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Capítulo Vinte e Quatro

A Renúncia de Kardama Muni

Texto

maitreya uvāca
nirveda-vādinīm evaṁ
manor duhitaraṁ muniḥ
dayāluḥ śālinīm āha
śuklābhivyāhṛtaṁ smaran

Sinônimos

maitreyaḥ — o grande sábio Maitreya; uvāca — disse; nirveda-vādinīm — que estava falando palavras cheias de renúncia; evam — assim; manoḥ — de Svāyambhuva Manu; duhitaram — à filha; muniḥ — o sábio Kardama; dayāluḥ — misericordioso; śālinīm — que era digna de louvor; āha — respondeu; śukla — pelo Senhor Viṣṇu; abhivyāhṛtam — o que foi dito; smaran — recordando-se

Tradução

Recordando-se das palavras do Senhor Viṣṇu, o misericordioso sábio Kardama Muni respondeu da seguinte maneira à louvável filha de Svāyambhuva Manu, Devahūti, que estava falando palavras cheias de renúncia.

Texto

ṛṣir uvāca
mā khido rāja-putrīttham
ātmānaṁ praty anindite
bhagavāṁs te ’kṣaro garbham
adūrāt samprapatsyate

Sinônimos

ṛṣiḥ uvāca — o sábio disse; khidaḥ — não te desapontes; rāja-putri — ó princesa; ittham — dessa maneira; ātmānam — a ti mesma; prati — com; anindite — ó louvável Devahūti; bhagavān — a Suprema Personalidade de Deus; te — teu; akṣaraḥ — infalível; garbham — ventre; adūrāt — sem demora; samprapatsyate — entrará.

Tradução

O sábio disse: Não te desapontes contigo mesma, ó princesa. Na verdade, és digna de louvor. A infalível Suprema Personalidade de Deus em breve entrará em teu ventre como teu filho.

Comentário

Kardama Muni encorajou sua esposa a não ficar pesarosa, julgando-se desventurada, porque a Suprema Personalidade de Deus, através de Sua encarnação, surgiria de seu corpo.

Texto

dhṛta-vratāsi bhadraṁ te
damena niyamena ca
tapo-draviṇa-dānaiś ca
śraddhayā ceśvaraṁ bhaja

Sinônimos

dhṛta-vratā asi — tu te submeteste a votos sagrados; bhadram te — que Deus te abençoe; damena — pelo controle dos sentidos; niyamena — pelas observâncias religiosas; ca — e; tapaḥ — austeridades; draviṇa — de dinheiro; dānaiḥ — dando em caridade; ca — e; śraddhayā — com grande fé; ca — e; īśvaram — o Senhor Supremo; bhaja — adoração.

Tradução

Tu te submeteste a votos sagrados. Deus te abençoará. Doravante, deves adorar o Senhor com grande fé, mediante o controle sensório, observâncias religiosas, austeridades e doações de teu dinheiro em caridade.

Comentário

Para avançar espiritualmente ou obter a misericórdia do Senhor, deve-se ser autocontrolado da seguinte maneira: deve-se restringir-se no gozo dos sentidos e seguir as regras e regulações dos princípios religiosos. Sem austeridade e penitência e sem sacrificar as riquezas pessoais, não se pode obter a misericórdia do Senhor Supremo. Kardama Muni aconselhou a sua esposa: “Precisas realmente ocupar-te em serviço devocional, com austeridade e penitência, seguindo os princípios religiosos e fazendo caridade. Então, o Senhor Supremo ficará satisfeito contigo e aparecerá como teu filho.”

Texto

sa tvayārādhitaḥ śuklo
vitanvan māmakaṁ yaśaḥ
chettā te hṛdaya-granthim
audaryo brahma-bhāvanaḥ

Sinônimos

saḥ — Ele; tvayā — por ti; ārādhitaḥ — sendo adorado; śuklaḥ — a Personalidade de Deus; vitanvan — espalhando; māmakam — minha; yaśaḥ — fama; chettā — Ele cortará; te — teu; hṛdaya — do coração; granthim — nó; audaryaḥ — teu filho; brahma — conhecimento de Brahman; bhāvanaḥ — ensinando.

Tradução

A Personalidade de Deus, sendo adorada por ti, espalhará meu nome e fama. Ele destruirá o nó de teu coração, tornando-Se teu filho e ensinando-te o conhecimento de Brahman.

Comentário

Quando a Suprema Personalidade de Deus vem para disseminar o conhecimento espiritual para o benefício de todas as pessoas, Ele geralmente desce como filho de um devoto, estando satisfeito com o serviço devocional do devoto. A Suprema Personalidade de Deus é o pai de todos. Ninguém, portanto, é Seu pai, mas, através de Sua energia inconcebível, Ele aceita alguns dos devotos como Seus pais e descendentes. Aqui se explica que o conhecimento espiritual destrói o nó do coração. A matéria e o espírito são amarrados pelo falso ego. Esta identificação do eu com a matéria, que se chama hṛdaya-granthi, existe para todas as almas condicionadas, e se torna cada vez mais estreita quando há demasiada afeição pela vida sexual. O Senhor Ṛṣabha explicou a Seus filhos que este mundo material é uma atmosfera de atração entre macho e fêmea. Esta atração toma a forma de um nó no coração, que se estreita mais através do afeto material. Para pessoas que anseiam por posses materiais, sociedade, amizade e amor, este nó de afeição torna-se muito forte. É somente através de brahma-bhāvana – a instrução pela qual se ressalta o conhecimento espiritual – que o nó no coração é despedaçado. Nenhuma arma material é necessária para cortar esse nó, mas, para isso, é necessária a instrução espiritual fidedigna. Kardama Muni comunicou a sua esposa, Devahūti, que o Senhor apareceria como seu filho e disseminaria o conhecimento espiritual para cortar o nó da identificação material.

Texto

maitreya uvāca
devahūty api sandeśaṁ
gauraveṇa prajāpateḥ
samyak śraddhāya puruṣaṁ
kūṭa-stham abhajad gurum

Sinônimos

maitreyaḥ uvāca — Maitreya disse; devahūti — Devahūti; api — também; sandeśam — a orientação; gauraveṇa — com grande respeito; prajāpateḥ — de Kardama; samyak — completa; śraddhāya — tendo fé em; puruṣam — a Suprema Personalidade de Deus; kūṭa-stham — situada no coração de todos; abhajat — adorou; gurum — mais adorável.

Tradução

Śrī Maitreya disse: Devahūti era inteiramente fiel e respeitosa à orientação de seu esposo, Kardama, que era um dos Prajāpatis, ou geradores de seres humanos no universo. Ó grande sábio, ela então começou a adorar o senhor do universo, a Suprema Personalidade de Deus, que Se situa no coração de todos.

Comentário

Este é o processo de compreensão espiritual: é preciso receber instrução de um mestre espiritual fidedigno. Embora Kardama Muni fosse esposo de Devahūti, por ele ter-lhe dado instruções sobre como alcançar a perfeição espiritual, naturalmente se tornou seu mestre espiritual também. Há muitos casos em que o esposo se torna o mestre espiritual. O senhor Śiva também é o mestre espiritual de Pārvatī, sua consorte. O esposo deve ser tão iluminado que possa tornar-se o mestre espiritual de sua esposa para iluminá-la no avanço da consciência de Kṛṣṇa. Geralmente, a strī, ou mulher, é menos inteligente que o homem; portanto, se o esposo é inteligente o bastante, a mulher obtém uma grande oportunidade de alcançar a iluminação espiritual.

Aqui se diz claramente (samyak śraddhāya) que, com grande fé, deve-se receber conhecimento do mestre espiritual e, com grande fé, deve-se realizar serviço. Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura, em seu comentário sobre a Bhagavad-gītā, enfatiza especialmente a instrução do mestre espiritual. Devemos aceitar a instrução do mestre espiritual como nossa vida e alma. Quer sejamos liberados, quer não, devemos executar a instrução do mestre espiritual com grande fé. Afirma-se também que o Senhor está situado no coração de todos. Não é preciso procurar o Senhor do lado de fora; Ele já está ali. Basta concentrarmo-nos em nossa adoração com grande fé, conforme nos oriente o mestre espiritual fidedigno, e nossos esforços resultarão em sucesso. Também está claro que a Suprema Personalidade de Deus não aparece como uma criança comum: Ele aparece como Ele é. Como se afirma na Bhagavad-gītā, Ele aparece através de Sua própria potência interna, ātmā-māyā. E como Ele aparece? Ele aparece quando fica satisfeito com a adoração de um devoto. O devoto pode pedir ao Senhor que apareça como seu filho. O Senhor já está sentado dentro do coração, e, se Ele surge do corpo de uma devota, isso não significa que essa mulher em particular torna-se Sua mãe no sentido material. Ele já existe, mas, para satisfazer Seu devoto, aparece como seu filho.

Texto

tasyāṁ bahu-tithe kāle
bhagavān madhusūdanaḥ
kārdamaṁ vīryam āpanno
jajñe ’gnir iva dāruṇi

Sinônimos

tasyām — em Devahūti; bahu-tithe kāle — após muitos anos; bhagavān — a Suprema Personalidade de Deus; madhu-sūdanaḥ — o matador do demônio Madhu; kārdamam — de Kardama; vīryam — o sêmen; āpannaḥ — entrou; jajñe — Ele apareceu; agniḥ — fogo; iva — como; dāruṇi — na madeira.

Tradução

Após muitos e muitos anos, a Suprema Personalidade de Deus, Madhusūdana, o matador do demônio Madhu, tendo entrado no sêmen de Kardama, apareceu em Devahūti assim como o fogo surge da madeira num sacrifício.

Comentário

Neste verso, afirma-se claramente que o Senhor é sempre a Suprema Personalidade de Deus, embora apareça como filho de Kardama Muni. O fogo está sempre presente na madeira, mas, mediante determinado processo, acende-se o fogo. Analogamente, Deus é onipenetrante. Ele está em toda parte, e, uma vez que pode surgir de tudo, Ele apareceu no sêmen de Seu devoto. Assim como uma entidade viva comum nasce ao refugiar-se no sêmen de determinada entidade viva, a Suprema Personalidade de Deus aceita o refúgio do sêmen de Seu devoto e aparece como seu filho. Isso manifesta Sua plena independência para agir de qualquer maneira, não significando que Ele é uma entidade viva comum, que é forçada a nascer numa determinada espécie de ventre. O Senhor Nṛsiṁha apareceu do pilar do palácio de Hiraṇyakaśipu, o Senhor Varāha apareceu da narina de Brahmā, e o Senhor Kapila apareceu do sêmen de Kardama, mas isso não significa que a narina de Brahmā ou o pilar do palácio de Hiraṇyakaśipu ou o sêmen de Kardama Muni são a fonte do aparecimento do Senhor. O Senhor é sempre o Senhor. Bhagavān madhusūdanaḥ – Ele é o matador de todas as espécies de demônios, e Ele sempre permanece o Senhor, mesmo que apareça como filho de um devoto em particular. A palavra kārdamam é significativa, pois indica que o Senhor tinha alguma afeição devocional ou relação em serviço devocional com Kardama e Devahūti. Mas não devemos entender erroneamente que Ele nasceu como uma entidade viva comum do sêmen de Kardama Muni no ventre de Devahūti.

Texto

avādayaṁs tadā vyomni
vāditrāṇi ghanāghanāḥ
gāyanti taṁ sma gandharvā
nṛtyanty apsaraso mudā

Sinônimos

avādayan — soaram; tadā — naquele momento; vyomni — no céu; vāditrāṇi — instrumentos musicais; ghanāghanāḥ — as nuvens de chuva; gāyanti — cantaram; tam — a Ele; sma — certamente; gandharvāḥ — os Gandharvas; nṛtyanti — dançaram; apsarasaḥ — as Apsarās; mudā — em jubilante êxtase.

Tradução

No momento de Sua descida à Terra, os semideuses, sob a forma de nuvens de chuva, soaram instrumentos musicais no céu. Os músicos celestiais, os Gandharvas, cantaram as glórias do Senhor, enquanto dançarinas celestiais conhecidas como Apsarās dançaram em jubilante êxtase.

Texto

petuḥ sumanaso divyāḥ
khe-carair apavarjitāḥ
praseduś ca diśaḥ sarvā
ambhāṁsi ca manāṁsi ca

Sinônimos

petuḥ — caíram; sumanasaḥ — flores; divyāḥ — belas; khe-caraiḥ — pelos semideuses que voam no céu; apavarjitāḥ — lançadas; praseduḥ — ficaram satisfeitas; ca — e; diśaḥ — direções; sarvāḥ — todas; ambhāṁsi — águas; ca — e; manāṁsi — mentes; ca — e.

Tradução

Na ocasião do aparecimento do Senhor, os semideuses, voando livremente no céu, lançavam flores. Todas as direções, todas as águas e as mentes de todos ficaram muito satisfeitas.

Comentário

Aprendemos nesta passagem que, no céu superior, há entidades vivas que podem viajar pelo ar sem obstáculos. Embora possamos viajar no espaço exterior, somos obstruídos por muitos impedimentos, mas eles não o são. Aprendemos das páginas do Śrīmad-Bhāgavatam que os habitantes do planeta chamado Siddhaloka podem viajar no espaço de um planeta a outro, sem obstáculos. Eles lançaram chuvas de flores sobre a Terra quando o Senhor Kapila, o filho de Kardama, fez Seu aparecimento.

Texto

tat kardamāśrama-padaṁ
sarasvatyā pariśritam
svayambhūḥ sākam ṛṣibhir
marīcy-ādibhir abhyayāt

Sinônimos

tat — este; kardama — de Kardama; āśrama-padam — ao local do eremitério; sarasvatyā — pelo rio Sarasvatī; pariśritam — rodeado; svayambhūḥ — Brahmā (o autógeno); sākam — junto de; ṛṣibhiḥ — os sábios; marīci — o grande sábio Marīci; ādibhiḥ — e outros; abhyayāt — ele foi lá.

Tradução

Brahmā, o ser vivo primogênito, junto com Marīci e outros sábios, foi ao local do eremitério de Kardama, o qual era rodeado pelo rio Sarasvatī.

Comentário

Brahmā é chamado de Svayambhū porque não nasce de algum pai e de uma mãe materiais. Ele é a primeira criatura viva e nasce do lótus que cresce do abdômen da Suprema Personalidade de Deus, Garbhodakaśāyī Viṣṇu. Por isso, ele é chamado de Svayambhū, autógeno.

Texto

bhagavantaṁ paraṁ brahma
sattvenāṁśena śatru-han
tattva-saṅkhyāna-vijñaptyai
jātaṁ vidvān ajaḥ svarāṭ

Sinônimos

bhagavantam — o Senhor; param — supremo; brahma — Brahman; sattvena — tendo uma existência incontaminada; aṁśena — através de uma porção plenária; śatru-han — ó matador do inimigo, Vidura; tattva-saṅkhyāna — a filosofia dos vinte e quatro elementos materiais; vijñaptyai — para explicar; jātam — aparecera; vidvān — sabendo; ajaḥ — o não-nascido (senhor Brahmā); sva-rāṭ — independente.

Tradução

Maitreya continuou: Ó matador do inimigo, o não-nascido senhor Brahmā, que é quase independente na aquisição de conhecimento, pôde entender que uma porção da Suprema Personalidade de Deus, sob Sua qualidade de existência pura, aparecera no ventre de Devahūti simplesmente para explicar o estado completo de conhecimento conhecido como sāṅkhya-yoga.

Comentário

Na Bhagavad-gītā, décimo quinto capítulo, declara-se que o próprio Senhor é o compilador do Vedānta-sūtra, e Ele é o perfeito conhecedor do Vedānta-sūtra. De forma semelhante, a filosofia sāṅkhya é compilada pela Suprema Personalidade de Deus em Seu aparecimento como Kapila. Há um Kapila de imitação que tem um sistema filosófico sāṅkhya, mas Kapila, a encarnação de Deus, é diferente desse Kapila. Kapila, o filho de Kardama Muni, em Seu sistema de filosofia sāṅkhya, explicou muito elaboradamente, não apenas o mundo material, mas também o mundo espiritual. Brahmā pôde entender este fato porque ele é svarāṭ, quase independente quanto à recepção de conhecimento. Ele é chamado svarāṭ porque não foi à escola ou à faculdade para aprender as coisas, mas aprendeu tudo internamente. Como Brahmā é a primeira criatura viva dentro deste universo, ele não teve professor; seu professor foi a própria Suprema Personalidade de Deus, que está sentada no coração de toda criatura viva. Brahmā adquiriu conhecimento diretamente do Senhor Supremo dentro do coração; por isso ele é às vezes chamado de svarāṭ e aja.

Apresenta-se aqui outro ponto importante. Sattvenāṁśena: quando a Suprema Personalidade de Deus aparece, traz conSigo toda a Sua parafernália de Vaikuṇṭha; portanto, Seu nome, Sua forma, Suas qualidades, Sua parafernália e Seu séquito pertencem todos ao mundo transcendental. A verdadeira bondade está no mundo transcendental. Aqui no mundo material, a qualidade da bondade não é pura. Pode ser que exista bondade, mas também sempre haverá algumas manchas de paixão e ignorância. No mundo espiritual, prevalece a qualidade de bondade impoluta; ali, a qualidade da bondade chama-se śuddha-sattva, bondade pura. Outro nome para śuddha-sattva é vasudeva, porque Deus nasce de Vasudeva. Outro significado é que quando estamos situados puramente na qualidade da bondade, podemos entender a forma, o nome, as qualidades, a parafernália e o séquito da Suprema Personalidade de Deus. A palavra aṁśena também indica que a Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa, apareceu como Kapiladeva numa porção de Sua porção. Deus Se expande, ou como kalā, ou como aṁśa. Aṁśa significa “expansão direta”, e kalā, “expansão da expansão”. Não há diferença entre a expansão, a expansão da expansão e a Suprema Personalidade de Deus diretamente, assim como não há diferença entre uma vela e outra –, apesar do que a vela com a qual se acendem as demais é chamada, ainda assim, de a vela original. Kṛṣṇa, portanto, é chamado de Parabrahman, ou a Divindade fundamental e a causa de todas as causas.

Texto

sabhājayan viśuddhena
cetasā tac-cikīrṣitam
prahṛṣyamāṇair asubhiḥ
kardamaṁ cedam abhyadhāt

Sinônimos

sabhājayan — adorando; viśuddhena — puro; cetasā — com um coração; tat — da Suprema Personalidade de Deus; cikīrṣitam — as atividades intencionadas; prahṛṣyamāṇaiḥ — alegres; asubhiḥ — com os sentidos; kardamam — a Kardama Muni; ca — e Devahūti; idam — isto; abhyadhāt — falou.

Tradução

Após adorar o Senhor Supremo com sentidos alegres e coração puro devido às atividades que Ele intencionava executar como uma encarnação, Brahmā falou o seguinte a Kardama Muni e Devahūti.

Comentário

Como se explica na Bhagavad-gītā, quarto capítulo, qualquer pessoa que entenda as atividades transcendentais, o aparecimento e o desaparecimento da Suprema Personalidade de Deus, deve ser considerada liberada. Brahmā, portanto, é uma alma liberada. Embora esteja encarregado deste mundo material, ele não é exatamente como as entidades vivas comuns. Uma vez que é liberado da maioria das tolices das entidades vivas comuns, ele tinha conhecimento do aparecimento da Suprema Personalidade de Deus, motivo pelo qual adorou as atividades do Senhor e, com um coração alegre, também louvou Kardama Muni, visto que a Suprema Personalidade de Deus, como Kapila, aparecera como seu filho. Quem pode tornar-se pai da Suprema Personalidade de Deus é certamente um grande devoto. Há um verso proferido por um brāhmaṇa no qual ele diz que não sabe o que são os Vedas e os Purāṇas, mas, enquanto outros talvez estejam interessados nos Vedas ou nos Purāṇas, ele está interessado em Nanda Mahārāja, que apareceu como pai de Kṛṣṇa. O brāhmaṇa queria adorar Nanda Mahārāja porque a Suprema Personalidade de Deus, como um bebê, engatinhava no quintal de sua casa. Esses são alguns dos bons sentimentos dos devotos. Se um devoto reconhecido cria a Suprema Personalidade de Deus como seu filho, quanto ele deve ser louvado! Brahmā, portanto, não apenas adorou a encarnação de Deus Kapila, como também louvou Seu suposto pai, Kardama Muni.

Texto

brahmovāca
tvayā me ’pacitis tāta
kalpitā nirvyalīkataḥ
yan me sañjagṛhe vākyaṁ
bhavān mānada mānayan

Sinônimos

brahmā — senhor Brahmā; uvāca — disse; tvayā — por ti; me — minha; apacitiḥ — adoração; tāta — ó filho; kalpitā — realiza-se; nirvyalīkataḥ — sem duplicidade; yat — uma vez que; me — minhas; sañjagṛhe — aceitaste completamente; vākyam — instruções; bhavān — tu; māna-da — ó Kardama (aquele que oferece honra aos outros); mānayan — respeitando.

Tradução

O senhor Brahmā disse: Meu querido filho Kardama, uma vez que aceitaste completamente minhas instruções, sem duplicidade, mostrando-lhes o devido respeito, adoraste-me adequadamente. Todas as instruções que recebeste de mim tu as executaste, e, deste modo, me honraste.

Comentário

O senhor Brahmā, como a primeira entidade viva dentro do universo, é tido como o mestre espiritual de todos, e ele também é o pai, o criador, de todos os seres. Kardama Muni é um dos Prajāpatis, ou criadores das entidades vivas, e ele também é filho de Brahmā. Brahmā louva Kardama porque este cumpriu as ordens do mestre espiritual in toto e sem trapaça. A alma condicionada no mundo material tem a desqualificação de trapacear. Ela tem quatro desqualificações: sempre comete erros, sempre se deixa iludir, tem a tendência a enganar os outros e seus sentidos são imperfeitos. Contudo, quem cumpre a ordem do mestre espiritual através da sucessão discipular, ou o sistema paramparā, supera os quatro defeitos. Portanto, o conhecimento recebido do mestre espiritual fidedigno não é enganação. Qualquer outro conhecimento que seja inventado pela alma condicionada não passa de enganação. Brahmā sabia bem que Kardama Muni cumprira exatamente as instruções dele recebidas e que ele realmente honrara seu mestre espiritual. Honrar o mestre espiritual significa executar suas instruções palavra por palavra.

Texto

etāvaty eva śuśrūṣā
kāryā pitari putrakaiḥ
bāḍham ity anumanyeta
gauraveṇa guror vacaḥ

Sinônimos

etāvatī — nesta medida; eva — exatamente; śuśrūṣā — serviço; kāryā — deve ser prestado; pitari — ao pai; putrakaiḥ — pelos filhos; bāḍham iti — aceitando: “Sim, senhor”; anumanyeta — ele deve obedecer; gauraveṇa — com o devido respeito; guroḥ — do guru; vacaḥ — ordens.

Tradução

Os filhos devem prestar serviço aos pais exatamente nesta medida. Deve-se obedecer à ordem do pai, ou do mestre espiritual, com o devido respeito, dizendo: “Sim, senhor”.

Comentário

Neste verso, duas palavras são muito importantes: uma palavra é pitari, e outra é guroḥ. O filho ou discípulo deve aceitar as palavras de seu mestre espiritual e de seu pai sem hesitar. Deve-se aceitar tudo que o pai e o mestre espiritual ordenem sem argumento: “Sim.” Não deve haver caso em que o discípulo ou o filho diga: “Isto não está correto. Eu não posso fazê-lo.” Quando diz isso, ele está caído. O pai e o mestre espiritual estão na mesma plataforma porque o mestre espiritual é o segundo pai. As classes superiores são denominadas dvija, duas vezes nascidas. Sempre que se fala de nascimento, tem de haver um pai. O primeiro nascimento é possibilitado pelo pai propriamente dito, e o segundo nascimento é possibilitado pelo mestre espiritual. Pode ser que às vezes o pai e o mestre espiritual sejam o mesmo homem, e às vezes eles são homens diferentes. De qualquer modo, a ordem do pai ou a ordem do mestre espiritual deve ser cumprida sem hesitação, com um sim imediato. Não deve haver argumento. Esse é o verdadeiro serviço ao pai e ao mestre espiritual. Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura declara que a ordem do mestre espiritual é a vida e alma dos discípulos. Assim como um homem não pode separar sua vida de seu corpo, um discípulo não pode separar a ordem do mestre espiritual de sua vida. O discípulo que seguir a instrução do mestre espiritual dessa maneira certamente se tornará perfeito. Isso se confirma nas Upaniṣads: o significado da instrução védica é revelado automaticamente apenas a quem tem fé absoluta na Suprema Personalidade de Deus e em seu mestre espiritual. Pode ser que alguém seja considerado analfabeto, do ponto de vista material, mas, se tem fé no mestre espiritual, bem como na Suprema Personalidade de Deus, então o significado da revelação escritural manifesta-se imediatamente perante ele.

Texto

imā duhitaraḥ satyas
tava vatsa sumadhyamāḥ
sargam etaṁ prabhāvaiḥ svair
bṛṁhayiṣyanty anekadhā

Sinônimos

imāḥ — estas; duhitaraḥ — filhas; satyaḥ — castas; tava — tuas; vatsa — ó meu querido filho; su-madhyamāḥ — de cintura fina; sargam — criação; etam — esta; prabhāvaiḥ — com os descendentes; svaiḥ — seus próprios; bṛṁhayiṣyanti — elas aumentarão; aneka-dhā — de várias maneiras.

Tradução

O senhor Brahmā, então, louvou as nove filhas de Kardama Muni, dizendo: Todas as tuas filhas, que têm cintura fina, são decerto muito castas. Tenho certeza que elas aumentarão esta criação com seus próprios descendentes, de várias maneiras.

Comentário

No início da criação, Brahmā estava mais ou menos interessado no aumento da população, e, ao ver que Kardama Muni já tinha gerado nove belas filhas, ele ficou esperançoso de que, através das filhas, surgiriam muitas crianças que se encarregariam do princípio criativo do mundo material. Portanto, ele ficou feliz ao vê-las. A palavra sumadhyamā significa “uma boa filha de uma bela mulher”. Uma mulher que tem a cintura fina é considerada muito bonita. Todas as filhas de Kardama Muni tinham a mesma bela feição.

Texto

atas tvam ṛṣi-mukhyebhyo
yathā-śīlaṁ yathā-ruci
ātmajāḥ paridehy adya
vistṛṇīhi yaśo bhuvi

Sinônimos

ataḥ — portanto; tvam — tu; ṛṣi-mukhyebhyaḥ — ao principal entre os sábios; yathā-śīlam — de acordo com o temperamento; yathā-ruci — de acordo com o gosto; ātma-jāḥ — tuas filhas; paridehi — por favor, dá; adya — hoje; vistṛṇīhi — espalha; yaśaḥ — fama; bhuvi — por todo o universo.

Tradução

Portanto, por favor, dá hoje tuas filhas ao principal entre os sábios, levando em consideração os temperamentos e gostos das moças, e, desse modo, espalha tua fama por todo o universo.

Comentário

Os nove principais ṛṣis, ou sábios, são Marīci, Atri, Aṅgirā, Pulastya, Pulaha, Kratu, Bhṛgu, Vasiṣṭha e Atharvā. Todos esses ṛṣis são muito importantes, e Brahmā desejou que as nove filhas já nascidas de Kardama Muni fossem dadas em casamento a eles. Neste verso, são usadas duas palavras muito significativamente – yathā-śīlam e yathā-ruci. As filhas deviam ser dadas em casamento aos respectivos ṛṣis, não cegamente, mas conforme a combinação de caráter e gosto. Essa é a arte de combinar homem e mulher. Homem e mulher não devem se unir simplesmente com base nas condições de vida sexual. Há muitas outras coisas a serem consideradas, especialmente o caráter e o gosto. Se o gosto e o caráter diferem entre o homem e a mulher, a combinação deles será infeliz. Mesmo quarenta anos atrás, nos casamentos indianos, antes de mais nada comparava-se o gosto e o caráter do rapaz e da moça, após o que eles recebiam permissão para casar-se. Isso era feito sob a orientação dos respectivos pais. Os pais costumavam determinar astrologicamente o caráter e os gostos do rapaz e da moça, e, se havia correspondência, aprovava-se o casamento: “Este rapaz e esta moça são compatíveis e podem casar-se.” Outras considerações eram menos importantes. O mesmo sistema também foi aconselhado no início da criação por Brahmā: “Tuas filhas devem ser dadas em casamento aos ṛṣis de acordo com gosto e caráter.”

Segundo os cálculos astrológicos, uma pessoa é classificada levando em conta se ela pertence à qualidade divina ou à qualidade demoníaca. Dessa maneira era escolhido o esposo. Uma mocinha de qualidade divina deve ser dada em casamento a um rapaz de qualidade divina. Uma mocinha de qualidade demoníaca deve ser dada em casamento a um rapaz de qualidade demoníaca. Eles, então, serão felizes. Mas se a moça é demoníaca e o rapaz é divino, então a combinação é incompatível; eles não podem ser felizes num casamento assim. Atualmente, porque os rapazes e as moças não são casados de acordo com a qualidade e o caráter, a maioria dos casamentos é infeliz, e por isso há o divórcio.

Está predito no décimo segundo canto do Bhāgavatam que, nesta era de Kali, a vida conjugal será aceita levando-se em consideração apenas o sexo; se o rapaz e a moça se sentem atraídos sexualmente, eles se casam, e quando há deficiência no sexo, eles se separam. Isso não é casamento verdadeiro, mas, sim, uma combinação de homens e mulheres como cães e gatos. Portanto, os filhos produzidos na era moderna não são exatamente seres humanos. Os seres humanos têm que ser duas vezes nascidos. Um filho nasce primeiramente de um bom pai e de uma boa mãe e, depois, ele nasce novamente do mestre espiritual e dos Vedas. Os primeiros pai e mãe provocam seu nascimento no mundo; posteriormente, o mestre espiritual e os Vedas tornam-se seu segundo pai e segunda mãe. De acordo com o sistema védico de casamento para procriar filhos, todos os homens e mulheres eram iluminados em conhecimento espiritual, e, no momento em que eles se uniam para procriar um filho, tudo era feito minuciosa e cientificamente.

Texto

vedāham ādyaṁ puruṣam
avatīrṇaṁ sva-māyayā
bhūtānāṁ śevadhiṁ dehaṁ
bibhrāṇaṁ kapilaṁ mune

Sinônimos

veda — sei; aham — eu; ādyam — o original; puruṣam — desfrutador; avatīrṇam — encarnou; sva-māyayā — através de Sua própria energia interna; bhūtānām — de todas as entidades vivas; śevadhim — o outorgador de tudo o que se deseja, que é como um vasto tesouro; deham — o corpo; bibhrāṇam — assumindo; kapilam — Kapila Muni; mune — ó sábio Kardama.

Tradução

Ó Kardama, sei que a original Suprema Personalidade de Deus acaba de aparecer como uma encarnação através de Sua energia interna. Ele é o outorgador de tudo o que as entidades vivas desejam, e agora Ele assumiu o corpo de Kapila Muni.

Comentário

Neste verso, encontramos as palavras puruṣam avatīrṇaṁ sva-māyayā. A Suprema Personalidade de Deus é duradoura e eternamente a forma do puruṣa, o predominador ou desfrutador, e, quando Ele aparece, nunca aceita nada desta energia material. O mundo espiritual é uma manifestação de Sua potência interna e pessoal, ao passo que o mundo material é uma manifestação de Sua energia material ou diferenciada. A expressão sva-māyayā – “através de Sua própria potência interna” – indica que sempre que a Suprema Personalidade de Deus desce, Ele vem com Sua própria energia. Pode ser que Ele assuma o corpo de um ser humano, mas esse corpo não é material. Na Bhagavad-gītā, portanto, afirma-se claramente que apenas os tolos e patifes, mūḍhas, consideram que o corpo de Kṛṣṇa é o corpo de um ser humano comum. A palavra śevadhim significa que Ele é o outorgador original de todas as necessidades da vida às entidades vivas. Nos Vedas também se afirma que Ele é a entidade viva principal e que Ele outorga todas as coisas que as demais entidades vivas desejam. Por ser o outorgador das necessidades de todos os demais, Ele é chamado Deus. O Supremo também é uma entidade viva; Ele não é impessoal. Assim como nós somos indivíduos, a Suprema Personalidade de Deus também é um indivíduo – mas Ele é o indivíduo supremo. Eis a diferença entre Deus e as entidades vivas comuns.

Texto

jñāna-vijñāna-yogena
karmaṇām uddharan jaṭāḥ
hiraṇya-keśaḥ padmākṣaḥ
padma-mudrā-padāmbujaḥ

Sinônimos

jñāna — do conhecimento escritural; vijñāna — e aplicação; yogena — por meio do yoga místico; karmaṇām — das ações materiais; uddharan — extirpando; jaṭāḥ — as raízes; hiraṇya-keśaḥ — cabelo dourado; padma-akṣaḥ — de olhos de lótus; padma-mudrā — marcados com o sinal do lótus; pada-ambujaḥ — tendo pés de lótus.

Tradução

Através do yoga místico e da aplicação prática do conhecimento das escrituras, Kapila Muni, que Se caracteriza por Seu cabelo dourado, Seus olhos tais quais pétalas de lótus, e Seus pés que trazem as marcas de flores de lótus, extirpará o desejo profundamente enraizado de trabalho neste mundo material.

Comentário

Este verso descreve muito bem as atividades e as feições corpóreas de Kapila Muni. Aqui se faz a previsão das atividades de Kapila Muni: Ele apresentará a filosofia de sāṅkhya de tal maneira que, ao estudar Sua filosofia, as pessoas serão capazes de extirpar o desejo profundamente enraizado de karma, atividades fruitivas. Todos neste mundo material dedicam-se a obter os frutos de seu trabalho. Um homem tenta ser feliz obtendo os frutos de seu próprio trabalho honesto, mas, na verdade, ele se enreda cada vez mais. Não se pode escapar desse enredamento a menos que se tenha conhecimento perfeito, ou serviço devocional.

Aqueles que se esforçam por escapar do enredamento através da especulação fazem também o melhor que podem, mas, nas escrituras védicas, observamos que, se alguém adota o serviço devocional ao Senhor em consciência de Kṛṣṇa, pode extirpar, com muita facilidade, o desejo profundamente enraizado de atividades fruitivas. A filosofia sāṅkhya será difundida por Kapila Muni com esse objetivo. Esse verso também descreve as características de Seu corpo. Jñāna não se refere ao trabalho de pesquisa comum. Jñāna exige receber conhecimento das escrituras através do mestre espiritual, via sucessão discipular. Na era moderna, existe a tendência a pesquisar através da especulação e da invenção mental. Mas o homem que especula se esquece de que ele próprio está sujeito aos quatro defeitos da natureza: sempre comete erros, seus sentidos são imperfeitos, sempre cai em ilusão e é enganador. A menos que alguém tenha conhecimento perfeito, obtido da sucessão discipular, ele simplesmente apresenta algumas teorias de sua própria criação; portanto, engana as pessoas. Jñāna significa conhecimento recebido através da sucessão discipular, das escrituras, e vijñāna significa aplicação prática de tal conhecimento. O sistema de filosofia sāṅkhya de Kapila Muni baseia-se em jñāna e vijñāna.

Texto

eṣa mānavi te garbhaṁ
praviṣṭaḥ kaiṭabhārdanaḥ
avidyā-saṁśaya-granthiṁ
chittvā gāṁ vicariṣyati

Sinônimos

eṣaḥ — a mesma Suprema Personalidade de Deus; mānavi — ó filha de Manu; te — teu; garbham — ventre; praviṣṭaḥ — entrou; kaiṭabha ardanaḥ — o matador do demônio Kaiṭabha; avidyā — de ignorância saṁśaya – e de dúvida; granthim — o nó; chittvā — cortando; gām — o mundo; vicariṣyati — Ele viajará pelo.

Tradução

O senhor Brahmā, então, disse a Devahūti: Minha querida filha de Manu, a mesma Suprema Personalidade de Deus que matou o demônio Kaiṭabha encontra-Se agora dentro de teu ventre. Ele cortará todos os nós de tua ignorância e de tua dúvida. Em seguida, Ele viajará por todo o mundo.

Comentário

Nesta passagem, a palavra avidyā é muito significativa. Avidyā quer dizer esquecimento de nossa identidade. Todos nós somos almas espirituais, mas estamos esquecidos disso. Pensamos: “Eu sou este corpo”. Chama-se isso de avidyā. Saṁśaya-granthi significa “dúvida”. O nó da dúvida se ata quando a alma se identifica com o mundo material. Esse nó também se chama ahaṅkāra, a junção entre matéria e espírito. Com conhecimento adequado, recebido das escrituras em sucessão discipular, e com a aplicação apropriada desse conhecimento, podemos livrar-nos desta escravizante combinação de matéria e espírito. Brahmā garante a Devahūti que seu filho virá para iluminá-la e, depois de o fazer, viajará por todo o mundo, distribuindo o sistema de filosofia sāṅkhya.

A palavra saṁśaya significa “conhecimento duvidoso”. Os conhecimentos especulativos e pseudo-ióguicos são duvidosos. Atualmente, o dito sistema de yoga é praticado com base na compreensão de que, agitando diferentes aspectos da constituição física, uma pessoa pode descobrir que é Deus. Os especuladores mentais pensam do mesmo modo, mas estão cheios de dúvidas. O verdadeiro conhecimento é exposto na Bhagavad-gītā: “Torna-te consciente de Kṛṣṇa. Simplesmente adora Kṛṣṇa e converte-te em devoto de Kṛṣṇa.” Isso é conhecimento verdadeiro, e qualquer pessoa que siga esse sistema se tornará perfeita, sem dúvida alguma.

Texto

ayaṁ siddha-gaṇādhīśaḥ
sāṅkhyācāryaiḥ susammataḥ
loke kapila ity ākhyāṁ
gantā te kīrti-vardhanaḥ

Sinônimos

ayam — esta Personalidade de Deus; siddha-gaṇa — dos sábios perfeitos; adhīśaḥ — o líder; sāṅkhya-ācāryaiḥ — pelos ācāryas peritos em filosofia sāṅkhya; su-sammataḥ — aprovado de acordo com os princípios védicos; loke — no mundo; kapilaḥ iti — como Kapila; ākhyām — célebre; gantā — Ele percorrerá; te — tua; kīrti — fama; vardhanaḥ — aumentando.

Tradução

Teu filho será o líder de todas as almas perfeitas. Ele será aprovado pelos ācāryas peritos em disseminar conhecimento verdadeiro e, entre as pessoas, será célebre pelo nome de Kapila. Como filho de Devahūti, Ele aumentará tua fama.

Comentário

A filosofia sāṅkhya é o sistema filosófico elaborado por Kapila, o filho de Devahūti. O outro Kapila, que não é filho de Devahūti, é uma imitação. É isso o que afirma Brahmā, e, como pertencemos à sucessão discipular de Brahmā, devemos aceitar sua afirmação de que o verdadeiro Kapila é o filho de Devahūti, e de que a verdadeira filosofia sāṅkhya é o sistema filosófico que Ele introduziu e que seria aceito pelos ācāryas, os diretores da disciplina espiritual. A palavra susammata significa “aceito por pessoas de quem dependemos para receber boa opinião”.

Texto

maitreya uvāca
tāv āśvāsya jagat-sraṣṭā
kumāraiḥ saha-nāradaḥ
haṁso haṁsena yānena
tri-dhāma-paramaṁ yayau

Sinônimos

maitreyaḥ uvāca — Maitreya disse; tau — o casal; āśvāsya — tendo reassegurado; jagat-sraṣṭā — o criador do universo; kumāraiḥ — junto com os Kumāras; saha-nāradaḥ — com Nārada; haṁsaḥ — senhor Brahmā; haṁsena yānena — por seu cisne carregador; tri-dhāma-paramam — ao mais elevado sistema planetário; yayau — foi.

Tradução

Śrī Maitreya disse: Após falar assim a Kardama Muni e à sua esposa Devahūti, o senhor Brahmā, o criador do universo, que também é conhecido como Haṁsa, voltou ao mais elevado dos três sistemas planetários, montado em seu cisne carregador, junto com os quatro Kumāras e Nārada.

Comentário

As palavras haṁsena yānena são muito significativas aqui. Haṁsa-yāna, o aeroplano com o qual Brahmā viaja por todo o espaço exterior, assemelha-se a um cisne. Brahmā também é conhecido como Haṁsa porque ele pode assimilar a essência de tudo. Sua morada chama-se tri-dhāma-paramam. O universo divide-se em três partes – o sistema planetário superior, o sistema planetário intermediário e o sistema planetário inferior –, mas sua morada está acima inclusive de Siddhaloka, o mais elevado sistema planetário. Ele regressou a seu próprio planeta junto com os quatro Kumāras e Nārada porque esses não iam se casar. Os outros ṛṣis que vieram com ele, tais como Marīci e Atri, permaneceram lá porque estavam para se casar com as filhas de Kardama, mas seus outros filhos – Sanat, Sanaka, Sanandana, Sanātana e Nārada – voltaram com ele em seu aeroplano em forma de cisne. Os quatro Kumāras e Nārada são naiṣṭhika-brahmacārīs. Naiṣṭhika-brahmacārī refere-se a alguém que não desperdiça seu sêmen em momento algum. Eles não assistiriam à cerimônia de casamento de seus outros irmãos, Marīci e os demais sábios, e por isso voltaram com seu pai, Haṁsa.

Texto

gate śata-dhṛtau kṣattaḥ
kardamas tena coditaḥ
yathoditaṁ sva-duhitṝḥ
prādād viśva-sṛjāṁ tataḥ

Sinônimos

gate — depois que ele partiu; śata-dhṛtau — o senhor Brahmā; kṣattaḥ — ó Vidura; kardamaḥ — Kardama Muni; tena — por ele; coditaḥ — ordenado; yathā-uditam — conforme lhe dissera; sva-duhitṝḥ — suas próprias filhas; prādāt — deu a mão; viśva-sṛjām — aos criadores da população do mundo; tataḥ — depois disso.

Tradução

Ó Vidura, após a partida de Brahmā, Kardama Muni, por ordem de Brahmā, deu a mão de suas nove filhas, conforme fora instruído, aos nove grandes sábios que criaram a população do mundo.

Texto

marīcaye kalāṁ prādād
anasūyām athātraye
śraddhām aṅgirase ’yacchat
pulastyāya havirbhuvam
pulahāya gatiṁ yuktāṁ
kratave ca kriyāṁ satīm
khyātiṁ ca bhṛgave ’yacchad
vasiṣṭhāyāpy arundhatīm

Sinônimos

marīcaye — a Marīci; kalām — Kalā; prādāt — ele deu a mão; anasūyām — Anasūyā; atha — então; atraye — a Atri; śraddhām — Śraddhā; aṅgirase — a Angirā; ayacchat — ele deu; pulastyāya — a Pulastya; havirbhuvam — Havirbhū; pulahāya — a Pulaha; gatim — Gati; yuktām — adequada; kratave — a Kratu; ca — e; kriyām — Kriyā; satīm — virtuosa; khyātim — Khyāti; ca — e; bhṛgave — a Bhṛgu; ayacchat — ele deu; vasiṣṭhāya — ao sábio Vasiṣṭha; api — também; arundhatī — Arundhatī.

Tradução

Kardama Muni deu a mão de sua filha Kalā a Marīci, e de outra filha, Anasūyā, a Atri. Ele deu Śraddhā a Aṅgirā, e Havirbhū, a Pulastya. Deu Gati a Pulaha; a casta Kriyā, a Kratu; Khyāti, a Bhṛgu, e Arundhatī, a Vasiṣṭha.

Texto

atharvaṇe ’dadāc chāntiṁ
yayā yajño vitanyate
viprarṣabhān kṛtodvāhān
sadārān samalālayat

Sinônimos

atharvaṇe — a Atharvā; adadāt — ele deu; śāntim — Śānti; yayā — por quem; yajñaḥ — sacrifício; vitanyate — é executado; vipra-ṛṣabhān — os principais brāhmaṇas; kṛta-udvāhān — casou; sa-dārān — com suas esposas; samalālayat — manteve-os.

Tradução

Ele deu Śānti a Atharvā. Por causa de Śānti, as cerimônias sacrificatórias são bem executadas. Assim, ele casou os principais brāhmaṇas e os manteve com suas esposas.

Texto

tatas ta ṛṣayaḥ kṣattaḥ
kṛta-dārā nimantrya tam
prātiṣṭhan nandim āpannāḥ
svaṁ svam āśrama-maṇḍalam

Sinônimos

tataḥ — então; te — eles; ṛṣayaḥ — os sábios; kṣattaḥ — ó Vidura; kṛta-dārāḥ — assim casados; nimantrya — despedindo-se de; tam — Kardama; prātiṣṭhan — eles partiram; nandim — alegria; āpannāḥ — obtiveram; svam svam — cada um para seu próprio; āśrama-maṇḍalam — eremitério.

Tradução

Assim casados, os sábios despediram-se de Kardama e partiram cheios de alegria, cada um para seu próprio eremitério, ó Vidura.

Texto

sa cāvatīrṇaṁ tri-yugam
ājñāya vibudharṣabham
vivikta upasaṅgamya
praṇamya samabhāṣata

Sinônimos

saḥ — o sábio Kardama; ca — e; avatīrṇam — descido; tri-yugam — Viṣṇu; ājñāya — tendo compreendido; vibudha-ṛṣabham — o líder dos semideuses; vivikte — em lugar solitário; upasaṅgamya — tendo se aproximado; praṇamya — oferecendo reverências; samabhāṣata — ele falou.

Tradução

Ao compreender que a Suprema Personalidade de Deus, o líder de todos os semideuses, Viṣṇu, havia descido, Kardama Muni aproximou-se dEle em um lugar solitário, ofereceu-Lhe reverências e falou o seguinte.

Comentário

O Senhor Viṣṇu é chamado de tri-yuga. Ele aparece em três yugas – Satya, Tretā e Dvāpara –, mas, em Kali-yuga, Ele não aparece. Contudo, pelas orações de Prahlāda Mahārāja, compreendemos que, em Kali-yuga, Ele aparece disfarçado de devoto. Esse devoto é o Senhor Caitanya. Kṛṣṇa apareceu sob a forma de um devoto, mas, embora nunca Se revelasse, Rūpa Gosvāmī pôde descobrir Sua identidade, pois o Senhor não pode Se esconder de um devoto puro. Rūpa Gosvāmī descobriu a identidade do Senhor Caitanya ao oferecer-Lhe suas primeiras reverências. Ele sabia que o Senhor Caitanya era o próprio Kṛṣṇa e, por isso, ofereceu-Lhe suas reverências com as seguintes palavras: “Ofereço meus respeitos a Kṛṣṇa, que agora apareceu como o Senhor Caitanya.” Isso também se confirma nas orações de Prahlāda Mahārāja: em Kali-yuga, Ele não aparece diretamente, mas aparece como um devoto. Viṣṇu, portanto, é conhecido como tri-yuga. Outra explicação de tri-yuga é que Ele tem três pares de atributos divinos, a saber, poder e abundância, piedade e renome, sabedoria e serenidade. Segundo Śrīdhara Svāmī, Seus três pares de opulências são os seguintes: riqueza completa e força completa, fama completa e beleza completa e, por fim, sabedoria completa e renúncia completa. Há diferentes interpretações de tri-yuga, mas todos os estudiosos eruditos aceitam que tri-yuga significa Viṣṇu. Ao compreender que seu filho, Kapila, era o próprio Viṣṇu, Kardama Muni quis oferecer-Lhe suas reverências. Portanto, estando Kapila sozinho, ele Lhe ofereceu seus respeitos e expressou sua mente da seguinte maneira.

Texto

aho pāpacyamānānāṁ
niraye svair amaṅgalaiḥ
kālena bhūyasā nūnaṁ
prasīdantīha devatāḥ

Sinônimos

aho — oh!; pāpacyamānānām — com aqueles que estão muito aflitos; niraye — no infernal enredamento material; svaiḥ — suas próprias; amaṅgalaiḥ — por más ações; kālena bhūyasā — depois de longo tempo; nūnam — na verdade; prasīdanti — eles estão satisfeitos; iha — neste mundo; devatāḥ — os semideuses.

Tradução

Kardama Muni disse: Oh! Depois de tanto tempo, os semideuses deste universo ficaram satisfeitos com as almas sofredoras que estão no enredamento material por causa de suas próprias más ações!

Comentário

Este mundo material é um lugar feito para o sofrimento, que se deve às más ações de seus habitantes, as próprias almas condicionadas. Tais sofrimentos não lhes são impostos por circunstâncias alheias; pelo contrário, são as almas condicionadas que criam seu próprio sofrimento através de seus próprios atos. Na floresta, o incêndio ocorre automaticamente. Não é que alguém precise ir lá e provocar o incêndio; por causa da fricção entre várias árvores, o incêndio ocorre automaticamente. Quando cresce demasiadamente o calor do fogo na floresta deste mundo material, os semideuses, incluindo o próprio Brahmā, sentindo-se perturbados, aproximam-se do Senhor Supremo, a Suprema Personalidade de Deus, e rogam que alivie a situação. Então, a Suprema Personalidade de Deus desce. Em outras palavras, quando os semideuses ficam aflitos devido aos sofrimentos das almas condicionadas, eles se aproximam do Senhor para remediar o sofrimento, e a Personalidade de Deus desce. Quando o Senhor desce, todos os semideuses se animam. Portanto, Kardama Muni disse: “Após muitos e muitos anos de sofrimento humano, agora todos os semideuses estão satisfeitos, porque Kapiladeva, a encarnação de Deus, apareceu”.

Texto

bahu-janma-vipakvena
samyag-yoga-samādhinā
draṣṭuṁ yatante yatayaḥ
śūnyāgāreṣu yat-padam

Sinônimos

bahu — muitos; janma — após nascimentos; vipakvena — que é maduro; samyak — perfeito; yoga-samādhinā — em transe de yoga; draṣṭum — para ver; yatante — eles se esforçam; yatayaḥ — os yogīs; śūnya-agāreṣu — em lugares reclusos; yat — cujos; padam — pés.

Tradução

Após muitos nascimentos, os yogīs maduros, em completo transe de yoga, esforçam-se em lugares reclusos para ver os pés de lótus da Suprema Personalidade de Deus.

Comentário

Aqui se mencionam algumas coisas importantes sobre yoga. A expressão bahu janma-vipakvena significa “após muitos e muitos nascimentos de prática madura de yoga”. E outra expressão, samyag-yoga-samādhinā, significa “pela prática completa do sistema de yoga”. Prática completa de yoga significa bhakti-yoga; a menos que cheguemos ao ponto de bhakti-yoga, ou rendição à Suprema Personalidade de Deus, nossa prática de yoga não será completa. Esse mesmo ponto é corroborado na Śrīmad Bhagavad-gītā. Bahūnāṁ janmanām ante: após muitíssimos nascimentos, o jñānī que amadureceu em conhecimento transcendental rende-se à Suprema Personalidade de Deus. Kardama Muni repete a mesma afirmativa. Após muitíssimos anos e muitíssimos nascimentos de completa prática de yoga, pode-se ver os pés de lótus do Senhor Supremo num lugar recluso. Não é fato que, após a prática de algumas posturas sentadas, alcança-se a perfeição imediatamente. É preciso praticar yoga por muito tempo – “muitos e muitos nascimentos” – para tornar-se maduro, e o yoga tem de ser praticado num lugar afastado. Ninguém pode praticar yoga numa cidade ou num parque público e declarar que se tornou Deus simplesmente em troca de alguns dólares. Tudo isso é propaganda de farsantes. Aqueles que são realmente yogīs praticam yoga num lugar afastado e, após muitíssimos nascimentos, obtêm o sucesso, contanto que se rendam à Suprema Personalidade de Deus. Essa é a completa perfeição do yoga.

Texto

sa eva bhagavān adya
helanaṁ na gaṇayya naḥ
gṛheṣu jāto grāmyāṇāṁ
yaḥ svānāṁ pakṣa-poṣaṇaḥ

Sinônimos

saḥ eva — esta mesmíssima; bhagavān — Suprema Personalidade de Deus; adya — hoje; helanam — negligência; na — não; gaṇayya — considerando altos e baixos; naḥ — nossos; gṛheṣu — nos lares; jātaḥ — apareceu; grāmyāṇām — de chefes de família comuns; yaḥ — aquele que; svānām — de Seus próprios devotos; pakṣa-poṣaṇaḥ — que apoia o grupo.

Tradução

Não considerando a negligência de chefes de família comuns como nós, essa mesma Suprema Personalidade de Deus aparece em nossos lares simplesmente para dar apoio a Seus devotos.

Comentário

Os devotos têm tanta afeição pela Personalidade de Deus que, embora Ele não apareça ante aqueles que praticam yoga em lugares solitários mesmo no decorrer de muitíssimos nascimentos, Ele concorda em aparecer no lar de um chefe de família onde os devotos se ocupam em serviço devocional sem prática material de yoga. Em outras palavras, o serviço devocional ao Senhor é tão fácil que até um chefe de família pode ver a Suprema Personalidade de Deus como um dos membros de sua família, da maneira que Kardama Muni experimentou em seu filho. Apesar de ser yogī, ele era um chefe de família, mas obteve a encarnação da Suprema Personalidade de Deus como seu filho.

O serviço devocional é um método transcendental tão poderoso que supera todos os outros métodos de compreensão transcendental. O Senhor diz, portanto, que não vive, nem em Vaikuṇṭha, nem no coração do yogī, senão que vive onde Seus devotos puros cantam sempre sobre Ele e O glorificam. A Suprema Personalidade de Deus é conhecida como bhakta-vatsala. Ele nunca é descrito como jñānī-vatsala ou yogī-vatsala. Ele é sempre descrito como bhakta-vatsala porque Se sente mais inclinado a Seus devotos do que a outros transcendentalistas. A Bhagavad-gītā confirma que somente o devoto pode entendê-lO como Ele é. Bhaktyā mām abhijānāti: “Só é possível entender-Me através do serviço devocional, e não de outra maneira.” Essa é a única compreensão real porque, embora os jñānīs, especuladores mentais, possam experimentar somente a refulgência, ou o brilho corpóreo, da Suprema Personalidade de Deus, e os yogīs possam experimentar somente a representação parcial da Suprema Personalidade de Deus, o bhakta não apenas O compreende como Ele é, como também se associa pessoalmente com a Personalidade de Deus.

Texto

svīyaṁ vākyam ṛtaṁ kartum
avatīrṇo ’si me gṛhe
cikīrṣur bhagavān jñānaṁ
bhaktānāṁ māna-vardhanaḥ

Sinônimos

svīyam — Tuas próprias; vākyam — palavras; ṛtam — verdadeiras; kartum — fazer; avatīrṇaḥ — desceste; asi — estás; me gṛhe — em minha casa; cikīrṣuḥ — desejoso de disseminar; bhagavān — a Personalidade de Deus; jñānam — conhecimento; bhaktānām — dos devotos; māna — a honra; vardhanaḥ — que promoves.

Tradução

Kardama Muni disse: Tu, meu querido Senhor, que sempre promoves a honra de Teus devotos, desceste à minha casa simplesmente para cumprir com Tua palavra e disseminar o processo de verdadeiro conhecimento.

Comentário

Quando o Senhor apareceu ante Kardama Muni após sua madura prática de yoga, Ele prometeu que Se tornaria filho de Kardama. Ele desceu como o filho de Kardama Muni para cumprir essa promessa. Outro propósito de Seu aparecimento é cikīrṣur bhagavān jñānam, distribuir conhecimento. Portanto, Ele é chamado de bhaktānāṁ māna-vardhanaḥ: “Aquele que promove a honra de Seus devotos.” Distribuindo sāṅkhya, Ele promoveria a honra dos devotos; portanto, a filosofia sāṅkhya não é especulação mental seca. Filosofia sāṅkhya significa serviço devocional. Como poderia a honra dos devotos ser promovida a menos que sāṅkhya se destinasse ao serviço devocional? Os devotos não estão interessados em conhecimento especulativo; logo, o sāṅkhya elaborado por Kapila Muni destina-se a estabelecer-nos firmemente em serviço devocional. Conhecimento verdadeiro e liberação verdadeira são sinônimo de render-se à Suprema Personalidade de Deus e ocupar-se em serviço devocional.

Texto

tāny eva te ’bhirūpāṇi
rūpāṇi bhagavaṁs tava
yāni yāni ca rocante
sva-janānām arūpiṇaḥ

Sinônimos

tāni — aquelas; eva — realmente; te — Tuas; abhirūpāṇi — adequadas; rūpāṇi — formas; bhagavan — ó Senhor; tava — Tuas; yāni yāni — todas as quais; ca — e; rocante — são agradáveis; sva-janānām — a Teus próprios devotos; arūpiṇaḥ — de quem não tem forma material.

Tradução

Meu querido Senhor, embora não tenhas uma forma material, tens Tuas formas inumeráveis. Elas são realmente Tuas formas transcendentais, que são agradáveis a Teus devotos.

Comentário

Na Brahma-saṁhitā, afirma-se que o Senhor é o uno Absoluto, mas que Ele tem formas ananta, ou inumeráveis. Advaitam acyutam anādim ananta-rūpam. O Senhor é a forma original, mas, ainda assim, tem multiformas. Essas multiformas, Ele as manifesta transcendentalmente, segundo o gosto de Seus multidevotos. Sabe-se que, certa vez, Hanumān, o grande devoto do Senhor Rāmacandra, disse que sabia que Nārāyaṇa, o esposo de Lakṣmī, e Rāma, o esposo de Sītā, são os mesmos, e que não há diferença entre Lakṣmī e Sītā, porém, quanto a ele, ele gostava da forma do Senhor Rāma. De modo semelhante, alguns devotos adoram a forma original de Kṛṣṇa. Quando dizemos “Kṛṣṇa”, referimo-nos a todas as formas do Senhor – não somente Kṛṣṇa, mas também Rāma, Nṛsiṁha, Varāha, Nārāyaṇa etc. As variedades de formas transcendentais existem simultaneamente. Isso também se afirma na Brahma-saṁhitā: rāmādi-mūrtiṣu... nānāvatāram. Ele já existe em multiformas, mas nenhuma das formas é material. Śrīdhara Svāmī comenta que arūpiṇaḥ, “sem forma”, significa sem forma material. O Senhor tem forma, ou como se poderia afirmar neste verso que tāny eva te ’bhirūpāṇi rūpāṇi bhagavaṁs tava: “Tens Tuas formas, mas elas não são materiais. Materialmente, não tens formas, mas, espiritualmente, transcendentalmente, tens multiformas”? Os filósofos māyāvādīs não podem entender essas formas transcendentais do Senhor, e, desapontados, dizem que o Senhor Supremo é impessoal. Mas isso não é verdade; onde há forma há uma pessoa. Muitas vezes, em muitos textos védicos, descreve-se o Senhor como puruṣa, que significa “a forma original, o desfrutador original”. A conclusão é que o Senhor não tem forma material, apesar do que, segundo o gosto de diferentes classes de devotos, Ele existe simultaneamente em multiformas, tais como Rāma, Nṛsiṁha, Varāha, Nārāyaṇa e Mukunda. Há muitos milhares e milhares de formas, mas todas elas são viṣṇu-tattva, Kṛṣṇa.

Texto

tvāṁ sūribhis tattva-bubhutsayāddhā
sadābhivādārhaṇa-pāda-pīṭham
aiśvarya-vairāgya-yaśo-’vabodha-
vīrya-śriyā pūrtam ahaṁ prapadye

Sinônimos

tvām — a Ti; sūribhiḥ — pelos grandes sábios; tattva — a Verdade Absoluta; bubhutsayā — com o desejo de entender; addhā — certamente; sadā — sempre; abhivāda — de respeitos adorativos; arhaṇa — que são dignos; pāda — de Teus pés; pīṭham — para o assento; aiśvarya — opulência; vairāgya — renúncia; yaśaḥ — fama; avabodha — conhecimento; vīrya — força; śriyā — com beleza; pūrtam — que és pleno; aham — eu; prapadye — me rendo.

Tradução

Meu querido Senhor, Teus pés de lótus são o reservatório que sempre merece receber homenagens adorativas de todos os grandes sábios ávidos por entender a Verdade Absoluta. És pleno de opulência, renúncia, fama transcendental, conhecimento, força e beleza, e, em virtude disso, eu me rendo a Teus pés de lótus.

Comentário

Na realidade, aqueles que buscam a Verdade Absoluta devem refugiar-se aos pés de lótus da Suprema Personalidade de Deus e adorá-lO. Na Bhagavad-gītā, o Senhor Kṛṣṇa aconselhou Arjuna muitas vezes a render-se a Ele, especialmente no fim do nono capítulo – man-manā bhava mad-bhaktaḥ: “Se queres ser perfeito, simplesmente pensa sempre em Mim, torna-te Meu devoto, adora-Me e oferece-Me tuas reverências. Dessa maneira, entenderás a Mim, a Personalidade de Deus, e finalmente voltarás a Mim, indo de volta ao Supremo, de volta ao lar.” Por que é assim? O Senhor é sempre pleno de seis opulências, como se menciona neste verso: riqueza, renúncia, fama, conhecimento, força e beleza. A palavra pūrtam significa “por completo”. Ninguém pode alegar que toda riqueza lhe pertence, mas Kṛṣṇa pode afirmá-lo, uma vez que Ele tem toda riqueza. Da mesma forma, Ele é pleno de conhecimento, renúncia, força e beleza. Ele é pleno de tudo, e ninguém pode superá-lO. Outro nome de Kṛṣṇa é asamordhva, que significa que ninguém é igual ou superior a Ele.

Texto

paraṁ pradhānaṁ puruṣaṁ mahāntaṁ
kālaṁ kaviṁ tri-vṛtaṁ loka-pālam
ātmānubhūtyānugata-prapañcaṁ
svacchanda-śaktiṁ kapilaṁ prapadye

Sinônimos

param — transcendental; pradhānam — suprema; puruṣam — pessoa; mahāntam — que é a origem do mundo material; kālam — que é o tempo; kavim — plenamente consciente; tri-vṛtam — três modos da natureza material; loka-pālam — que é o mantenedor de todos os universos; ātma — em Si mesmo; anubhūtya — pela potência interna; anugata — dissolvidos; prapañcam — cujas manifestações materiais; sva-chanda — independentemente; śaktim — que é poderoso; kapilam — ao Senhor Kapila; prapadye — eu me rendo.

Tradução

Rendo-me à Suprema Personalidade de Deus, que desceu sob a forma de Kapila, que é independentemente poderoso e transcendental, que é a Pessoa Suprema e o Senhor da totalidade da matéria e do elemento tempo, que é o plenamente consciente mantenedor de todos os universos sob os três modos da natureza material, e que absorve as manifestações materiais após a dissolução delas.

Comentário

As seis opulências – riqueza, força, fama, beleza, conhecimento e renúncia – são aqui indicadas por Kardama Muni, que chama Kapila Muni, seu filho, de param. O termo param é usado no início do Śrīmad-Bhāgavatam, na frase paraṁ satyam, para referir-se ao summum bonum, ou a Suprema Personalidade de Deus. Param é explicado de forma mais elaborada pela palavra seguinte, pradhānam, que significa o principal, a origem, a fonte de tudo – sarva-kāraṇa-kāraṇam – a causa de todas as causas. A Suprema Personalidade de Deus não é amorfa: Ele é puruṣam, ou o desfrutador, a pessoa original. Ele é o elemento tempo e é onisciente. Ele conhece tudo – passado, presente e futuro –, como se confirma na Bhagavad-gītā. O Senhor diz: “Eu conheço tudo – passado, presente e futuro – em todos os cantos do universo.” O mundo material, que gira sob o encanto dos três modos da natureza, também é uma manifestação de Sua energia. Parāsya śaktir vividhaiva śrūyate: Tudo que vemos é uma interação de Suas energias. (Śvetāśvatara Upaniṣad 6.8) Parasya brahmaṇaḥ śaktis tathedam akhilaṁ jagat. Essa é a versão do Viṣṇu Purāṇa. Podemos entender que tudo o que vemos é uma interação dos três modos da natureza material, mas, na verdade, tudo isso é uma interação da energia do Senhor. Loka pālam: Ele é realmente o mantenedor de todas as entidades vivas. Nityo nityānām: Ele é a principal de todas as entidades vivas; Ele é único, mas mantém muitas e muitas entidades vivas. Deus mantém todas as demais entidades vivas, mas ninguém pode manter Deus. Esse é o Seu svacchanda-śakti: Ele não depende dos outros. Pode ser que alguém se julgue independente, mas, de qualquer modo, depende de alguém superior a ele. A Personalidade de Deus, contudo, é absoluta: não há ninguém superior ou igual a Ele.

Kapila Muni apareceu como o filho de Kardama Muni, mas, como Kapila é uma encarnação da Suprema Personalidade de Deus, Kardama Muni ofereceu-Lhe respeitosas reverências com plena rendição. Outra expressão neste verso é muito importante: ātmānubhūtyānugata-prapañcam. O Senhor desce como Kapila ou Rāma, Nṛsiṁha ou Varāha, e quaisquer formas que Ele assuma no mundo material são manifestações de Sua própria energia pessoal interna. Não são, de modo algum, formas da energia material. As entidades vivas comuns que se manifestam neste mundo material têm corpos criados pela energia material, mas, quando Kṛṣṇa, ou qualquer uma de Suas expansões ou partes das expansões, desce a este mundo material, embora Ele pareça ter um corpo material, Seu corpo não é material. Ele sempre tem um corpo transcendental. Porém, os tolos e patifes, chamados mūḍhas, consideram-nO como um deles e, por isso, zombam dEle. Recusam-se a aceitar Kṛṣṇa como a Suprema Personalidade de Deus porque não podem entendê-lO. Na Bhagavad-gītā, Kṛṣṇa diz que avajānanti māṁ mūḍhāḥ: “Quem é tolo e patife zomba de Mim.” Quando Deus desce com uma forma, isso não significa que Ele assume Sua forma com a ajuda da energia material. Ele manifesta a forma espiritual como Ele existe em Seu reino espiritual.

Texto

ā smābhipṛcche ’dya patiṁ prajānāṁ
tvayāvatīrṇarṇa utāpta-kāmaḥ
parivrajat-padavīm āsthito ’haṁ
cariṣye tvāṁ hṛdi yuñjan viśokaḥ

Sinônimos

ā sma abhipṛcche — estou indagando; adya — agora; patim — o Senhor; prajānām — de todas as criaturas; tvayā — por Ti; avatīrṇa-ṛṇaḥ — livre de dívidas; uta — e; āpta — satisfeitos; kāmaḥ — desejos; parivrajat — de pedinte itinerante; padavīm — o caminho; āsthitaḥ — aceitando; aham — eu; cariṣye — vagarei; tvām — Tu; hṛdi — em meu coração; yuñjan — mantendo; viśokaḥ — livre da lamentação.

Tradução

Hoje tenho algo a pedir-Te, a Ti que és o Senhor de todas as entidades vivas. Como acabas de me liberar de minhas dívidas com meu pai, e como todos os meus desejos foram satisfeitos, desejo aceitar a ordem de pedinte itinerante. Renunciando esta vida familiar, desejo vagar, livre da lamentação, pensando sempre em Ti dentro de meu coração.

Comentário

Na verdade, sannyāsa, ou renúncia à vida familiar material, requer plena absorção em consciência de Kṛṣṇa e imersão no eu. Não se aceita sannyāsa, isenção da responsabilidade familiar na ordem de vida renunciada, para formar outra família ou para criar uma embaraçosa fraude transcendental em nome de sannyāsa. Não cabe ao sannyāsī o dever de tornar-se proprietário de muitas coisas e juntar dinheiro do público inocente. O sannyāsī orgulha-se de estar sempre pensando em Kṛṣṇa internamente. Naturalmente, há duas classes de devotos do Senhor. Uma se chama goṣṭhyānandī, isto é, aquele que é pregador e tem muitos seguidores na pregação das glórias do Senhor e que vive entre esses muitíssimos seguidores apenas para organizar atividades missionárias. A outra classe de devoto chama-se ātmānandī, ou autossatisfeito, e não se expõe ao risco do trabalho de pregação. Ele, então, permanece sozinho com Deus. Kardama Muni enquadra-se nessa classificação. Ele queria livrar-se de todas as ansiedades e permanecer sozinho dentro de seu coração com a Suprema Personalidade de Deus. Parivrāja significa “pedinte itinerante”. O sannyāsī mendicante não deve viver em parte alguma por mais de três dias. Ele deve sempre estar viajando porque seu dever é ir de porta em porta e iluminar as pessoas sobre a consciência de Kṛṣṇa.

Texto

śrī-bhagavān uvāca
mayā proktaṁ hi lokasya
pramāṇaṁ satya-laukike
athājani mayā tubhyaṁ
yad avocam ṛtaṁ mune

Sinônimos

śrībhagavān uvāca – a Suprema Personalidade de Deus disse; mayā — por Mim; proktam — falado; hi — de fato; lokasya — para a população; pramāṇam — autoridade; satya — falado na escritura; laukike — e coloquialmente; atha — portanto; ajani — houve nascimento; mayā — por Mim; tubhyam — a ti; yat — aquilo que; avocam — Eu disse; ṛtam — verdade; mune — ó sábio.

Tradução

A Personalidade de Deus Kapila disse: Tudo o que Eu falo, quer diretamente, quer nas escrituras, é autorizado sob todos os aspectos para a população do mundo. Ó Muni, porque Eu te disse antes que Me tornaria teu filho, desci para cumprir esta promessa.

Comentário

Kardama Muni estava prestes a deixar sua família para ocupar-se inteiramente a serviço do Senhor. No entanto, uma vez que ele sabia que o próprio Senhor, como Kapila, nascera em seu lar como seu próprio filho, por que ele estava se preparando para deixar o lar em busca da autorrealização ou da compreensão de Deus? Se o próprio Deus estava presente em seu lar, por que deveria deixar o lar? Sem dúvida, pode ser que alguém faça esta pergunta. Mas aqui se diz que tudo o que se fala nos Vedas e tudo o que se pratica de acordo com os preceitos dos Vedas deve ser aceito como autorizado pela sociedade. A autoridade védica diz que o chefe de família deve deixar o lar após os cinquenta anos. Pañcāśordhvaṁ vanaṁ vrajet: o homem deve deixar sua vida familiar e entrar na floresta após os cinquenta anos. Essa é uma afirmação autorizada dos Vedas, baseada na divisão da vida social em quatro ramos de atividades – brahmacarya, gṛhastha, vānaprastha e sannyāsa.

Kardama Muni praticou yoga muito rigidamente como brahmacārī antes de seu casamento, e tornou-se tão poderoso e alcançou tanto poder místico que seu pai, Brahmā, mandou-o casar-se e gerar filhos como chefe de família. Kardama também fez isso: ele gerou nove boas filhas e um filho, Kapila Muni, e assim seu dever doméstico também foi muito bem executado. Agora seu dever era partir. Muito embora ele tivesse a Suprema Personalidade de Deus como seu filho, ele tinha que respeitar a autoridade dos Vedas. Essa é uma lição importantíssima. Mesmo que alguém tenha Deus em seu lar como seu filho, ainda deve seguir os preceitos védicos. Afirma-se que mahājano yena gataḥ sa panthāḥ: deve-se trilhar o caminho seguido pelas grandes autoridades.

O exemplo de Kardama Muni é muito instrutivo, pois, apesar de ter a Suprema Personalidade de Deus como seu filho, ele deixou o lar simplesmente para obedecer à autoridade do preceito védico. Kardama Muni estabelece aqui o principal objetivo de ter deixado o lar: ao viajar por todo o mundo como mendicante, ele sempre se lembraria da Suprema Personalidade de Deus dentro de seu coração e, desse modo, ele se livraria de todas as ansiedades da existência material. Nesta era de Kali-yuga, sannyāsa é proibido porque todas as pessoas desta era são śūdras e não podem seguir as regras e regulações da vida de sannyāsa. Observa-se comumente que os ditos sannyāsīs são viciados em disparates – até ao ponto de terem relações secretas com mulheres. Essa é a abominável situação desta era. Muito embora se vistam como sannyāsīs, não podem livrar-se dos quatro princípios da vida pecaminosa, a saber, vida sexual ilícita, consumo de carne, intoxicação e jogos. Uma vez que não estão livres desses quatro princípios, enganam o público, fazendo-se passar por svāmīs.

O preceito para Kali-yuga é que ninguém deve aceitar sannyāsa. Evidentemente, aqueles que seguem as regras e regulações de fato devem aceitar sannyāsa. Geralmente, no entanto, as pessoas são incapazes de aceitar a vida de sannyāsa, de maneira que Caitanya Mahāprabhu enfatizava: kalau nāsty eva nāsty eva nāsty eva gatir anyathā. Nesta era, não existe alternativa, não existe alternativa, não existe alternativa além de cantar o santo nome do Senhor: Hare Kṛṣṇa, Hare Kṛṣṇa, Kṛṣṇa Kṛṣṇa, Hare Hare. O principal objetivo da vida de sannyāsa é viver constantemente na companhia do Senhor Supremo, seja por pensar nEle dentro do coração, seja por ouvir sobre Ele através da recepção auditiva. Nesta era, ouvir é mais importante do que pensar, porque nosso pensamento pode ser perturbado pela agitação mental, mas, se nos concentrarmos em ouvir, seremos forçados a nos associar com a vibração sonora de Kṛṣṇa. Kṛṣṇa e a vibração sonora “Kṛṣṇa” não são diferentes; assim, se alguém vibrar, bem alto, Hare Kṛṣṇa, será capaz de pensar em Kṛṣṇa imediatamente. Este processo de cantar é o melhor processo de autorrealização nesta era, motivo pelo qual o Senhor Caitanya o pregou tão bem para o benefício de toda a humanidade.

Texto

etan me janma loke ’smin
mumukṣūṇāṁ durāśayāt
prasaṅkhyānāya tattvānāṁ
sammatāyātma-darśane

Sinônimos

etat — este; me — Meu; janma — nascimento; loke — no mundo; asmin — neste; mumukṣūṇām — por aqueles grandes sábios que buscam a liberação; durāśayāt — de desnecessários desejos materiais; prasaṅkhyānāya — para explicar; tattvānām — das verdades; sammatāya — que é tida em alta estima; ātma-darśane — em autorrealização.

Tradução

Meu aparecimento neste mundo destina-se especialmente a explicar a filosofia sāṅkhya, que é tida em alta estima por aqueles que, buscando a autorrealização, desejam libertar-se do enredamento de desnecessários desejos materiais.

Comentário

Neste verso, a palavra durāśayāt é muito significativa. Dur refere-se a incômodos ou duḥkha, sofrimentos. Āśayāt significa “do refúgio”. Nós, almas condicionadas, refugiamo-nos no corpo material, que é cheio de incômodos e sofrimentos. As pessoas tolas não podem entender esta situação, e isso se chama ignorância, ilusão ou o encanto de māyā. A sociedade humana deve entender muito seriamente que o corpo em si é a fonte de toda a vida de sofrimento. Supõe-se que a civilização moderna esteja fazendo avanço em conhecimento científico, mas o que é esse conhecimento científico? Ele se baseia apenas em confortos materiais, sem conhecimento de que, por mais confortável que se mantenha o corpo, ainda assim o corpo é destrutível. Como se afirma na Bhagavad-gītā, antavanta ime dehāḥ: esses corpos destinam-se à destruição. Nityasyoktāḥ śarīriṇaḥ refere-se à alma vivente, ou à centelha viva, dentro do corpo. Essa alma é eterna, mas o corpo não é eterno. Para executar nossas atividades, temos de ter um corpo: sem corpo, sem órgãos dos sentidos, não há atividade. Mas as pessoas não indagam se é possível ter um corpo eterno. Na verdade, elas aspiram a um corpo eterno porque, muito embora se ocupem em gozo dos sentidos, esse gozo dos sentidos não é eterno. Portanto, elas carecem de algo de que possam desfrutar eternamente, mas não entendem como alcançar essa perfeição. A filosofia sāṅkhya, portanto, como Kapiladeva afirma aqui, é tattvānām. O sistema de filosofia sāṅkhya é projetado para proporcionar compreensão da real verdade. O que é essa real verdade? A real verdade é o conhecimento de como sair do corpo material, que é a fonte de todos os incômodos. A encarnação, ou descida, do Senhor Kapila destina-se especialmente a este propósito. É isso o que se afirma claramente aqui.

Texto

eṣa ātma-patho ’vyakto
naṣṭaḥ kālena bhūyasā
taṁ pravartayituṁ deham
imaṁ viddhi mayā bhṛtam

Sinônimos

eṣaḥ — este; ātma-pathaḥ — caminho de autorrealização; avyaktaḥ — difícil de ser conhecido; naṣṭaḥ — perdido; kālena bhūyasā — no transcurso do tempo; tam — esta; pravartayitum — para apresentar novamente; deham — corpo; imam — este; viddhi — por favor, fica sabendo; mayā — por Mim; bhṛtam — assumido.

Tradução

Este caminho de autorrealização, que é difícil de se compreender, perdeu-se devido ao transcurso do tempo. Por favor, toma conhecimento de que assumi este corpo de Kapila para apresentar e explicar novamente esta filosofia à sociedade humana.

Comentário

Não é verdade que a filosofia sāṅkhya seja um novo sistema de filosofia apresentado por Kapila, à maneira dos filósofos materiais que apresentam novos tipos de pensamento mental especulativo para suplantar o de outro filósofo. Na plataforma material, todos, especialmente o especulador mental, tentam sobressair aos demais. O campo de atividade dos especuladores é a mente: não há limite para as diferentes maneiras pelas quais se pode agitar a mente. A mente pode ser agitada ilimitadamente, e assim pode-se apresentar ilimitado número de teorias. A filosofia sāṅkhya não é assim: não é especulação mental. Ela é verdadeira, mas, na época de Kapila, ela havia se perdido.

Com o transcurso do tempo, pode ser que um tipo de conhecimento em particular se perca ou fique coberto temporariamente; essa é a natureza deste mundo material. Uma afirmação semelhante foi feita pelo Senhor Kṛṣṇa na Bhagavad-gītā. Sa kāleneha mahatā yogo naṣṭaḥ: “Com o transcurso do tempo, o sistema de yoga, apresentado na Bhagavad-gītā, foi perdido.” Ele vinha em paramparā, em sucessão discipular, mas, devido ao transcurso do tempo, foi perdido. O fator tempo é tão opressor que, com o transcurso do tempo, tudo neste mundo material se estraga ou se perde. O sistema de yoga da Bhagavad-gītā estivera perdido antes do encontro entre Kṛṣṇa e Arjuna. Portanto, Kṛṣṇa expôs novamente o mesmo antigo sistema de yoga a Arjuna, que pôde realmente compreender a Bhagavad-gītā. De modo semelhante, Kapila também disse que não era exatamente Ele que estava introduzindo o sistema de filosofia sāṅkhya: ele já existia, porém, com o transcurso do tempo, perdeu-se misteriosamente, de modo que Ele apareceu para reapresentá-lo. Esse é o propósito da encarnação de Deus. Yadā yadā hi dharmasya glānir bhavati bhārata. Dharma significa a verdadeira ocupação da entidade viva. Quando há alguma discrepância na ocupação eterna da entidade viva, o Senhor vem e apresenta a verdadeira ocupação da vida. Qualquer suposto sistema religioso que não esteja na linha do serviço devocional chama-se adharma-saṁsthāpana. Quando as pessoas se esquecem de sua relação eterna com Deus e se ocupam em algo além do serviço devocional, a ocupação delas é chamada de irreligião. Na filosofia sāṅkhya, explica-se como alguém pode livrar-se da condição de sofrimento da vida material, e é o próprio Senhor quem explica este sublime sistema.

Texto

gaccha kāmaṁ mayāpṛṣṭo
mayi sannyasta-karmaṇā
jitvā sudurjayaṁ mṛtyum
amṛtatvāya māṁ bhaja

Sinônimos

gaccha — vai; kāmam — conforme desejas; mayā — por Mim; āpṛṣṭaḥ — consentido; mayi — a Mim; sannyasta — completamente entregues; karmaṇā — com tuas atividades; jitvā — tendo conquistado a; sudurjayam — insuperável; mṛtyum — morte; amṛtatvāya — para a vida eterna; mām — a Mim; bhaja — ocupa em serviço devocional.

Tradução

Agora, com Meu consentimento, vai conforme teu desejo, entregando todas as tuas atividades a Mim. Conquistando a morte insuperável, adora-Me para a vida eterna.

Comentário

Declara-se aqui o objetivo da filosofia sāṅkhya. Se alguém deseja verdadeira e eterna bem-aventurança, tem de se ocupar em serviço devocional, ou consciência de Kṛṣṇa. Livrar-se de nascimentos e mortes não é tarefa fácil. O nascimento e a morte são naturais a este corpo material. Sudurjayam significa “dificílimo de superar”. Os supostos cientistas modernos não têm meios suficientes para entender o processo da vitória sobre o nascimento e a morte. Portanto, eles deixam de lado a questão do nascimento e da morte; eles não os levam em consideração. Simplesmente se ocupam com os problemas do corpo material, que é transitório e certamente terá um fim.

Na verdade, a vida humana destina-se a dominar o insuperável processo de nascimento e morte. Isso pode ser feito da maneira aqui estabelecida. Māṁ bhaja: é preciso ocupar-se em serviço devocional ao Senhor. Na Bhagavad-gītā também, o Senhor diz que man-manā bhava mad-bhaktaḥ: “Simplesmente torna-te Meu devoto. Simplesmente adora-Me.” Mas os tolos, assim chamados eruditos, dizem que não é a Kṛṣṇa que devemos adorar e a quem devemos nos render; é a alguma outra coisa. Sem a misericórdia de Kṛṣṇa, portanto, ninguém pode entender a filosofia sāṅkhya ou qualquer filosofia que se destine especialmente à liberação. O conhecimento védico confirma que nos enredamos nesta vida material por causa da ignorância e que nos livramos do enredamento material situando-nos em conhecimento verdadeiro. Sāṅkhya quer dizer o conhecimento verdadeiro através do qual podemos escapar do enredamento material.

Texto

mām ātmānaṁ svayaṁ-jyotiḥ
sarva-bhūta-guhāśayam
ātmany evātmanā vīkṣya
viśoko ’bhayam ṛcchasi

Sinônimos

mām — a Mim; ātmānam — a Alma Suprema, ou Paramātmā; svayam-jyotiḥ — autorrefulgente; sarva-bhūta — de todos os seres; guhā — nos corações; āśayam — habitando; ātmani — em teu próprio coração; eva — na verdade; ātmanā — através de teu intelecto; vīkṣya — sempre vendo, sempre pensando; viśokaḥ — livre da lamentação; abhayam — destemor; ṛcchasi — alcançarás.

Tradução

Em teu próprio coração, através de teu intelecto, verás sempre a Mim, a suprema alma autorrefulgente que habita dentro dos corações de todas as entidades vivas. Assim, alcançarás o estado de vida eterna, livre de toda lamentação e medo.

Comentário

As pessoas vivem muito ansiosas por entender a Verdade Absoluta de várias maneiras, especialmente experimentando o brahmajyoti, ou a refulgência Brahman, através da meditação e da especulação mental. Mas Kapiladeva usa a palavra mām para enfatizar que a Personalidade de Deus é o aspecto último da Verdade Absoluta. Na Bhagavad-gītā, a Personalidade de Deus sempre diz mām, “a Mim”, mas os patifes interpretam mal o significado óbvio. Mām é a Suprema Personalidade de Deus. Se alguém puder ver a Suprema Personalidade de Deus como Ele aparece em diferentes encarnações e entender que Ele não assume um corpo material, mas está presente sob Sua própria forma espiritual eterna, então poderá entender a natureza da Personalidade de Deus. Uma vez que os menos inteligentes não podem entender este ponto, ele é enfatizado em toda parte, repetidamente. Simplesmente por ver a forma do Senhor como Ele Se apresenta através de Sua própria potência interna, como Kṛṣṇa ou Rāma ou Kapila, pode-se ver diretamente o brahmajyoti, porque o brahmajyoti não passa da refulgência do Seu fulgor corpóreo. Uma vez que o brilho do Sol é o fulgor do planeta Sol, vendo o Sol automaticamente vemos o brilho do Sol; analogamente, vendo a Suprema Personalidade de Deus vemos e experimentamos simultaneamente o aspecto Paramātmā, bem como o aspecto Brahman impessoal do Supremo.

O Bhāgavatam já enunciou que a Verdade Absoluta está presente sob três aspectos – no começo, como o Brahman impessoal; na fase seguinte, como o Paramātmā no coração de todos, e, por fim, como a compreensão última da Verdade Absoluta, Bhagavān, a Suprema Personalidade de Deus. Aquele que vê a Pessoa Suprema pode automaticamente experimentar os outros aspectos, a saber, os aspectos Paramātmā e Brahman do Senhor. As palavras aqui usadas são viśoko ’bhayam ṛcchasi. Simplesmente vendo a Personalidade de Deus experimentamos tudo, e o resultado é que nos situamos na plataforma onde não há lamentação nem temor. Isso só se pode atingir através do serviço à Personalidade de Deus.

Texto

mātra ādhyātmikīṁ vidyāṁ
śamanīṁ sarva-karmaṇām
vitariṣye yayā cāsau
bhayaṁ cātitariṣyati

Sinônimos

mātre — à Minha mãe; ādhyātmikīm — que abre a porta da vida espiritual; vidyām — conhecimento; śamanīm — pondo fim; sarva-karmaṇām — todas as atividades fruitivas; vitariṣye — Eu darei; yayā — pelo qual; ca — também; asau — ela; bhayam — temor; ca — também; atitariṣyati — suplantará.

Tradução

Também descreverei à Minha mãe este sublime conhecimento, que é a porta para a vida espiritual, para que ela também possa alcançar a perfeição e a autorrealização, pondo fim a todas as reações a atividades fruitivas. Assim, ela também se livrará de todo o temor material.

Comentário

Kardama Muni estava ansioso acerca de sua boa esposa, Devahūti, enquanto deixava o lar, de modo que o filho digno prometeu que não só Kardama Muni se livraria do enredamento material, mas Devahūti também se livraria ao receber instruções de seu filho. Um ótimo exemplo se estabelece aqui: o esposo vai embora, adotando a ordem sannyāsa para a autorrealização, mas seu representante, o filho, que é igualmente instruído, permanece em casa para liberar a mãe. O sannyāsī não deve levar a esposa consigo. Na fase vānaprastha de vida retirada, ou a fase entre a vida familiar e a vida renunciada, pode-se manter a esposa como assistente, mas sem ter relações sexuais. Porém, na ordem sannyāsa da vida, o homem não pode manter a esposa consigo. Caso contrário, alguém como Kardama Muni poderia ter mantido sua esposa consigo, e não teria havido obstáculo à prática de sua autorrealização.

Kardama Muni seguiu o preceito védico de que ninguém na vida de sannyāsa pode ter algum tipo de relação com mulheres. Mas qual é a posição da mulher que é deixada pelo esposo? Ela é confiada ao filho, e o filho promete que libertará a mãe do cativeiro. Uma mulher não deve tomar sannyāsa. As chamadas sociedades espirituais inventadas nos tempos modernos dão sannyāsa até para as mulheres, embora não haja sanção na literatura védica para a adoção de sannyāsa por parte de uma mulher. A mulher deve permanecer no lar. Ela tem apenas três fases de vida: dependência do pai na infância, dependência do esposo na juventude e, na velhice, dependência do filho crescido, tal como Kapila. Na velhice, o progresso da mulher depende do filho crescido. O filho ideal, Kapila Muni, está garantindo a Seu pai a liberação de Sua mãe, para que Seu pai se retire pacificamente, sem preocupações com relação à sua boa esposa.

Texto

maitreya uvāca
evaṁ samuditas tena
kapilena prajāpatiḥ
dakṣiṇī-kṛtya taṁ prīto
vanam eva jagāma ha

Sinônimos

maitreyaḥ uvāca — o grande sábio Maitreya disse; evam — assim; samuditaḥ — interpelado; tena — por Ele; kapilena — por Kapila; prajāpatiḥ — o progenitor da sociedade humana; dakṣiṇī-kṛtya — tendo circum-ambulado; tam — a Ele; prītaḥ — estando pacífico; vanam — para a floresta; eva — de fato; jagāma — ele partiu; ha — então.

Tradução

Śrī Maitreya disse: Assim, quando Kapila, o filho de Kardama Muni, falou-lhe tudo o que tinha a dizer, Kardama, o progenitor da sociedade humana, circundou-O e, com espírito bondoso e pacífico, partiu imediatamente para a floresta.

Comentário

Ir para a floresta é compulsório para todos. Não se trata de uma excursão mental à qual uma pessoa vai e outra não. Todos devem ir para a floresta pelo menos na fase de vānaprastha. Ir para a floresta significa abrigar-se cem por cento no Senhor Supremo, como explica Prahlāda Mahārāja em suas conversas com seu pai. Sadā samudvigna-dhiyām. (Śrīmad-Bhāgavatam 7.5.5) As pessoas que aceitam um corpo material e temporário vivem cheias de ansiedades. Não devemos, portanto, nos deixar afetar tanto por este corpo material, senão que devemos tentar nos libertar dele. O processo preliminar para libertar-se é ir para a floresta ou abandonar as relações familiares e dedicar-se exclusivamente à consciência de Kṛṣṇa. Esse é o propósito de se ir para a floresta. Caso contrário, a floresta não passa de um lugar de macacos e animais selvagens. Ir para a floresta não significa tornar-se um macaco ou um animal feroz. Significa apenas aceitar exclusivamente o abrigo da Suprema Personalidade de Deus e ocupar-se plenamente em serviço. Na verdade, não é preciso ir para a floresta. Atualmente, isso não é nem um pouco aconselhável para um homem que passou toda a sua vida em grandes cidades. Como explica Prahlāda Mahārāja (hitvātma-pātaṁ gṛham andha-kūpam), não devemos ficar perpetuamente ocupados com as responsabilidades da vida familiar, porque vida familiar sem consciência de Kṛṣṇa é como um poço camuflado. Estando alguém sozinho no mato, se cair num poço camuflado e não houver ninguém para salvá-lo, ele poderá chorar por anos a fio e ninguém verá ou ouvirá de onde vem o choro. Para tal pessoa, a morte é certa. Da mesma forma, aqueles que estão esquecidos de sua relação eterna com o Senhor Supremo estão no poço camuflado da vida familiar; a posição deles é malfadada. Prahlāda Mahārāja aconselha-nos a abandonar esse poço de alguma forma e adotar a consciência de Kṛṣṇa, livrando-nos, assim, do enredamento material, que é cheio de ansiedades.

Texto

vrataṁ sa āsthito maunam
ātmaika-śaraṇo muniḥ
niḥsaṅgo vyacarat kṣoṇīm
anagnir aniketanaḥ

Sinônimos

vratam — voto; saḥ — ele (Kardama); āsthitaḥ — aceitou; maunam — silêncio; ātma — pela Suprema Personalidade de Deus; eka — exclusivamente; śaraṇaḥ — abrigando-se; muniḥ — o sábio; niḥsaṅgaḥ — sem companhia; vyacarat — ele viajou; kṣoṇīm — a Terra; anagniḥ — sem fogo; aniketanaḥ — sem abrigo.

Tradução

O sábio Kardama fez voto de silêncio para pensar na Suprema Personalidade de Deus e refugiar-se exclusivamente nEle. Sem companhia, ele viajou por toda a superfície do globo como sannyāsī, desprovido de qualquer relação com fogo ou abrigo.

Comentário

Neste verso, as palavras anagnir aniketanaḥ são muito significativas. O sannyāsī deve ser completamente desapegado do fogo e de qualquer bairro residencial. O gṛhastha mantém relação com o fogo, seja para oferecer sacrifícios, seja para cozinhar, mas o sannyāsī fica livre dessas duas responsabilidades. Ele não tem de cozinhar ou oferecer fogo para sacrifício porque está sempre ocupado em consciência de Kṛṣṇa; portanto, ele já completou todas as funções ritualísticas da religião. Aniketanaḥ significa “sem alojamento”. Ele não deve ter sua própria casa, senão que deve depender inteiramente do Senhor Supremo para sua alimentação e abrigo. E deve viajar.

Mauna significa “silêncio”. A menos que se observe silêncio, não se pode pensar completamente sobre os passatempos e as atividades do Senhor. Não é porque alguém é tolo e não pode falar bem que deve fazer o voto de mauna. Ao contrário, uma pessoa observa o silêncio para que os demais não a perturbem. Cāṇakya Paṇḍita diz que o tolo parece muito inteligente enquanto não fala. Porém, ao falar, ele é posto à prova. O dito silêncio de um silencioso svāmī impersonalista indica que ele nada tem a dizer; tudo o que ele quer é mendigar. Porém, o silêncio adotado por Kardama Muni não era assim. Ele ficou silencioso para aliviar-se de conversas disparatadas. Chama-se de muni quem se mantém grave e não fala besteiras. Mahārāja Ambarīṣa estabeleceu um ótimo exemplo: sempre que falava, ele falava sobre os passatempos do Senhor. Mauna requer o abster-se de conversas disparatadas, ocupando a capacidade de falar nos passatempos do Senhor. Dessa maneira, podemos cantar e ouvir sobre o Senhor a fim de aperfeiçoar nossa vida. Vratam quer dizer que devemos fazer um voto da maneira explicada na Bhagavad-gītā, amānitvam adambhitvam, sem ansiar por respeito pessoal e sem ter orgulho de nossa posição material. Ahiṁsā significa não ser violento. Há dezoito processos para se alcançar conhecimento e perfeição, e, mediante seu voto, Kardama Muni adotou todos os princípios de autorrealização.

Texto

mano brahmaṇi yuñjāno
yat tat sad-asataḥ param
guṇāvabhāse viguṇa
eka-bhaktyānubhāvite

Sinônimos

manaḥ — mente; brahmaṇi — no Supremo; yuñjānaḥ — fixando; yat — que; tat — isto; sat-asataḥ — causa e efeito; param — além; guṇa-avabhāse — que manifesta os três modos da natureza material; viguṇe — que está além dos modos materiais; eka-bhaktyā — através de devoção exclusiva; anubhāvite — que é percebido.

Tradução

Ele fixou a mente na Suprema Personalidade de Deus, Parabrahman, que está além de causa e efeito, que manifesta os três modos da natureza material, que está além desses três modos e que só é percebido através do serviço devocional infalível.

Comentário

Sempre que há bhakti, três coisas devem estar presentes – o devoto, a devoção e o Senhor. Sem essas três coisas – bhakta, bhakti e Bhagavān –, não há significado para a palavra bhakti. Kardama Muni fixou sua mente no Brahman Supremo e percebeu-O através de bhakti, ou serviço devocional. Isso indica que ele fixou a mente no aspecto pessoal do Senhor, pois não se pode executar bhakti a menos que se tenha compreensão do aspecto pessoal da Verdade Absoluta. Guṇāvabhāse: Ele está além dos três modos da natureza material, mas é devido a Ele que os três modos da natureza material se manifestam. Em outras palavras, embora a energia material seja uma emanação do Senhor Supremo, Ele não é afetado, como nós o somos, pelos modos da natureza material. Nós somos almas condicionadas, mas Ele não é afetado, apesar de a natureza material ter emanado dEle. Ele é a entidade viva suprema e jamais é afetado por māyā, mas nós somos diminutas entidades vivas subordinadas, propensas a ser afetadas pelas limitações de māyā. Se está em constante contato com o Senhor Supremo, através do serviço devocional, a entidade viva condicionada também se livra da infecção de māyā. Isto se confirma na Bhagavad-gītā: sa guṇān samatītyaitān. Uma pessoa ocupada em consciência de Kṛṣṇa liberta-se de imediato da influência dos três modos da natureza material. Em outras palavras, uma vez que a alma condicionada se ocupe em serviço devocional, ela também se torna liberada como o Senhor.

Texto

nirahaṅkṛtir nirmamaś ca
nirdvandvaḥ sama-dṛk sva-dṛk
pratyak-praśānta-dhīr dhīraḥ
praśāntormir ivodadhiḥ

Sinônimos

nirahaṅkṛtiḥ — sem falso ego; nirmamaḥ — sem afeição material; ca — e; nirdvandvaḥ — sem dualidade; sama-dṛk — vendo igualdade; sva-dṛk — vendo-se a si mesmo; pratyak — introverteu-se; praśānta — perfeitamente composta; dhīḥ — mente; dhīraḥ — sóbrio, imperturbável; praśānta — acalmada; ūrmiḥ — cujas ondas; iva — como; udadhiḥ — o oceano.

Tradução

Assim, aos poucos, o falso ego da identidade material deixou de afetá-lo e ele se livrou de toda a afeição material. Imperturbável, igual com todos e sem dualidade, ele realmente podia ver a si mesmo também. Sua mente introverteu-se e estava perfeitamente calma, como um oceano sem ondas.

Comentário

Quando a mente de alguém está em plena consciência de Kṛṣṇa e ele se dedica totalmente a prestar serviço devocional ao Senhor, ele se torna exatamente como um oceano sem ondas. Esse mesmo exemplo também é citado na Bhagavad-gītā: devemos tornar-nos como o oceano. O oceano é enchido por muitos milhares de rios, e milhões de toneladas de suas águas evaporam-se, transformando-se em nuvens, mas ele é sempre o mesmo oceano imperturbável. Pode ser que as leis da natureza atuem, mas, se alguém está fixo em serviço devocional aos pés de lótus do Senhor, não se agita, pois é introspectivo. Não olha externamente para a natureza material, mas se volta para a natureza espiritual de sua existência; com a mente sóbria, simplesmente se ocupa a serviço do Senhor. Assim, compreende seu próprio eu, sem falsa identificação com a matéria e sem afeição por posses materiais. Um grande devoto assim nunca tem problemas com os outros porque vê todos a partir da plataforma de compreensão espiritual; ele vê a si mesmo e aos demais dentro da perspectiva correta.

Texto

vāsudeve bhagavati
sarva-jñe pratyag-ātmani
pareṇa bhakti-bhāvena
labdhātmā mukta-bandhanaḥ

Sinônimos

vāsudeve — a Vāsudeva; bhagavati — a Personalidade de Deus: sarvajñe – onisciente; pratyak-ātmani — a Superalma dentro de todos; pareṇa — transcendental; bhakti-bhāvena — pelo serviço devocional; labdha-ātmā — situando-se em si mesmo; mukta-bandhanaḥ — liberado do cativeiro material.

Tradução

Deste modo, ele se liberou da vida condicionada e situou-se no eu em transcendental serviço devocional à Personalidade de Deus, Vāsudeva, a Superalma onisciente dentro de todos.

Comentário

Quando alguém se ocupa no transcendental serviço devocional ao Senhor, ele se conscientiza de que sua posição constitucional, como alma individual, é ser eternamente servo do Senhor Supremo, Vāsudeva. Autorrealização não significa que, porque a Alma Suprema e a alma individual são ambas almas, elas sejam iguais sob todos os aspectos. A alma individual é propensa ao condicionamento, e a Alma Suprema jamais é condicionada. Quando a alma condicionada compreende que é subordinada à Alma Suprema, sua posição chama-se labdhātmā, autorrealização, ou mukta-bandhana, liberdade da contaminação material. A contaminação material continua enquanto pensemos ser tão bons como o Senhor Supremo ou iguais a Ele. Essa condição é a última armadilha de māyā. Māyā sempre influencia a alma condicionada. Mesmo após muita meditação e especulação, se continuamos julgando-nos iguais ao Senhor Supremo, subentende-se que ainda estamos nas últimas armadilhas do encanto de māyā.

A palavra pareṇa é muito significativa. Para significa “transcendental, não manchado pela contaminação material”. Consciência plena de que se é servo eterno do Senhor chama-se parā bhakti. Se alguém tem alguma identificação com as coisas materiais e executa serviço devocional para alcançar algum lucro material, isso é viddhā bhakti, bhakti contaminada. É possível tornar-se realmente liberado através da execução de parā bhakti.

Outra palavra mencionada aqui é sarva jñe. A Superalma sentada dentro do coração é onisciente. Ele sabe. Eu posso me esquecer de minhas atividades passadas devido à mudança de corpo, mas, como o Senhor Supremo como Paramātmā está sentado dentro de mim, Ele sabe de tudo; portanto, concede-me o resultado de meu karma passado, ou minhas atividades passadas. Pode ser que eu me esqueça, mas Ele me outorga sofrimento ou gozo pelas más ações e pelas boas ações de minha vida passada. Não devemos pensar que estamos livres da reação por termos esquecido as ações de nossa vida passada. As reações acontecerão, e a Superalma, a testemunha, é quem julga que tipo de reações será.

Texto

ātmānaṁ sarva-bhūteṣu
bhagavantam avasthitam
apaśyat sarva-bhūtāni
bhagavaty api cātmani

Sinônimos

ātmānam — a Superalma; sarva-bhūteṣu — em todos os seres vivos; bhagavantam — a Suprema Personalidade de Deus; avasthitam — situada; apaśyat — ele viu; sarva-bhūtāni — todos os seres vivos; bhagavati — na Suprema Personalidade de Deus; api — além disso; ca — e; ātmani — na Superalma.

Tradução

Ele começou a ver que a Suprema Personalidade de Deus está sentada no coração de todos, e que todos existem nEle, porque Ele é a Superalma de todos.

Comentário

O fato de todos existirem na Suprema Personalidade de Deus não quer dizer que todos também são Deus. Isto também se explica na Bhagavad-gītā: tudo repousa nEle, o Senhor Supremo, mas isso não significa que o Senhor Supremo também está em toda parte. Essa misteriosa posição só pode ser entendida por devotos altamente avançados. Há três classes de devotos – o devoto neófito, o devoto intermediário e o devoto avançado. O devoto neófito não entende as técnicas da ciência devocional, mas simplesmente presta serviço devocional à Deidade no templo; o devoto intermediário entende quem é Deus, quem é devoto, quem é não-devoto e quem é inocente, e lida com tais pessoas de maneira diferente. Mas uma pessoa que vê o Senhor sentado como Paramātmā no coração de todos e vê tudo como dependente ou existente na energia transcendental do Senhor Supremo está na mais elevada posição devocional.

Texto

icchā-dveṣa-vihīnena
sarvatra sama-cetasā
bhagavad-bhakti-yuktena
prāptā bhāgavatī gatiḥ

Sinônimos

icchā — desejo; dveṣa — e ódio; vihīnena — livre de; sarvatra — em toda parte; sama — igual; cetasā — com a mente; bhagavat — à Personalidade de Deus; bhakti-yuktena — executando serviço devocional; prāptā — foi alcançado; bhāgavatī gatiḥ — o destino do devoto (voltar ao lar, voltar ao Supremo).

Tradução

Livre de todo o ódio e desejo, Kardama Muni, sendo igual com todos por ter executado serviço devocional impoluto, finalmente alcançou o caminho de volta ao Supremo.

Comentário

Como se afirma na Bhagavad-gītā, somente através do serviço devocional é que se pode entender a natureza transcendental do Senhor Supremo e, após entendê-lo perfeitamente em Sua posição transcendental, entrar no reino de Deus. O processo de entrar no reino de Deus é tri-pāda-bhūti-gati, ou o caminho de volta ao lar, de volta ao Supremo, pelo qual se pode alcançar a meta última da vida. Kardama Muni, mediante seu conhecimento e serviço devocional perfeitos, atingiu essa meta última, que é conhecida como bhāgavatī gatiḥ.

Neste ponto, encerram-se os Significados Bhaktivedanta do terceiro canto, vigésimo quarto capítulo, do Śrīmad-Bhāgavatam, intitulado “A Renúncia de Kardama Muni”.