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Capítulo Quatro

O Processo da Criação

Texto

sūta uvāca
vaiyāsaker iti vacas
tattva-niścayam ātmanaḥ
upadhārya matiṁ kṛṣṇe
auttareyaḥ satīṁ vyadhāt

Sinônimos

sūtaḥ uvāca — Sūta Gosvāmī disse; vaiyāsakeḥ — de Śukadeva Gosvāmī; iti — assim; vacaḥ — palavras; tattvaniścayam – aquilo que comprova a verdade; ātmanaḥ — no eu; upadhārya — tendo acabado de compreender; matim — concentração mental; kṛṣṇe — no Senhor Kṛṣṇa; auttareyaḥ — o filho de Uttarā; satīm — casto; vyadhāt — aplicou.

Tradução

Sūta Gosvāmī disse: Mahārāja Parīkṣit, o filho de Uttarā, após ouvir as palavras de Śukadeva Gosvāmī, todas as quais falavam sobre a verdade do eu, passou a concentrar-se fielmente no Senhor Kṛṣṇa.

Comentário

SIGNIFICADO—A palavra satīm é muito significativa. Quer dizer “existente” e “casto”. E ambos os significados são perfeitamente aplicáveis no caso de Mahārāja Parīkṣit. Todo o dinamismo védico serve para atrair nossa atenção indesviável inteiramente para os pés de lótus do Senhor Kṛṣṇa, como instrui a Bhagavad-gītā (15.15). Felizmente, quando seu corpo ainda estava se formando no ventre de sua mãe, Mahārāja Parīkṣit já sentia atração pelo Senhor. No ventre de sua mãe, ele foi golpeado pelo brahmāstra, a bomba atômica disparada por Aśvatthāmā, mas, pela graça do Senhor, ele escapou de ser queimado pela arma incandescente e, desde então, o rei nunca parou de concentrar sua mente no Senhor Kṛṣṇa, o que o tornou muito casto no serviço devocional. Logo, como uma consequência natural, ele era um devoto casto do Senhor, e, quando continuou ouvindo Śrīla Śukadeva Gosvāmī falar que a pessoa deve adorar apenas o Senhor e ninguém mais, estando ela repleta de todos os desejos, ou sem nenhum desejo, sua afeição natural por Kṛṣṇa se fortaleceu. Já comentamos estes tópicos.

Para se tornar um devoto puro do Senhor, há dois aspectos fundamentais, a saber, ter a oportunidade de nascer em família de devotos e ter as bênçãos de um mestre espiritual genuíno. Pela graça do Senhor Kṛṣṇa, Parīkṣit Mahārāja recebeu as duas prerrogativas. Ele nasceu na família de devotos do quilate dos Pāṇḍavas, e, somente para dar continuidade à dinastia dos Pāṇḍavas e mostrar-lhes favor especial, o Senhor salvou especificamente Mahārāja Parīkṣit, quem, mais tarde, por arranjo do Senhor, foi amaldiçoado pelo jovem filho de um brāhmaṇa e conseguiu obter a associação de um mestre espiritual do nível de Śukadeva Gosvāmī. No Caitanya-caritāmṛta, afirma-se que a pessoa afortunada, pela misericórdia do mestre espiritual e do Senhor Kṛṣṇa, alcança o caminho do serviço devocional. Isso se aplica com perfeição no caso de Mahārāja Parīkṣit. Tendo nascido em família de devotos, ele automaticamente entrou em contato com o Senhor Kṛṣṇa e, após ter este contato, sempre se lembrava dEle. Por conseguinte, o Senhor Kṛṣṇa continuou dando ao rei outra oportunidade para o desenvolvimento do serviço devocional, aproximando-o de Śukadeva Gosvāmī, um devoto resoluto do Senhor com perfeito conhecimento em autorrealização. E, ouvindo um mestre espiritual genuíno, ele foi deveras capaz de continuar concentrando sua mente casta no Senhor Kṛṣṇa, como era de se esperar.

Texto

ātma-jāyā-sutāgāra-
paśu-draviṇa-bandhuṣu
rājye cāvikale nityaṁ
virūḍhāṁ mamatāṁ jahau

Sinônimos

ātma — corpo; jāyā — esposa; suta — filho; āgāra — palácio; paśu — cavalos e elefantes; draviṇa — tesouraria; bandhuṣu — por amigos e parentes; rājye — no reino; ca — também; avikale — sem se deixar perturbar; nityam — constante; virūḍhām — profundamente enraizada; mamatām — afinidade; jahau — abandonou.

Tradução

Como desenvolveu uma sincera atração por Kṛṣṇa, Mahārāja Parīkṣit conseguiu deixar de sentir profunda afeição por seu corpo pessoal, sua esposa, seus filhos, seu palácio, seus animais como cavalos e elefantes, sua tesouraria, seus amigos e parentes, e seu reino indisputável.

Comentário

SIGNIFICADO—Tornar-se liberado significa livrar-se de dehātma-buddhi, o apego ilusório às coberturas corpóreas pessoais e a tudo o que está relacionado com o corpo, a saber, esposa, filhos e todos os outros emaranhamentos. A pessoa escolhe uma esposa para obter conforto físico, e o resultado são os filhos. Com esposa e filhos, é necessário ficar em um lugar, e, assim sendo, também se faz necessária uma casa. Animais como cavalos, elefantes, vacas e cães são todos animais domésticos, e o pai de família tem de mantê-los como a parafernália doméstica. Na civilização moderna, os cavalos e elefantes foram substituídos por carros e veículos com considerável poder de tração. Para custear todas as obrigações domésticas, a pessoa tem de aumentar o saldo bancário e preocupar-se muito com a sua tesouraria, e, para mostrar a opulência de bens materiais, precisa manter boas relações com amigos e parentes, bem como tornar-se muito cuidadosa na preservação do status quo. Isso se chama civilização material constituída de apego material. A devoção ao Senhor Kṛṣṇa significa desinteresse por todos os apegos materiais acima mencionados. Pela graça do Senhor Kṛṣṇa, Mahārāja Parīkṣit recebeu todas as condições materiais favoráveis e um reino indisputável, no qual podia reinar sem ser jamais perturbado, mas, pela graça do Senhor, conseguiu abandonar todas as ligações com o apego material. Essa é a posição do devoto puro. Mahārāja Parīkṣit, devido à sua afeição natural pelo Senhor Kṛṣṇa como um devoto do Senhor, sempre executava em prol do Senhor seus deveres reais, e, como um rei responsável pelo mundo, sempre era cuidadoso em impedir que a influência de Kali se infiltrasse em seu reino. O devoto do Senhor nunca pensa que sua parafernália doméstica é propriedade sua, mas usa tudo a serviço do Senhor. Desse modo, as entidades vivas sob o cuidado de um devoto obtêm a oportunidade de compreender Deus ao seguirem esse devoto que age como seu mestre.

O apego à parafernália doméstica e ao Senhor Kṛṣṇa não combinam muito bem. Um apego é o caminho da escuridão, e o outro é o caminho da luz. Onde há luz, não há escuridão, e onde há escuridão, não há luz. Porém, com uma atitude de serviço ao Senhor, o devoto competente pode colocar tudo no caminho da luz, e aqui o melhor exemplo são os Pāṇḍavas. Mahārāja Yudhiṣṭhira e chefes de família como ele podem transformar tudo em luz, empregando a serviço do Senhor as supostas riquezas materiais, mas alguém despreparado ou incapaz de consagrar tudo ao serviço ao Senhor (nirbandhaḥ kṛṣṇa-sambandhe) precisa abandonar todas as ligações materiais para que então consiga ouvir e cantar as glórias do Senhor, ou, em outras palavras, alguém que, como Mahārāja Parīkṣit, pelo menos durante um dia ouviu com seriedade o Śrīmad-Bhāgavatam ser transmitido por uma personalidade competente como Śukadeva Gosvāmī, pode acabar perdendo todo o interesse pelas coisas materiais. Não há nenhum proveito em simplesmente imitar Mahārāja Parīkṣit e ouvir homens profissionais falar mesmo por setecentos anos o Bhāgavatam. Aceitar o Śrīmad-Bhāgavatam como meio de custear a manutenção da família é a espécie mais grosseira de ofensa nāmāparādha aos pés do Senhor (sarva-śubha-kriyā-sāmyam api pramādaḥ).

Texto

papraccha cemam evārthaṁ
yan māṁ pṛcchatha sattamāḥ
kṛṣṇānubhāva-śravaṇe
śraddadhāno mahā-manāḥ
saṁsthāṁ vijñāya sannyasya
karma trai-vargikaṁ ca yat
vāsudeve bhagavati
ātma-bhāvaṁ dṛḍhaṁ gataḥ

Sinônimos

papraccha — perguntou; ca — também; imam — isto; eva — exatamente como; artham — propósito; yat — esse; mām — a mim; pṛcchatha — estais perguntando; sattamāḥ — ó grandes sábios; kṛṣṇaanubhāva – absorto em pensar em Kṛṣṇa; śravaṇe — em ouvir; śraddadhānaḥ — cheio de fé; mahā-manāḥ — a grande alma; saṁsthām — morte; vijnāya — estando informado; sannyasya — renunciando; karma — atividades fruitivas; trai-vargikam — os três princípios: religião, desenvolvimento econômico e gozo dos sentidos; ca — também; yat — o que possa ser; vāsudeve — pelo Senhor Kṛṣṇa; bhagavati — a Personalidade de Deus; ātma-bhāvam — atração amorosa; dṛḍham — firmemente fixo; gataḥ — alcançou.

Tradução

Ó grandes sábios, a grande alma Mahārāja Parīkṣit, sempre absorto em pensar no Senhor Kṛṣṇa, sabendo muito bem de sua morte iminente, renunciou a todas as espécies de atividades fruitivas, a saber, atos de religião, desenvolvimento econômico e gozo dos sentidos, após o que se fixou firmemente em seu amor natural por Kṛṣṇa e formulou todas essas perguntas, exatamente como estais dirigindo-as a mim.

Comentário

SIGNIFICADO—As três atividades manifestas sob a forma de religião, desenvolvimento econômico e gozo dos sentidos costumam exercer atração sobre as almas condicionadas que lutam pela existência no mundo material. Essas atividades reguladas prescritas nos Vedas constituem o conceito de vida karma-kāṇḍīya, e os chefes de família são aconselhados a seguirem as regras simplesmente para desfrutarem de prosperidade material tanto nesta vida quanto na próxima. A maioria das pessoas se sente atraída por essas atividades. Mesmo nos empreendimentos de sua moderna civilização ímpia, as pessoas estão mais preocupadas com o desenvolvimento econômico e o gozo dos sentidos sem precisarem recorrer a sentimentos religiosos. Como grande imperador do mundo, Mahārāja Parīkṣit tinha de observar as regulações contidas na seção karma-kāṇḍīya dos Vedas, mas, com seu ligeiro contato com Śukadeva Gosvāmī, pôde entender perfeitamente que o Senhor Kṛṣṇa, a Absoluta Personalidade de Deus (Vāsudeva), por quem ele, desde o seu nascimento, tinha um amor natural, é tudo, e, assim, ele foi firme em fixar sua mente nEle, renunciando a todas as modalidades de atividades védicas karma-kāṇḍīya. Após muitos e muitos nascimentos, o jñānī atinge essa fase de perfeição. Os jñānīs, ou os filósofos empíricos que se esforçam para se liberarem, são milhares de vezes superiores aos trabalhadores fruitivos, e, dentre centenas de milhares desses jñānīs, há um que de fato se libera. E, dentre centenas de milhares dessas pessoas liberadas, é raro encontrar pelo menos uma pessoa que consiga fixar com firmeza sua mente nos pés de lótus do Senhor Śrī Kṛṣṇa, como o próprio Senhor declara na Bhagavad-gītā (7.19). A palavra mahā-manāḥ serve para dar a Mahārāja Parīkṣit uma qualificação especial, pondo-o em nível de igualdade com os mahātmās descritos na Bhagavad-gītā. Ainda em épocas recentes, surgiram muitos mahātmās dessa espécie, e eles também abandonaram todas as concepções de vida karma-kāṇḍīya, deixando-se ficar única e exclusivamente sob a dependência da Suprema Personalidade de Deus Kṛṣṇa. O Senhor Caitanya, que é o próprio Senhor Kṛṣṇa, ensina-nos em Seu Śikṣāṣṭaka (8):

āśliṣya vā pāda-ratāṁ pinaṣṭu mām
adarśanān marma-hatāṁ karotu vā
yathā tathā vā vidadhātu lampaṭo
mat-prāṇa-nāthas tu sa eva nāparaḥ

“O Senhor Kṛṣṇa, que é o amante de muitas devotas, talvez abrace esta criada inteiramente rendida ou talvez me pise com Seus pés, ou mesmo, quem sabe, despedace o meu coração, ausentando-Se da minha presença por longo tempo. Mesmo assim, porém, Ele continua sendo simplesmente o Senhor Absoluto do meu coração.”

Śrīla Rūpa Gosvāmī pronunciou estas palavras:

viracaya mayi daṇḍaṁ dīna-bandho dayāmī vā
gatir iha na bhavattaḥ kācid anyā mamāsti
nipatatu śata-koṭi-nirbharaṁ vā navāmbhaḥ
tad api kila-payodaḥ stūyate cātakena

“Ó Senhor dos pobres, faze de mim o que quiseres, dá-me misericórdia ou punição, mas, neste mundo, a única pessoa a quem posso recorrer é Vossa Onipotência. O pássaro cātaka sempre pede que venha a nuvem, não importando se ela derrame chuva ou provoque um raio.”

Śrīla Mādhavendra Purī, guru do mestre espiritual do Senhor Caitanya, apartou-se de todas as obrigações karma-kāṇḍīya com as seguintes palavras:

sandhyā-vandana bhadram astu bhavato bhoḥ snāna tubhyaṁ namo
bho devāḥ pitaraś ca tarpaṇa-vidhau nāhaṁ kṣamaḥ kṣamyatām
yatra kvāpi niṣadya yādava-kulottamasya kaṁsa-dviṣaḥ
smāraṁ smāram aghaṁ harāmi tad alaṁ manye kim anyena me

“Ó minha oração vespertina, desejo-te todo o bem. Ó meu banho matinal, despeço-me de ti. Ó semideuses e antepassados, por favor, perdoai-me. Sou incapaz de continuar realizando oferendas para o vosso prazer. Agora, decidi livrar-me de todas as reações de meus pecados simplesmente lembrando-me, em toda e qualquer parte, do grande descendente de Yadu e do grande inimigo de Kaṁsa [o Senhor Kṛṣṇa]. Creio que, para mim, isso é suficiente. Logo, que adiantam outras tarefas?”

Śrīla Mādhavendra Purī disse ainda:

mugdhaṁ māṁ nigadantu nīti-nipuṇā bhrāntaṁ muhur vaidikāḥ
mandaṁ bāndhava-sañcayā jaḍa-dhiyaṁ muktādarāḥ sodarāḥ
unmattaṁ dhanino viveka-caturāḥ kāmam mahā-dāmbhikam
moktuṁ na kṣāmate manāg api mano govinda-pāda-spṛhām

“Que o moralista mordaz me acuse de estar iludido; não me importo. Os peritos em atividades védicas podem caluniar-me, dizendo que estou desencaminhado; amigos e parentes podem chamar-me de frustrado; meus irmãos podem chamar-me de tolo; os ricos mamonistas podem apontar-me como um louco, e os filósofos eruditos podem afirmar que sou muito orgulhoso. Mesmo assim, minha mente não se afasta um só centímetro da determinação de servir os pés de lótus de Govinda, embora eu seja incapaz de adotar esse procedimento.”

E Prahlāda Mahārāja também disse:

dharmārtha-kāma iti yo ’bhihitas trivarga
īkṣā trayī naya-damau vividhā ca vārtā
manye tad etad akhilaṁ nigamasya satyaṁ
svātmārpaṇaṁ sva-suhṛdaḥ paramasya puṁsaḥ

“A religião, o desenvolvimento econômico e o gozo dos sentidos são famosos como três meios de alcançar o caminho da liberação. Dentre esses, īkṣā trayī em especial, isto é, o conhecimento acerca do eu, o conhecimento acerca dos atos fruitivos e da lógica e também da política e economia, são diferentes meios de subsistência. Todos esses são diferentes temas da educação védica, daí eu os considerar ocupações temporárias. Por outro lado, a rendição ao Senhor Viṣṇu é o verdadeiro ganho na vida, e eu a considero a verdade última.” (Śrīmad-Bhāgavatam 7.6.26)

A Bhagavad-gītā (2.41) conclui todo o assunto como vyavasāyātmikā buddhiḥ, ou o caminho absoluto da perfeição. Śrī Baladeva Vidyābhūṣaṇa, um grande erudito vaiṣṇava, define isso como bhagavad-arcanā-rūpaika-niṣkāma-karmabhir viśuddha-cittaḥ – aceitar o transcendental serviço amoroso ao Senhor como dever primordial, livre de reação fruitiva.

Logo, Mahārāja Parīkṣit estava completamente certo quando aceitou com firmeza os pés de lótus do Senhor Kṛṣṇa, renunciando a todos os conceitos de vida karma-kāṇḍīya.

Texto

rājovāca
samīcīnaṁ vaco brahman
sarva-jñasya tavānagha
tamo viśīryate mahyaṁ
hareḥ kathayataḥ kathām

Sinônimos

rājā uvāca — o rei disse; samīcīnam — perfeitamente corretas; vacaḥ — palavras; brahman — ó brāhmaṇa erudito; sarva-jñasya — alguém que conhece tudo; tava — tua; anagha — sem nenhuma contaminação; tamaḥ — a escuridão da ignorância; viśīryate — aos poucos desaparecendo; mahyam — a mim; hareḥ — do Senhor; kathayataḥ — à medida que falas; kathām — tópicos.

Tradução

Mahārāja Parīkṣit disse: Ó brāhmaṇa erudito, conheces tudo porque não tens contaminação material. Portanto, tudo o que me falaste parece perfeitamente certo. Aos poucos, tuas palavras estão destruindo esta escuridão, a minha ignorância, pois narras os tópicos do Senhor.

Comentário

SIGNIFICADO—A experiência prática de Mahārāja Parīkṣit é revelada nesta passagem, mostrando que os tópicos transcendentais do Senhor são como injeções aplicadas no devoto sincero, que recebe isso de alguém em quem não há nenhum vestígio de máculas materiais. Em outras palavras, as mensagens do Śrīmad-Bhāgavatam que homens profissionais transmitem a uma audiência karma-kāṇḍīya jamais exercem essa ação milagrosa aqui mencionada. Ouvir com devoção as mensagens do Senhor não é como ouvir tópicos ordinários; portanto, a ação será sentida pelo ouvinte sincero, que notará o gradual desaparecimento da ignorância.

yasya deve parā bhaktir
yathā deve tathā gurau
tasyaite kathitā hy arthāḥ
prakāśante mahātmanaḥ

(Śvetāśvatara Upaniṣad 6.23)

Ao receber alimento para comer, o homem faminto simultaneamente mata sua fome e delicia-se com a refeição. Logo, ele não precisa perguntar se realmente se alimentou ou não. A prova crucial de que alguém ouviu o Śrīmad-Bhāgavatam é que ele, com esse ato, obteve iluminação positiva.

Texto

bhūya eva vivitsāmi
bhagavān ātma-māyayā
yathedaṁ sṛjate viśvaṁ
durvibhāvyam adhīśvaraiḥ

Sinônimos

bhūyaḥ — novamente; eva — também; vivitsāmi — quero aprender; bhagavān — a Personalidade de Deus; ātma — pessoais; māyayā — através das energias; yathā — como; idam — este mundo fenomenal; sṛjate — cria; viśvam — universo; durvibhāvyam — inconcebível; adhīśvaraiḥ — aos grandes semideuses.

Tradução

Peço-te que me informes como a Personalidade de Deus, através de Suas energias pessoais, cria estes universos fenomenais como eles são, os quais são inconcebíveis até mesmo para os grandes semideuses.

Comentário

SIGNIFICADO—A importante questão da criação do mundo fenomenal surge em toda mente inquisitiva, de modo que não era de se estranhar que uma personalidade como Mahārāja Parīkṣit, a quem seu mestre espiritual revelaria todas as atividades do Senhor, formulasse essa pergunta. É preciso que cada fenômeno desconhecido nos seja ensinado por uma personalidade erudita a quem dirigimos a devida pergunta. A questão da criação também é uma dessas perguntas que devem ser feitas à pessoa correta. O mestre espiritual, portanto, deve ser alguém sarva-jña, como aqui se afirmou antes em relação a Śukadeva Gosvāmī. Assim, todas as questões concernentes a Deus que são desconhecidas ao discípulo podem ser indagadas ao mestre espiritual, e o exemplo prático é aqui estabelecido por Mahārāja Parīkṣit. Entretanto, Mahārāja Parīkṣit já sabia que tudo o que vemos surge da energia do Senhor, como todos nós aprendemos logo no princípio do Śrīmad-Bhāgavatam (janmādy asya yataḥ). Assim, Mahārāja Parīkṣit queria conhecer o processo da criação. Ele conhecia a origem da criação; caso contrário, não teria perguntado como a Personalidade de Deus, com Suas diferentes energias, cria este mundo fenomenal. O homem comum também sabe que a criação é obra de algum criador e que ela não se dá automaticamente. Em nossa vida prática, não temos experiência de alguma criação automática. Os tolos dizem que a energia criativa é independente e age de forma automática, como age a energia elétrica. Mas o homem inteligente sabe que até mesmo a energia elétrica é gerada numa central elétrica localizada, que está sob o comando de um hábil engenheiro, e, assim, a energia se distribui por toda parte sob a supervisão do engenheiro residente. Mesmo a Bhagavad-gītā (9.10) menciona que o Senhor supervisiona a criação, e o referido livro afirma claramente que a energia material é uma manifestação de uma das muitas energias do Supremo (parāsya śaktir vividhaiva śrūyate). Um menino inexperiente pode ficar admirado ao ver as ações impessoais da eletrônica ou de muitos outros fenômenos maravilhosos conduzidos pela energia elétrica, mas o homem experiente sabe que, coordenando a ação, há um homem vivo que cria essa energia. Igualmente, os supostos eruditos e filósofos do mundo podem, através da especulação mental, apresentar muitas filosofias utópicas sobre a criação impessoal do universo, mas o devoto inteligente do Senhor, estudando a Bhagavad-gītā, pode saber que, coordenando a criação, está a mão do Senhor Supremo, assim como existe o engenheiro residente na central geradora elétrica. O pesquisador erudito percebe a causa e o efeito de tudo, mas, se pesquisadores eruditos do porte de Brahmā, Śiva, Indra e muitos outros semideuses às vezes se confundem ao verem a maravilhosa energia criativa do Senhor, o que falar, então, dos insignificantes eruditos mundanos que lidam com trivialidades? Assim como existem diferenças nas condições de vida em diferentes planetas do universo, e assim como um planeta é superior a outros, os cérebros dos seres que vivem nesses respectivos planetas também possuem diferentes valores categóricos. Como se afirma na Bhagavad-gītā, pode-se comparar a longa duração de vida dos habitantes do planeta de Brahmā, que é inconcebível para os habitantes deste planeta Terra, ao valor categórico do cérebro de Brahmājī, que também é inconcebível para qualquer grande cientista deste planeta. E, com todo esse enorme poder cerebral, até mesmo Brahmājī fez a seguinte descrição em sua grandiosa saṁhitā (Brahma-saṁhitā 5.1):

īśvaraḥ paramaḥ kṛṣṇaḥ
sac-cid-ānanda-vigrahaḥ
anādir ādir govindaḥ
sarva-kāraṇa-kāraṇam

“Existem muitas personalidades que possuem as qualidades de Bhagavān, mas Kṛṣṇa é o Supremo porque ninguém pode superá-lO. Ele é a Pessoa Suprema, e Seu corpo é eterno, cheio de conhecimento e bem-aventurança. Ele é Govinda, o Senhor primordial e a causa de todas as causas.”

Brahmājī admite que o Senhor Kṛṣṇa é a causa suprema de todas as causas. Porém, indivíduos com cérebros minúsculos dentro deste insignificante planeta Terra pensam que o Senhor é um deles. Logo, ao dizer na Bhagavad-gītā que Ele, Kṛṣṇa, é tudo o que existe, os filósofos especulativos e os polemistas mundanos zombam dEle, e o Senhor diz com muito desagrado:

avajānanti māṁ mūḍhā
mānuṣīṁ tanum āśritam
paraṁ bhāvam ajānanto
mama bhūta-maheśvaram

“Os tolos zombam de Mim quando desço sob a forma humana. Eles não conhecem Minha natureza transcendental como o Supremo Senhor de tudo o que existe.” (Bhagavad-gītā 9.11) Brahmā e Śiva (e o mesmo se aplica a outros semideuses) são bhūtas, ou poderosos semideuses, criados para administrar os afazeres universais, assim como existem os ministros designados pelo rei. Os ministros talvez sejam īśvaras, ou controladores, mas o Senhor Supremo é maheśvara, ou o criador dos controladores. As pessoas com um pobre fundo de conhecimento não sabem disso, de modo que têm a audácia de zombar dEle porque, por Sua misericórdia imotivada, Ele Se apresenta diante de nós e, ocasionalmente, Ele vem como um ser humano. O Senhor não é como um ser humano. Ele é sac-cid-ānanda-vigraha, ou a Absoluta Personalidade de Deus, e não há diferença entre Seu corpo e Sua alma. Ele é tanto o poder quanto o poderoso.

Mahārāja Parīkṣit não pediu que seu mestre espiritual, Śukadeva Gosvāmī, narrasse os passatempos que o Senhor Kṛṣṇa desempenhou em Vṛndāvana; primeiramente, ele queria ouvir sobre a criação do Senhor. Śukadeva Gosvāmī não disse que o rei deveria começar ouvindo diretamente os passatempos transcendentais do próprio Senhor. O tempo era muito curto, e é óbvio que Śukadeva Gosvāmī poderia ter feito um grande atalho, dirigindo-se diretamente ao décimo canto, como é, em geral, a atitude dos recitadores profissionais. Mas nem o rei nem o grande orador do Śrīmad-Bhāgavatam pularam como os organizadores do Bhāgavatam; ambos adotaram um sistema progressivo para que os futuros leitores e ouvintes pudessem aprender como proceder a recitação do Śrīmad-Bhāgavatam. Aqueles que estão sob o controle da energia externa do Senhor, ou, em outras palavras, aqueles que estão no mundo material, devem saber, em primeiro lugar, como a energia externa do Senhor funciona sob a orientação da Personalidade Suprema, após o que é possível tentar ingressar nas atividades de Sua energia interna. Os mundanos adoram principalmente Durgā-devī, a energia externa de Kṛṣṇa, mas não sabem que Durgā-devī é apenas a energia que se reflete do Senhor. Coordenando sua espantosa exibição de atividades materiais, está a orientação do Senhor, como se confirma na Bhagavad-gītā (9.10). A Brahma-saṁhitā afirma que a Durgā-śakti age sob a orientação de Govinda, e, sem Sua permissão, a poderosa Durgā-śakti não consegue mover nem mesmo uma palha. Portanto, o devoto neófito, ao invés de pular imediatamente para a plataforma dos passatempos transcendentais apresentados pela energia interna do Senhor, pode saber quão grande é o Senhor Supremo, procurando indagar acerca do processo de Sua energia criativa. Também no Caitanya-caritāmṛta, explicam-se descrições da energia criativa e de como o Senhor participa dela, e o autor do Caitanya-caritāmṛta adverte que os devotos neófitos tenham muito cuidado em não caírem na armadilha que lhes é armada quando negligenciam o conhecimento da intensidade da grandeza de Kṛṣṇa. Somente quando conhece a grandeza do Senhor Kṛṣṇa a pessoa pode firmemente depositar nEle sua fé inabalável; caso contrário, tal qual o homem comum, até mesmo os grandes líderes da humanidade acabarão confundindo o Senhor Kṛṣṇa com um dos muitos semideuses ou com uma personalidade histórica, ou apenas com um mito. Os passatempos transcendentais que o Senhor desempenhou em Vṛndāvana, ou mesmo em Dvārakā, são saboreados por pessoas que já se qualificaram em técnicas espirituais avançadas, e o homem comum pode conseguir chegar a esse nível através do processo gradual que consiste em prestar serviço e fazer perguntas, como veremos no comportamento de Mahārāja Parīkṣit.

Texto

yathā gopāyati vibhur
yathā saṁyacchate punaḥ
yāṁ yāṁ śaktim upāśritya
puru-śaktiḥ paraḥ pumān
ātmānaṁ krīḍayan krīḍan
karoti vikaroti ca

Sinônimos

yathā — como; gopāyati — mantém; vibhuḥ — o grandioso; yathā — como; saṁyacchate — extermina; punaḥ — novamente; yām yām — como; śaktim — energias; upāśritya — empregando; puru-śaktiḥ — o todo-poderoso; paraḥ — o Supremo; pumān — Personalidade de Deus; ātmānam — expansão plenária; krīḍayan — tendo-as ocupado; krīḍan — como se também estivesse pessoalmente ocupado; karoti — faz todas elas; vikaroti — e faz com que seja feito; ca — e.

Tradução

Por gentileza, descreve como o Senhor Supremo, que é todo poderoso, ocupa Suas diferentes energias e diferentes expansões em manter e exterminar repetidas vezes o mundo fenomenal com o espírito desportivo de um jogador.

Comentário

SIGNIFICADO—Na Kaṭha Upaniṣad (2.2.13), o Senhor Supremo é descrito como o principal ser eterno entre todos os outros seres eternos individuais (nityo nityānāṁ cetanaś cetanānām), e é o Senhor Supremo quem sozinho mantém outros inúmeros seres vivos individuais (eko bahūnāṁ yo vidadhāti kāmān). Logo, todas as entidades vivas, tanto no estado condicionado quanto no estado liberado, são mantidas pelo Senhor Supremo e Onipotente. O Senhor efetua essa manutenção através das diferentes expansões do Seu eu e das três principais energias, a saber, as energias interna, externa e marginal. As entidades vivas são Suas energias marginais, e, algumas delas, da confiança do Senhor, encarregam-se também do trabalho de criação, como Brahmā, Marīci etc., e o Senhor inspira nelas os atos da criação (tene brahma hṛdā). A energia externa (māyā) também é impregnada de jīvas, ou almas condicionadas. A potência marginal não-condicionada age no reino espiritual, e o Senhor, com Suas diferentes expansões plenárias, mantém com ela diferentes relações transcendentais manifestas no céu espiritual. Logo, a Suprema Personalidade de Deus única manifesta-Se em muitos (bahu syām), e, assim, todas as diversidades estão nEle, e Ele está em todas as diversidades, muito embora Ele seja diferente de todas elas. Esse é o inconcebível poder místico do Senhor, e, nesse caso, graças às Suas potências inconcebíveis, tudo é simultaneamente igual a Ele e diferente dEle (acintya-bhedābheda-tattva).

Texto

nūnaṁ bhagavato brahman
harer adbhuta-karmaṇaḥ
durvibhāvyam ivābhāti
kavibhiś cāpi ceṣṭitam

Sinônimos

nūnam — ainda insuficiente; bhagavataḥ — da Personalidade de Deus; brahman — ó brāhmaṇa erudito; hareḥ — do Senhor; adbhuta — maravilhoso; karmaṇaḥ — alguém que age; durvibhāvyam — inconcebível; iva — assim; ābhāti — parece; kavibhiḥ — mesmo para os altamente eruditos; ca — também; api — apesar de; ceṣṭitam — sendo buscado com esforço.

Tradução

Ó brāhmaṇa erudito, todas as atividades do Senhor são maravilhosas, e parecem inconcebíveis porque, nem mesmo através de muitos esforços, os sábios eruditos conseguiram compreendê-las.

Comentário

SIGNIFICADO—Os atos que o Senhor Supremo desempenha apenas na criação deste universo parecem inconcebivelmente maravilhosos. E existem inúmeros universos, e a totalidade deles é conhecida como o mundo material criado. E esta parte de sua criação é uma mera porção fracionária da criação completa. O mundo material compõe apenas uma parte (ekāṁśena sthito jagat). Supondo que o mundo material é a manifestação de uma parte de Sua energia, as três partes restantes consistem no vaikuṇṭha-jagat, ou o mundo espiritual descrito na Bhagavad-gītā como mad-dhāma ou sanātana-dhāma, o mundo eterno. Assinalamos no verso anterior que Ele cria e volta a exterminar a criação. Essa ação se aplica apenas ao mundo material, pois o outro, que é a parte maior de Sua criação, a saber, o mundo Vaikuṇṭha, não é criado nem aniquilado; caso contrário, o Vaikuṇṭha-dhāma não teria sido denominado eterno. O Senhor existe com o dhāma; Seu nome, qualidade, passatempos, séquito e personalidade eternos são todos uma manifestação de Suas diferentes energias e expansões. O Senhor é chamado anādi, ou aquele que não tem criador, e ādi, ou a origem de tudo. À nossa própria maneira imperfeita, pensamos que o Senhor também é criado, mas o Vedānta nos informa que Ele não é criado. Ao contrário, todas as outras coisas são criadas por Ele (nārāyaṇaḥ paro ’vyaktāt). Portanto, o homem comum pode apreciar todos esses temas maravilhosos. Mesmo para grandes eruditos, eles são inconcebíveis, daí esses eruditos apresentarem teorias contraditórias entre si. Mesmo quando se trata deste universo específico, que é uma porção insignificante de Sua criação, eles não têm completa informação sobre a expansão limitada deste espaço, ou sobre a quantidade de estrelas e planetas, ou sobre as diferentes condições desses inúmeros planetas. Os cientistas modernos conhecem insuficientemente tudo isso. Alguns afirmam que existem cem milhões de planetas espalhados por todo o espaço. Num boletim informativo de Moscou, datado de 21 de fevereiro de 1960, transmitiu-se a seguinte notícia:

“O famoso professor russo de astronomia, Boris Vorontsov-Veliaminov, disse que deve existir no universo um número infinito de planetas habitados por seres dotados de raciocínio.”

“Talvez floresça nesses planetas a vida parecida com aquela existente na Terra.”

“O doutor em química Nikolai Zhirov, cobrindo o problema da atmosfera em outros planetas, assinalou que o organismo de um marciano, por exemplo, poderia muito bem adaptar-se à existência normal com uma baixa temperatura corpórea.”

“Ele disse que suspeitava que a composição gasosa da atmosfera marciana era deveras adequada para sustentar a vida de seres que tenham se adaptado a ela.”

Essa adaptabilidade de um organismo a diferentes variedades de planetas é descrita na Brahma-saṁhitā como vibhūti-bhinnam, isto é, cada planeta do universo possui um determinado tipo de atmosfera, e os seres que vivem ali são mais perfeitamente avançados em ciência e psicologia devido a uma atmosfera melhor. Vibhūti significa “poderes específicos”, e bhinnam significa “variados”. É bom que os cientistas que estão tentando explorar o espaço exterior e estão procurando alcançar outros planetas valendo-se de arranjos mecânicos fiquem sabendo que os organismos adaptados à atmosfera da Terra não podem resistir nas atmosferas de outros planetas (Fácil Viagem a Outros Planetas). Portanto, a pessoa deve preparar-se para transferir-se a um diferente planeta após libertar-se do corpo atual, como se afirma na Bhagavad-gītā (9.25):

yānti deva-vratā devān
pitṝn yānti pitṛ-vratāḥ
bhūtāni yānti bhūtejyā
yānti mad-yājino ’pi mām

“Aqueles que adoram os semideuses nascerão entre os semideuses; aqueles que adoram os ancestrais irão ter com os ancestrais; aqueles que adoram fantasmas e espíritos nascerão entre esses seres, e aqueles que Me adoram viverão coMigo.”

A afirmação que Mahārāja Parīkṣit fez a respeito das ações da energia criativa do Senhor revela que ele sabia tudo sobre o processo de criação. Por que, então, ele pediu que Śukadeva Gosvāmī lhe desse essa informação? Mahārāja Parīkṣit, sendo um grande imperador, um descendente dos Pāṇḍavas e um grande devoto do Senhor Kṛṣṇa, era deveras capaz de ter considerável conhecimento sobre a criação do mundo, mas todo esse conhecimento não era suficiente. Ele disse, portanto, que, mesmo após grandes esforços, grandes sábios eruditos não conseguem conhecer isso. O Senhor é ilimitado, e Suas atividades também são insondáveis. Com limitada fonte de conhecimento e sentidos imperfeitos, nenhum ser vivo, mesmo que esteja no padrão de Brahmājī, o ser vivo mais altamente perfeito dentro do universo, jamais pode imaginar conhecer o ilimitado. Sobre o ilimitado, podemos conhecer algo que o ilimitado explica, como o próprio Senhor fez ao proferir as afirmações ímpares contidas na Bhagavad-gītā, e, até certo ponto, também se pode conhecê-lO através de almas autorrealizadas, como Śukadeva Gosvāmī, que aprendeu com Vyāsadeva, um discípulo de Nārada. Assim, o conhecimento perfeito só pode descer através da corrente de sucessão discipular, e não por alguma forma de conhecimento experimental, antigo ou recente.

Texto

yathā guṇāṁs tu prakṛter
yugapat kramaśo ’pi vā
bibharti bhūriśas tv ekaḥ
kurvan karmāṇi janmabhiḥ

Sinônimos

yathā — como eles são; guṇān — os modos de; tu — mas; prakṛteḥ — da energia material; yugapat — simultaneamente; kramaśaḥ — aos poucos; api — também; — ou; bibharti — mantém; bhūriśaḥ — muitas formas; tu — mas; ekaḥ — o único supremo; kurvan — agindo; karmāṇi — atividades; janmabhiḥ — através de encarnações.

Tradução

A Suprema Personalidade de Deus é único, quer atue sozinho com os modos da natureza material, quer simultaneamente expanda-Se em muitas formas, quer Se expanda consecutivamente para dirigir os modos da natureza.

Texto

vicikitsitam etan me
bravītu bhagavān yathā
śābde brahmaṇi niṣṇātaḥ
parasmiṁś ca bhavān khalu

Sinônimos

vicikitsitam — perguntas cheias de dúvidas; etat — estas; me — minhas; bravītu — simplesmente esclarece; bhagavān — poderoso como o Senhor; yathā — tanto quanto; śābde — som transcendental; brahmaṇi — literatura védica; niṣṇātaḥ — plenamente autorrealizado; parasmin — em transcendência; ca — também; bhavān — Vossa Senhoria; khalu — na realidade.

Tradução

Por favor, esclarece todas as dúvidas contidas nessas perguntas, pois não apenas és vastamente erudito nos textos védicos e autorrealizado em transcendência, mas és também um grandioso devoto do Senhor e, portanto, estás no mesmo nível da Personalidade de Deus.

Comentário

SIGNIFICADO—Na Brahma-saṁhitā, afirma-se que a Suprema Verdade Absoluta, Govinda, a Personalidade de Deus, embora único e inigualável, expande-Se infalivelmente em formas inumeráveis que não são diferentes umas das outras, e, embora seja a pessoa original, Ele sempre continua jovem, com energia viçosa permanente. É muito difícil conhecê-lO com o simples conhecimento da transcendental ciência dos Vedas, mas Seus devotos puros não sentem nenhuma dificuldade em compreendê-lO.

As expansões das diferentes formas do Senhor – Kṛṣṇa expandindo-se em Baladeva, e Este em Saṅkarṣaṇa, Saṅkarṣaṇa em Vāsudeva, Vāsudeva em Aniruddha, Aniruddha em Pradyumna e, agora então, no segundo Saṅkarṣaṇa, e Este nos Nārāyaṇas puruṣāvatāras, e inúmeras outras formas, comparadas ao fluxo constante das incontáveis ondas de um rio – são todas a mesmíssima coisa. São como velas acesas por outras velas de poderes iguais. Essa é a potência transcendental do Senhor. Os Vedas dizem que Ele é tão completo que, embora toda a identidade completa emane dEle, Ele continua sendo o mesmíssimo todo completo (pūrṇasya pūrṇam ādāya pūrṇam evāvaśiṣyate). Nesse caso, não tem validade fazer acerca do Senhor um conceito material, como é a atitude do especulador mental. Assim, Ele sempre permanece um mistério para o erudito mundano, mesmo que se trate de alguém amplamente versado nos textos védicos (vedeṣu durlabham adurlabham ātma-bhaktau). Portanto, o Senhor ultrapassa o limite conceitual elaborado pelos sábios eruditos, filósofos ou cientistas mundanos. Ele é facilmente compreendido pelos devotos puros porque o Senhor declara na Bhagavad-gītā (18.54) que, após exceder a fase de conhecimento, quando a pessoa é capaz de se ocupar no serviço devocional ao Senhor, somente então ela pode conhecer a verdadeira natureza do Senhor. Só pode desenvolver algum conceito claro acerca do Senhor, ou de Seu santo nome, forma, atributo, passatempos etc., quem se ocupa em Seu transcendental serviço amoroso. A afirmação da Bhagavad-gītā segundo a qual a pessoa deve, em primeiro lugar, render-se ao Senhor, livrando-se de todas as outras ocupações, significa que ela deve tornar-se um devoto puro e incondicional do Senhor. Só então pode passar a conhecê-lO por força do serviço devocional.

No verso anterior, Mahārāja Parīkṣit admitiu que o Senhor é inconcebível até mesmo para os grandes sábios eruditos. Por que, então, ele deveria voltar a pedir que Śukadeva Gosvāmī esclarecesse seu insuficiente conhecimento sobre o Senhor? A razão é óbvia. Śukadeva Gosvāmī não era apenas profusamente erudito nos textos védicos, mas também uma grande alma autorrealizada e um poderoso devoto do Senhor. Um devoto do Senhor é, pela graça do Senhor, mais poderoso que o próprio Senhor. A Personalidade de Deus, Śrī Rāmacandra, tentou construir uma ponte sobre o Oceano Índico para alcançar a ilha de Laṅkā, mas Śrī Hanumānjī, o imaculado devoto da Personalidade de Deus, pôde cruzar o oceano com um simples pulo. O Senhor é tão misericordioso com Seu devoto puro que Ele apresenta como mais poderoso que Ele próprio o Seu amado devoto. O Senhor declarou-Se como incapaz de salvar Durvāsā Muni, embora o Muni fosse tão poderoso que, dispondo apenas de recursos materiais, pôde aproximar-se diretamente do Senhor. Contudo, Durvāsā Muni foi salvo por Mahārāja Ambarīṣa, um devoto do Senhor. Portanto, o devoto do Senhor não é apenas mais poderoso que o Senhor, mas também a adoração ao devoto é considerada mais efetiva que a adoração direta ao Senhor (mad-bhakta-pūjābhyadhikā).

Conclui-se, portanto, que o devoto sério deve, em primeiro lugar, aproximar-se do mestre espiritual que não seja apenas versado nos textos védicos, mas que também seja um devoto com verdadeira compreensão acerca do Senhor e de Suas diferentes energias. Sem a ajuda desse mestre espiritual devoto, ninguém pode progredir na ciência transcendental do Senhor. E um mestre espiritual autêntico como Śukadeva Gosvāmī, ao falar sobre o Senhor, não menciona apenas Suas energias internas, mas também explica como Ele Se associa com Suas potências externas.

Com Sua potência interna, o Senhor manifesta passatempos sob a forma de Suas atividades em Vṛndāvana, mas as ações de Sua potência externa concentram-se em Seus aspectos de Kāraṇārṇavaśāyī Viṣṇu, Garbhodakaśāyī Viṣṇu e Kṣīrodakaśāyī Viṣṇu. Śrīla Viśvanātha Cakravartī dá um bom conselho aos vaiṣṇavas dedicados, afirmando que eles não devem interessar-se em ouvir apenas as atividades do Senhor (como a rāsa-līlā), mas devem mostrar forte interesse em conhecer os passatempos de Seus aspectos puruṣāvatāras encarregados de sṛṣṭi-tattva, atividades da criação, seguindo o exemplo de Mahārāja Parīkṣit, o discípulo ideal, e de Śukadeva Gosvāmī, o mestre espiritual ideal.

Texto

sūta uvāca
ity upāmantrito rājñā
guṇānukathane hareḥ
hṛṣīkeśam anusmṛtya
prativaktuṁ pracakrame

Sinônimos

sūtaḥ uvāca — Sūta Gosvāmī disse; iti — assim; upāmantritaḥ — sendo solicitado; rājñā — pelo rei; guṇaanukathane – para que descrevesse os atributos transcendentais do Senhor; hareḥ — da Personalidade de Deus; hṛṣīkeśam — o senhor dos sentidos; anusmṛtya — com a devida lembrança de; prativaktum — apenas para responder; pracakrame — executou os preâmbulos.

Tradução

Sūta Gosvāmī disse: Quando o rei pediu a Śukadeva Gosvāmī que descrevesse a energia criativa da Personalidade de Deus, lembrou-se sistematicamente do mestre dos sentidos [Śrī Kṛṣṇa] e, para dar uma resposta apropriada, falou as seguintes palavras.

Comentário

SIGNIFICADO—Os devotos do Senhor, enquanto dão palestras e descrevem os atributos transcendentais do Senhor, não pensam que podem fazer algo de maneira independente. Sabem que podem falar apenas o que o Senhor Supremo, o mestre dos sentidos, os induz a falar. Os sentidos do ser individual não são sua propriedade; o devoto sabe que esses sentidos pertencem ao Senhor Supremo e que podem ser usados devidamente quando empregados no serviço ao Senhor. Os sentidos são instrumentos, e os elementos são ingredientes que, para funcionar, precisam da intervenção do Senhor; portanto, tudo o que o indivíduo pode fazer, falar, ver etc. está apenas sob a direção do Senhor. A Bhagavad-gītā (15.15) confirma isso: sarvasya cāhaṁ hṛdi sanniviṣṭo mattaḥ smṛtir jñānam apohanaṁ ca. Ninguém tem autoridade para agir livre e com independência, e, nesse caso, todos sempre devem buscar a permissão do Senhor para agir ou comer ou falar, e, pela bênção do Senhor, tudo o que o devoto faz está além dos princípios das quatro classes de defeitos característicos da alma condicionada.

Texto

śrī-śuka uvāca
namaḥ parasmai puruṣāya bhūyase
sad-udbhava-sthāna-nirodha-līlayā
gṛhīta-śakti-tritayāya dehinām
antarbhavāyānupalakṣya-vartmane

Sinônimos

śrī-sukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; namaḥ — oferecendo reverências; parasmai — a Suprema; puruṣāya — Personalidade de Deus; bhūyase — ao todo completo; sad-udbhava — a criação do mundo material; sthāna — sua manutenção; nirodha — e sua aniquilação; līlayā — pelo passatempo de; gṛhīta — tendo aceitado; śakti — poder; tritayāya — três modos; dehinām — de tudo o que possui corpos materiais; antaḥbhavāya – àquele que reside dentro; anupalakṣya — inconcebível; vartmane — alguém que possui esses métodos.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī disse: Ofereço minhas respeitosas reverências à Suprema Personalidade de Deus, que, para a criação do mundo material, aceita os três modos da natureza. Ele é o todo completo que reside dentro do corpo de cada um, e Seus métodos são inconcebíveis.

Comentário

SIGNIFICADO—Este mundo material é uma manifestação dos três modos – bondade, paixão e ignorância –, e, para criar, manter e aniquilar o mundo material, o Senhor Supremo aceita três formas predominantes: Brahmā, Viṣṇu e Śaṅkara (Śiva). Como Viṣṇu, Ele entra em todos os corpos materialmente criados. Como Garbhodakaśāyī Viṣṇu, Ele entra em cada universo, e, como Kṣīrodakaśāyī Viṣṇu, Ele entra no corpo de todo ser vivo. O Senhor Śrī Kṛṣṇa, sendo a origem de todos os viṣṇu-tattvas, é aqui chamado de paraḥ pumān, ou Puruṣottama, como se descreve na Bhagavad-gītā (15.18). Ele é o todo completo. Portanto, os puruṣāvatāras são Suas expansões plenárias. O bhakti-yoga é o único processo pelo qual alguém pode tornar-se competente para conhecê-lO. Como os filósofos empíricos e os yogīs místicos não conseguem conceber a Personalidade de Deus, Ele é chamado de anupalakṣya-vartmane, o Senhor do método inconcebível, ou bhakti-yoga.

Texto

bhūyo namaḥ sad-vṛjina-cchide ’satām
asambhavāyākhila-sattva-mūrtaye
puṁsāṁ punaḥ pāramahaṁsya āśrame
vyavasthitānām anumṛgya-dāśuṣe

Sinônimos

bhūyaḥ — novamente; namaḥ — minhas reverências; sat — dos devotos ou dos piedosos; vṛjina — aflições; chide — o libertador; asatām — dos ateístas, os demônios não-devotos; asambhavāya — cessação da infelicidade persistente; akhila — completa; sattva — bondade; mūrtaye — à Personalidade; puṁsām — dos transcendentalistas; punaḥ — novamente; pāramahaṁsye — a fase de máxima perfeição espiritual; āśrame — na posição; vyavasthitānām — especificamente situados; anumṛgya — o destino; dāśuṣe — aquele que distribui.

Tradução

Volto a oferecer minhas respeitosas reverências à forma de existência e transcendência completa, que liberta de todas as aflições os devotos piedosos e que impede os demônios não-devotos de continuarem avançando em temperamento ateísta. Para os transcendentalistas que estão situados na máxima perfeição espiritual, Ele concede seus destinos específicos.

Comentário

SIGNIFICADO—O Senhor Śrī Kṛṣṇa é a forma completa de toda a existência, tanto material quanto espiritual. Akhila significa completo, ou aquilo que não é khila, inferior. Como afirma a Bhagavad-gītā, há duas classes de natureza (prakṛti), a saber, a natureza material e a natureza espiritual, ou as potências externa e interna do Senhor. A natureza material chama-se aparā, ou inferior, e a natureza espiritual chama-se superior, ou transcendental. Portanto, a forma do Senhor não pertence à natureza material inferior. Ele é completa transcendência. E Ele é mūrti, ou possuidor de forma transcendental. Os homens menos inteligentes, que não conhecem Sua forma transcendental, descrevem-nO como Brahman impessoal. Mas o Brahman são apenas os raios de Seu corpo transcendental (yasya prabhā). Os devotos, que conhecem Sua forma transcendental, prestam-Lhe serviço; portanto, o Senhor, por Sua misericórdia imotivada, também reciproca e, assim, liberta de todas as aflições os Seus devotos. Os homens piedosos que seguem as regras contidas nos Vedas também Lhe são muito queridos, de modo que os homens piedosos deste mundo também são protegidos por Ele. Os ímpios e os não-devotos opõem-se aos princípios dos Vedas, daí sempre se impedir que essas pessoas avancem em suas atividades nefastas. Algumas delas, especialmente favorecidas pelo Senhor, são mortas por Ele mesmo, como foi o caso de Rāvaṇa, Hiraṇyakaśipu e Kaṁsa, e, assim, esses demônios obtêm a salvação, evitando-se que continuem progredindo em suas atividades demoníacas. Tal qual um pai bondoso, mesmo quando mostra favor a Seus devotos ou quando pune os demônios, Ele é sempre bom com todos, pois, para todas as existências individuais, Ele é a existência completa.

A fase de existência paramahaṁsa é a etapa de perfeição máxima dos valores espirituais. De acordo com Śrīmatī Kuntīdevī, só os paramahaṁsas entendem realmente o Senhor. Assim como gradualmente se passa a compreender a transcendência como o Brahman impessoal, o Paramātmā localizado e a Personalidade de Deus, Puruṣottama, o Senhor Kṛṣṇa, do mesmo modo, é gradual a promoção de alguém na vida espiritual de sannyāsa. Kuṭīcaka, bahūdaka, parivrājakācārya e paramahaṁsa são etapas progressivas graduais na ordem de vida renunciada, sannyāsa, e, em suas orações ao Senhor Kṛṣṇa (canto um, capítulo oito), a rainha Kuntīdevī, a mãe dos Pāṇḍavas, comenta sobre elas. De um modo geral, os paramahaṁsas se encontram entre os impersonalistas e os devotos, mas, segundo o Śrīmad-Bhāgavatam (como afirma claramente Kuntīdevī), o bhakti-yoga puro é compreendido pelos paramahaṁsas, e Kuntīdevī menciona especificamente que o Senhor desce (paritrāṇāya sādhūnām) em especial para outorgar bhakti-yoga aos paramahaṁsas. Assim, no verdadeiro sentido do termo, os paramahaṁsas são, em última análise, os devotos imaculados do Senhor. Śrīla Jīva Gosvāmī aceita diretamente que o destino máximo é bhakti-yoga, pelo qual a pessoa passa a prestar transcendental serviço amoroso ao Senhor. Aqueles que adotam o caminho de bhakti-yoga são paramahaṁsas de verdade.

Como o Senhor é muito bondoso com todos, os impersonalistas, que aceitam bhakti como a maneira de imergir na existência brahmajyoti impessoal do Senhor, também alcançam seu destino desejado. Ele garantiu a todos na Bhagavad-gītā (4.11): ye yathā māṁ prapadyante. De acordo com Śrīla Viśvanātha Cakravartī, há duas classes de paramahaṁsas, a saber, os brahmānandīs (impersonalistas) e os premānandīs (devotos), e a ambos se concedem seus destinos desejados, embora os premānandīs sejam mais afortunados que os brahmānandīs. Porém, tanto os brahmānandīs quanto os premānandīs são transcendentalistas, e eles nada têm a ver com a natureza material inferior, em que a vida existe repleta de sofrimentos.

Texto

namo namas te ’stv ṛṣabhāya sātvatāṁ
vidūra-kāṣṭhāya muhuḥ kuyoginām
nirasta-sāmyātiśayena rādhasā
sva-dhāmani brahmaṇi raṁsyate namaḥ

Sinônimos

namaḥ namaḥ te — que eu Te ofereça minhas respeitosas reverências; astu — és; ṛṣabhāya — ao grande associado; sātvatām — dos membros da dinastia Yadu; vidūrakāṣṭhāya – aquele que está distante dos debatedores mundanos; muhuḥ — sempre; kuyoginām – dos não-devotos; nirasta — aniquilados; sāmya — igualdade de condição; atiśayena — pela grandeza; rādhasā — pela opulência; sva-dhāmani — em Sua própria morada; brahmaṇi — no céu espiritual; raṁsyate — desfruta; namaḥ — eu me prostro.

Tradução

Que eu ofereça minhas respeitosas reverências àquele que é o associado dos membros da dinastia Yadu e que sempre é um problema para os não-devotos. Ele é o desfrutador supremo dos mundos material e espiritual, apesar do que é no céu espiritual que está Sua própria morada na qual Ele desfruta. Não existe ninguém igual a Ele porque Sua opulência transcendental é imensurável.

Comentário

SIGNIFICADO—Há duas facetas das manifestações transcendentais do Senhor Supremo, Śrī Kṛṣṇa. Para os devotos puros, Ele é o companheiro constante, podendo-se mencionar o caso em que Ele Se torna um dos membros familiares da dinastia Yadu, ou em que Se torna amigo de Arjuna, e em que Se torna o vizinho que vive na companhia dos habitantes de Vṛndāvana, tais como o filho de Nanda e Yaśodā, o amigo de Sudāmā, Śrīdāmā e Madhumaṅgala, ou o amante das donzelas de Vrajabhūmi etc. Isso é parte de Seus aspectos pessoais. E, através de Seu aspecto impessoal, Ele expande os raios que constituem o brahmajyoti, que é ilimitado e onipenetrante. Parte desse brahmajyoti onipenetrante, que é comparado aos raios do Sol, é coberta pela escuridão do mahat-tattva, e essa parte insignificante é conhecida como o mundo material. Neste mundo material, existem inúmeros universos como este que podemos experimentar, e, em cada um deles, existem centenas de milhares de planetas como este que habitamos. As pessoas mundanas são mais ou menos cativadas pela expansão ilimitada dos raios do Senhor, mas os devotos estão mais interessados em Sua forma pessoal, da qual tudo emana (janmādy asya yataḥ). Assim como os raios do Sol estão concentrados no disco solar, o brahmajyoti está concentrado em Goloka Vṛndāvana, o mais elevado planeta espiritual no céu espiritual. O céu espiritual incomensurável é repleto de planetas espirituais, chamados Vaikuṇṭhas, situados muito além do céu material. Se as pessoas mundanas não têm suficiente informação sobre o céu material, então, o que podem pensar do céu espiritual? Portanto, os mundanos sempre estão muitíssimo distantes dEle. Mesmo que no futuro consigam inventar alguma máquina que possa atingir a velocidade do vento ou da mente, os mundanos continuarão sendo incapazes de chegar aos planetas do céu espiritual. Assim, o Senhor e Sua morada sempre lhes permanecerão um mito ou um problema misterioso, mas, para os devotos, o Senhor sempre está acessível como um associado.

No céu espiritual, Sua opulência é imensurável. Juntamente com Seus associados, os devotos liberados, o Senhor reside em todos os planetas espirituais, os inúmeros planetas Vaikuṇṭha, expandindo Suas porções plenárias, mas, aos impersonalistas que querem imergir na existência do Senhor, permite-se imergir como uma das centelhas espirituais do brahmajyoti. Eles não estão qualificados para tornarem-se associados do Senhor nos planetas Vaikuṇṭha, ou no planeta supremo, Goloka Vṛndāvana, descrito na Bhagavad-gītā como mad-dhāma e aqui neste verso como o sva-dhāma do Senhor.

A Bhagavad-gītā (15.6) faz a seguinte descrição desse mad-dhāma, ou sva-dhāma:

na tad bhāsayate sūryo
na śaśāṅko na pāvakaḥ
yad gatvā na nivartante
tad dhāma paramaṁ mama

O sva-dhāma do Senhor não precisa da iluminação de luz do Sol ou da Lua, ou da eletricidade. Esse dhāma, ou lugar, é supremo, e todo aquele que chegue até lá jamais regressa a este mundo material.

Os planetas Vaikuṇṭha e o planeta Goloka Vṛndāvana são todos luminosos, e os raios difundidos por esses sva-dhāma do Senhor constituem a existência do brahmajyoti. Como também confirmam os Vedas, tais como a Muṇḍaka Upaniṣad (2.2.10), Kaṭha Upaniṣad (2.2.15) e Śvetāśvatara Upaniṣad (6.14):

na tatra sūryo bhāti na candra-tārakaṁ
nemā vidyuto bhānti kuto ’yam agniḥ
tam eva bhāntam anubhāti sarvaṁ
tasya bhāsā sarvam idaṁ vibhāti

No sva-dhāma do Senhor, não é preciso a iluminação do Sol, da Lua ou das estrelas. Tampouco há necessidade de eletricidade, e muito menos de lâmpadas acesas. Por outro lado, é pelo fato de esses planetas serem luminosos que toda a refulgência se torna possível, e todo brilho existe por causa do reflexo desse sva-dhāma.

Quem está ofuscado pela refulgência do brahmajyoti impessoal não pode conhecer a transcendência pessoal; portanto, na Īśopaniṣad (15) pede-se que o Senhor afaste Sua refulgência deslumbrante para que o devoto possa ver a realidade dos fatos. Eis a oração:

hiraṇmayena pātreṇa
satyasyāpihitaṁ mukham
tat tvaṁ pūṣann apāvṛṇu
satya-dharmāya dṛṣṭaye

“Ó Senhor, és o mantenedor de tudo o que é material e espiritual, e tudo floresce por Tua misericórdia. Teu serviço devocional, ou bhakti-yoga, é o verdadeiro princípio religioso, satya-dharma, e estou ocupado neste serviço. Então, por favor, protege-me, mostrando-me Teu rosto verdadeiro. Por gentileza, remove, portanto, o véu formado pelos raios do Teu brahmajyoti para que eu possa ver Tua forma eterna cheia de conhecimento e bem-aventurança.”

Texto

yat-kīrtanaṁ yat-smaraṇaṁ yad-īkṣaṇaṁ
yad-vandanaṁ yac-chravaṇaṁ yad-arhaṇam
lokasya sadyo vidhunoti kalmaṣaṁ
tasmai subhadra-śravase namo namaḥ

Sinônimos

yat — cuja; kīrtanam — glorificação; yat — cujas; smaraṇam — lembranças; yat — cuja; īkṣaṇam — audiência; yat — cujas; vandanam — orações; yat — cujo; śravaṇam — processo que consiste em ouvir sobre; yat — cuja; arhaṇam — adoração; lokasya — de todas as pessoas; sadyaḥ — de imediato; vidhunoti — limpa especificamente; kalmaṣam — efeitos dos pecados; tasmai — a Ele; subhadra — auspiciosíssimo; śravase — pessoa que é ouvida; namaḥ — minhas devidas reverências; namaḥ — repetidas vezes.

Tradução

Que eu ofereça minhas respeitosas reverências ao auspiciosíssimo Senhor Śrī Kṛṣṇa, pois fica imediatamente livre dos efeitos de todos os pecados aquele que O adora, lembra-se dEle, reúne-se para falar sobre Ele, dirige-Lhe orações, ouve sobre Ele e adora-O.

Comentário

SIGNIFICADO—Nesta passagem, Śrī Śukadeva Gosvāmī, a maior autoridade, recomenda o sublime sistema entre as práticas religiosas pelo qual a pessoa pode livrar-se de todas as reações dos pecados. Kīrtanam, ou a glorificação do Senhor, pode ser executado de muitas maneiras, tais como recordando-se, visitando templos para ver a Deidade, oferecendo orações diante do Senhor, e ouvindo recitações das glórias do Senhor mencionadas no Śrīmad-Bhāgavatam ou na Bhagavad-gītā. Pode-se realizar kīrtanam cantando as glórias do Senhor com o acompanhamento de música melodiosa e através da recitação das escrituras, como o Śrīmad-Bhāgavatam ou a Bhagavad-gītā.

Os devotos não precisam ficar desapontados com a ausência física do Senhor, embora talvez pensem que não estejam se associando com Ele. O processo devocional que consiste em cantar, ouvir, recordar etc. (todos eles, alguns deles ou mesmo um só deles) pode nos propiciar nossa tão almejada associação com o Senhor por meio do cumprimento do serviço devocional amoroso ao Senhor da maneira acima descrita. Até mesmo o próprio som do santo nome do Senhor Kṛṣṇa ou Rāma pode de imediato sobrecarregar espiritualmente a atmosfera. É bom que saibamos, de uma vez por todas, que o Senhor está presente onde quer que se execute esse serviço transcendental puro, e, assim, aquele que executa kīrtanam e não comete ofensas tem associação positiva com o Senhor. Do mesmo modo, a lembrança e as orações também nos podem dar o resultado desejado se forem devidamente empreendidas sob orientação perita. Ninguém deve inventar fórmulas de serviço devocional. Alguém talvez adore em um templo a forma do Senhor, e outrem talvez ofereça impessoalmente orações devocionais ao Senhor em uma mesquita ou igreja. A pessoa com certeza consegue livrar-se das reações dos pecados contanto que tenha muito cuidado em não cometer pecados deliberadamente, pensando em livrar-se das reações dos pecados adorando no templo ou oferecendo orações na igreja. Essa mentalidade que consiste em deliberadamente cometer pecados apoiando-se na força do serviço devocional chama-se nāmno balād yasya hi pāpa-buddhiḥ, e é a maior das ofensas no cumprimento do serviço devocional. Portanto, ouvir é essencial para que a pessoa se mantenha em estrita vigilância contra essas investidas dos pecados. E, para dar ênfase especial ao processo de ouvir, o Gosvāmī invoca toda a fortuna auspiciosa no tocante a isso.

Texto

vicakṣaṇā yac-caraṇopasādanāt
saṅgaṁ vyudasyobhayato ’ntar-ātmanaḥ
vindanti hi brahma-gatiṁ gata-klamās
tasmai subhadra-śravase namo namaḥ

Sinônimos

vicakṣaṇāḥ — altamente intelectual; yat — cuja; caraṇaupasādanāt – simples dedicação aos pés de lótus; saṅgam — apego; vyudasya — abandonando por completo; ubhayataḥ — à existência atual ou futura; antaḥ-ātmanaḥ — do coração e da alma; vindanti — move-se progressivamente; hi — decerto; brahma-gatim — rumo à existência espiritual; gata-klamāḥ — sem dificuldade; tasmai — a Ele; subhadra — auspiciosíssimo; śravase — àquele que é ouvido; namaḥ — minhas devidas reverências; namaḥ — repetidas vezes.

Tradução

Que eu repetidas vezes ofereça minhas respeitosas reverências ao auspiciosíssimo Senhor Śrī Kṛṣṇa. As pessoas muito intelectuais, pelo simples fato de se renderem aos Seus pés de lótus, aliviam-se de todos os apegos às existências atuais e futuras e não têm nenhuma dificuldade em progredir rumo à existência espiritual.

Comentário

SIGNIFICADO—Repetidas vezes, o Senhor Śrī Kṛṣṇa instruiu Arjuna, mas, na verdade, Sua instrução destina-se a todos aqueles interessados em se tornarem Seus devotos imaculados. Na última fase de Sua instrução na Bhagavad-gītā (18.64-66), Ele transmite o seguinte ensinamento confidencial:

sarva-guhyatamaṁ bhūyaḥ
śṛṇu me paramaṁ vacaḥ
iṣṭo ’si me dṛḍham iti
tato vakṣyāmi te hitam
man-manā bhava mad-bhakto
mad-yājī māṁ namaskuru
mām evaiṣyasi satyaṁ te
pratijāne priyo ’si me
sarva-dharmān parityajya
mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja
ahaṁ tvāṁ sarva-pāpebhyo
mokṣayiṣyāmi mā śucaḥ

“Meu querido Arjuna, és muito querido para Mim, e é, portanto, apenas para o teu bem que revelarei a parte mais secreta de Minhas instruções. É simplesmente isto: torna-te Meu devoto puro e entrega-te unicamente a Mim, e te prometo existência espiritual plena, através da qual poderás ter o direito eterno de Me prestar serviço devocional amoroso. Simplesmente abandona todos os outros processos de religiosidade e rende-te exclusivamente a Mim, e, acreditando que te protegerei de teus atos pecaminosos, Eu te libertarei. Não te preocupes mais.”

As pessoas inteligentes levam muito a sério esta última instrução do Senhor. Conhecer o eu é o primeiro passo na compreensão espiritual, que é chamada de conhecimento confidencial, e o passo seguinte é a compreensão acerca de Deus, que é chamada de conhecimento mais confidencial. O conhecimento contido na Bhagavad-gītā culmina na compreensão acerca de Deus, e, ao atingir essa fase na qual passa a compreender Deus, a pessoa natural e voluntariamente se torna um devoto do Senhor para Lhe prestar transcendental serviço amoroso. Esse serviço devocional ao Senhor sempre se baseia no amor a Deus e é diferente da natureza do serviço rotineiro prescrito sob a forma de karma-yoga, jñāna-yoga ou dhyāna-yoga. Na Bhagavad-gītā, há diferentes instruções para essas diferentes categorias de pessoas, e há várias descrições que se aplicam ao varṇāśrama-dharma, ao sannyāsa-dharma, ao yati-dharma, à ordem de vida renunciada, ao controle dos sentidos, à meditação, à perfeição dos poderes místicos etc., mas alguém que se rende plenamente ao Senhor para servi-lO com amor espontâneo por Ele de fato assimila a essência de todo o conhecimento descrito nos Vedas. A pessoa que adota esse método com muita habilidade alcança de imediato a perfeição da vida. E essa perfeição da vida humana chama-se brahma-gati, ou a marcha progressiva na existência espiritual. Como Śrīla Jīva Gosvāmī enuncia com base nas escrituras védicas, brahma-gati significa alcançar uma forma espiritual que está em nível de igualdade com a do Senhor, e, com essa forma, o ser vivo liberado reside eternamente em um dos planetas espirituais situados no céu espiritual. O devoto puro do Senhor tem fácil acesso à obtenção dessa perfeição da vida, sem precisar aperfeiçoar-se através de algum método complicado. Semelhante vida devocional é repleta de kīrtanam, smaraṇam, īkṣaṇam etc., como se menciona no verso anterior. Todos devem, portanto, adotar esse simples processo de vida devocional para alcançar a perfeição máxima disponível em qualquer categoria de forma de vida humana em qualquer parte do mundo. Ao encontrar-se com o Senhor Kṛṣṇa, que Se divertia como uma criança em Vṛndāvana, o senhor Brahmā ofereceu suas orações com as seguintes palavras:

śreyaḥ-sṛtiṁ bhaktim udasya te vibho
kliśyanti ye kevala-bodha-labdhaye
teṣām asau kleśala eva śiṣyate
nānyad yathā sthūla-tuṣāvaghātinām

(Śrīmad-Bhāgavatam 10.14.4)

Bhakti-yoga é a qualidade máxima de perfeição que pode ser alcançada pela pessoa inteligente que não quer se dar ao trabalho de executar uma grande quantidade de atividades espirituais. O exemplo citado aqui é muito apropriado. Um punhado de verdadeiro arroz é mais valioso que montes de casca de arroz sem nada dentro. Igualmente, ninguém deve se deixar atrair pelos malabarismos de karma-kāṇḍa ou jñāna-kāṇḍa e nem mesmo pelas manobras de ginástica do yoga, senão que todos devem adotar com muita habilidade, sob a orientação de um mestre espiritual genuíno, a simples prática de kīrtanam, smaraṇam etc., alcançando, então, sem dificuldade alguma, a perfeição máxima.

Texto

tapasvino dāna-parā yaśasvino
manasvino mantra-vidaḥ sumaṅgalāḥ
kṣemaṁ na vindanti vinā yad-arpaṇaṁ
tasmai subhadra-śravase namo namaḥ

Sinônimos

tapasvinaḥ — os grandes sábios eruditos; dāna-parāḥ — o grande praticante de caridade; yaśasvinaḥ — a pessoa grandiosa que se distingue pelo seu trabalho; manasvinaḥ — os grandes filósofos ou místicos; mantra-vidaḥ — o grande recitador dos hinos védicos; sumaṅgalāḥ – estritos seguidores dos princípios védicos; kṣeman — resultado frutífero; na — nunca; vindanti — alcançam; vinā — sem; yatarpaṇam – dedicação; tasmai — a Ele; subhadra — auspicioso; śravase — ouvindo sobre ele; namaḥ — minhas reverências; namaḥ — repetidas vezes.

Tradução

Ofereço repetidas vezes minhas respeitosas reverências ao auspiciosíssimo Senhor Śrī Kṛṣṇa, pois os grandes sábios eruditos, os grandes praticantes de caridade, as pessoas grandiosas que se distinguem pelo seu trabalho, os grandes filósofos e místicos, os grandes recitadores dos hinos védicos e os grandes seguidores dos princípios védicos não podem alcançar nenhum resultado frutífero sem dedicarem essas grandes qualidades ao serviço devocional ao Senhor.

Comentário

SIGNIFICADO—O avanço em erudição, uma índole caridosa, a liderança política, social ou religiosa da sociedade humana, especulações filosóficas, a prática do sistema de yoga, competência nos rituais védicos e todas as qualidades superiores semelhantes que alguém possa ter só servem para ajudá-lo a alcançar a perfeição quando são empregadas no serviço devocional ao Senhor. Sem essa função, todas essas qualidades se tornam fontes de problemas para a população em geral. Tudo pode ser utilizado para o próprio gozo dos sentidos ou para o serviço a outrem. Também há duas classes de interesse próprio, a saber, o egoísmo pessoal e o egoísmo grupal. Contudo, não há diferença qualitativa entre o egoísmo pessoal e o egoísmo grupal. O roubo por interesse pessoal ou por interesse familiar tem a mesma qualidade – a saber, é criminoso. O ladrão que se diz inocente porque não roubou por interesse pessoal, mas por interesse da sociedade ou da nação, jamais é perdoado pela lei vigente de algum país. As pessoas em geral não têm conhecimento de que o interesse próprio do ser vivo torna-se perfeito apenas quando esse interesse coincide com o interesse do Senhor. Por exemplo, que interesse há em manter-se vivo? A pessoa ganha dinheiro para manter o corpo (pessoal ou social), mas enquanto não houver consciência de Deus, enquanto a pessoa não cuidar da manutenção do corpo para compreender sua relação com Deus, todos os incansáveis esforços para sobreviver se parecem com o empenho feito pelos animais para se manterem vivos. Na manutenção do corpo humano e animal, o propósito é diferente. De modo semelhante, o avanço em erudição, o desenvolvimento econômico, a pesquisa filosófica, o estudo da literatura védica ou mesmo a realização das atividades piedosas (como caridade, abertura de hospitais e distribuição de grãos alimentícios) devem ser atividades relacionadas com o Senhor. A meta de todos esses atos e empreendimentos deve ser a satisfação do Senhor, e não o contentamento de alguma outra entidade, individual ou coletiva, (saṁsiddhir hari-toṣaṇam). Na Bhagavad-gītā (9.27), confirma-se o mesmo princípio, onde há uma passagem que afirma que toda a caridade que possamos dar e toda a austeridade que acaso observemos devem ser dedicados ao Senhor e feitos apenas em Seu benefício. Os hábeis líderes de uma civilização humana ímpia não poderão conseguir um resultado frutífero em todas as suas tentativas de avanço educacional ou desenvolvimento econômico enquanto não forem conscientes de Deus. E, para tornar-se consciente de Deus, a pessoa precisa ouvir sobre o auspiciosíssimo Senhor, conforme Ele é descrito em textos como a Bhagavad-gītā e o Śrīmad-Bhāgavatam.

Texto

kirāta-hūṇāndhra-pulinda-pulkaśā
ābhīra-śumbhā yavanāḥ khasādayaḥ
ye ’nye ca pāpā yad-apāśrayāśrayāḥ
śudhyanti tasmai prabhaviṣṇave namaḥ

Sinônimos

kirāta — uma província da antiga Bhārata; hūṇa — parte da Alemanha e Rússia; āndhra — uma província do sul da Índia; pulinda — os gregos; pulkaśāḥ — outra província; ābhīra — parte do antigo Sind; śumbhāḥ — outra província; yavanāḥ — os turcos; khasaādayaḥ – a província mongólica; ye — mesmo aqueles; anye — outros; ca — também; pāpāḥ — entregues a atos pecaminosos; yat — cujo; apāśraya-āśrayāḥ — ato de refugiar-se nos devotos do Senhor; śudhyanti — purificados de imediato; tasmai — a Ele; prabhaviṣṇave — ao poderoso Viṣṇu; namaḥ — minhas respeitosas reverências.

Tradução

Os Kirātas, os Hūṇas, os Āndhras, os Pulindas, os Pulkaśas, os Ābhīras, os Śumbhas, os Yavanas, os membros das raças Khasa e até mesmo outros que vivem entregues a atos pecaminosos podem purificar-se, refugiando-se nos devotos do Senhor, pois Ele é o poder supremo. Peço permissão para Lhe oferecer minhas respeitosas reverências.

Comentário

SIGNIFICADO—Kirāta: Uma província da antiga Bhārata-varṣa de que se faz menção no Bhīṣma-parva do Mahābhārata. De um modo geral, os Kirātas são conhecidos como as tribos aborígenes da Índia, e, nos dias modernos, os Santal Parganas em Bihar e Chota Nagpur talvez abranjam a antiga província chamada Kirāta.

Hūṇa: A área da Alemanha Oriental e de uma parte da Rússia é conhecida como a província dos Hūṇas, sendo que há uma categoria de tribo montanhesa que é conhecida como os Hūṇas.

Āndhra: Uma província no sul da Índia mencionada no Bhīṣma-parva do Mahābhārata. Ela ainda existe com o mesmo nome.

Pulinda: É mencionada no Mahābhārata (Ādi-parva 174.38), e é constituída pelos habitantes da província de mesmo nome. Essa região foi conquistada por Bhīmasena e Sahadeva. Os gregos são conhecidos como Pulindas, e o Vana-parva do Mahābhārata menciona que a raça não-védica desta parte do mundo governaria o mundo. Essa província Pulinda também era uma das províncias de Bhārata, e seus habitantes eram formados por reis kṣatriyas. Mais tarde, porém, como abandonaram a cultura bramânica, foram mencionados como mlecchas (assim como aqueles que não são seguidores da cultura islâmica são chamados kafirs e aqueles que não são seguidores da cultura cristã são chamados pagãos).

Ābhīra: Este nome também aparece no Mahābhārata, tanto no Sabhā-parva quanto no Bhīṣma-parva. Menciona-se que esta província se situava no rio Sarasvatī, em Sind. Outrora, a moderna província Sind estendia-se até o outro lado do Mar Arábico, e todos os habitantes daquela província eram conhecidos como Ābhīras. Eles se encontravam sob o domínio de Mahārāja Yudhiṣṭhira, e, segundo as afirmações de Mārkaṇḍeya, os mlecchas desta parte do mundo também governariam Bhārata. Mais tarde, tal qual aconteceu com os Pulindas, isso também se concretizou. Em prol dos Pulindas, Alexandre Magno conquistou a Índia, e, em prol dos Ābhīras, Mohammed Ghori conquistou a Índia. Esses Ābhīras eram antigos kṣatriyas dentro da cultura bramânica, mas eles abandonaram o vínculo. Os kṣatriyas que temiam Paraśurāma e haviam se escondido nas regiões montanhosas caucasianas mais tarde tornaram-se conhecidos como Ābhīras, e o lugar onde habitavam era conhecido como Ābhīradeśa.

Śumbhas ou Kaṅkas: Os habitantes da província Kaṅka da antiga Bhārata, mencionada no Mahābhārata.

Yavanas: Yavana era o nome de um dos filhos de Mahārāja Yayāti, o qual foi incumbido de governar a parte do mundo conhecida como Turquia. Portanto, os turcos são Yavanas por serem descendentes de Mahārāja Yavana. Por conseguinte, os Yavanas eram kṣatriyas, e depois, como abandonaram a cultura bramânica, tornaram-se mleccha-yavanas. No Mahābhārata (Ādi-parva 85.34), constam descrições dos Yavanas. Outro príncipe chamado Turvasu também era conhecido como Yavana, e sua região foi conquistada por Sahadeva, um dos Pāṇḍavas. Sob a pressão de Karṇa, os Yavanas ocidentais juntaram-se a Duryodhana na Batalha de Kurukṣetra. Também foi predito que esses Yavanas conquistariam a Índia, e essa predição se concretizou.

Khasa: Os habitantes de Khasadeśa são mencionados no Mahābhārata (Droṇa-parva). Aqueles que têm bigode ralo são chamados, em geral, de Khasas. Nesse caso, os Khasas são os mongóis, os chineses e outros componentes dessa raça.

Os nomes históricos acima citados são diferentes nações do mundo. Mesmo todos aqueles que estão constantemente ocupados em atos pecaminosos podem corrigir-se, refugiando-se nos devotos puros do Senhor para tornarem-se seres humanos perfeitos. Jesus Cristo e Maomé, dois poderosos devotos do Senhor, fizeram sobre a superfície do globo um formidável serviço em prol do Senhor. E, segundo a versão de Śrīla Śukadeva Gosvāmī, parece que se, ao invés de dirigir uma civilização ímpia no presente contexto da situação mundial, a liderança dos afazeres mundiais estiver sob o encargo dos devotos do Senhor, para os quais já se construiu uma organização mundial sob o nome e estilo da Sociedade Internacional da Consciência de Kṛṣṇa, então, pela graça do Senhor todo-poderoso, poderá haver uma completa mudança no coração dos seres humanos em todo o mundo, pois os devotos do Senhor são autoridades competentes para efetuar essa mudança, purificando as mentes empoeiradas da população em geral. Os políticos do mundo podem permanecer em suas respectivas posições porque os devotos puros do Senhor não estão interessados em liderança política ou implicações diplomáticas. Os devotos apenas querem se certificar de que a população em geral não seja desencaminhada pela propaganda política e o ser humano não desperdice sua preciosa vida, seguindo um tipo de civilização que, em última análise, está fadada ao fracasso. Portanto, se os políticos aceitassem os bons conselhos dos devotos, na certa haveria uma grande mudança na situação mundial com a propaganda purificadora empreendida pelos devotos, como mostrou o Senhor Caitanya. Assim como Śukadeva Gosvāmī começou sua oração comentando a palavra yat-kīrtanam, do mesmo modo, o Senhor Caitanya recomendou que, com a simples glorificação do santo nome do Senhor, pode ocorrer uma grande mudança no coração, através da qual o completo desentendimento que os políticos criaram entre as nações humanas pode extinguir-se de imediato. E, após a extinção do fogo do desentendimento, outras vantagens virão. O destino é voltar ao lar, voltar ao Supremo, como comentamos várias vezes nestas páginas.

Segundo o culto da devoção, de um modo geral conhecido como culto vaiṣṇava, não se colocam obstáculos contra alguém que deseja progredir na compreensão acerca de Deus. O vaiṣṇava é bastante poderoso para transformar em vaiṣṇava até mesmo os Kirātas etc., como se mencionou acima. Na Bhagavad-gītā (9.32), o Senhor afirma que todos têm condição de se tornarem devotos do Senhor (mesmo aqueles que têm baixo nascimento, a saber, as mulheres, os śūdras ou os vaiśyas), e quem se torna devoto está apto a voltar ao lar, voltar ao Supremo. O único requisito é que a pessoa se refugie em um devoto puro do Senhor que conheça com profundidade a ciência transcendental de Kṛṣṇa (Bhagavad-gītā e Śrīmad-Bhāgavatam). Qualquer indivíduo de qualquer parte do mundo que se torne versado na ciência de Kṛṣṇa se torna um devoto puro e um mestre espiritual da massa geral da população e pode redimi-las, purificando-lhes o coração. Mesmo que se trate do indivíduo mais pecaminoso, ele pode imediatamente purificar-se através do contato sistemático com um vaiṣṇava puro. Portanto, o vaiṣṇava pode aceitar um discípulo genuíno de qualquer parte do mundo, sem levar em consideração casta ou credo, e, através dos princípios reguladores, promovê-lo ao estado de vaiṣṇava puro, que é transcendental à cultura bramânica. O sistema de castas, ou o varṇāśrama-dharma, deixou de ser regular até mesmo entre os supostos seguidores do sistema. Tampouco é agora possível restabelecer a função institucional dentro do presente contexto da situação social, política e econômica. Sem precisar levar em conta o costume específico de um país, a pessoa pode ser aceita no culto vaiṣṇava espiritualmente, e nada a impede de seguir o processo transcendental. Então, por ordem do Senhor Śrī Caitanya Mahāprabhu, o culto do Śrīmad-Bhāgavatam ou da Bhagavad-gītā pode ser pregado em todo o mundo, recebendo todas as pessoas que desejem adotar o culto transcendental. Essa propaganda cultural empreendida pelos devotos na certa será aceita por todas as pessoas sensatas, inquisitivas e que não tenham inclinação tendenciosa em favor dos costumes do país. O vaiṣṇava nunca aceita outro vaiṣṇava com base no direito hereditário, assim como jamais pensa que a Deidade do Senhor no templo seja um ídolo. E, para remover todas as dúvidas neste setor, Śrīla Śukadeva Gosvāmī invoca as bênçãos do Senhor, que é todo-poderoso (prabhaviṣṇave namaḥ). Assim como o Senhor todo-poderoso aceita o humilde serviço de Seu devoto em atividades devocionais de arcana, Sua forma como Deidade adorável no templo, do mesmo modo, o corpo do vaiṣṇava puro transforma-se transcendentalmente tão logo ele se rende ao serviço do Senhor e é treinado por um vaiṣṇava qualificado. A esse propósito, o preceito da regulação vaiṣṇava determina o seguinte:  arcye viṣṇau śilā-dhīr guruṣu nara-matir vaiṣṇave jāti-buddhiḥ śrī-viṣṇor nāmni śabda-sāmānya-buddhiḥ etc. “Ninguém deve considerar que a Deidade do Senhor adorada no templo é um ídolo, tampouco deve alguém considerar que o mestre espiritual autorizado é um homem comum. Nem deve alguém considerar que o vaiṣṇava puro pertence a uma casta específica etc.” (Padma Purāṇa)

Conclui-se que o Senhor, sendo todo-poderoso, pode, sob toda e qualquer circunstância, aceitar qualquer pessoa de qualquer parte do mundo, seja pessoalmente, seja através de Sua manifestação genuína como mestre espiritual. O Senhor Caitanya aceitou muitos devotos de comunidades diferentes dos varṇāśramites, e, para nos ensinar, Ele próprio declarou que não pertencia a nenhuma casta ou ordem de vida social, mas que era um servo eterno do servo do Senhor que mantém as donzelas de Vṛndāvana (o Senhor Kṛṣṇa). Esse é o processo de autorrealização.

Texto

sa eṣa ātmātmavatām adhīśvaras
trayīmayo dharmamayas tapomayaḥ
gata-vyalīkair aja-śaṅkarādibhir
vitarkya-liṅgo bhagavān prasīdatām

Sinônimos

saḥ — Ele; eṣaḥ — é; ātmā — a Superalma; ātmavatām — das almas autorrealizadas; adhīśvaraḥ — o Senhor Supremo; trayī-mayaḥVedas personificados; dharma-mayaḥ — escrituras religiosas personificadas; tapaḥ-mayaḥ — austeridade personificada; gatavyalīkaiḥ – por aqueles que estão acima de todos os interesses; aja — Brahmājī; śaṅkara-ādibhiḥ — pelo senhor Śiva e outros; vitarkyaliṅgaḥ – alguém que é tratado com respeito e veneração; bhagavān — a Personalidade de Deus; prasīdatām — seja bondoso comigo.

Tradução

Ele é a Superalma e o Senhor Supremo de todas as almas autorrealizadas. É a personificação dos Vedas, das escrituras religiosas e das austeridades. É adorado pelo senhor Brahmā e Śiva e por todos aqueles que são transcendentais a todos os interesses. Sendo reverenciado com esse respeito e veneração, que esse Supremo Absoluto fique satisfeito comigo.

Comentário

SIGNIFICADO—O Senhor Supremo, a Personalidade de Deus, embora o Senhor de todos os seguidores de diferentes processos de autorrealização, pode ser conhecido apenas por aqueles que estão acima de todos os interesses. Todos estão buscando paz eterna ou vida eterna e, com esse destino em vista, todos estão estudando as escrituras védicas ou outras escrituras religiosas, ou submetendo-se a rigorosas austeridades como filósofos empíricos, yogīs místicos ou devotos imaculados etc. Mas o Senhor Supremo é perfeitamente compreendido apenas pelos devotos, pois eles não cultivam interesses. Aqueles que estão no caminho da autorrealização em geral são classificados como karmīs, jñānīs, yogīs ou devotos do Senhor. Os karmīs, que se sentem muito atraídos pelas atividades fruitivas dos rituais védicos, são chamados bhukti-kāmīs, ou aqueles que desejam o gozo material. Os jñānīs, que através da especulação mental tentam tornar-se unos com o Supremo, são chamados mukti-kāmīs, ou aqueles que desejam libertar-se da existência material. Os yogīs místicos, que praticam diferentes espécies de austeridades para alcançar oito categorias de perfeição material e que acabam encontrando em seu transe a Superalma (Paramātmā), são chamados siddhi-kāmīs, ou aqueles que desejam como perfeição tornar-se mais leve que o mais leve, mais pesado que o mais pesado, satisfazer a todos os desejos, exercer controle sobre todos, criar tudo que se deseje etc. Todas essas são habilidades de um yogī poderoso. Contudo, os devotos do Senhor não querem a autossatisfação angariada com alguma dessas conquistas. Tudo o que querem é servir o Senhor porque o Senhor é grande e, como entidades vivas, eles são eternamente partes integrantes do Senhor, a Ele subordinadas. O fato de o devoto ter esta compreensão perfeita acerca do eu ajuda-o a tornar-se sem desejos, a não desejar nada para si mesmo, daí os devotos serem chamados de niṣkāmīs, livres de desejos. A entidade viva, devido à sua posição constitucional, não pode ser desprovida de todos os desejos (o bhukti-kāmī, o mukti-kāmī e o siddhi-kāmī, todos desejam algo que lhes dê satisfação pessoal), mas tudo o que os devotos niṣkāmīs do Senhor desejam é para a satisfação do Senhor. Eles são completamente dependentes das ordens do Senhor e estão sempre preparados a desempenhar seu dever para a satisfação do Senhor.

No começo, Arjuna se situou na posição de alguém que deseja a autossatisfação, pois tinha desejo de não lutar na Batalha de Kurukṣetra, porém, para eliminar seus desejos, o Senhor pregou a Bhagavad-gītā, no qual foram explicados os processos de karma-yoga, jñāna-yoga, haṭha-yoga e também bhakti-yoga. Como não tinha nenhum interesse, Arjuna mudou de opinião e satisfez o Senhor, concordando em lutar (kariṣye vacanaṁ tava), e tornou-se, dessa maneira, livre de desejos.

Aqui, são citados especificamente como exemplos Brahmā e o senhor Śiva porque Brahmājī, o senhor Śiva, Śrīmatī Lakṣmījī e os quatro Kumāras (Sanaka, Sanātana etc.) são líderes dos quatro sampradāyas vaiṣṇavas livres de desejos. Todos eles estão desprovidos de todos os interesses. Śrīla Jīva Gosvāmī interpreta a palavra gata-vyalīkaiḥ como projjhita-kaitavaiḥ, ou aqueles que estão livres de todos os interesses (apenas os devotos imaculados). No Caitanya-caritāmṛta (Madhya 19.149), afirma-se:

kṛṣṇa-bhakta — niṣkāma, ata eva ‘śānta’
bhukti-mukti-siddhi-kāmī, sakali ‘aśānta’

Aqueles que praticam atividades piedosas e exigem em troca resultados fruitivos, aqueles que desejam salvação e igualdade com o Supremo, ou aqueles que desejam as perfeições materiais sob a forma de poder místico são todos inquietos, pois querem algo para si mesmos, mas o devoto é inteiramente pacífico porque não exige nada para si mesmo e sempre está disposto a servir o desejo do Senhor. Portanto, conclui-se que todos precisam do Senhor, visto que, sem Sua permissão, ninguém pode alcançar o resultado de seus respectivos desejos, como o próprio Senhor afirma na Bhagavad-gītā (8.9), todos esses resultados são concedidos unicamente por Ele, pois o Senhor é adhīśvara (o controlador original) de todos, a saber, dos vedantistas, dos grandes karma-kāṇḍīyas, dos grandes líderes religiosos, dos grandes praticantes de austeridades e de todos aqueles que estão lutando pelo avanço espiritual. Em última análise, no entanto, Ele é compreendido apenas pelos devotos livres de pretensões. Portanto, Śrīla Śukadeva Gosvāmī dá ênfase especial ao serviço devocional ao Senhor.

Texto

śriyaḥ patir yajña-patiḥ prajā-patir
dhiyāṁ patir loka-patir dharā-patiḥ
patir gatiś cāndhaka-vṛṣṇi-sātvatāṁ
prasīdatāṁ me bhagavān satāṁ patiḥ

Sinônimos

śriyaḥ — toda a opulência; patiḥ — o proprietário; yajña — do sacrifício; patiḥ — o diretor; prajāpatiḥ – o líder de todas as entidades vivas; dhiyām — da inteligência; patiḥ — o mestre; loka-patiḥ — proprietário de todos os planetas; dharā — Terra; patiḥ — o supremo; patiḥ — líder; gatiḥ — destino; ca — também; andhaka — um dos reis da dinastia Yadu; vṛṣṇi — o primeiro rei da dinastia Yadu; sātvatām — os Yadus; prasīdatām — sê misericordioso; me — comigo; bhagavān — Senhor Śrī Kṛṣṇa; satām — de todos os devotos; patiḥ — o Senhor.

Tradução

Que o Senhor Śrī Kṛṣṇa, que é o Senhor adorável de todos os devotos, o protetor e a glória de todos os reis, como Andhaka e Vṛṣṇi, da dinastia Yadu, o esposo de todas as deusas da fortuna, o diretor de todos os sacrifícios e, portanto, o líder de todas as entidades vivas, o controlador de toda inteligência, o proprietário de todos os planetas, espirituais e materiais, e a encarnação suprema sobre a Terra (o todo supremo), seja misericordioso comigo.

Comentário

SIGNIFICADO—Como é um dos proeminentes gata-vyalīkas, que estão livres de todas as falsas concepções errôneas, Śukadeva Gosvāmī expressa que, segundo a própria compreensão por ele adquirida, o Senhor Śrī Kṛṣṇa é o somatório de toda a perfeição, a Personalidade de Deus. Todos estão buscando ser favorecidos pela deusa da fortuna, mas as pessoas não sabem que o Senhor Śrī Kṛṣṇa é o amado esposo de todas as deusas da fortuna. Na Brahma-saṁhitā, afirma-se que o Senhor, em Sua transcendental morada Goloka Vṛndāvana, dedica-Se a apascentar as vacas surabhi e é servido por centenas de milhares de deusas da fortuna. Todas essas deusas da fortuna são manifestações da transcendental potência de prazer (hlādinī-śakti) de Sua energia interna, e, ao manifestar-Se nesta Terra, o Senhor desempenhou a rāsa-līlā, onde foram apresentadas algumas atividades de Sua potência de prazer, com as quais Ele simplesmente queria atrair as almas condicionadas, que estão todas em busca da fantasmagórica potência de prazer no degradado gozo sexual. Os devotos puros do Senhor, como Śukadeva Gosvāmī, que era inteiramente desapegado da abominável vida sexual do mundo material, decerto não se referiam a atividades sexuais ao mencionarem esta faceta da potência de prazer do Senhor, mas era seu objetivo saborear um gosto transcendental inconcebível para as pessoas mundanas em busca de vida sexual. Vida sexual no mundo temporário é a causa fundamental do condicionamento aos grilhões da ilusão, e, com certeza, Śukadeva Gosvāmī jamais se interessou pela vida sexual do mundo temporário. Tampouco a manifestação da potência de prazer do Senhor tem alguma ligação com essas perversões. O Senhor Caitanya era um sannyāsī estrito, prova isso o fato de que Ele não permitia que nenhuma mulher se aproximasse dEle, nem mesmo para prostrar-se e oferecer respeitos. Ele nem mesmo ouvia as orações que as deva-dāsīs ofereciam no templo de Jagannātha, porque se proíbe que o sannyāsī ouça canções cantadas pelo belo sexo. Entretanto, mesmo na rígida posição de sannyāsī, Ele recomendou o modo de adoração praticado pelas gopīs de Vṛndāvana como sendo o serviço amoroso mais elevado que se pode prestar ao Senhor. E Śrīmatī Rādhārāṇī é a principal de todas essas deusas da fortuna e, portanto, é a personificação do prazer do Senhor, e não é diferente de Kṛṣṇa.

Nos rituais védicos, há recomendações para a realização de diferentes espécies de sacrifícios a fim de que se obtenha o benefício máximo na vida. Na execução de grandes sacrifícios, as bênçãos recebidas são, afinal de contas, favores concedidos pela deusa da fortuna, e o Senhor, sendo o esposo ou amante da deusa da fortuna, de fato também é o Senhor de todos os sacrifícios. Ele é o desfrutador último de todas as classes de yajña; portanto, Yajña-pati é outro nome do Senhor Viṣṇu. A Bhagavad-gītā recomenda que tudo seja feito para o Yajña-pati (yajñārtāt karmaaḥ), ou os atos serão a causa do condicionamento à lei da natureza material. Aqueles que não estão livres de todas as falsas concepções (vyalīkam) realizam sacrifícios para satisfazer meros semideuses, mas o devoto do Senhor sabe muito bem que o Senhor Śrī Kṛṣṇa é o supremo desfrutador de todas as práticas de sacrifícios; portanto, realizam o saṅkīrtana-yajña (śravaṇaṁ kīrtanaṁ viṣṇoḥ), que é especialmente recomendado nesta era de Kali. Em Kali-yuga, a prática de outras espécies de sacrifício não é exequível, pois faltam condições propícias e sacerdotes qualificados.

Na Bhagavad-gītā (3.10-11), somos informados de que o senhor Brahmā, após propiciar o renascimento das almas condicionadas dentro do universo, instruiu-as a realizarem sacrifícios para levarem uma vida próspera. Com essas práticas de sacrifício, as almas condicionadas jamais terão dificuldade em se manter vivas. Por fim, podem purificar sua existência. Elas serão naturalmente promovidas à existência espiritual, a verdadeira identidade do ser vivo. Em nenhuma circunstância deve a alma condicionada abandonar a prática de sacrifício, austeridade e caridade. A meta de todos esses sacrifícios é satisfazer o Yajña-pati, a Personalidade de Deus; portanto, o Senhor também é Prajā-pati. Segundo a Kaṭha Upaniṣad, há um único Senhor, e Ele é o líder das inúmeras entidades vivas. As entidades vivas são mantidas pelo Senhor (eko bahūnāṁ yo vidadhāti kāmān). Portanto, o Senhor é chamado de o Bhūta-bhṛt supremo, ou o mantenedor de todos os seres vivos.

Os seres vivos são dotados de inteligência na proporção de suas atividades anteriores. Os seres vivos não possuem o mesmo grau de inteligência porque, por trás do desenvolvimento dessa inteligência, está o controle do Senhor, como se declara na Bhagavad-gītā (15.15). Como Paramātmā, Superalma, o Senhor vive no coração de todos, e apenas dEle vem o poder de lembrança, conhecimento e esquecimento (mattaḥ smṛtir jñānam apohanaṁ ca). Pela graça do Senhor, uma pessoa pode lembrar-se muito bem de suas atividades passadas, mas outras não podem. Pela graça do Senhor, alguém é muito inteligente, mas, por causa desse mesmo controle, há aqueles que não passam de tolos. Portanto, o Senhor é Dhiyām-pati, ou o Senhor da inteligência.

As almas condicionadas lutam para se tornarem senhores do mundo material. Todos estão tentando assenhorear-se da natureza material, empregando seu mais alto grau de inteligência. Esse abuso de inteligência praticado pela alma condicionada chama-se loucura. Todos devem aplicar sua inteligência em livrar-se das garras materiais. Mas a alma condicionada, devido apenas à loucura, ocupa toda a sua energia e inteligência no gozo dos sentidos, e, para alcançar essa meta da vida, ela deliberadamente comete todas as espécies de más ações. O resultado é que, ao invés de alcançar uma vida não-condicionada em que há liberdade plena, a alma condicionada, estando louca, emaranha-se repetidas vezes em diferentes classes de cativeiros nos corpos materiais. Tudo o que vemos na manifestação material é apenas a criação do Senhor. Portanto, Ele é o verdadeiro proprietário de tudo o que há nos universos. Sob o controle do Senhor, e nunca com total independência, pode a alma condicionada desfrutar um fragmento dessa criação material. Essa é a instrução que consta na Īśopaniṣad. Todos devem satisfazer-se com aquilo que é concedido pelo Senhor do universo. É apenas por loucura que alguém tenta usurpar as posses materiais alheias.

O Senhor do universo, por Sua imotivada misericórdia para com as almas condicionadas, desce através de Sua própria energia (ātma-mayā) para restabelecer a relação eterna que as almas condicionadas mantêm com Ele. O Senhor recomenda que todos se rendam a Ele ao invés de quererem se fazer passar por desfrutadores de uma limitada porção que está sob Seu controle. Ao executar esse advento, Ele prova quão maior é Sua habilidade de desfrutar e manifesta Seu poder de desfrute, por exemplo, casando-se com dezesseis mil esposas de uma só vez. A alma condicionada orgulha-se muito porque tem apenas uma esposa, mas o Senhor ri disso; o homem inteligente consegue perceber quem é o verdadeiro esposo. De fato, o Senhor é o esposo de todas as mulheres em Sua criação, mas a alma condicionada, que está sob o controle do Senhor, orgulha-se de ser o esposo de uma ou duas mulheres.

Todas essas qualificações, que se coadunam com as diferentes categorias de patis mencionadas neste verso, aplicam-se ao Senhor Śrī Kṛṣṇa, e Śukadeva Gosvāmī, portanto, menciona especialmente o pati e gati da dinastia Yadu. Os membros da dinastia Yadu sabiam que o Senhor Śrī Kṛṣṇa é tudo, e todos eles queriam voltar ao Senhor Śrī Kṛṣṇa depois que Ele concluísse Seus passatempos transcendentais sobre a Terra. Por vontade do Senhor, a dinastia Yadu foi aniquilada para que seus membros pudessem voltar ao lar com o Senhor. A aniquilação da dinastia Yadu foi um espetáculo material criado pelo Senhor Supremo; de resto, o Senhor e os membros da dinastia Yadu são todos associados eternos. Portanto, o Senhor é o guia de todos os devotos, e, nesse caso, Śukadeva Gosvāmī, deixando que se desenvolvam sentimentos carregados de amor, oferece-Lhe os devidos respeitos.

Texto

yad-aṅghry-abhidhyāna-samādhi-dhautayā
dhiyānupaśyanti hi tattvam ātmanaḥ
vadanti caitat kavayo yathā-rucaṁ
sa me mukundo bhagavān prasīdatām

Sinônimos

yat-aṅghri — cujos pés de lótus; abhidhyāna — pensando em, a cada segundo; samādhi — transe; dhautayā — sendo lavada; dhiyā — com essa inteligência limpa; anupaśyanti — vê, seguindo as autoridades; hi — decerto; tattvam — a Verdade Absoluta; ātmanaḥ — do Senhor Supremo e da própria pessoa; vadanti — dizem; ca — também; etat — isto; kavayaḥ — filósofos ou sábios eruditos; yathā-rucam — como ele pensa; saḥ — Ele; me — meu; mukundaḥ — Senhor Kṛṣṇa (que concede a liberação); bhagavān — a Personalidade de Deus; prasīdatām — fique satisfeito comigo.

Tradução

Quem concede a liberação é Śrī Kṛṣṇa, a Personalidade de Deus. Pensando em Seus pés de lótus a cada segundo, seguindo os passos das autoridades, o devoto em transe pode ver a Verdade Absoluta. Entretanto, os especuladores mentais eruditos pensam nEle de acordo com seus caprichos. Que o Senhor fique satisfeito comigo.

Comentário

SIGNIFICADO—Os yogīs místicos, após um extenuante esforço para controlar os sentidos, podem situar-se em um transe ióguico só para perceberem a Superalma dentro de todos, mas o devoto puro, pelo simples fato de se lembrarem dos pés de lótus do Senhor a cada segundo, de imediato se estabelece em verdadeiro transe porque, com essa percepção, sua mente e sua inteligência limpam-se por completo das doenças manifestas como gozo material. O devoto puro se julga caído no oceano de nascimentos e mortes e não para de orar pedindo que o Senhor o erga. Ele apenas aspira a tornar-se uma partícula da transcendental poeira aos pés de lótus do Senhor. O devoto puro, pela graça do Senhor, perde absolutamente toda a atração pelo gozo material, e, para manter-se livre da contaminação, sempre pensa nos pés de lótus do Senhor. O rei Kulaśekhara, um grande devoto do Senhor, orava:

kṛṣṇa tvadīya-pada-paṅkaja-pañjarāntam
adyaiva me viśatu mānasa-rāja-haṁsaḥ
prāṇa-prayāṇa-samaye kapha-vāta-pittaiḥ
kaṇṭhāvarodhana-vidhau smaraṇaṁ kutas te

“Meu Senhor Kṛṣṇa, oro para que minha mente, tal qual um cisne, possa de imediato deslizar rumo aos caules dos pés de lótus de Vossa Onipotência e se aprisione em suas malhas, pois, do contrário, no momento de meu último suspiro, quando minha garganta estiver sufocada pela tosse, como conseguirei pensar em Ti?”

Existe uma relação íntima entre o cisne e o caule do lótus. Logo, a comparação é muito apropriada: sem tornar-se um cisne, ou paramahaṁsa, ninguém pode entrar nas malhas dos pés de lótus do Senhor. Como se afirma na Brahma-saṁhitā, os especuladores mentais, embora recorram ao conhecimento erudito, não podem nem mesmo sonhar com a Verdade Absoluta, mesmo que especulem sobre ela por toda a eternidade. O Senhor Se reserva o direito de não Se expor a esses especuladores mentais. E como não podem entrar nas malhas formadas pelo caule dos pés de lótus do Senhor, todos os especuladores mentais chegam a conclusões diferentes e acabam propondo uma conciliação inútil, dizendo que cada método produz uma conclusão que se coaduna com a tendência do próprio indivíduo (yathā-rucam). Mas o Senhor não é como um comerciante que, no mercado da especulação mental, tenta satisfazer todas as classes de fregueses. O Senhor é o que Ele é, a Absoluta Personalidade de Deus, e exige total rendição apenas a Ele. Entretanto, seguindo os caminhos dos ācāryas ou autoridades anteriores, o devoto puro pode ver o Senhor Supremo através do meio transparente, o mestre espiritual genuíno (anupaśyanti). O devoto puro nunca tenta ver o Senhor através da especulação mental, mas através de seguir os passos dos ācāryas (mahājano yena gataḥ sa panthāḥ). Portanto, os ācāryas vaiṣṇavas não divergem em suas conclusões no tocante ao Senhor e aos devotos. O Senhor Caitanya afirma que a entidade viva (jīva) é um servo eterno do Senhor e que ela é ao mesmo tempo igual ao Senhor e diferente dEle. Esse tattva do Senhor Caitanya é compartilhado por todos os quatro sampradāyas da escola vaiṣṇava (todos os quais aceitam que, mesmo após a salvação, a entidade viva continua servindo ao Senhor), e não há nenhum ācārya vaiṣṇava autorizado que pense que o Senhor e ele próprio são iguais.

Essa humildade do devoto puro, que está cem por cento ocupado em Seu serviço, põe o devoto do Senhor em um transe no qual ele passa a compreender tudo, pois o Senhor Se revela ao Seu devoto sincero, como se afirma na Bhagavad-gītā (10.10). O Senhor, sendo o senhor da inteligência em todos (até mesmo no não-devoto), favorece o Seu devoto com inteligência adequada para que o devoto puro automaticamente se ilumine com a verdade insofismável sobre o Senhor e Suas diferentes energias. O Senhor não é revelado pelo poder especulativo ou pelo jogo de palavras sobre a Verdade Absoluta. Ao contrário, Ele Se revela ao devoto quando está plenamente satisfeito com a atitude de serviço do devoto. Śukadeva Gosvāmī não é um especulador mental nem está comprometido com a teoria segundo a qual “cada processo tem uma conclusão que é válida para o processo em questão”. Em vez disso, ele ora unicamente ao Senhor, invocando Seu prazer transcendental. Esse é o método para conhecer o Senhor.

Texto

pracoditā yena purā sarasvatī
vitanvatājasya satīṁ smṛtiṁ hṛdi
sva-lakṣaṇā prādurabhūt kilāsyataḥ
sa me ṛṣīṇām ṛṣabhaḥ prasīdatām

Sinônimos

pracoditā — inspirado; yena — por quem; purā — no começo da criação; sarasvatī — a deusa da sabedoria; vitanvatā — ampliada; ajasya — de Brahmā, o primeiro ser vivo criado; satīm smṛtim — memória potente; hṛdi — no coração; sva — em seu próprio; lakṣaṇā — visando a; prādurabhūt — foi gerado; kila — como que; āsyataḥ — da boca; saḥ — ele; me — comigo; ṛṣīṇām — dos mestres; ṛṣabhaḥ — o principal; prasīdatām — fique satisfeito.

Tradução

Que o Senhor, que no começo da criação ampliou o potente conhecimento de Brahmā, que lhe foi transmitido do interior de seu coração, e o inspirou dando-lhe conhecimento acerca da criação e acerca do Seu próprio eu, e que pareceu ser gerado da boca de Brahmā, fique satisfeito comigo.

Comentário

SIGNIFICADO—Como já comentamos anteriormente neste texto, o Senhor, como a Superalma em todos os seres vivos, desde Brahmā até a formiga insignificante, dota todos com o necessário conhecimento potente em todo ser vivo. O ser vivo é suficientemente potente para possuir conhecimento do Senhor na proporção de três quartos e três centésimos, ou setenta e oito por cento, de todo o conhecimento obtenível. Como é parte integrante do Senhor, o ser vivo é incapaz de assimilar todo o conhecimento que o próprio Senhor possui. No estado condicionado, o ser vivo sujeita-se a esquecer tudo após a mudança corpórea conhecida como morte. No interior do coração de cada ser vivo, o Senhor volta a inspirar nele este conhecimento potente, e tal fenômeno é conhecido como o despertar do conhecimento, pois se compara ao momento em que alguém desperta do sono ou da inconsciência. Esse despertar de conhecimento está sob pleno controle do Senhor, de modo que observamos no mundo prático que diferentes pessoas possuem diferentes graus de conhecimento. Esse despertar de conhecimento não é uma interação automática ou material. A fonte supridora é o próprio Senhor (dhiyāṁ patiḥ), pois até mesmo Brahmā também está sujeito a essa regulação do criador supremo. No começo da criação, o primeiro a nascer é Brahmā, e, em seu nascimento, não existe a participação de nenhum pai ou mãe porque, antes de Brahmā, não havia quaisquer outros seres vivos. Brahmā nasce do lótus que cresce do abdômen de Garbhodakaśāyī Viṣṇu, em virtude do que ele é conhecido como Aja. Este Brahmā, ou Aja, também é um ser vivo, parte integrante do Senhor, mas, sendo o mais piedoso devoto do Senhor, Brahmā é inspirado pelo Senhor a criar, logo após a criação principal que o Senhor executa, por intermédio da natureza material. Portanto, nem a natureza material nem Brahmā são independentes do Senhor. Os cientistas materialistas podem meramente observar as reações da natureza material sem compreender o comando por trás dessas atividades, como uma criança pode ver a ação da eletricidade sem perceber o engenheiro que trabalha na central geradora. Esse conhecimento imperfeito que o cientista materialista possui deve-se a um pobre fundo de conhecimento. O conhecimento védico, portanto, foi primeiramente transmitido a Brahmā, e parece que Brahmā distribuiu o conhecimento védico. Sem dúvida, Brahmā é o orador do conhecimento védico, mas, na verdade, ele foi inspirado pelo Senhor a receber esse conhecimento transcendental, como advém diretamente do Senhor. Os Vedas, portanto, são chamados apauruṣeya, ou não são transmitidos por nenhum ser criado. Antes da criação, o Senhor existia (nārāyaṇaḥ paro ’vyaktāt), de modo que as palavras faladas pelo Senhor são vibrações de som transcendental. Existe um abismo de diferença entre as duas qualidades de som, a saber, prākṛta e aprākṛta. O físico pode lidar apenas com o som prākṛta, ou o som vibrado no céu material, e, portanto, devemos saber que os sons védicos registrados em expressões simbólicas não podem ser compreendidos por alguém dentro do universo que não tenha sido inspirado pela vibração do som sobrenatural (aprākṛta), o qual desce na corrente de sucessão discipular, vindo do Senhor até Brahmā, de Brahmā a Nārada, de Nārada a Vyāsa e assim por diante. Nenhum erudito mundano pode traduzir ou revelar o verdadeiro significado dos mantras (hinos) védicos. Eles só podem ser compreendidos por alguém que seja inspirado ou iniciado pelo mestre espiritual autorizado. O mestre espiritual original é o próprio Senhor, e a sucessão desce através das fontes do paramparā, como se afirma claramente no quarto capítulo da Bhagavad-gītā. Logo, enquanto não receber do paramparā autorizado o conhecimento transcendental, a pessoa deverá ser considerada inútil (niṣphalā matāḥ), muito embora possa ser grandemente qualificada nos progressos mundanos das artes ou das ciências.

Śukadeva Gosvāmī está orando para que o Senhor o inspire internamente a fim de que possa explicar de forma correta os fatos e aspectos da criação sobre os quais Mahārāja Parīkṣit perguntou. O mestre espiritual não é um especulador teórico, como o erudito mundano, mas é śrotriyaṁ brahma-niṣṭham.

Texto

bhūtair mahadbhir ya imāḥ puro vibhur
nirmāya śete yad amūṣu pūruṣaḥ
bhuṅkte guṇān ṣoḍaśa ṣoḍaśātmakaḥ
so ’laṅkṛṣīṣṭa bhagavān vacāṁsi me

Sinônimos

bhūtaiḥ — pelos elementos; mahadbhiḥ — da criação material; yaḥ — aquele que; imāḥ — todos esses; puraḥ — corpos; vibhuḥ — do Senhor; nirmāya — para serem constituídos; śete — deita; yat amūṣu — uma pessoa que encarnou; pūruṣaḥ — Senhor Viṣṇu; bhuṅkte — faz com que se sujeitem; guṇān — aos três modos da natureza; ṣoḍaśa — em dezesseis divisões; ṣoḍaśa-ātmakaḥ — sendo o gerador dessas dezesseis; saḥ — Ele; alaṅkṛṣīṣṭa — possa adornar; bhagavān — a Personalidade de Deus; vacāṁsi — afirmações; me — minhas.

Tradução

Que a Suprema Personalidade de Deus, que, deitando-Se dentro do universo, anima os corpos materialmente criados com os elementos, e que em Sua encarnação puruṣa faz com que o ser vivo se sujeite às dezesseis divisões dos modos materiais de que aquele se origina, alegre-Se em adornar minhas afirmações.

Comentário

SIGNIFICADO—Como um devoto plenamente dependente, Śukadeva Gosvāmī (ao contrário do homem mundano, orgulhoso de sua própria capacidade) invoca o prazer da Personalidade de Deus para que suas afirmações possam ser exitosas e apreciadas pelos ouvintes. O devoto sempre se julga um instrumento útil na execução de qualquer atividade bem-sucedida e recusa-se a aceitar o mérito por qualquer empreendimento feito por ele próprio. O ateísta ímpio quer receber todo o mérito pelas atividades, desconhecendo que nem mesmo uma folha de grama pode se mover sem a sanção do Espírito Supremo, a Personalidade de Deus. Śukadeva Gosvāmī, portanto, quer conduzir-se segundo a orientação do Senhor Supremo, que inspirou Brahmā a falar a sabedoria védica. As verdades descritas nos textos védicos não são teorias de imaginação mundana, tampouco são fictícias, como às vezes pensa a classe de homens menos inteligentes. Todas as verdades védicas são descrições perfeitas da verdade dos fatos, sem nenhum erro ou ilusão, e Śukadeva Gosvāmī quer apresentar as verdades da criação não como uma teoria metafísica de especulação filosófica, mas como os fatos e aspectos reais do assunto, uma vez que o Senhor ditaria tudo para ele da mesma maneira como inspirou Brahmājī. Como afirma a Bhagavad-gītā (15.15), o próprio Senhor é o pai do conhecimento vedānta, e é unicamente Ele que conhece o verdadeiro significado da filosofia vedānta. Assim, não há verdade maior do que os princípios religiosos mencionados nos Vedas. Semelhante conhecimento védico, ou religião védica, são disseminados por autoridades como Śukadeva Gosvāmī porque ele é um humilde servo devocional do Senhor e que não tem desejo de tornar-se desautorizadamente um intérprete autodesignado. Esse é o método pelo qual o conhecimento védico é explicado, e é tecnicamente conhecido como sistema paramparā, ou o processo descendente.

O homem inteligente pode ver, sem erro, que qualquer criação material (seja seu próprio corpo, um fruto ou uma flor) não pode crescer belamente sem o toque espiritual. O homem mais inteligente do mundo, ou o maior cientista, pode apresentar tudo muito belamente apenas enquanto a vida espiritual, ou o toque espiritual, estiver presente. Portanto, a fonte de todas as verdades é o Espírito Supremo, e não a matéria grosseira, como concebe erroneamente o materialista crasso. Na literatura védica, fomos informados de que o próprio Senhor entrou primeiro no vácuo do universo material, e, assim, todas as coisas se desenvolveram gradualmente, uma após a outra. Do mesmo modo, o Senhor está situado como o Paramātmā localizado em cada ser individual; então, tudo é feito por Ele muito belamente. Os dezesseis principais elementos criativos, a saber, terra, água, fogo, ar, céu e os onze órgãos dos sentidos, desenvolveram-se primeiramente do próprio Senhor e, desse modo, foram compartilhados pelas entidades vivas. Assim, os elementos materiais foram criados para o gozo das entidades vivas. Portanto, o belo arranjo por trás de todas as manifestações materiais se faz possível por intermédio da energia do Senhor, e tudo o que a entidade viva individual pode fazer é orar ao Senhor para obter sobre isso uma compreensão adequada. Como o Senhor é a entidade suprema, diferente de Śukadeva Gosvāmī, a oração pode ser oferecida a Ele. O Senhor ajuda a entidade viva a desfrutar da criação material, mas Ele está à parte desse falso desfrute. Śukadeva Gosvāmī ora pela misericórdia do Senhor, não apenas para ser ajudado pessoalmente na apresentação da verdade, mas também para ajudar os outros a quem gostaria de falar.

Texto

namas tasmai bhagavate
vāsudevāya vedhase
papur jñānam ayaṁ saumyā
yan-mukhāmburuhāsavam

Sinônimos

namaḥ — minhas reverências; tasmai — a Ele; bhagavate — à Suprema Personalidade de Deus; vāsudevāya — a Vāsudeva ou Suas encarnações; vedhase — o compilador dos textos védicos; papuḥ — bebido; jñānam — conhecimento; ayam — este conhecimento védico; saumyāḥ — os devotos, em especial as consortes do Senhor Kṛṣṇa; yat — de cuja; mukhaamburuha – boca de lótus; āsavam — néctar de Sua boca.

Tradução

Ofereço minhas respeitosas reverências a Śrīla Vyāsadeva, a encarnação de Vāsudeva que compilou as escrituras védicas. Os devotos puros bebem o nectáreo conhecimento transcendental que flui da boca de lótus do Senhor.

Comentário

SIGNIFICADO—Em vista do vocábulo específico vedhase, ou “o compilador do sistema de conhecimento transcendental”, Śrīla Śrīdhara Svāmī comenta que as respeitosas reverências são oferecidas a Śrīla Vyāsadeva, que é a encarnação de Vāsudeva. Śrīla Jīva Gosvāmī concorda com isso, mas Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura ainda foi mais adiante, e disse que o néctar da boca do Senhor Kṛṣṇa é transferido para as Suas diferentes consortes, e, desse modo, elas aprendem as finas artes da música, da dança, da indumentária, da decoração e de todas essas coisas que com certeza o Senhor aprecia. Tais músicas, danças e decorações desfrutadas pelo Senhor com certeza não são mundanas, dado que, logo ao começo, o Senhor é chamado de para, ou transcendental. As almas condicionadas e esquecidas nada sabem sobre esse conhecimento transcendental. Śrīla Vyāsadeva, que é uma encarnação do Senhor, compilou, então, os textos védicos para que as almas condicionadas recuperem a memória e lembrem-se de sua eterna relação com o Senhor. Portanto, é através da boca de lótus de Vyāsadeva ou Śukadeva que se deve tentar entender as escrituras védicas, ou o néctar que, com o convívio conjugal, o Senhor infunde em Suas consortes. Com o avanço gradual de conhecimento transcendental, a pessoa pode elevar-se à fase das artes transcendentais da música e dança que o Senhor manifesta em Sua rāsa-līlā. Contudo, sem ter conhecimento védico, é muito difícil a pessoa entender a natureza transcendental da música e da dança da rāsa de que o Senhor participa. Os devotos puros do Senhor, entretanto, podem igualmente saborear o néctar sob a forma dos profundos discursos filosóficos e sob a forma do beijo dado pelo Senhor na dança da rāsa, pois não há distinção mundana entre essas duas atividades.

Texto

etad evātma-bhū rājan
nāradāya vipṛcchate
veda-garbho ’bhyadhāt sākṣād
yad āha harir ātmanaḥ

Sinônimos

etat — sobre este assunto; eva — exatamente; ātma-bhūḥ — o primogênito (Brahmājī); rājan — meu querido rei; nāradāya — a Nārada Muni; vipṛcchate — tendo-lhe perguntado sobre isto; veda-garbhaḥ — uma pessoa que é imbuída de conhecimento védico desde o nascimento; abhyadhāt — informou; sākṣāt — diretamente; yat āha — aquilo que ele falou; hariḥ — o Senhor; ātmanaḥ — ao Seu próprio filho (Brahmā).

Tradução

Meu querido rei, Brahmā, o primogênito, ao ser interpelado por Nārada, deixou-o bem inteirado deste assunto, conforme fora diretamente falado pelo Senhor ao Seu próprio filho, que era imbuído de conhecimento védico desde o seu nascimento.

Comentário

SIGNIFICADO—Tão logo nasceu das pétalas de lótus do abdômen de Viṣṇu, Brahmā foi impregnado de conhecimento védico, motivo pelo qual ele é conhecido como veda-garbha, ou um vedantista desde quando era um embrião. Sem conhecimento védico, ou conhecimento perfeito e infalível, ninguém pode criar nada. Todo o conhecimento científico e todo o conhecimento perfeito são védicos. Nos Vedas, podem-se obter todas as espécies de informações, e, nesse caso, Brahmā foi impregnado com o conhecimento todo-perfeito para que pudesse criar. Assim, Brahmā conhecia a perfeita descrição da criação, como lhe foi exatamente transmitida pelo Supremo Senhor Hari. Brahmā, ao ser interpelado por Nārada, disse a este tudo o que ouvira diretamente do Senhor. Por sua vez, Nārada disse exatamente a mesma coisa a Vyāsa, e Vyāsa também disse a Śukadeva exatamente o que ouvira de Nārada. E Śukadeva iria repetir as mesmas afirmações que ouvira de Vyāsa. Esse é o processo de compreensão védica. A linguagem dos Vedas pode ser revelada apenas pela sucessão discipular acima mencionada, e não de outra maneira.

Não há necessidade de teorias. O conhecimento precisa ser posto em prática. Existem muitas coisas complexas e que só podem ser entendidas quando são explicadas por alguém que as conheça. O conhecimento védico também é muito difícil de ser conhecido e deve ser aprendido através do sistema acima mencionado; caso contrário, não é entendido de maneira nenhuma.

Śukadeva Gosvāmī, portanto, orou pedindo a misericórdia do Senhor para que pudesse repetir a mesmíssima mensagem que o Senhor falara diretamente a Brahmā, ou que Brahmā falara diretamente a Nārada. Portanto, diferentemente do que sugerem pessoas mundanas, as afirmativas sobre a criação explicadas por Śukadeva Gosvāmī não são nem um pouco teóricas, mas perfeitamente corretas. Aquele que ouve estas mensagens e tenta assimilá-las obtém a informação perfeita acerca da criação material.

Neste ponto, encerram-se os significados Bhaktivedanta do segundo canto, quarto capítulo, do Śrīmad-Bhāgavatam, intitulado “O Processo da Criação”.