; hi — decerto; kāraṇam — a causa; tatra — neste as­sunto (a remoção da ilusão); sarva-jñaḥ — o conhecedor de tudo; jagat-īśvaraḥ — o controlador supremo do universo; anugraham — favor; nigraham — punição; — ou; manyase — (o que quer que) con­sidereis; tat — isto; vidhehi — providenciai; naḥ — para nós.

Tradução

Ó Senhor, já que sois o onisciente Senhor do universo, sois a verdadeira causa da libertação da ilusão. Por favor, providenciai para nós qualquer coisa que considereis conveniente, seja misericórdia, seja punição.

Texto

śrī-śuka uvāca
ity ākarṇya vacaḥ prāha
bhagavān kārya-mānuṣaḥ
nātra stheyaṁ tvayā sarpa
samudraṁ yāhi mā ciram
sva-jñāty-apatya-dārāḍhyo
go-nṛbhir bhujyate nadī

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; iti — assim; ākar­ṇya — ouvindo; vacaḥ — estas palavras; prāha — então falou; bhaga­vān — a Suprema Personalidade de Deus; kārya-mānuṣaḥ — que estava agindo como um ser humano; na — não; atra — aqui; stheyam — deves ficar; tvayā — tu; sarpa — Minha querida serpente; samudram — para o oceano; yāhi — vai; mā ciram — sem demora; sva — por teus; jñāti — pelos companheiros; apatya — filhos; dāra — e esposa; āḍhyaḥ — adequadamente acompanhado; go — pelas vacas; nṛbhiḥ — e humanos; bhujyate — que seja desfrutado; nadī — o rio Yamunā.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī disse: Após ouvir as palavras de Kāliya, a Suprema Personalidade de Deus, que estava encenando o papel de um ser humano, respondeu: Ó serpente, não podes mais per­manecer aqui. Volta agora mesmo para o oceano, acompanhado de teu cortejo de filhos, esposas, parentes e amigos. Deixa que este rio seja desfrutado pelas vacas e seres humanos.

Texto

ya etat saṁsmaren martyas
tubhyaṁ mad-anuśāsanam
kīrtayann ubhayoḥ sandhyor
na yuṣmad bhayam āpnuyāt

Sinônimos

yaḥ — quem; etat — isto; saṁsmaret — lembrar; martyaḥ — um mortal; tubhyam — para ti; mat — Minha; anuśāsanam — ordem; kīrtayan — cantando; ubhayoḥ — nas duas; sandhyoḥ — conexões do dia; na — não; yuṣmat — de ti; bhayam — medo; āpnuyāt — terá.

Tradução

Se um mortal se lembrar atentamente da ordem que dei a ti – de deixar Vṛndāvana e ir para o oceano – e narrar esta his­tória ao nascer e pôr do sol, jamais terá medo de ti.

Texto

yo ’smin snātvā mad-ākrīḍe
devādīṁs tarpayej jalaiḥ
upoṣya māṁ smarann arcet
sarva-pāpaiḥ pramucyate

Sinônimos

yaḥ — quem; asmin — neste (lago de Kāliya no rio Yamunā); snā­tvā — tomando banho; mat-ākrīḍe — o lugar do Meu passatempo; deva-­ādīn — os semideuses e outras personalidades adoráveis; tarpayet — satisfizer; jalaiḥ — com a água (deste lago); upoṣya — observando um jejum; mām — a Mim; smaran — lembrando; arcet — executar adoração; sarva-pāpaiḥ — de todas as reações pecaminosas; pramucyate — ficará livre.

Tradução

Se alguém se banhar neste lugar onde realizei Meus passatem­pos e oferecer a água deste lago aos semideuses e a outras perso­nalidades adoráveis, ou se alguém observar um jejum e adorar-Me e lembrar-se de Mim da maneira conveniente, é certo que se livrará de todas as reações pecaminosas.

Comentário

SIGNIFICADOSegundo os ācāryas, o Senhor falou este verso para deixar claro a Kāliya que este não poderia de modo algum permanecer no lago do Yamunā. Embora o Senhor tivesse perdoado misericordiosamente a serpente e lhe ordenado que fosse para o oceano com todos os seus companheiros, Kāliya não deveria sequer pensar em pedir para per­manecer no lago, porque agora este deveria tornar-se um lugar sagra­do para peregrinos espiritualistas.

Texto

dvīpaṁ ramaṇakaṁ hitvā
hradam etam upāśritaḥ
yad-bhayāt sa suparṇas tvāṁ
nādyān mat-pāda-lāñchitam

Sinônimos

dvīpam — a grande ilha; ramaṇakam — chamada Ramaṇaka; hitvā — abandonando; hradam — o pequeno lago; etam — este; upāśritaḥ — tomado refúgio; yat — do qual; bhayāt — por causa do temor; saḥ — este; suparṇaḥ — Garuḍa; tvām — a ti; na adyāt — não comerá; mat-pāda — com Meus pés; lāñchitam — marcado.

Tradução

Por temor a Garuḍa, deixaste a ilha de Ramaṇaka e vieste refugiar-te neste lago. Contudo, porque agora estás marcado com as Minhas pegadas, Garuḍa não mais tentará comer-te.

Texto

śrī-ṛṣir uvāca
mukto bhagavatā rājan
kṛṣṇenādbhuta-karmaṇā
taṁ pūjayām āsa mudā
nāga-patnyaś ca sādaram

Sinônimos

śrī-ṛṣiḥ uvāca — o sábio (Śukadeva) disse; muktaḥ — liberto; bha­gavatā — pela Suprema Personalidade de Deus; rājan — ó rei Parīkṣit; kṛṣṇena — pelo Senhor Kṛṣṇa; adbhuta-karmaṇā — cujas atividades são muito maravilhosas; tam — a Ele; pūjayām āsa — adorou; mudā — com prazer; nāga — da serpente; patnyaḥ — as esposas; ca — e; sa-ādaram — com reverência.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī continuou: Meu querido rei, uma vez li­berto pelo Senhor Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, cujas atividades são maravilhosas, Kāliya juntou-se a suas espo­sas para adorá-lO com grande júbilo e reverência.

Comentário

SIGNIFICADOŚrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura faz o seguinte comentário em relação a este verso: “A expressão adbhuta-karmaṇā indica as atividades admiráveis do Senhor, mediante as quais Ele salva os residentes de Vṛndāvana de Kāliya, salva o próprio Kāliya de Garuḍa e concede graça tanto às vítimas da violência quanto ao autor da violência.” A palavra kṛṣṇena, “por Kṛṣṇa”, indica que, por serem as esposas de Kāliya grandes devotas do Senhor e por Lhe oferecerem afeição amo­rosa, Kṛṣṇa retirou (karṣaṇam) tanto a ofensa de Kāliya contra Garuḍa, o devoto do Senhor, quanto a cometida contra os residentes de Vṛndāvana, que eram muito queridos para Ele.

Texto

divyāmbara-sraṅ-maṇibhiḥ
parārdhyair api bhūṣaṇaiḥ
divya-gandhānulepaiś ca
mahatyotpala-mālayā
pūjayitvā jagan-nāthaṁ
prasādya garuḍa-dhvajam
tataḥ prīto ’bhyanujñātaḥ
parikramyābhivandya tam
sa-kalatra-suhṛt-putro
dvīpam abdher jagāma ha
tadaiva sāmṛta-jalā
yamunā nirviṣābhavat
anugrahād bhagavataḥ
krīḍā-mānuṣa-rūpiṇaḥ

Sinônimos

divya — divinas; ambara — com roupas; srak — guirlandas; ma­ṇibhiḥ — e joias; para-ardhyaiḥ — valiosíssimos; api — também; bhū­ṣaṇaiḥ — ornamentos; divya — divinos; gandha — com perfumes; anulepaiḥ — e unguentos; ca — bem como; mahatyā — primorosa; ut­pala — de lótus; mālayā — com uma guirlanda; pūjayitvā — adoran­do; jagat-nātham — o Senhor do universo; prasādya — satisfazendo; garuḍa-dhvajam — a Ele cuja bandeira tem o emblema de Garuḍa; tataḥ — então; prītaḥ — sentindo-se feliz; abhyanujñātaḥ — recebida a permissão de partir; parikramya — circungirando; abhivandya — oferecendo reverências; tam — a Ele; sa — junto com; kalatra — suas espo­sas; suhṛt — amigos; putraḥ — e filhos; dvīpam — para a ilha; abdheḥ — no mar; jagāma — foi; ha — de fato; tadā eva — naquele mesmo mo­mento; sa-amṛta — nectárea; jalā — sua água; yamunā — o rio Yamunā; nirviṣā — livre do veneno; abhavat — tornou-se; anugrahāt — pela mi­sericórdia; bhagavataḥ — da Suprema Personalidade de Deus; krīḍā — para os prazerosos passatempos; mānuṣa — semelhante à humana; rūpiṇaḥ — manifestando uma forma.

Tradução

Kāliya adorou o Senhor do universo oferecendo-Lhe primoro­sas roupas, junto com colares, joias e outros ornamentos valiosos, perfumes e unguentos maravilhosos, e uma grande guirlanda de flores de lótus. Tendo assim satisfeito o Senhor, cuja bandeira tem o emblema de Garuḍa, Kāliya sentiu-se satisfeito. Após re­ceber permissão do Senhor para partir, Kāliya circungirou-O e ofereceu-Lhe reverências. Então, levando suas esposas, amigos e filhos, foi para sua ilha no mar. No mesmo momento em que Kāliya partiu, o Yamunā de imediato recuperou sua condição origi­nal, livre de veneno e repleto de água nectárea. Isso aconteceu pela misericórdia da Suprema Personalidade de Deus, que estava manifestando uma forma semelhante à humana para desfrutar Seus passatempos.

Comentário

SIGNIFICADOŚrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura fez extensos comentários sobre este verso. Para explicar a palavra maṇibhiḥ – “(Kāliya adorou o Senhor) com joias” –, o ācārya citou o Śrī Rādhā-kṛṣṇa-gaṇoddeśa-dīpikā, de Rūpa Gosvāmī, como segue:

kaustubhākhyo maṇir yena
praviśya hradam auragam
kāliya-preyasi-vṛnda-
hastair ātmopahāritaḥ

“O Senhor fizera com que Sua joia Kaustubha entrasse no lago da serpente, e então providenciou que ela Lhe fosse presentea­da pelas mãos das esposas de Kāliya.” Em outras palavras, porque queria agir tal qual um ser humano comum, o Senhor Kṛṣṇa tornou invisível a transcendental joia Kaustubha e fez com que ela entrasse no tesouro de Kāliya. Então, quando chegou o momento apropriado para Kāliya adorar o Senhor com muitas diferentes joias e ornamen­tos, as esposas da serpente, sem saberem do truque transcendental do Senhor, presentearam-nO com a joia Kaustubha, pensando que era apenas uma das joias de suas posses.

O ācārya comentou ainda que a razão de o Senhor Kṛṣṇa ser des­crito neste verso como garuḍa-dhvaja, “aquele cuja bandeira traz o símbolo de Seu transportador, Garuḍa”, é que Kāliya também dese­java tornar-se um transportador do Senhor Kṛṣṇa. Garuḍa e as serpentes têm originalmente o parentesco de irmãos, de modo que Kāliya dese­java sugerir ao Senhor Kṛṣṇa: “Se alguma vez tiverdes de ir a um lugar distante, deveis também pensar em mim como Vosso transpor­tador. Sou servo de Vosso servo, e em um piscar de olhos posso viajar centenas de milhões de yojanas.” Em razão disso, os Purāṇas narram que, no decurso do ciclo eterno de passatempos do Senhor Kṛṣṇa, quando Kaṁsa ordena ao Senhor que vá para Mathurā, Ele às vezes vai para lá montado sobre Kāliya.

Neste ponto, encerram-se os significados apresentados pelos humil­des servos de Sua Divina Graça A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhu­pāda referentes ao décimo canto, décimo sexto capítulo, do Śrīmad-Bhāgavatam, intitulado “Kṛṣṇa Castiga a Serpente Kāliya”.