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CAPÍTULO QUATORZE

As Orações de Brahmā ao Senhor Kṛṣṇa

Este capítulo descreve as orações oferecidas por Brahmā ao Senhor Kṛṣṇa, que também é conhecido como Nanda-nandana.

Para a satisfação do Senhor, Brahmā primeiro louvou a beleza dos membros transcendentais do Senhor e, depois, declarou que Sua iden­tidade original de doçura é ainda mais difícil de compreender do que Sua opulência. Apenas através do processo devocional de ouvir e cantar sons transcendentais recebidos das autoridades védicas é que se pode realizar a Personalidade de Deus. É infrutífero tentar realizar Deus através de processos que se encontrem fora do âmbito da auto­ridade védica.

O mistério acerca da Personalidade de Deus, que é o reservatório de qualidades espirituais ilimitadas, é inconcebível; é ainda mais di­fícil de entender do que o Supremo impessoal. Logo, é apenas pela mise­ricórdia de Deus que alguém pode compreender Suas glórias. Por fim, ao dar-se conta deste fato, Brahmā condenou repetidas vezes suas próprias ações e reconheceu que o Senhor Śrī Kṛṣṇa, o refúgio último do universo, é o próprio pai de Brahmā, o Nārāyaṇa original. Desse modo, Brahmā suplicou perdão ao Senhor.

Brahmā, então, glorificou a opulência inconcebível da Personalidade de Deus e descreveu as características que tornam Brahmā e Śiva di­ferentes do Senhor Viṣṇu, a razão do aparecimento do Senhor Supre­mo em várias espécies de semideuses, animais etc., a natureza eterna dos passatempos da Personalidade de Deus e a temporariedade do mundo material. Por conhecer de fato a Personalidade Suprema, a alma espiritual individual pode libertar-se do cativeiro. Na verdade, contudo, tanto a liberação quanto o cativeiro são irreais, pois é apenas em decorrência da concepção condicionada da entidade viva que se criam seu cativeiro e sua liberação. Julgando ilusória a forma pessoal do Senhor Kṛṣṇa, os tolos rejeitam Seus pés de lótus e procuram en­contrar em outro lugar o Eu Supremo. Mas a futilidade de sua busca é a prova óbvia de sua tolice. Simplesmente não há como compreen­der a verdade a respeito da Personalidade de Deus sem Sua mise­ricórdia.

Depois de estabelecer esta conclusão, o senhor Brahmā analisou a enorme boa fortuna dos residentes de Vraja e, então, orou pessoalmen­te para nascer ali até mesmo como uma folha de grama, um arbusto ou uma trepadeira. De fato, os lares dos residentes de Vṛndāvana não são prisões da existência material, mas sim moradas invejadas até pelos jñānīs e yogīs. Por outro lado, qualquer lar destituído de cone­xão com o Senhor Kṛṣṇa não passa de uma cela do cárcere da exis­tência material. Por fim, Brahmā entregou-se sem reservas aos pés de lótus do Senhor Supremo e, louvando-O reiteradas vezes, circungi­rou-O e despediu-se.

Nesse momento, o Senhor Kṛṣṇa reuniu os animais que Brahmā roubara e levou-os ao lugar à margem do Yamunā, onde os vaqueirinhos almoçavam. Os mesmos amigos que antes estavam presen­tes, encontravam-se sentados ali mais uma vez. Devido ao poder da energia ilusória de Kṛṣṇa, eles não tinham nenhuma consciência do que acon­tecera. Assim, quando Kṛṣṇa chegou com os bezerros, os meninos disseram-Lhe: “Voltastes tão depressa! Muito bem. Enquanto esti­vestes ausente, não pudemos comer sequer um bocado, vinde, então, comer.”

Rindo por causa das palavras dos vaqueirinhos, o Senhor Kṛṣṇa começou a tomar Sua refeição na companhia deles. Enquanto comia, Kṛṣṇa mostrou a Seus amiguinhos a pele do píton, e os meninos pen­saram: “Kṛṣṇa acabou de matar esta serpente terrível.” De fato, mais tarde eles relataram aos residentes de Vṛndāvana o incidente em que Kṛṣṇa matou o demônio Agha. Desse modo, os vaqueirinhos des­creveram passatempos que o Senhor Kṛṣṇa executara em Sua idade bālya (de um a cinco anos), embora Sua idade paugaṇḍa (de seis a dez anos) já houvesse começado.

Śukadeva Gosvāmī conclui este capítulo explicando como as gopīs amavam o Senhor Kṛṣṇa mais até mesmo do que amavam seus próprios filhos.

Texto

śrī-brahmovāca
naumīḍya te ’bhra-vapuṣe taḍid-ambarāya
guñjāvataṁsa-paripiccha-lasan-mukhāya
vanya-sraje kavala-vetra-viṣāṇa-veṇu-
lakṣma-śriye mṛdu-pade paśupāṅgajāya

Sinônimos

śrī-brahmā uvāca — o senhor Brahmā disse; naumi — ofereço louvor; īḍya — ó adorabilíssimo; te — a Vós; abhra — como uma nuvem escura; vapuṣe — cujo corpo; taḍit — como relâmpago; ambarāya — cuja roupa; guñjā — feitos de pequenas bagas; avataṁsa — com ornamentos (para as orelhas); paripiccha — e penas de pavão; lasat — resplandecente; mu­khāya — cujo rosto; vanya-sraje — com guirlandas de flores silvestres; kavala — um punhado de comida; vetra — um bastão; viṣāṇa — uma corneta de chifre de búfalo; veṇu — e uma flauta; lakṣma — caracterizada por; śriye — cuja beleza; mṛdu — macios; pade — cujos pés; paśu­-pa — do vaqueiro (Nanda Mahārāja); aṅga-jāya — ao filho.

Tradução

O senhor Brahmā disse: Meu querido Senhor, sois o único Senhor adorável, a Suprema Personalidade de Deus, e por isso ofereço minhas humildes reverências e orações somente para agradar­-Vos. Ó filho do rei dos vaqueiros, Vosso corpo transcendental é azul-escuro como uma nuvem nova, Vossa roupa brilha como o raio, e a beleza de Vosso rosto é realçada por Vossos brincos guñjā e pela pena de pavão que Vos adorna a cabeça. Usando guirlandas de várias flores e folhas silvestres e carregando um cajado de pastor, um chifre de búfalo e uma flauta, pareceis tão belo assim postado com um punhado de comida na mão.

Comentário

SIGNIFICADO—No capítulo anterior, Brahmā, o criador do universo, tentou con­fundir a Suprema Personalidade de Deus, o Senhor Kṛṣṇa, roubando Seus amigos vaqueiros e Seus bezerros. Todavia, com uma pequena exi­bição da própria potência mística de Kṛṣṇa, Brahmā é quem ficou completamente confuso, e agora, com grande humildade e devoção, ele oferece suas humildes reverências e orações ao Senhor.

A palavra kavala, neste verso, refere-se a um punhado de arroz mis­turado com iogurte que Kṛṣṇa trazia na mão esquerda. Segundo Sa­nātana Gosvāmī, o Senhor carregava um cajado de vaqueiro e um chifre de búfalo sob Seu braço esquerdo, e Sua flauta estava em Seu cinturão. O belo e jovem Kṛṣṇa, decorado com minerais silvestres mul­ticoloridos, exibia opulências muito maiores do que as de Vaikuṇṭha. Embo­ra Brahmā tivesse visto inúmeras formas de quatro braços do Senhor, agora ele se rendia aos pés de lótus da forma de dois braços de Kṛṣṇa, que apareceu como o filho de Nanda Mahārāja. Brahmā ofereceu suas orações a essa forma.

Texto

asyāpi deva vapuṣo mad-anugrahasya
svecchā-mayasya na tu bhūta-mayasya ko ’pi
neśe mahi tv avasituṁ manasāntareṇa
sākṣāt tavaiva kim utātma-sukhānubhūteḥ

Sinônimos

asya — deste; api — até mesmo; deva — ó Senhor; vapuṣaḥ — o corpo; mat-anugrahasya — que mostrou misericórdia para mim; sva-icchā­mayasya — que aparece em resposta aos desejos de Vossos devotos puros; na — não; tu — por outro lado; bhūta-mayasya — um produto da matéria; kaḥ — Brahmā; api — até mesmo; na īśe — não sou capaz; mahi — a potência; tu — de fato; avasitum — de calcular; manasā — com minha mente; antareṇa — que é controlada e retirada; sākṣāt — diretamente; tava — Vossa; eva — de fato; kim uta — o que se dizer; ātma — dentro de Vós mesmo; sukha — da felicidade; anubhūteḥ — de Vossa experiência.

Tradução

Meu querido Senhor, nem eu nem nenhuma pessoa pode ava­liar a potência deste Vosso corpo transcendental, que me mostrou tamanha misericórdia e que aparece apenas para satisfazer os desejos de Vossos devotos puros. Embora minha mente esteja completamente afastada dos assuntos materiais, não posso compreender Vossa forma pessoal. Como, então, seria possível que eu enten­desse a felicidade que experimentais em Vós mesmo?

Comentário

SIGNIFICADO—Em Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, capítulo quatorze, Śrīla Prabhupāda explica que, neste verso, o senhor Brahmā expres­sou o seguinte sentimento devocional: “Vosso aparecimento como um vaqueirinho é para o benefício dos devotos, e embora eu tenha cometido ofensas a Vossos pés de lótus por roubar Vossas vacas, meninos e bezerros, posso compreender que agora me estais conce­dendo misericórdia. Eis aqui Vossa qualidade transcendental: sois muito afetuoso para com Vossos devotos. Porém, apesar de Vossa afeição por mim, não posso avaliar a potência de Vossas atividades físicas. Deve-se entender que se eu, o senhor Brahmā, a personalidade supre­ma deste universo, não posso avaliar o corpo aparentemente infantil da Suprema Personalidade de Deus, o que se dizer dos outros, então? E se eu não consigo avaliar a potência espiritual de Vosso corpo infan­til, então o que posso entender de Vossos passatempos transcendentais? Por isso, como se diz na Bhagavad-gītā, qualquer um que compreen­da um pouco dos passatempos, aparecimento e desaparecimento trans­cendentais do Senhor, de imediato se torna apto para entrar no reino de Deus após deixar o corpo material. Essa declaração é confirmada nos Vedas, onde se afirma claramente que, mediante a compreensão acerca da Suprema Personalidade de Deus, pode-se superar o ciclo de repetidos nascimentos e mortes. Recomendo a todos, portanto, que não tentem compreender-Vos através do conhecimento especula­tivo.”

Quando Brahmā desrespeitou a posição suprema da Personalidade de Deus, o Senhor Kṛṣṇa primeiro confundiu-o exibindo Seu próprio poder transcendental como o Senhor. Depois, tendo humildado Seu devoto Brahmā, Kṛṣṇa conferiu-lhe Sua audiência pessoal.

Segundo Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura, o corpo transcen­dental do Senhor Kṛṣṇa também pode funcionar através de Suas ex­pansões plenárias, chamadas viṣṇu-tattva. Como o próprio Brahmā declara na Brahma-saṁhitā (5.32): aṅgāni yasya sakalendriya-vṛttimanti. Este verso indica não apenas que o Senhor pode executar qualquer função corporal com qualquer um de Seus membros, mas também que Ele pode ver através dos olhos de Suas expansões Viṣṇu ou, de fato, através dos olhos de qualquer entidade viva, e igualmente que Ele pode ouvir através dos ouvidos de qualquer expansão Viṣṇu ou jīva. Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura salienta que, embora o Senhor possa executar qualquer função com qualquer um de Seus sentidos, Ele, em Seus passatempos transcendentais como Śrī Kṛṣṇa, em geral vê com Seus olhos, toca com Suas mãos, ouve com Seus ouvidos e assim por diante. Assim, Ele Se comporta como o mais belo e encantador vaqueirinho.

O conhecimento védico se expande a partir do senhor Brahmā, que é descrito no primeiro verso do Śrīmad-Bhāgavatam como ādi-kavi, o erudito védico primordial. Brahmā, todavia, não pôde compreender o corpo transcendental do Senhor Kṛṣṇa, por esse corpo estar além do alcance do conhecimento védico ordinário. Dentre todas as formas transcendentais do Senhor, a forma de dois braços de Govinda – Kṛṣṇa – é a original e suprema. Logo, os passatempos do Senhor Govinda em que Ele rouba manteiga, mama nos seios das gopīs, cuida dos bezerros, toca flauta e realiza travessuras infantis são extraordi­nários mesmo em comparação com as atividades das expansões do Senhor Viṣṇu.

Texto

jñāne prayāsam udapāsya namanta eva
jīvanti san-mukharitāṁ bhavadīya-vārtām
sthāne sthitāḥ śruti-gatāṁ tanu-vāṅ-manobhir
ye prāyaśo ’jita jito ’py asi tais tri-lokyām

Sinônimos

jñāne — para obter conhecimento; prayāsam — o esforço; udapā­sya — abandonando por completo; namantaḥ — oferecendo reverên­cias; eva — simplesmente; jīvanti — vivem; sat-mukharitām — canta­dos pelos devotos puros; bhavadīya-vārtām — tópicos relacionados conVosco; sthāne — em sua posição material; sthitāḥ — permanecendo; śruti-gatām — recebidos por audição; tanu — com o corpo deles; vāk — palavras; manobhiḥ — e mente; ye — aqueles que; prāyaśaḥ — na maior parte; ajita — ó inconquistável; jitaḥ — conquistado; api — não obstante; asi — tomais-Vos; taiḥ — por eles; tri-lokyām — dentro dos três mundos.

Tradução

Aqueles que, mesmo enquanto situados em suas posições sociais estabelecidas, rejeitam o processo de conhecimento especulativo e, com seu corpo, palavras e mente, oferecem todo o respeito às descrições acerca de Vossa personalidade e atividades, dedicando suas vidas a essas narrações, que são vibradas por Vós mesmo e por Vossos devotos puros, com certeza Vos conquistam, embora, de outro modo, sejais inconquistável por parte de qualquer um dentro dos três mundos.

Comentário

SIGNIFICADO—A palavra udapāsya neste contexto deixa bem claro que ninguém deve fazer nem mesmo um pequeno esforço para compreender a Ver­dade Absoluta através do processo de especulação mental, pois este invariavelmente leva a uma compreensão imperfeita e impessoal acer­ca de Deus. A palavra jīvanti indica que um devoto que sempre ouve sobre o Senhor Kṛṣṇa voltará ao lar, voltará ao Supremo, ainda que não possa fazer outra coisa senão manter sua existência e ouvir tó­picos relacionados com o Senhor.

Śrīla Sanātana Gosvāmī explicou as palavras tanu-vāṅ-manobhiḥ (“pelo corpo, palavras e mente”) de três maneiras. Com relação aos devotos, eles conseguem con­quistar o Senhor Kṛṣṇa através de seu corpo, palavras e mente. Logrando deste modo a perfeição em cons­ciência de Kṛṣṇa, eles podem tocar Seus pés de lótus com as mãos, invocar Sua presença com as palavras e, com a mente, ter Sua au­diência direta pelo simples fato de pensar nEle.

No caso dos não-devotos, as palavras tanu-vāṅ-manobhiḥ referem­-se à palavra ajita, “inconquistado”, e indicam que quem não se ocupa no serviço amoroso do Senhor Kṛṣṇa não pode conquistar a Verdade Absoluta por meio de sua força física, habilidade verbal ou poder mental. Apesar de todos os seus esforços, a verdade última permanece fora do alcance deles.

Com referência à palavra jitaḥ, “conquistado”, as palavras tanu-vāṅ-manobhiḥ indicam que os devotos puros do Senhor con­quistam Seu corpo, palavras e mente. O corpo do Senhor Kṛṣṇa é conquistado porque Ele sempre permanece ao lado de Seus devo­tos puros; as palavras do Senhor Kṛṣṇa são conquistadas porque Ele sempre canta as glórias de Seus devotos; e a mente do Senhor Kṛṣṇa é conquistada porque Ele sempre pensa em Seus devotos amorosos.

Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura explicou as palavras tanu-vāṅ-manobhiḥ em relação com a palavra namantaḥ, “oferecendo reve­rências”. Ele explica que os devotos podem tirar pleno proveito dos tópicos transcendentais concernentes ao Senhor oferecendo a esses tópicos, com seu corpo, palavras e mente, todo respeito. Deve-se ocupar o corpo em tocar o chão com as mãos e a cabeça enquan­to se oferecem reverências aos tópicos relativos ao Senhor; devem­-se ocupar as palavras em louvar os textos transcendentais, como a Bhagavad-gītā e o Śrīmad-Bhāgavatam, bem como em louvar os devotos que pregam tal literatura; e deve-se ocupar a mente em sentir grande reverência e prazer enquanto se ouvem os tópicos transcendentais acerca do Senhor. Dessa maneira, um devoto sincero que tenha adqui­rido até mesmo um pouco de conhecimento transcendental sobre o Senhor Kṛṣṇa pode conquistá-lO e, dessa maneira, voltar ao lar, voltar ao Su­premo, para gozar uma vida eterna ao lado do Senhor.

Texto

śreyaḥ-sṛtiṁ bhaktim udasya te vibho
kliśyanti ye kevala-bodha-labdhaye
teṣām asau kleśala eva śiṣyate
nānyad yathā sthūla-tuṣāvaghātinām

Sinônimos

śreyaḥ — do supremo benefício; sṛtim — o caminho; bhaktim — serviço devocional; udasya — rejeitando; te — eles; vibho — ó Senhor oni­potente; kliśyanti — lutam; ye — aqueles que; kevala — exclusivamente; bodha — de conhecimento; labdhaye — para a obtenção; teṣām — para eles; asau — este; kleśalaḥ — incômodo; eva — apenas; śiṣyate — per­manece; na — nenhuma; anyat — outra coisa; yathā — assim como; sthūla-tuṣa — cascas vazias; avaghātinām — para os que estão pilando.

Tradução

Meu querido Senhor, o serviço devocional a Vós é o melhor caminho para a autorrealização. Se alguém abandona este cami­nho e se dedica ao cultivo de conhecimento especulativo, apenas se submeterá a um processo penoso e não alcançará o resultado desejado. Assim, tal qual uma pessoa que pila uma casca de trigo vazia não pode obter o cereal, quem simplesmente especula não pode lograr a autorrealização. Seu único ganho é transtorno.

Comentário

SIGNIFICADO—O serviço amoroso à Pessoa Suprema é a função natural e eterna de toda entidade viva. Se alguém renuncia à sua própria função constitucional e, em vez disso, busca com muito afinco a dita iluminação através do conhecimento especulativo impessoal, seu resultado será apenas o trabalho e o incômodo que advêm de seguir um processo ar­tificial. Um tolo pode pilar uma casca vazia, sem saber que o cereal já não se encontra ali. Da mesma maneira, é tolo aquele que, com sua mente, lança-se repetidas vezes na busca de conhecimento sem se render à Suprema Personalidade de Deus, pois é a Suprema Personalidade de Deus que é a própria substância e meta do conhecimento, assim como o cereal é a substância e meta de todo o esforço agrícola. A ciência material, ou até mesmo o conhecimento védico, sem a Per­sonalidade de Deus é tal qual uma inútil casca de trigo vazia.

Talvez se argumente que, pela prática de yoga ou pelo cultivo de conhecimento impessoal, é possível conquistar prestígio, riqueza, poderes místicos ou até a liberação impessoal. Mas esses pretensos ganhos, na verdade, são inúteis, porque não situam a entidade viva em sua posição constitucional de serviço amoroso ao Senhor Supremo. Portanto, tais resultados, por serem supérfluos à natureza essencial do ser vivo, são impermanentes. Como se declara no Nṛsiṁha Pu­rāṇa, patreṣu puṣpeṣu phaleṣu toyeṣv akrīta-labhyeṣu vadaiva satsu/ bhaktyā su-labhye puruṣe purāṇe muktyai kim arthaṁ kriyate prayatnaḥ: “Visto que a Personalidade de Deus primordial Se deixa conquistar facilmente através do oferecimento de presentes tais como folhas, flores, frutas e água, todos os quais se encontram sem dificuldade, por que alguém precisa fazer esforços extrínsecos para obter a libe­ração?­”

Embora o processo de serviço devocional ao Senhor Kṛṣṇa seja muito simples, é muito difícil para almas condicionadas teimosas se humildarem sem reservas diante da Suprema Personalidade de Deus e se absorverem vinte e quatro horas por dia em Seu serviço amoroso. A atitude de serviço amoroso é como uma maldição para as rebel­des almas condicionadas determinadas a desafiar Deus e a desfrutar. Quando tais obstinadas almas condicionadas tentam esquivar-se da rendição a Deus apelando para empenhos vaidosos, tais como espe­culação filosófica, austeridade e yoga, elas são arrojadas de volta à plataforma material pelas poderosas leis de Deus e mergulham vio­lentamente no agitado oceano de insignificância chamado mundo ma­terial.

Texto

pureha bhūman bahavo ’pi yoginas
tvad-arpitehā nija-karma-labdhayā
vibudhya bhaktyaiva kathopanītayā
prapedire ’ñjo ’cyuta te gatiṁ parām

Sinônimos

purā — outrora; iha — neste mundo; bhūman — ó Senhor onipotente; bahavaḥ — muitos; api — de fato; yoginaḥ — seguidores do caminho do yoga; tvat — a Vós; arpita — tendo oferecido; īhāḥ — todos os seus esforços; nija-karma — por seus deveres prescritos; labdhayā — que é conseguido; vibudhya — chegando a compreender; bhaktyā — pelo serviço devocional; eva — de fato; kathā-upanītayā — cultivado através do ouvir e cantar dos tópicos atinentes a Vós; prapedire — eles conseguiram pela rendição; añjaḥ — facilmente; acyuta — ó infalível; te — Vosso; gatim — destino; parām — supremo.

Tradução

No passado, ó Senhor onipotente, muitos yogīs neste mundo alcançaram a plataforma de serviço devocional como resultado de terem oferecido todos os seus esforços a Vós e de terem cum­prido fielmente seus deveres prescritos. Através desse serviço devocional, aperfeiçoado mediante os processos de ouvir e cantar sobre Vós, eles compreenderam-Vos, ó infalível, e pude­ram com facilidade render-se a Vós e alcançar Vossa morada su­prema.

Texto

tathāpi bhūman mahimāguṇasya te
viboddhum arhaty amalāntar-ātmabhiḥ
avikriyāt svānubhavād arūpato
hy ananya-bodhyātmatayā na cānyathā

Sinônimos

tathā api — não obstante; bhūman — ó ilimitado; mahimā — a potência; aguṇasya — dEle que não tem qualidades materiais; te — de Vós; viboddhum — de compreender; arhati — alguém é capaz; amala — ima­culados; antaḥ-ātmabhiḥ — com mente e sentidos; avikriyāt — não ba­seada em diferenciações materiais; sva-anubhavāt — pela percepção da Alma Suprema; arūpataḥ — sem apego a formas materiais; hi — de fato; ananya-bodhya-ātmatayā — como automanifesto, sem a ajuda de nenhum outro agente iluminador; na — não; ca — e; anyathā — de outro modo.

Tradução

Os não-devotos, todavia, não podem compreender-Vos em Vosso aspecto pessoal completo. Não obstante, eles talvez possam compreender Vossa expansão como o Supremo impessoal por meio do cultivo da percepção direta do Eu dentro do coração. Todavia, eles só podem chegar a esse entendimento depois de purificarem sua mente e seus sentidos de todas as concepções de distinções materiais e de todos os apegos aos objetos materiais dos sentidos. Apenas dessa forma é que Vosso aspecto impessoal se manifestará para eles.

Comentário

SIGNIFICADO—É difícil que as almas condicionadas compreendam todos os aspec­tos transcendentais do Senhor Supremo. Como se confirma no pri­meiro canto do Śrīmad-Bhāgavatam (1.2.11): brahmeti paramātmeti bhagavān iti śabdyate. Compreende-se progressivamente a existência transcendental de Deus como a refulgência impessoal, a Superal­ma localizada no próprio coração e, por fim, como a Suprema Personalidade de Deus que existe em Sua morada eterna. A existência transcendental do Senhor Kṛṣṇa se encontra além das qualidades da natureza material. Em virtude disso, o Senhor é aqui chamado de aguṇasya, sem qualidades materiais.

Mesmo que alguém pratique yoga ou se ocupe em especulação filosófica avançada, ele achará muito difícil compreender com clare­za a existência transcendental situada além dos modos da natureza material. E esses processos são, por assim dizer, inúteis no que diz respeito à compreensão das ilimitadas qualidades transcendentais do Senhor, que estão muito além da concepção impessoal da existência espiritual. É apenas pela misericórdia dos devotos puros do Senhor ou pela associação com o próprio Senhor que alguém poderá iniciar o processo de realização do aspecto pessoal de Deus – um processo que culmina em consciência de Kṛṣṇa pura, a perfeição final e supre­ma do conhecimento.

Texto

guṇātmanas te ’pi guṇān vimātuṁ
hitāvatīṛnasya ka īśire ’sya
kālena yair vā vimitāḥ su-kalpair
bhū-pāṁśavaḥ khe mihikā dyu-bhāsaḥ

Sinônimos

guṇa-ātmanaḥ — do possuidor de todas as qualidades superiores; te — Vós; api — certamente; guṇān — as qualidades; vimātum — contar; hita-avatīrṇasya — que descestes para o benefício de todas as entida­des vivas; ke — os quais; īśire — são capazes; asya — do universo; kālena — no devido curso do tempo; yaiḥ — pelos quais; — ou; vimitāḥ — contados; su-kalpaiḥ — por grandes cientistas; bhū-pāṁśavaḥ — os átomos de um planeta terrestre; khe — no céu; mihikāḥ — as partículas de neve; dyu-bhāsaḥ — a iluminação das estrelas e planetas.

Tradução

No futuro, filósofos ou cientistas eruditos talvez consi­gam contar todos os átomos da terra, as partículas de neve ou até mesmo as brilhantes moléculas que irradiam do Sol, das estrelas e de outros corpos luminosos. Mas dentre estes homens eruditos, qual deles poderia contar as ilimitadas qualidades transcenden­tais possuídas por Vós, a Suprema Personalidade de Deus, que descestes à superfície da Terra para o benefício de todas as enti­dades vivas?

Comentário

SIGNIFICADO—Śrīla Sanātana Gosvāmī explica que o Senhor Kṛṣṇa é guṇātmā, “a alma de todas as qualidades superiores”, porque Ele lhes proporciona a vida. Por exemplo, podem-se discutir de maneira abstrata qualidades tais como generosidade, inteligência e misericórdia, mas elas só ganham vida quando uma pessoa viva as exibe. Logo, o Senhor Kṛṣṇa é guṇāt­mā porque Ele desce ao mundo material e restabelece os princípios religiosos mediante o fato de Ele mesmo exibir todas as qualidades divinas e inspirar os outros a adotá-las. Uma entidade viva que desenvolve as qualidades transcendentais encontradas no Senhor re­cebe incomensurável benefício e, por fim, volta com o Senhor para Sua própria morada, onde todos os seres vivos são liberados e plena­mente dotados de natureza transcendental.

Śrīla Sanātana Gosvāmī explica ainda que o Senhor manifesta uma qualidade espiritual específica para o benefício de cada entidade viva. Visto que existem inumeráveis entidades vivas dentro dos confins da criação material, o Senhor manifesta qualidades infinitas. Portanto, cada alma condicionada pode apreciar o Senhor Supremo de um modo particular.

Apresenta-se aqui o exemplo de que mesmo que os mais eruditos estu­diosos pudessem algum dia contar as partículas de terra, neve e luz, eles ainda assim não conseguiriam compreender as qualidades do Senhor. Neste exemplo, terra, neve e luz são progressivamente mais sutis; deve-se compreender assim que há uma dificuldade crescente em contar suas partículas, por assim dizer, infinitas.

Segundo Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura, grandes persona­lidades como o Senhor Saṅkarṣaṇa de fato contaram o número de átomos da terra e mesmo das moléculas do universo inteiro. Contu­do, nem mesmo uma personalidade como Saṅkarṣaṇa, que está sempre a cantar continuamente as glórias do Senhor desde tempos imemoriais, conseguiu sequer chegar perto da contagem final dessas glórias.

O Senhor Kṛṣṇa exibe Suas mais surpreendentes qualidades duran­te Seus passatempos infantis em Vṛndāvana, nos quais Ele rouba manteiga das vaqueiras, dança com Suas namoradas e brinca com Seus amigos vaqueirinhos como o mais querido companheiro deles. Embora pareçam atividades humanas comuns, tais passatempos su­blimes contêm em si as imensuráveis e incontáveis belas qualidades transcendentais do Senhor Kṛṣṇa, as quais são a vida e alma dos de­votos puros.

Texto

tat te ’nukampāṁ su-samīkṣamāṇo
bhuñjāna evātma-kṛtaṁ vipākam
hṛd-vāg-vapurbhir vidadhan namas te
jīveta yo mukti-pade sa dāya-bhāk

Sinônimos

tat — portanto; te — Vossa; anukampām — compaixão; su-samīkṣamā­ṇaḥ — esperando intensamente; bhuñjānaḥ — suportando; eva — decer­to; ātma-kṛtam — feito por si mesmo; vipākam — os resultados frui­tivos; hṛt — com seu coração; vāk — palavras; vapurbhiḥ — e corpo; vidadhan — oferecendo; namaḥ — reverências; te — a Vós; jīveta — vive; yaḥ — qualquer um que; mukti-pade — à posição de liberação; saḥ — ele; dāya-bhāk — o legítimo herdeiro.

Tradução

Meu querido Senhor, aquele que espera ansiosamente que Vós lhe concedais Vossa misericórdia imotivada, ao mesmo tempo em que sofre com paciência as reações de suas más ações passadas e oferece-Vos respeitosas reverências com seu coração, palavras e corpo, com certeza é um candidato à liberação, porque esta se tornou seu direito legítimo.

Comentário

SIGNIFICADO—Śrīla Śrīdhara Svāmī explica em seu comentário que assim como um filho legítimo só precisa permanecer vivo para receber a heran­ça de seu pai, aquele que apenas permanece vivo na consciência de Kṛṣṇa, seguindo os princípios reguladores de bhakti-yoga, torna-se automaticamente um candidato para receber a misericórdia da Perso­nalidade de Deus. Em outras palavras, ele será promovido ao reino de Deus.

A palavra su-samīkṣamāṇa indica que o devoto espera ansiosa­mente a misericórdia do Senhor Supremo mesmo enquanto está so­frendo os dolorosos efeitos de atividades pecaminosas anteriores. O Senhor Kṛṣṇa explica na Bhagavad-gītā que o devoto que se rende por completo a Ele, já não está sujeito a sofrer as reações de seu karma anterior. Porém, porque em sua mente o devoto talvez ainda mantenha remanescentes de sua mentalidade pecaminosa passada, o Senhor elimina os últimos vestígios do espírito de desfrute dando a Seu devoto castigos que às vezes se assemelham a reações pecami­nosas. A finalidade de toda a criação de Deus é retificar a tendência da entidade viva de desfrutar à parte do Senhor, daí o castigo em particular dado para uma atividade pecaminosa ser planejado espe­cificamente para cercear a mentalidade que produziu essa atividade. Embora o devoto tenha se rendido ao serviço devocional do Senhor, ele talvez mantenha uma pequena inclinação a desfrutar da falsa felicidade deste mundo enquanto não tiver atingido a perfeição plena da consciência de Kṛṣṇa. Em razão disso, o Senhor cria uma situação particular para erradicar esse espírito de desfrute remanescente. Essa infelicidade sofrida pelo devoto sincero não é tecnicamente uma reação kármica, mas sim a misericórdia especial do Senhor para induzir Seu devoto a re­nunciar de vez o mundo material e voltar ao lar, voltar ao Supremo.

O devoto sincero deseja ansiosamente voltar para a morada do Senhor. Ele, portanto, aceita de bom grado o misericordioso castigo do Senhor e continua a oferecer-Lhe respeitos e reverências com seu coração, suas palavras e seu corpo. Semelhante servo genuíno do Senhor, que considera todos os reveses como um pequeno preço a pagar em troca da obtenção da companhia pessoal do Senhor, decerto se torna um legítimo filho de Deus, como aqui o indicam as palavras dāya-bhāk. Assim como ninguém pode aproximar-se do Sol sem se tornar fogo, ninguém pode aproximar-se do puro supremo, o Senhor Kṛṣṇa, sem passar por um rígido processo de purificação, que talvez se asseme­lhe a sofrimento, mas que de fato é um tratamento curativo adminis­trado pela própria mão do Senhor.

Texto

paśyeśa me ’nāryam ananta ādye
parātmani tvayy api māyi-māyini
māyāṁ vitatyekṣitum ātma-vaibhavaṁ
hy ahaṁ kiyān aiccham ivārcir agnau

Sinônimos

paśya — vede só; īśa — ó Senhor; me — meu; anāryam — comportamento desprezível; anante — contra a ilimitada; ādye — a primordial; para-ātmani — a Superalma; tvayi — Vós; api — mesmo; māyi-māyini — para os mestres da ilusão; māyām — (minha) potência ilusória; vi­tatya — espalhando; īkṣitum — para ver; ātma — Vosso; vaibhavam — poder; hi — de fato; aham — eu; kiyān — quanto; aiccham — desejei; iva — tal qual; arciḥ — uma pequena centelha; agnau — em compara­ção com todo o fogo.

Tradução

Meu Senhor, vede só minha incivilizada impudência! Para testar Vosso poder, tentei, com minha potência ilusória, encobrir a Vós, a Superalma ilimitada e primordial, que confundis até mesmo os mestres da ilusão. Quem sou eu comparado a Vós? Sou tal qual uma pequena centelha na presença de um grande fogo.

Comentário

SIGNIFICADO—Um grande fogo produz muitas centelhas, que são insignificantes em comparação com ele. De fato, se uma das pequenas centelhas fosse tentar queimar o fogo original, a tentativa seria apenas ridícula. Da mesma forma, até mesmo o criador de todo o universo, o senhor Brahmā, é uma centelha insignificante da potência de Deus, de modo que a tentativa de Brahmā de confundir o Senhor Supremo certa­mente foi ridícula.

Nesta passagem, Brahmā chama o Senhor Kṛṣṇa de īśa, indicando que Kṛṣṇa é não só o amo supremo de todos, mas também, e especifi­camente, o amo de Brahmā, que cria o universo sob a orientação di­reta do Senhor e que, de fato, nasce diretamente de Seu próprio corpo.

Brahmā sentia-se envergonhado de sua impudente tentativa de iludir o Senhor Kṛṣṇa e, em virtude disso, estava perfeitamente disposto a ser punido ou perdoado pelo Senhor Kṛṣṇa, conforme Sua decisão. Se o Senhor Kṛṣṇa não punir misericordiosamente Seus devotos quando eles agirem mal, a tolice deles apenas aumentará e, aos poucos, sufocará por com­pleto seus sentimentos devocionais. O Senhor Kṛṣṇa, por conseguinte, tem a bondade de disciplinar Seus devotos e de mantê-los no caminho progressivo de volta ao lar, de volta ao Supremo.

Texto

ataḥ kṣamasvācyuta me rajo-bhuvo
hy ajānatas tvat-pṛthag-īśa-māninaḥ
ajāvalepāndha-tamo-’ndha-cakṣuṣa
eṣo ’nukampyo mayi nāthavān iti

Sinônimos

ataḥ — portanto; kṣamasva — por favor, desculpai; acyuta — ó Senhor infalível: me — me; rajaḥ-bhuvaḥ — que nasci no modo da paixão; hi — de fato; ajānataḥ — sendo ignorante; tvat — de Vós; pṛthak — separado; īśa — um controlador; māninaḥ — julgando-me; aja — o criador não nascido; avalepa — a cobertura; andha-tamaḥ — por esta escuridão de ignorância; andha — cegos; cakṣuṣaḥ — meus olhos; eṣaḥ — esta pessoa; anukampyaḥ — deve receber misericórdia; mayi — a mim: nātha-vān — tendo como seu mestre; iti — assim pensando.

Tradução

Portanto, ó Senhor infalível, fazei o obséquio de perdoar minhas ofensas. Nasci no modo da paixão e não passo, portanto, de um tolo, que me julgo um controlador independente de Vós. Meus olhos estão cegos pela escuridão da ignorância, que me leva a pensar que sou o não nascido criador do universo. Mas, por favor, considerai-me como Vosso servo e, portanto, como alguém digno de Vossa com­paixão.

Comentário

SIGNIFICADO—Em seu comentário, Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura explica que Brahmā queria apresentar ao Senhor o seguinte argumento: “Meu querido Senhor, por eu ter agido tão mal, eu com certeza mereço ser cas­tigado. Por outro lado, por ser eu tão ignorante, deveis considerar-me um tolo inocente e ser misericordioso comigo. Então, embora eu me­reça tanto castigo quanto perdão, suplico-Vos humildemente que sejais tolerante no que diz respeito a este assunto e apenas me perdoeis e me mostreis Vossa misericórdia.”

As palavras nāthavān iti indicam que o senhor Brahmā queria hu­mildemente lembrar ao Senhor Kṛṣṇa que Ele era, afinal, o pai e amo de Brahmā e, em razão disso, devia perdoar as lamentáveis transgressões de Seu humilde servo. Toda alma condicionada, seja o senhor Brahmā, seja uma formiga insignificante, identifica-se erroneamente com o mundo material e, dessa maneira, esquece-se de sua relação eterna com a Suprema Personalidade de Deus. O senhor Brahmā, por causa de sua prestigiosa posição como criador cósmico, também tende a identificar-se como o senhor deste mundo, e assim ele às vezes es­quece sua posição de insignificante servo do Senhor Supremo. Agora, pela misericórdia do Senhor Kṛṣṇa, essa falsa identificação está sendo corrigida, e o senhor Brahmā está lembrando-se de sua posição constitucional de servo eterno de Deus.

Texto

kvāhaṁ tamo-mahad-ahaṁ-kha-carāgni-vār-bhū-
saṁveṣṭitāṇḍa-ghaṭa-sapta-vitasti-kāyaḥ
kvedṛg-vidhāvigaṇitāṇḍa-parāṇu-caryā-
vātādhva-roma-vivarasya ca te mahitvam

Sinônimos

kva — onde; aham — eu; tamaḥ — a natureza material; mahat — a totalidade da energia material; aham — falso ego; kha — éter; cara — ar; agni — fogo; vāḥ — água; bhū — terra; saṁveṣṭita — rodeado por; aṇḍa-ghaṭa — um universo semelhante a um vaso; sapta-vitasti — sete palmos; kāyaḥ — corpo; kva — onde; īdṛk — tal; vidhā — como; avigaṇi­ta — ilimitados; aṇḍa — universos; para-aṇu — como a poeira atômi­ca; caryā — que se move; vāta-adhva — orifícios de ar; roma — dos pelos do corpo; vivarasya — dos orifícios; ca — também; te — Vossa; mahitvam — grandeza.

Tradução

Quem sou eu, uma pequena criatura que meço sete palmos de minha própria mão? Estou enclausurado em um universo em forma de vaso constituído de natureza material, da totalidade da ener­gia material, de falso ego, éter, ar, água e terra. E qual é Vossa glória? Ilimitados universos atravessam os poros de Vosso corpo assim como partículas atravessam as aberturas da tela de uma janela.

Comentário

SIGNIFICADO—No Caitanya-caritāmṛta, Ādi-līlā, capítulo cinco, verso 72, Śrīla Prabhupāda apresenta o seguinte significado para este verso: “Quando o senhor Brahmā, após ter roubado todas as vacas e vaqueirinhos de Kṛṣṇa, voltou e viu que as vacas e os meninos continuavam peram­bulando com Kṛṣṇa, ele ofereceu esta oração, admitindo sua derrota. Uma alma condicionada – mesmo uma tão grandiosa como Brahmā, que administra os assuntos de todo o universo – não pode compa­rar-se à Personalidade de Deus, pois Ele pode produzir inúmeros uni­versos simplesmente com os raios espirituais que emanam dos poros de Seu corpo. Os cientistas materialistas devem aprender uma lição com as declarações de Śrī Brahmā a respeito de nossa insignificância em comparação com Deus. Nestas orações de Brahmā, há muito o que se aprender por parte daqueles que se orgulham falsamente do acúmulo de poder.”

Em Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, capítulo quator­ze, Śrīla Prabhupāda também comenta sobre este verso: “O senhor Brahmā compreendeu sua verdadeira posição. Ele decerto é o mestre supremo deste universo, encarregado da produção da natureza mate­rial, que consiste em todos os elementos materiais, a saber, falso ego, céu, ar, fogo, água e terra. Embora este universo seja gigantesco, ele pode ser medido, assim como medimos nosso corpo. De modo geral, calcula-se que a medida do corpo de cada pessoa é de sete de seus próprios palmos. Este universo em particular pode parecer um corpo muito gigantesco, mas, para o senhor Brahmā, ele mede nada mais do que sete palmos.”

Além deste universo, há outros ilimitados universos fora da juris­dição deste senhor Brahmā em especial. Assim como inumeráveis fragmentos atômicos infinitesimais passam pelas aberturas da tela de uma janela, da mesma forma milhões e trilhões de universos em sua forma seminal emanam dos poros do corpo de Mahā-Viṣṇu, e esse Mahā-Viṣṇu não passa de uma parte da expansão plenária de Kṛṣṇa. Em tais circunstâncias, embora o senhor Brahmā seja a criatura su­prema deste universo, qual é sua importância na presença do Senhor Kṛṣṇa?

Texto

utkṣepaṇaṁ garbha-gatasya pādayoḥ
kiṁ kalpate mātur adhokṣajāgase
kim asti-nāsti-vyapadeśa-bhūṣitaṁ
tavāsti kukṣeḥ kiyad apy anantaḥ

Sinônimos

utkṣepaṇam — o chutar; garbha-gatasya — de uma criança no ventre; pādayoḥ — das pernas; kim — o que; kalpate — significa; mātuḥ — para a mãe; adhokṣaja — ó Senhor transcendental; āgase — como uma ofen­sa; kim — o que; asti — existe; na asti — não existe; vyapadeśa — pelas designações; bhūṣitam — decorado; tava — Vosso; asti — há; kukṣeḥ — do abdômen; kiyat — quanto; api — mesmo; anantaḥ — externo.

Tradução

Ó Senhor Adhokṣaja, uma mãe fica ofendida quando a criança em seu ventre a chuta com suas pernas? E há algo na existên­cia – quer seja designado pelos vários filósofos como real ou irreal – que esteja, na verdade, fora de Vosso abdômen?

Comentário

SIGNIFICADO—Śrīla Prabhupāda tece o seguinte comentário sobre este verso em Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, capítulo quatorze: “O senhor Brahmā, portanto, comparou-se a um bebê dentro do ventre de sua mãe. Se o filho dentro do ventre, ao brincar com suas mãos e pernas, toca no corpo da mãe, esta se ofende com ele? É óbvio que não. Analogamente, o senhor Brahmā pode ser uma personalidade muito eminente, ainda assim, Brahmā, bem como tudo o que existe, encontra-se dentro do ventre da Suprema Personalidade de Deus. A energia do Senhor é onipenetrante; não há lugar na criação em que ela não atue. Tudo existe dentro dos limites da energia do Senhor; logo, o Brahmā deste universo ou os Brahmās de muitos outros milhões e trilhões de universos existem dentro dos limites da energia do Senhor. Portanto, considera-se que o Senhor é a mãe, e tudo o que existe dentro do ventre da mãe é como o filho. E a boa mãe nunca se ofende com o bebê, mesmo que este dê pontapés em seu ventre.”

Texto

jagat-trayāntodadhi-samplavode
nārāyaṇasyodara-nābhi-nālāt
vinirgato ’jas tv iti vāṅ na vai mṛṣā
kintv īśvara tvan na vinirgato ’smi

Sinônimos

jagat-traya — dos três mundos; anta — na dissolução; udadhi — de todos os oceanos; samplava — do dilúvio total; ude — na água; nārāyaṇasya — da Suprema Personalidade de Deus, Nārāyaṇa; udara — que cresce do abdômen; nābhi — do umbigo; nālāt — do caule de lótus; vinirgataḥ — saiu; ajaḥ — Brahmā; tu — de fato; iti — assim falando; vāk — as palavras; na — não são; vai — decerto; mṛṣā — falsas; kintu — assim; īśvara — ó Senhor; tvat — de Vós; na — não; vinirgataḥ — ema­nado especificamente; asmi — eu sou.

Tradução

Meu querido Senhor, afirma-se que quando os três sistemas plane­tários se dissolvem na água na época da dissolução, Vossa porção plenária, Nārāyaṇa, deita-Se na água, uma flor de lótus gradual­mente cresce de Seu umbigo, e Brahmā nasce sobre essa flor de lótus. Sem dúvida, essas palavras não são falsas. Logo, eu não nasci de Vós?

Comentário

SIGNIFICADO—Embora todo ser vivo seja filho de Deus, o senhor Brahmā aqui faz uma reivindicação especial por ter nascido da flor de lótus que emana do umbigo de Nārāyaṇa, a Personalidade de Deus. Em úl­tima análise, todos os seres vivos são igualmente expansões do corpo transcendental do Senhor Supremo. Brahmā, contudo, tem uma relação íntima com o Senhor em virtude das atividades da criação universal, daí ele usar o prefixo vi na palavra vinirgata para rogar a mi­sericórdia especial do Senhor. O senhor Brahmā é chamado de aja porque não nasceu de nenhuma mãe, senão que emanou diretamente do corpo do Senhor. Como afirma Śrīla Prabhupāda em Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus: “A conclusão natural é que a mãe de Brahmā é Nārāyaṇa.” Com base nisso, o senhor Brahmā está su­plicando um perdão especial para suas ofensas.

Texto

nārāyaṇas tvaṁ na hi sarva-dehinām
ātmāsy adhīśākhila-loka-sākṣī
nārāyaṇo ’ṅgaṁ nara-bhū-jalāyanāt
tac cāpi satyaṁ na tavaiva māyā

Sinônimos

nārāyaṇaḥ — o Supremo Senhor Nārāyaṇa; tvam — Vós; na — não; hi — se; sarva — de todos; dehinām — os seres vivos corporificados; ātmā — a Superalma; asi — sois; adhīśa — ó controlador supremo; akhila — de todos; loka — os planetas; sākṣī — a testemunha; nārāyaṇaḥ — o Senhor Śrī Nārāyaṇa; aṅgam — a porção plenária expandida; nara — da Suprema Personalidade; bhū — originando-se; jala — da água; ayanāt — por ser a fonte que manifesta; tat — aquela (expansão); ca — e; api — de fato; satyam — verdadeiro; na — não; tava — Vossa; eva — absolutamente; maya — energia ilusória.

Tradução

Não sois o Nārāyaṇa original, ó controlador supremo, visto serdes a Alma de toda entidade corporificada e a testemunha eterna de todos os reinos criados? De fato, o Senhor Nārāyaṇa é Vossa expansão e chama-Se Nārāyaṇa por ser a fonte geradora da água primordial do universo. Ele é real, e não um produto de Vossa māyā ilusória.

Comentário

SIGNIFICADO—No Caitanya-caritāmṛta, Ādi-līlā, capítulo dois, verso 30, Śrīla Prabhupāda faz o seguinte comentário sobre este verso: “Esta declaração foi feita pelo senhor Brahmā em suas orações ao Senhor Kṛṣṇa depois que o Senhor o derrotou, demonstrando-lhe Seus poderes místi­cos. Brahmā tentara pôr à prova o Senhor Kṛṣṇa para ver se Ele era realmente a Suprema Personalidade de Deus a brincar como um va­queirinho. Brahmā roubou todos os outros meninos e suas vacas dos campos de pastagem, mas, ao regressar ao mesmo lugar, viu que todos os meninos e vacas ainda estavam ali, pois o Senhor Kṛṣṇa criara-os todos novamente. Vendo esse poder místico do Senhor Kṛṣṇa, Brahmā admitiu-se derrotado e ofereceu orações ao Senhor, chamando-O de proprietário e testemunha de tudo na criação e de a Superalma que está dentro de cada entidade viva e é querida por todos. Esse Senhor Kṛṣṇa é Nārāyaṇa, o pai de Brahmā, porque Garbhodakaśāyī Viṣṇu, a expansão plenária do Senhor Kṛṣṇa, criou Brahmā a partir de Seu próprio corpo após deitar-Se no Oceano Garbha. Mahā-Viṣṇu, no Oceano Causal, e Kṣīrodakaśāyī Viṣṇu, a Superalma no coração de todos, também são expansões transcendentais da Verdade Suprema.”

Em seu comentário sobre este verso, Śrīla Sanātana Gosvāmī ex­plicou elaboradamente a expansão de Viṣṇu, ou Nārāyaṇa, encarna­ções da forma original de Deus, o Senhor Śrī Kṛṣṇa. A essência é que, embora tivesse nascido do Senhor Nārāyaṇa, o senhor Brahmā compreende agora que Nārāyaṇa é Ele mesmo uma mera expansão da original Personalidade de Deus, o Senhor Śrī Kṛṣṇa.

Texto

tac cej jala-sthaṁ tava saj jagad-vapuḥ
kiṁ me na dṛṣṭaṁ bhagavaṁs tadaiva
kiṁ vā su-dṛṣṭaṁ hṛdi me tadaiva
kiṁ no sapady eva punar vyadarśi

Sinônimos

tat — aquilo; cet — se; jala-stham — situado sobre a água; tava — Vosso; sat — real; jagat — abrigando o universo inteiro; vapuḥ — o corpo transcendental; kim — por que; me — por mim; na dṛṣṭam — não foi visto; bhagavan — ó Senhor Supremo; tadā eva — naquele mesmo momento; kim — por que; — ou; su-dṛṣṭam — perfeitamente visto; hṛdi — dentro do coração; me — por mim; tadā eva — bem então; kim — por que; na — não; u — por outro lado; sapadi — de repente; eva — de fato; punaḥ — de novo; vyadarśi — foi visto.

Tradução

Meu querido Senhor, se Vosso corpo transcendental, que abriga o universo inteiro, está de fato deitado sobre a água, então por que não pude ver-Vos quando Vos procurei? E por que motivo, embora não pudesse ver-Vos de modo correto dentro de meu coração, Vós então de repente Vos revelastes?

Comentário

SIGNIFICADO—O senhor Brahmā refere-se nesta passagem a sua experiência na aurora da criação cósmica. Como se descreveu no segundo canto do Śrīmad-Bhāgavatam, o senhor Brahmā nasceu sobre um gigantesco lótus cujo caule emanara do umbigo de Nārāyaṇa. Brahmā, confuso quanto a seu paradeiro, função e identidade, tentou descobrir a origem do caule de lótus, em busca de uma informação clara. Incapaz de encon­trar a Personalidade de Deus, ele retornou a seu assento de lótus e se entregou à prática de severas austeridades, em virtude da ordem que recebeu da voz transcendental do Senhor, que podia ser ouvido, mas não visto. Após uma longa meditação, Brahmā viu o Senhor, mas tornou a perdê-lO de vista. Dessa maneira, Brahmā conclui que o corpo transcendental da Personalidade de Deus não é material, mas sim uma eterna forma espiritual dotada de inconcebíveis potências místicas. Em outras palavras, o senhor Brahmā não devia ter desa­fiado a Personalidade de Deus, o Senhor de todo poder místico.

Texto

atraiva māyā-dhamanāvatāre
hy asya prapañcasya bahiḥ sphuṭasya
kṛtsnasya cāntar jaṭhare jananyā
māyātvam eva prakaṭī-kṛtaṁ te

Sinônimos

atra — neste; eva — de fato; māyā-dhamana — ó subjugador de Māyā; avatāre — na encarnação; hi — decerto; asya — desta; prapañcasya — manifestação material criada; bahiḥ — externamente; sphuṭasya — que é visível; kṛtsnasya — inteira; ca — e; antaḥ — dentro; jaṭhare — Vosso abdômen; jananyāḥ — a Vossa mãe; māyātvam — Vossa potência desorientadora; eva — de fato; prakaṭī-kṛtam — foi demonstrada; te — por Vós.

Tradução

Meu querido Senhor, nesta encarnação provastes ser o supre­mo controlador de māyā. Embora estejais agora dentro deste universo, a criação universal inteira encontra-se dentro de Vosso corpo transcendental – fato que demonstrastes ao exibirdes todo o universo dentro de Vosso abdômen diante de Vossa mãe, Yaśodā.

Comentário

SIGNIFICADO—Neste verso, o senhor Brahmā descreve a inconcebível potência es­piritual do Senhor. Podemos encontrar um vaso dentro de uma casa, mas dificilmente podemos esperar encontrar a casa dentro do mesmo vaso. Mediante a potência espiritual do Senhor, todavia, Ele pode aparecer dentro deste universo e, ao mesmo tempo, exibir todos os universos dentro de Seu corpo. Talvez alguém argumente que, como os universos vistos por mãe Yaśodā dentro do abdômen do Senhor Kṛṣṇa estavam dentro do corpo do Senhor, eles são diferentes dos universos materiais ilusórios manifestos externamente. Aqui, porém, o senhor Brahmā refuta tal argumento. O Senhor Kṛṣṇa é māyā­-dhamana, o controlador supremo da ilusão. Através da suprema potência mística do Senhor, Ele pode confundir até mesmo a própria ilusão, e foi assim que o Senhor de fato exibiu todos os universos materiais dentro de Seu corpo. Isso é māyātvam, a suprema potência desorientadora da Personalidade de Deus.

Texto

yasya kukṣāv idaṁ sarvaṁ
sātmaṁ bhāti yathā tathā
tat tvayy apīha tat sarvaṁ
kim idaṁ māyayā vinā

Sinônimos

yasya — de quem; kukṣau — dentro do abdômen; idam — esta manifestação cósmica; sarvam — toda; sa-ātmam — incluindo a Vós mesmo; bhāti — manifesta-se; yathā — como; tathā — assim; tat — isto; tvayi — dentro de Vós; api — embora; iha — aqui externamente; tat — esta ma­nifestação cósmica; sarvam — total; kim — o que; idam — isto; māyayā — a influência de Vossa inconcebível energia; vinā — sem.

Tradução

Assim como este universo inteiro, e inclusive Vós mesmo, foi exibido dentro de Vosso abdômen, ele agora se manifesta aqui externamente da mesma forma. Como poderiam acontecer tais coisas se não fossem elas arranjos de Vossa energia inconcebível?

Comentário

SIGNIFICADO—Em Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, Śrīla Prabhupāda faz o seguinte comentário sobre este verso: “O senhor Brahmā enfa­tizou neste trecho que, sem aceitar a inconcebível energia da Suprema Personalidade de Deus, ninguém pode explicar as coisas como elas são.”

Texto

adyaiva tvad ṛte ’sya kiṁ mama na te māyātvam ādarśitam
eko ’si prathamaṁ tato vraja-suhṛd-vatsāḥ samastā api
tāvanto ’si catur-bhujās tad akhilaiḥ sākaṁ mayopāsitās
tāvanty eva jaganty abhūs tad amitaṁ brahmādvayaṁ śiṣyate

Sinônimos

adya — hoje; eva — apenas; tvat ṛte — separado de Vós; asya — deste universo; kim — o que; mama — a mim; na — não; te — por Vós; māyātvan — o fundamento de Vossa potência inconcebível; ādarśi­tam — mostrado; ekaḥ — sozinho; asi — sois; prathamam — antes de tudo; tataḥ — então; vraja-suhṛt — Vossos amigos vaqueirinhos de Vṛndāvana; vatsāḥ — e os bezerros; samastāḥ — todos; api — mesmo; tāvantaḥ — da mesma quantidade; asi — tomastes-Vos; catuḥ-bhujāḥ — formas de quatro braços do Senhor Viṣṇu; tat — então; akhilaiḥ — por todos; sākam — junto com; mayā — eu mesmo; upāsitāḥ — sendo adora­das; tāvanti — da mesma quantidade; eva — também; jaganti — univer­sos; abhūḥ — tornastes-Vos; tat — então; amitam — a ilimitada; brahma — Verdade Absoluta; advayam — única e inigualável; śiṣyate — agora permaneceis.

Tradução

Não me mostrastes hoje que tanto Vós mesmo quanto tudo dentro desta criação são manifestações de Vossa potência incon­cebível? Primeiro aparecestes sozinho, e então manifestastes-Vos como todos os bezerros e vaqueirinhos de Vṛndāvana, Teus ami­gos. Em seguida, aparecestes como um igual número de formas de Viṣṇu de quatro braços, que eram adoradas por todos os seres vivos, inclusive por mim, e depois aparecestes como um igual número de universos completos. Por fim, retornastes agora a Vossa forma ilimitada como a Suprema Verdade Absoluta, única e inigualável.

Comentário

SIGNIFICADO—Como se afirma na literatura védica, sarvaṁ khalv idaṁ brahma: tudo o que existe é uma expansão da Suprema Personalidade de Deus. Logo, tudo é, afinal, parte integrante da existência espiritual do Senhor. Pela misericórdia imotivada do Senhor Kṛṣṇa, o senhor Brahmā experimentou pessoalmente que toda a existência, por fazer parte da potência de Deus, não é diferente dEle.

Texto

ajānatāṁ tvat-padavīm anātmany
ātmātmanā bhāsi vitatya māyām
sṛṣṭāv ivāhaṁ jagato vidhāna
iva tvam eṣo ’nta iva trinetraḥ

Sinônimos

ajānatām — a pessoas que estão em ignorância; tvat-padavīm — de Vossa posição transcendental; anātmani — na energia material; ātmā — Vós mesmo; ātmanā — por Vós mesmo; bhāsi — apareceis; vitatya — expandindo; māyām — Vossa energia inconcebível; sṛṣṭau — quanto à criação; iva — como se; aham — eu, Brahmā; jagataḥ — do universo; vidhāne — na manutenção; iva — como se; tvam eṣaḥ — Vós mesmo; ante — na aniquilação; iva — como se; tri-netraḥ — senhor Śiva.

Tradução

A pessoas que desconhecem Vossa verdadeira posição trans­cendental, apareceis como parte do mundo material, manifestan­do-Vos através da expansão de Vossa energia inconcebível. Desse modo, para criar o universo, apareceis como eu [Brahmā]; para mantê-lo, apareceis como Vós mesmo [Viṣṇu], e, para aniquilá-lo, apareceis como o senhor Trinetra [Śiva].

Comentário

SIGNIFICADO—Embora os filósofos impersonalistas māyāvādīs pensem que os semideuses são ilusórios, aqui se declara que o senhor Brahmā, o senhor Śiva e o Senhor Viṣṇu são expansões da Suprema Personali­dade de Deus e, portanto, são reais. De fato, eles são os extraordinariamente poderosos controladores do universo. A verdade última é uma pessoa suprema e bela, logo, por toda parte da criação de Deus, sempre encontraremos o toque pessoal.

Texto

sureṣv ṛṣiṣv īśa tathaiva nṛṣv api
tiryakṣu yādaḥsv api te ’janasya
janmāsatāṁ durmada-nigrahāya
prabho vidhātaḥ sad-anugrahāya ca

Sinônimos

sureṣu — entre os semideuses; ṛṣiṣu — entre os grandes sábios; īśa — ó Senhor; tathā — bem como; eva — de fato; nṛṣu — entre os seres humanos; api — e; tiryakṣu — entre os animais; yādaḥsu — entre os seres aquáticos; api — também; te — de Vós; ajanasya — que nunca acei­ta um nascimento material; janma — o nascimento; asatām — dos não-devotos; durmada — o falso orgulho; nigrahāya — com a finalidade de subjugar; prabho — ó amo; vidhātaḥ — ó criador; sat — aos devo­tos que têm fé; anugrahāya — com a finalidade de conceder misericórdia; ca — e.

Tradução

Ó Senhor, ó supremo criador e amo, não tendes nascimento material, mas, para derrotar o falso orgulho dos demônios incrédulos e conceder misericórdia a Vossos devotos santos, nas­ceis entre os semideuses, sábios, seres humanos, animais e até seres aquáticos.

Comentário

SIGNIFICADO—Entre os semideuses, o Senhor Kṛṣṇa aparece em formas tais como a de Vāmanadeva; entre os sábios, como Paraśurāma; entre os seres humanos, como o próprio Senhor Kṛṣṇa e como o Senhor Rāmacandra, e entre os animais, como a encarnação de javali. O Senhor Kṛṣṇa apa­rece entre os seres aquáticos como Matsya, o peixe gigantesco. Na realidade, as expansões plenárias da Suprema Personalidade de Deus são inumeráveis, visto que o Senhor desce incessantemente aos universos para esmagar o falso orgulho dos ateístas e conceder mi­sericórdia aos devotos santos.

Em outro sentido, o Senhor nunca aparece, pois Ele existe eterna­mente. Seu aparecimento é como o aparecimento do Sol, que está sempre presente no céu, mas periodicamente aparece à nossa visão.

Texto

ko vetti bhūman bhagavan parātman
yogeśvarotīr bhavatas tri-lokyām
kva vā kathaṁ vā kati vā kadeti
vistārayan krīḍasi yoga-māyām

Sinônimos

kaḥ — quem; vetti — conhece; bhūman — ó supremo e grandioso; bhagavan — ó Suprema Personalidade de Deus; para-ātman — ó Alma Suprema; yoga-īśvara — ó mestre do poder místico; ūtīḥ — os passatempos; bhavataḥ — de Vossa Onipotência; tri-lokyām — nos três mundos; kva — onde; — ou; katham — como; — ou; kati — quantas; — ou; kadā — quando; iti — assim; vistārayan — expandindo; krīḍasi — empregais; yoga-māyām — Vossa energia espiritual.

Tradução

Ó pessoa suprema! Ó Suprema Personalidade de Deus! Ó Su­peralma, senhor de todo o poder místico! Vossos passatempos sucedem-se continuamente nestes três mundos, mas quem pode avaliar onde, como e quando empregais Vossa energia espiritual e executais estes inumeráveis passatempos? Ninguém pode compreender o mistério sobre a atuação de Vossa energia espiritual.

Comentário

SIGNIFICADO—Brahmā afirmou antes que o Senhor Kṛṣṇa encarna entre os semi­deuses, os seres humanos, os animais, os peixes etc. Isso não significa, porém, que o Senhor Se degrade ao aparecer sob a forma de Suas encarnações. Como Brahmā esclarece nesta passagem, nenhuma alma condicionada pode compreender a natureza transcendental das atividades do Senhor, as quais Ele encena através de Sua potência espiritual. Embora seja bhūman, a pessoa suprema, o Senhor ainda é Bhagavān, a personalidade de beleza suprema que exibe passatempos de amor em Sua própria morada. Ao mesmo tempo, Ele é Paramātmā, a Superalma onipenetrante, que testemunha e sanciona todas as ati­vidades das almas condicionadas. A identidade múltipla do Senhor é explicada pelo termo yogeśvara. A Verdade Absoluta é o senhor de todas as potências místicas, e embora seja única e suprema, ma­nifesta Sua grandeza e opulência de muitas maneiras diferentes.

Tais assuntos espirituais elevados dificilmente podem ser com­preendidos por pessoas tolas que, de modo primitivo, identificam-se com o insignificante corpo material. Essas almas condicionadas, tais como os cientistas ateus, consideram suprema sua inteligência arro­gante. Ingenuamente, depositam com muita firmeza sua fé na ilusão material e se deixam capturar pelos modos da natureza e são arrastados para bem longe do conhecimento a respeito de Deus.

Texto

tasmād idaṁ jagad aśeṣam asat-svarūpaṁ
svapnābham asta-dhiṣaṇaṁ puru-duḥkha-duḥkham
tvayy eva nitya-sukha-bodha-tanāv anante
māyāta udyad api yat sad ivāvabhāti

Sinônimos

tasmāt — portanto; idam — esta; jagat — manifestação cósmica; aśe­ṣam — inteira; asat-svarūpam — cuja existência é irreal no sentido de ser temporária; svapna-ābham — como um sonho; asta-dhiṣaṇam — onde a consciência fica encoberta; puru-duḥkha-duḥkham — cheio de repetidos sofrimentos; tvayi — dentro de Vós; eva — de fato; nitya — eter­nos; sukha — felizes; bodha — conscientes; tanau — cujos aparecimen­tos pessoais; anante — que são ilimitados; māyātaḥ — pela energia ilu­sória; udyat — aparecendo; api — embora; yat — que; sat — real; iva — como se; avabhāti — aparece.

Tradução

Portanto, este universo inteiro, não obstante pareça real, é, como um sonho, irreal por natureza; dessa maneira, ele encobre a consciência e acomete o ser vivo com repetidos sofrimentos. Este universo parece real porque se manifesta da potência ilusória que emana de Vós, cujas ilimitadas formas transcendentais são plenas de felicidade e conhecimento eternos.

Comentário

SIGNIFICADO—Como objeto de prazer ou residência permanente para as almas condicionadas, o universo material sem dúvidas é ilusório – nada mais do que um sonho. Pode-se apresentar a analogia de que a visão de água abundante no deserto não é nada mais do que um sonho, embora a verda­deira água exista em outro lugar. De forma semelhante, a visão de que existe lar, felicidade e realidade dentro da matéria com certeza não é melhor do que um sonho tolo em que se sucedem repetidos sofrimentos.

Em outro sentido, contudo, o universo é real. Em seu comentá­rio ao Vedānta-sūtra, Śrīla Madhvācārya confirmou este enunciado com a seguinte citação dos śruti-mantras védicos, satyaṁ hy evedaṁ viśvam asṛjata: “Este universo, criado pelo Senhor, é real.” Deste modo, a autoridade perfeita nos Vedas certifica que este universo é real; entretanto, porque a ilusão nos rouba o conhecimento (como o indicam aqui as palavras asta-dhiṣaṇam), não podemos entender de forma correta este universo ou o Senhor Supremo que o criou. Como expansão do Senhor Kṛṣṇa, o universo é real e se destina a ser empregado em Seu serviço. Aquele que aceita o reino de Deus como lar, o próprio Senhor como objeto de amor, e o universo ma­terial como parafernália a ser empregada no serviço do Senhor habita dentro da realidade eterna aonde quer que vá dentro dos mundos ma­teriais e espirituais.

Texto

ekas tvam ātmā puruṣaḥ purāṇaḥ
satyaḥ svayaṁ-jyotir ananta ādyaḥ
nityo ’kṣaro ’jasra-sukho nirañjanaḥ
pūrṇādvayo mukta upādhito ’mṛtaḥ

Sinônimos

ekaḥ — um; tvam — Vós; ātmā — a Alma Suprema; puruṣaḥ — a Pessoa Suprema; purāṇaḥ — o mais antigo; satyaḥ — a Verdade Absoluta; svayam-jyotiḥ — automanifesta; anantaḥ — sem fim; ādyaḥ — sem início; nityaḥ — eterno; akṣaraḥ — indestrutível; ajasra-sukhaḥ — cuja feli­cidade não se pode obstruir; nirañjanaḥ — isento de contaminação; pūrṇa — completo; advayaḥ — único e inigualável; muktaḥ — livre; upā­dhitaḥ — de todas as designações materiais; amṛtaḥ — imortal.

Tradução

Sois a única Alma Suprema, a primordial Personalidade Supre­ma, a Verdade Absoluta – automanifesta, sem fim e sem início. Sois eterno e infalível, perfeito e completo, sem nenhum rival e livre de todas as designações materiais. Vossa felicidade jamais pode ser obstruída, tampouco tendes alguma conexão com a contami­nação material. Na realidade, sois o indestrutível néctar da imor­talidade.

Comentário

SIGNIFICADO—Śrīla Śrīdhara Svāmī explica como os vários termos deste verso demonstram que o corpo transcendental do Senhor Kṛṣṇa é livre das características dos corpos materiais. Todos os corpos materiais passam por seis fases: nascimento, crescimento, maturidade, reprodução, de­clínio e destruição. Contudo, o Senhor Kṛṣṇa não aceita nascimento ma­terial, visto ser Ele a realidade original, fato claramente indicado aqui pela palavra adya, “original”. Nosso nascimento material ocorre dentro de uma atmosfera material específica, em corpos materiais que são amalgamações de vários elementos materiais. Porque o Senhor Kṛṣṇa existia muito antes da criação de qualquer atmosfera ou elemento materiais, fica afastada qualquer hipótese de que Seu corpo transcendental aceite algum nascimento material.

De igual modo, a palavra pūrṇa, que significa “pleno e comple­to”, refuta o conceito de que o Senhor Kṛṣṇa possa desenvolver-Se, pois Ele sempre existe em plenitude. Quando o corpo material de uma pessoa amadurece, ela não pode mais desfrutar como na juven­tude, mas as palavras ajasra-sukha, “desfrutando de felicidade livre de empecilhos”, indicam que o corpo do Senhor Kṛṣṇa nunca atinge a chamada meia-idade, pois é sempre cheio da juvenil bem-aventuran­ça espiritual. A palavra akṣara, “que não diminui”, refuta a possibilidade de envelhecimento ou declínio do corpo do Senhor Kṛṣṇa, e a palavra amṛta, “imortal”, nega a possibilidade de morte.

Em outras palavras, o corpo transcendental do Senhor Kṛṣṇa é destituído das transformações dos corpos materiais. O Senhor cria, porém, inúmeros mundos e expande-Se como inúmeras entidades vivas. Mas a dita reprodução do Senhor é completamente espiritual e não ocorre em certa fase de Sua existência corpórea; constitui, antes, a tendência eterna do Senhor a expandir Sua bem-aventurança e glórias espirituais.

Como o Senhor afirma no śruti, pūrvam evāham ihāsam: “Só Eu existia no princípio.” Por isso, o Senhor aqui é chamado de puruṣaḥ purāṇaḥ, “o desfrutador primordial”. Este puruṣa original expande-­Se como a Superalma e entra em todo ser vivo. Ainda assim, Ele é, em última análise, a Verdade Absoluta, Kṛṣṇa, como se afirma na Gopāla-tāpanī Upaniṣad, yaḥ sākṣāt para-brahmeti govindaṁ sac-cid-ānanda-vigrahaṁ vṛndāvana-sura-bhūruha-talāsīnam: “A própria Verdade Absoluta é Govinda, que tem uma forma eterna de bem-­aventurança e conhecimento e que está sentado sob a sombra das árvores-dos-desejos de Vṛndāvana.” Esta Verdade Absoluta encon­tra-Se além da ignorância material e além até mesmo do conheci­mento espiritual ordinário, como o declara o mesmo śruti Gopāla-­tāpanī: vidyāvidyābhyāṁ bhinnaḥ. De muitas maneiras, portanto, é estabelecida na literatura védica a supremacia do Senhor Kṛṣṇa, e o próprio senhor Brahmā a confirma nesta passagem.

Texto

evaṁ-vidhaṁ tvāṁ sakalātmanām api
svātmānam ātmātmatayā vicakṣate
gurv-arka-labdhopaniṣat-sucakṣuṣā
ye te tarantīva bhavānṛtāmbudhim

Sinônimos

evam-vidham — como assim se descreveu; tvām — Vós; sakala — de todas; ātmanām — as almas; api — de fato; sva-ātmānam — a própria Alma; ātma-ātmatayā — como a Superalma; vicakṣate — eles veem; guru — do mestre espiritual; arka — que é como o Sol; labdha — recebido; upaniṣat — do conhecimento confidencial; su-cakṣuṣā — pelo olho perfeito; ye — que; te — eles; taranti — atravessam; iva — facilmente; bhava — da existência material; anṛta — que não é real; ambudhim — o oceano.

Tradução

Aqueles que receberam do mestre espiritual, que é semelhante ao Sol, a visão clara do conhecimento podem ver-Vos deste modo, como a própria Alma de todas as almas, a Superalma do eu de todos. Compreendendo assim Vossa personalidade original, eles podem atravessar o oceano da existência material ilusória.

Comentário

SIGNIFICADO—Como se confirma na Bhagavad-gītā (4.9):

janma karma ca me divyam
evaṁ yo vetti tattvataḥ
tyaktvā dehaṁ punar janma
naiti mām eti so ’rjuna

“Aquele que conhece a natureza transcendental do Meu aparecimen­to e atividades, ao deixar o corpo não volta a nascer neste mundo material, senão que alcança Minha morada eterna, ó Arjuna.”

Texto

ātmānam evātmatayāvijānatāṁ
tenaiva jātaṁ nikhilaṁ prapañcitam
jñānena bhūyo ’pi ca tat pralīyate
rajjvām aher bhoga-bhavābhavau yathā

Sinônimos

ātmānam — Vós mesmo; eva — de fato; ātmatayā — como a Alma Suprema; avijānatām — para aqueles que não compreendem; tena — por isso; eva — apenas; jātam — é gerada; nikhilam — a inteira; pra­pañcitam — existência material; jñānena — pelo conhecimento; bhūyaḥ api — mais uma vez; ca — e; tat — esta existência material; pralīyate — desaparece; rajjvām — dentro de uma corda; aheḥ — de uma cobra; bhoga — do corpo; bhava-abhavau — o aparecimento e o desaparecimento aparentes; yathā — assim como.

Tradução

Quem confunde uma corda com uma cobra fica temeroso, mas depois, ao perceber que a pretensa cobra não existe, ele perde o temor. Analogamente, para aqueles que deixam de reconhecer­-Vos como a Alma Suprema de todas as almas, surge a vasta exis­tência material ilusória, mas o conhecimento a respeito de Vós de imediato provoca sua cessação.

Comentário

SIGNIFICADO—Aqueles que estão submersos na ilusão veem a existência material como infinita, assim como alguém submerso na água só vê água a seu redor. Por exemplo, os cientistas e filósofos materialistas, submer­sos nas profundezas do oceano da ilusão material, imaginam que a natureza material se estende infinitamente em todas as direções. De fato, a criação material é um oceano finito de ignorância no qual tolas entidades vivas, tais como os cientistas materialistas, são arro­jadas sem cerimônia por ordem da Suprema Personalidade de Deus.

Estar preso em um mundo em que todas as coisas nascem e morrem é sem dúvida uma experiência assustadora. É evidente que qualquer um que esteja preso em um lugar escuro fica com medo. Como a vida material está sempre coberta pela escuridão da ignorância, toda alma condicionada está sempre temerosa. A natureza material não é a realidade última; logo, a análise da matéria jamais poderá fornecer respostas às questões últimas. Esta existência escura, serpentina, chamada vida material desaparece logo que o ser vivo abre os olhos para a luz brilhante da consciência de Kṛṣṇa.

Texto

ajñāna-saṁjñau bhava-bandha-mokṣau
dvau nāma nānyau sta ṛta-jña-bhāvāt
ajasra-city ātmani kevale pare
vicāryamāṇe taraṇāv ivāhanī

Sinônimos

ajñāna — manifestando-se da ignorância; saṁjñau — cujas designações; bhava-bandha — cativeiro da existência material; mokṣau — e liberação; dvau — as duas; nāma — de fato; na — não; anyau — separadas; staḥ — são; ṛta — verdadeiro; jña-bhāvāt — do conhecimento; ajasra-citi — cuja consciência não é impedida; ātmani — a alma espiritual; kevale — que está separada da matéria; pare — que é pura; vi­cāryamāṇe — quando ela se distingue corretamente; taraṇau — dentro do Sol; iva — assim como; ahanī — dia e noite.

Tradução

A concepção do cativeiro material e a concepção da libera­ção são ambas manifestações de ignorância. Por se acharem fora do âmbito do verdadeiro conhecimento, elas deixam de existir quando se compreende corretamente que a alma espiritual pura é distinta da matéria e sempre plena de consciência. Nesse mo­mento, cativeiro e liberação já não têm sentido, assim como dia e noite nada significam da perspectiva de quem se encontra no Sol.

Comentário

SIGNIFICADO—O cativeiro material é uma ilusão, pois a entidade viva de fato não tem nenhuma relação real com o mundo material. Por causa do falso ego, a alma condicionada identifica-se com a matéria. Portanto, a dita liberação não passa do abandono de uma ilusão, em vez de constituir-se do ato de libertar-se do cativeiro em si. Todavia, mesmo que pensemos que o sofrimento decorrente da ilusão material é real e que a liberação é, portanto, uma significativa libertação do sofrimento, a mera ausência da existência material ainda é insignificante se comparada à obtenção da verdadeira vida espiritual, que é a eterna realidade positiva em oposição à ilusão negativa da vida material. Em última análise, a consciência de Kṛṣṇa, ou o amor puro por Deus, é o único estado importante, significativo e permanente para todas as entidades vivas.

Uma vez que a escuridão da noite é causada pela ausência do Sol, não se experimentaria noite dentro do próprio Sol, nem se experi­mentariam dias distintos, separados por noites. De igual forma, dentro da entidade viva pura, não há escuridão material alguma e, por con­seguinte, nenhuma experiência de liberação de tal escuridão. Ao chegar a esta plataforma de consciência pura, a alma condicionada habilita-se para associar-se com o puro supremo, a Personalidade de Deus, na própria morada do Senhor.

Texto

tvām ātmānaṁ paraṁ matvā
param ātmānam eva ca
ātmā punar bahir mṛgya
aho ’jña-janatājñatā

Sinônimos

tvām — Vós; ātmānam — o verdadeiro eu; param — algo mais; ma­tvā — pensando; param — alguma outra coisa; ātmānam — Vós mesmo; eva — de fato; ca — também; ātmā — o Eu Supremo; punaḥ — de novo; bahiḥ — fora; mṛgyaḥ — deve ser buscado; aho — oh!; ajña — ignoran­tes; janatā — de pessoas; ajñatā — a ignorância.

Tradução

Vede só a tolice desses ignorantes que Vos consideram uma manifestação separada de ilusão e que consideram o eu, o qual na verdade sois Vós, como alguma outra coisa, ou seja, o corpo material. Semelhantes tolos concluem que a alma suprema deve ser procurada em algum lugar à parte de Vossa personalidade suprema.

Comentário

SIGNIFICADO—O senhor Brahmā está assombrado com a ignorância crassa das almas condicionadas que julgam ser material o corpo espi­ritual e supremo do Senhor Kṛṣṇa. Ignorantes da forma espiritual do Senhor, tais pessoas também consideram que seus próprios corpos materiais são o eu, e assim concluem que a realidade espiritual deve ser encontrada em algum lugar à parte da suprema personalidade do Senhor Kṛṣṇa. Às vezes, esses tolos julgam que o Senhor Kṛṣṇa é uma das muitas almas individuais que, juntas, constituem uma única entidade espi­ritual impessoal. Desafortunadamente, tais especuladores não têm inclinação a ouvir as instruções do próprio Senhor ou dos repre­sentantes autorizados do Senhor, tais como o senhor Brahmā. Em decorrência de suas caprichosas especulações sobre a natureza do Supremo, seu resultado último é confusão e ignorância, o qual eles descrevem eufemisticamente como “o mistério da vida”.

Texto

antar-bhave ’nanta bhavantam eva
hy atat tyajanto mṛgayanti santaḥ
asantam apy anty ahim antareṇa
santaṁ guṇaṁ taṁ kim u yanti santaḥ

Sinônimos

antaḥ-bhave — dentro do corpo; ananta — ó Senhor ilimitado; bha­vantam — Vós; eva — de fato; hi — certamente; atat — tudo o que se encontra à parte de Vós; tyajantaḥ — rejeitando; mṛgayanti — buscam; santaḥ — os devotos santos; asantam — irreal; api — mesmo; anti — presente ali perto; ahim — (a ilusão de) uma cobra; antareṇa — sem (negar); santam — real; guṇam — a corda; tam — esta; kim u — se; yanti — apreciam; santaḥ — pessoas que estão espiritualmente situadas.

Tradução

Ó Senhor ilimitado, os devotos santos buscam-Vos dentro de seus próprios corpos, rejeitando tudo o que se encontra à parte de Vós. De fato, como pessoas de discriminação poderão apreciar a natureza real de uma corda que está diante delas, enquanto não refutarem a ilusão de que ela é uma cobra?

Comentário

SIGNIFICADO—Talvez alguém argumente que o homem deve cultivar a autorrea­lização e, ao mesmo tempo, buscar o gozo dos sentidos para o corpo material. Aqui se refuta essa proposição com o exemplo de alguém que confunde uma corda com uma cobra. Quem por engano toma uma corda por uma cobra fica assustado e teme a suposta cobra. Entretanto, ao descobrir que a dita cobra é, na verdade, uma corda, ele experimen­ta uma emoção diferente – alívio – e pode então ignorar a corda. Da mesma maneira, porque confundimos o corpo material com o eu, experimentamos muitas emoções em relação ao corpo. Ao descobrir­mos, porém, que o corpo não passa de um saco de produtos quími­cos materiais, entendemos lucidamente como foi criada esta ilusão e, então, perdemos o interesse pelo corpo. Quando percebemos que somos de fato uma alma eterna dentro do corpo, naturalmente focalizamos nossa atenção nesse eu verdadeiro.

Aqueles que são santos e sábios sempre cultivam a consciência de Kṛṣṇa, o conhecimento espiritual, por terem transcendido a tola con­cepção errônea de identificar o corpo com o eu. Essas pessoas cons­cientes de Kṛṣṇa avançam até realizar a Suprema Personalidade de Deus, que habita dentro do corpo material como a Superalma – a testemunha e guia de toda entidade viva. A compreensão acerca da Superalma e da alma individual é tão agradável e satisfatória que a pessoa autorrealizada abandona automaticamente tudo o que é irrele­vante ao seu avanço espiritual.

Texto

athāpi te deva padāmbuja-dvaya-
prasāda-leśānugṛhīta eva hi
jānāti tattvaṁ bhagavan-mahimno
na cānya eko ’pi ciraṁ vicinvan

Sinônimos

atha — portanto; api — deveras; te — Vossos; deva — meu Senhor; pada-ambuja-dvaya — dos dois pés de lótus; prasāda — da misericór­dia; leśa — apenas por um indício; anugṛhītaḥ — favorecido; eva — decerto; hi — de fato; jānāti — alguém conhece; tattvam — a verdade; bhagavat — da Suprema Personalidade de Deus; mahimnaḥ — da gran­deza; na — nunca; ca — e; anyaḥ — outro; ekaḥ — um; api — embora; ciram — por um longo período; vicinvan — especulando.

Tradução

Meu Senhor, se alguém é favorecido mesmo que por um leve indício da misericórdia de Teus pés de lótus, pode compreender a grandeza de Vossa personalidade. Mas aqueles que especulam a fim de compreender a Suprema Personalidade de Deus são in­capazes de conhecer-Vos, muito embora continuem a estudar os Vedas por muitos anos.

Comentário

SIGNIFICADO—Esta tradução é extraída do Caitanya-caritāmṛta, Madhya-līlā, capí­tulo seis, verso 84, de Śrīla Prabhupāda.

O Senhor Kṛṣṇa está muito ansioso por conceder Sua misericór­dia aos seres vivos condicionados, que, em vão, estão lutando com a energia ilusória do Senhor, māyā. A alma condicionada luta para lograr felicidade através do gozo dos sentidos e obter conhecimento através da especulação mental. Ambos os processos acabam levan­do a alma condicionada a uma condição melancólica e desesperada. Se a alma condicio­nada se rende aos pés de lótus do Senhor Kṛṣṇa e, assim, adquire mesmo que um leve indício de Sua misericórdia imotivada, toda a situação muda, e ela pode começar sua verdadeira vida de bem-aventurança e conhecimento em consciência de Kṛṣṇa.

Texto

tad astu me nātha sa bhūri-bhāgo
bhave ’tra vānyatra tu vā tiraścām
yenāham eko ’pi bhavaj-janānāṁ
bhūtvā niṣeve tava pāda-pallavam

Sinônimos

tat — portanto; astu — que seja; me — meu; nātha — ó Senhor; saḥ — essa; bhūri-bhāgaḥ — a maior boa fortuna; bhave — no nascimento; atra — este; — ou; anyatra — em algum outro nascimento; tu — de fato; — ou; tiraścām — entre os animais; yena — por qual; aham — eu; ekaḥ — um; api — mesmo; bhavat — de Vossos; janānām — devo­tos; bhūtvā — tornando-me; niṣeve — possa me ocupar por completo em servir; tava — Vossos; pāda-pallavam — pés de lótus.

Tradução

Meu querido Senhor, suplico-Vos, portanto, a fortuna de que, nesta vida, como o senhor Brahmā, ou em outra vida, onde quer que eu nasça, eu seja aceito como um entre os Vossos devotos. Oro para que, onde quer que eu esteja, mesmo entre as espécies ani­mais, eu possa ocupar-me no serviço devocional a Vossos pés de lótus.

Texto

aho ’ti-dhanyā vraja-go-ramaṇyaḥ
stanyāmṛtaṁ pītam atīva te mudā
yāsāṁ vibho vatsatarātmajātmanā
yat-tṛptaye ’dyāpi na cālam adhvarāḥ

Sinônimos

aho — oh!; ati-dhanyāḥ — muito afortunadas; vraja — de Vṛndāvana; go — as vacas; ramaṇyaḥ — e as gopīs; stanya — o leite do peito; amṛtam — que é como néctar; pītam — foi bebido; atīva — todo; te — por Vós; mudā — com satisfação; yāsām — das quais; vibho — ó Senhor onipotente; vatsatara-ātmaja-ātmanā — sob a forma das vacas e dos filhos das vaqueiras; yat — de quem; tṛptaye — para a satisfação; adya api — mesmo até agora; na — não; ca — e; alam — suficiente; adhva­rāḥ — os sacrifícios védicos.

Tradução

Ó Senhor onipotente, quão grandemente afortunadas são as vacas e as damas de Vṛndāvana, cujo leite nectáreo bebestes com felicidade para Vossa completa satisfação ao assumirdes a forma dos bezerros e filhos delas. Todos os sacrifícios védicos executa­dos desde tempos imemoriais até os dias de hoje não Te deram igual satisfação.

Texto

aho bhāgyam aho bhāgyaṁ
nanda-gopa-vrajaukasām
yan-mitraṁ paramānandaṁ
pūrṇaṁ brahma sanātanam

Sinônimos

aho — quão grande; bhāgyam — fortuna; aho — quão grande; bhā­gyam — fortuna; nanda — de Mahārāja Nanda; gopa — dos outros vaqueiros; vraja-okasām — dos habitantes de Vrajabhūmi; yat — de quem; mitram — o amigo; parama-ānandam — a bem-aventurança supre­ma; pūrṇam — completa; brahma — a Verdade Absoluta; sanātanam — eterna.

Tradução

Quão grandemente afortunados são Nanda Mahārāja, os vaqueiros e todos os outros habitantes de Vrajabhūmi! A boa fortuna deles é ilimitada, pois a Verdade Absoluta, a fonte da bem-aventurança transcendental, o eterno Brahman Supremo, tornou-Se amigo deles.

Comentário

SIGNIFICADO—Esta tradução é extraída do Caitanya-caritāmṛta, Madhya-līlā, capí­tulo seis, verso 149.

Texto

eṣāṁ tu bhāgya-mahimācyuta tāvad āstām
ekādaśaiva hi vayaṁ bata bhūri-bhāgāḥ
etad-dhṛṣīka-caṣakair asakṛt pibāmaḥ
śarvādayo ’ṅghry-udaja-madhv-amṛtāsavaṁ te

Sinônimos

eṣām — desses (residentes de Vṛndāvana); tu — todavia; bhāgya — da boa fortuna; mahimā — a grandeza; acyuta — ó infalível Senhor Supremo; tāvat — tanta; āstām — seja; ekādaśa — os onze; eva hi — de fato; vayam — nós; bata — oh!; bhūri-bhāgāḥ — somos muito afortunados; etat — desses devotos; hṛṣīka — pelos sentidos; caṣakaiḥ — (que são como) taças; asakṛt — repetidamente; pibāmaḥ — bebemos; śarva­-ādayaḥ — o senhor Śiva e os outros principais semideuses; aṅghri­-udaja — dos pés de lótus; madhu — o mel; amṛta-āsavam — que é uma bebida nectárea e inebriante; te — de Vós.

Tradução

Ainda assim, embora a extensão da boa fortuna desses resi­dentes de Vṛndāvana seja inconcebível, nós, as onze deidades, encabeçadas pelo senhor Śiva, que regemos os vários sentidos, também somos muito afortunados, porque os sentidos desses de­votos de Vṛndāvana são as taças através das quais bebemos repetidas vezes a bebida nectárea e inebriante do mel de Vossos pés de lótus.

Texto

tad bhūri-bhāgyam iha janma kim apy aṭavyāṁ
yad gokule ’pi katamāṅghri-rajo-’bhiṣekam
yaj-jīvitaṁ tu nikhilaṁ bhagavān mukundas
tv adyāpi yat-pada-rajaḥ śruti-mṛgyam eva

Sinônimos

tat — essa; bhūri-bhāgyam — a maior boa fortuna; iha — aqui; janma — o nascimento; kim api — qualquer que seja; aṭavyām — na floresta (de Vṛndāvana); yat — que; gokule — em Gokula; api — mesmo; katama — de qualquer (dos devotos); aṅghri — dos pés; rajaḥ — pela poeira; abhiṣekam — banho; yat — cuja; jīvitam — vida; tu — de fato; nikhilam — inteira; bhagavān — a Suprema Personalidade de Deus; mukundaḥ — o Senhor Mukunda; tu — mas; adya api — mesmo até agora; yat — cuja; pāda-rajaḥ — poeira dos pés; śruti — pelos Vedas; mṛgyam — procura­da; eva — decerto.

Tradução

Para mim, a maior boa fortuna possível seria nascer em qual­quer espécie de vida nesta floresta de Gokula e ter minha cabe­ça banhada pela poeira que cai dos pés de lótus de qualquer um de seus residentes. Toda a vida e alma deles é a Suprema Persona­lidade de Deus, Mukunda, a poeira de cujos pés de lótus ainda está sendo procurada nos mantras védicos.

Comentário

SIGNIFICADO—Este verso indica que o senhor Brahmā deseja nascer até como a mais insignificante folha de grama em Vṛndāvana, para que os santos residentes na morada do Senhor possam caminhar sobre sua cabeça e abençoá-lo com a poeira de seus pés. Por ser realista, o senhor Brahmā não aspira a conseguir diretamente a poeira dos pés do Senhor Kṛṣṇa, senão que aspira à misericórdia dos devotos do Senhor. Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura explica que Brahmā concorda em nascer até mesmo como uma pedra em uma trilha pavimentada da morada do Senhor. Visto que Brahmā é o criador do universo inteiro, podemos apenas imaginar a gloriosa posição dos residentes de Vṛndāvana.

Os devotos do Senhor alcançam sua excelsa posição mediante a devoção e o amor imaculados. Não se pode conquistar tal opulência espiritual por meio de nenhum arrogante processo material de apri­moramento pessoal. Em Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, Śrīla Prabhupāda revela a mente de Brahmā da seguinte maneira: “Mas se eu não tiver a fortuna de nascer na floresta de Vṛndāvana, suplico-Vos que me permitais nascer nas áreas adjacentes ao períme­tro de Vṛndāvana, para que, quando os devotos saírem, eles passem sobre mim. Até mesmo isso eu considero uma grande fortuna. Apenas aspiro a um nascimento em que serei ungido com a poeira dos pés dos devotos.”

Texto

eṣāṁ ghoṣa-nivāsinām uta bhavān kiṁ deva rāteti naś
ceto viśva-phalāt phalaṁ tvad-aparaṁ kutrāpy ayan muhyati
sad-veṣād iva pūtanāpi sa-kulā tvām eva devāpitā
yad-dhāmārtha-suhṛt-priyātma-tanaya-prāṇāśayās tvat-kṛte

Sinônimos

eṣām — a esses; ghoṣa-nivāsinām — residentes da comunidade pastoril; uta — de fato; bhavān — Vós; kim — o que; deva — ó Suprema Personalidade de Deus; rātā — dará; iti — pensando assim; naḥ — nossa; cetaḥ — mente; viśva-phalāt — do que a fonte suprema de todas as bênçãos; phalam — uma recompensa; tvat — senão Vós; aparam — outra; kutra api — em qualquer parte; ayat — considerando; muhyati — fica perplexa; sat-veṣāt — disfarçando-se de devota; iva — mesmo; pūtanā — a demônia Pūtanā; api — mesmo; sa-kulā — junto com os membros de sua família, Bakāsura e Aghāsura; tvām — Vós; eva — decerto; deva — ó Senhor; āpitā — foi levada a alcançar; yat — cujos; dhāma — lares; artha — riqueza; suhṛt — amigos; priya — parentes queridos; ātma — corpos; tanaya — filhos; prāṇa — ar vital; āśayāḥ — e mentes; tvat-kṛte — dedicados a Vós.

Tradução

Minha mente fica perplexa simplesmente por tentar imaginar que outra recompensa além de Vós poderia ser encontrada em algum lugar. Sois a personificação de todas as bênçãos, as quais conce­deis a esses residentes da comunidade pastoril de Vṛndāvana. Já fizestes o arranjo de Vos entregardes a Pūtanā e aos membros de sua famí­lia em troca de ela ter-se disfarçado de devota. Então, o que ainda resta para dardes a esses devotos de Vṛndāvana, cujos lares, ri­queza, amigos, parentes queridos, corpos, filhos, corações e as próprias vidas estão todos dedicados apenas a Vós?

Texto

tāvad rāgādayaḥ stenās
tāvat kārā-gṛhaṁ gṛham
tāvan moho ’ṅghri-nigaḍo
yāvat kṛṣṇa na te janāḥ

Sinônimos

tāvat — enquanto; rāga-ādayaḥ — apego material e assim por diante; stenāḥ — ladrões; tāvat — enquanto; kārā-gṛham — uma prisão; gṛham — o lar da pessoa; tāvat — enquanto; mohaḥ — a confusão decorrente da afeição familiar; aṅghri — para os pés; nigaḍaḥ — calcetas; yāvat — enquanto; kṛṣṇa — ó Senhor Kṛṣṇa; na — não se tornam; te — Vossos (de­votos); janāḥ — quaisquer pessoas.

Tradução

Meu querido Senhor Kṛṣṇa, até que as pessoas se tornem Vossos devotos, seus apegos e desejos materiais permanecem ladrões, seus lares continuam prisões, e seus sentimentos afetuosos pelos membros familiares permanecem calcetas.

Comentário

SIGNIFICADO—Aparentemente, os residentes de Vṛndāvana, a morada do Senhor Kṛṣṇa, são meros pais de família ocupados com assuntos corriqueiros, tais como pastorear vacas, cozinhar, criar filhos e realizar cerimônias religiosas. No entanto, todas essas atividades se relacionam plenamente com o serviço amoroso ao Senhor Kṛṣṇa. Os residentes de Vṛndāvana executam todas as atividades com consciência de Kṛṣṇa pura, motivo pelo qual vivem na mais elevada plataforma de vida liberada. De outro modo, as mesmas atividades executadas sem consciência de Kṛṣṇa constituem mero cativeiro no mundo material.

Portanto, ninguém deve interpretar mal a posição sublime dos residentes de Vṛndāvana, tampouco é apropriado considerar-se muito religioso apenas por desempenhar os deveres domésticos ordinários com muito entusiasmo, mas sem consciência de Kṛṣṇa. Canalizando nosso apego apaixonado para família e sociedade, desviamo-nos completamente do caminho progressivo da consciência de Kṛṣṇa. De modo inverso, se ocupamos nossa família no serviço amoroso ao Senhor, nossos esforços para mantê-la tornam-se parte integrante dos deveres espiri­tuais progressivos.

Em suma, ao estudarmos a extraordinária posição dos residentes de Vṛndāvana, podemos ver que a qualidade essencial de suas vidas é a consciência de Kṛṣṇa pura – a prestação de serviço amoroso ao Senhor sem nenhum vestígio de desejo material ou especulação mental. Esse serviço amoroso à original Personalidade de Deus cria de imediato a atmosfera de Śrī Vṛndāvana-dhāma, o reino de Deus.

Texto

prapañcaṁ niṣprapañco ’pi
viḍambayasi bhū-tale
prapanna-janatānanda-
sandohaṁ prathituṁ prabho

Sinônimos

prapañcam — aquilo que é material; niṣprapañcaḥ — completamen­te transcendental à existência material; api — embora; viḍambayasi — imitais; bhū-tale — na superfície da Terra; prapanna — que são rendidas; janatā — das pessoas; ānanda-sandoham — a grande variedade de diferentes espécies de êxtase; prathitum — a fim de difundir; prabho — ó mestre.

Tradução

Meu querido Senhor, embora não tenhais qualquer conexão com a exis­tência material, vindes a esta Terra e imitais a vida material apenas para expandir as variedades de prazer extático ao alcance de Vossos devotos rendidos.

Comentário

SIGNIFICADO—Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura salienta que assim como uma lamparina não parece brilhar tanto à luz solar quanto na sombra, ou assim como um diamante não parece tão brilhante em uma travessa de prata quanto em uma travessa de vidro azul, os passatempos do Senhor como Govinda não parecem tão surpreendentes na morada transcendental de Vaikuṇṭha quanto parecem dentro do reino material de Māyā. O Senhor Kṛṣṇa vem à Terra e atua com Seus devotos puros tal qual um devotado filho, namorado, marido, pai, amigo e assim por diante, e, dentro da escuridão da existência material, esses passatempos bri­lhantes e liberados proporcionam êxtase ilimitado aos devotos rendi­dos do Senhor.

Em seu Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, Śrīla Prabhu­pāda cita da seguinte maneira as palavras do senhor Brahmā: “Também posso compreender que Vosso aparecimento como um vaqueirinho, filho de pastores, de modo algum é uma atividade mate­rial. Ficais tão grato com a afeição deles que vindes aqui em pessoa para entusiasmá-los a prestar mais serviço amoroso.”

Texto

jānanta eva jānantu
kiṁ bahūktyā na me prabho
manaso vapuṣo vāco
vaibhavaṁ tava go-caraḥ

Sinônimos

jānantaḥ — pessoas que se julgam conhecedoras de Vossa potência ilimitada; eva — com certeza; jānantu — que pensem dessa maneira; kim — de que adianta; bahu-uktyā — com muitas palavras; na — não; me — meu; prabho — ó Senhor; manasaḥ — da mente; vapuṣaḥ — do corpo; vācaḥ — das palavras; vaibhavam — opulências; tava — Vossos; go-caraḥ — ao alcance.

Tradução

Existem pessoas que dizem: “Conheço tudo sobre Kṛṣṇa.” Que pensem dessa maneira. Quanto a mim, não desejo falar muito sobre este assunto. Ó meu Senhor, deixai-me dizer apenas isto: “No que diz respeito a Vossas opulências, elas estão além do al­cance de minha mente, corpo e palavras.”

Comentário

SIGNIFICADO—Esta tradução de Śrīla Prabhupāda é extraída do Caitanya-caritāmṛta, Madhya-līlā, capí­tulo vinte e um, verso 27.

Texto

anujānīhi māṁ kṛṣṇa
sarvaṁ tvaṁ vetsi sarva-dṛk
tvam eva jagatāṁ nātho
jagad etat tavārpitam

Sinônimos

anujānīhi — por favor, dai licença; mām — me; kṛṣṇa — ó Senhor Kṛṣṇa; sarvam — tudo; tvam — Vós; vetsi — sabeis; sarva-dṛk — que tudo vedes; tvam — Vós; eva — somente; jagatām — de todos os universos; nāthaḥ — o mestre; jagat — universo; etat — este; tava — a Vós; arpi­tam — é oferecido.

Tradução

Meu querido Kṛṣṇa, agora humildemente peço permissão para partir. De fato, sois o conhecedor e vidente de tudo. E embora sejais o Senhor de todos os universos, ofereço este universo a Vós.

Comentário

SIGNIFICADO—Em seu Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, Śrīla Prabhupāda cita o senhor Brahmā da seguinte maneira: “Meu querido Senhor, embora sejais o Senhor Supremo de toda a criação, às vezes erroneamente julgo-me o amo deste universo. Posso ser amo deste universo, mas há inúmeros universos, e há também inú­meros Brahmās que governam esses universos. Mas de fato sois o senhor de todos eles. Como a Superalma no coração de todos, sabeis tudo. Portanto, aceitai-me, por favor, como Vosso servo rendido. Espero que me desculpeis por perturbar-Vos em Vossos passatempos com Vossos amigos e bezerros. Agora, se tiverdes a bondade de me permitir, eu partirei imediatamente; assim podereis desfrutar com Vossos amigos e bezerros sem minha presença.”

As palavras sarvaṁ tvaṁ vetsi sarva-dṛk são muito significativas neste contexto. O Senhor Kṛṣṇa sabe tudo e vê tudo; logo, o senhor Brahmā não precisava permanecer em Vṛndāvana para manter seu contato amoroso pessoal com o Senhor. De fato, como criador do universo, o senhor Brahmā encontrava-se um tanto deslocado na atmosfera simples e bem-aventurada de Vṛndāvana, onde o Senhor Kṛṣṇa exibia Suas supremas opulências, pastoreando vacas, fazendo piqueniques, brincando e assim por diante.

Ao ver o intenso amor que os residentes de Vṛndāvana tinham pelo Senhor Kṛṣṇa, Brahmā se sentiu desqualificado para permane­cer ali. Ele não estava ávido por deixar a companhia do Senhor, mas achou melhor voltar a seu serviço devocional pessoal em Brahma­loka. Um tanto embaraçado e infeliz em virtude de sua tola tentativa de confundir o Senhor, Brahmā preferiu retomar seu transcendental serviço amoroso em vez de tentar desfrutar da presença do Senhor.

Texto

śrī-kṛṣṇa vṛṣṇi-kula-puṣkara-joṣa-dāyin
kṣmā-nirjara-dvija-paśūdadhi-vṛddhi-kārin
uddharma-śārvara-hara kṣiti-rākṣasa-dhrug
ā-kalpam ārkam arhan bhagavan namas te

Sinônimos

śrī-kṛṣṇa — ó Senhor Kṛṣṇa; vṛṣṇi-kula — da dinastia Yadu; puṣka­ra — ao lótus; joṣa — prazer; dāyin — a vós que concedeis; kṣmā — da terra; nirjara — os semideuses; dvija — os brāhmaṇas; paśu — e dos animais; udadhi — dos grandes oceanos; vṛddhi — o aumento; kārin — ó Vós que causais; uddharma — de princípios ateístas; śārvara — da escuridão; hara — ó dissipador; kṣiti — sobre a Terra; rākṣasa — dos demônios; dhruk — o oponente; ā-kalpam — até o fim do universo; ā-arkam — enquanto o Sol brilhar; arhan — à Deidade sumamente adorável; bhagavan — ó Suprema Personalidade de Deus; namaḥ — ofere­ço minhas respeitosas reverências; te — a Vós.

Tradução

Meu querido Śrī Kṛṣṇa, concedeis felicidade à dinastia Vṛṣṇi, que é como um lótus, e expandis os grandes oceanos constituídos da terra, dos semideuses, dos brāhmaṇas e das vacas. Dissipais as densas trevas da irreligião e opondes-Vos aos demônios que apareceram nesta Terra. Ó Suprema Personalidade de Deus, en­quanto existir este universo e enquanto brilhar o Sol, oferecerei minhas reverências a Vós.

Comentário

SIGNIFICADO—Segundo Śrīla Sanātana Gosvāmī, o senhor Brahmā está aqui ocupado no êxtase de nāma-saṅkīrtana, glorificando vários nomes santos do Senhor Kṛṣṇa que indicam Seus variados passatempos. O Senhor Kṛṣṇa habilmente eliminou a população demoníaca da Terra, que se tornara insuportável com o advento de políticos demoníacos como Kaṁsa, Jarāsandha e Śiśupāla. De modo semelhante, há muitas pessoas que se dizem tementes a Deus na so­ciedade moderna, mas que de fato sentem-se atraídas por uma existência demoníaca. Tais pessoas ficam animadas com o pôr do sol e saem na escuridão para gozar a vida em restaurantes, boates, discotecas, hotéis e assim por diante, todos os quais se destinam à prática de sexo ilícito, em­briaguez, jogatina e consumo de carne. Há também aqueles que abertamente desafiam a Deus e a Suas leis, declarando-se ateus e demônios. Os inimigos do Senhor, tanto os dissimulados quanto os notórios, constituem um ímpio fardo para a Terra, e o Senhor Kṛṣṇa desce para habilmente eliminar esse fardo.

Nesta passagem, o senhor Brahmā afirma de modo indireto que o Senhor Kṛṣṇa devia remover o próprio ateísmo sutil de Brahmā, que o levara a tentar exercer seu poder ilusório sobre o Senhor Kṛṣṇa. Segundo Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura, o senhor Brahmā, envergonhado, sentia-se como um brahma-rākṣasa de Satyaloka que viera à Terra para perturbar o Senhor Kṛṣṇa e Seus amigos íntimos e bezerros. Brahmā está lamentando que, embora o Senhor Kṛṣṇa seja muito sublime, o Senhor de todos os senhores, por Ele ter aparecido diante de Brahmā sob um aspecto tão simples e inocente – ornado com um cajado, um búzio, ornamentos, argila vermelha, pena de pavão etc., e brincando com Seus amigos vaqueirinhos –, ele ousa­ra desafiá-lO. A respeito das preces de Brahmā, das quais este verso constitui a conclusão, Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura diz: “Que essas orações de Brahmā, que dissipam todas as dúvidas e difundem todas as conclusões definitivas acerca do serviço devocional, tornem-se o engenhoso trabalho de alicerce de minha consciência.”

Texto

śrī-śuka uvāca
ity abhiṣṭūya bhūmānaṁ
triḥ parikramya pādayoḥ
natvābhīṣṭaṁ jagad-dhātā
sva-dhāma pratyapadyata

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; iti — assim; abhiṣ­ṭūya — oferecendo louvor; bhūmānam — ao ilimitado Senhor Supre­mo; triḥ — três vezes; parikramya — circungirando; pādayoḥ — a Seus pés; natvā — prostrando-se; abhīṣṭam — desejado; jagat — do universo; dhātā — o criador; sva-dhāma — a sua morada pessoal; pratyapa­dyata — regressou.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī disse: Após oferecer suas orações, Brahmā circungirou três vezes seu Senhor adorável, a ilimitada Personali­dade de Deus, após o que se prostrou a Seus pés de lótus. O nomeado criador do universo, em seguida, regressou à sua própria resi­dência.

Comentário

SIGNIFICADO—Embora o senhor Brahmā tivesse orado para nascer como uma folha de grama em Vṛndāvana, ou mesmo na área adjacente a Vṛndāvana, o Senhor Kṛṣṇa, mediante Sua silenciosa resposta às orações de Brahmā, indicou que este deveria regressar à sua própria morada. Primeiro, Brahmā tinha de completar seu serviço devocional pessoal relacionado com a criação universal; depois ele poderia vir a Vṛndāvana e lá obter a misericórdia de seus habitantes. Em outras palavras, o devoto deve estar sempre atento à adequada execução de seu ser­viço devocional pessoal. Isso é mais importante do que tentar viver na morada do Senhor.

Texto

tato ’nujñāpya bhagavān
sva-bhuvaṁ prāg avasthitān
vatsān pulinam āninye
yathā-pūrva-sakhaṁ svakam

Sinônimos

tataḥ — então; anujñāpya — dando permissão; bhagavān — o Senhor Supremo; sva-bhuvam — a Seu próprio filho (Brahmā); prāk — antes; avasthitān — situados; vatsān — os bezerros; pulinam — à margem do rio; āninye — trouxe; yathā-pūrva — assim como antes; sakham — onde os amigos estavam presentes; svakam — Seus próprios.

Tradução

Após permitir que Seu filho Brahmā partisse, a Suprema Personalidade de Deus pegou os bezerros, que ainda se encontravam no mesmo lugar que tinham estado há um ano, e levou-os à margem do rio, onde Ele estivera almoçando e onde Seus amigos vaqueirinhos permaneciam tal como antes.

Comentário

SIGNIFICADO—A palavra sva-bhuvam, “a Seu próprio filho”, indica que o Senhor Kṛṣṇa perdoou a ofensa cometida por Brahmā e tratou-o com afeição, como Seu filho. Afirma-se neste verso que os amigos vaqueiri­nhos e bezerros originais encontravam-se tal como antes: perto da margem do rio Yamunā e na floresta, respectivamente. Primeiro, os bezerros tinham desaparecido na floresta e o Senhor Kṛṣṇa fora procurá-los. Não os encontrando, o Senhor retornara à margem do rio para discutir a situação com seus amigos vaqueirinhos, mas eles também haviam desaparecido. Agora as vacas estavam de novo na floresta, e os amigos, outra vez na beira do rio, prontos para almoçar. Segundo Śrīla Sanātana Gosvāmī, os bezerros e os meninos fica­ram na floresta e na beira do rio, respectivamente, por um ano inteiro. O senhor Brahmā de fato não os levou para outro lugar. Em virtude da onipotente energia ilusória do Senhor, as gopīs e outros residentes de Vṛndāvana não se deram conta dos bezerros e meninos, nem os bezerros e meninos perceberam que um ano se passara, tampouco sentiram fome, frio ou sede. Tudo isso fazia parte do passatempo providenciado pela potência ilusória do Senhor. O senhor Brahmā pensou: “Mantive todos os meninos e bezerros de Gokula dormindo no leito de minha potência mística, e até hoje eles não acordaram. Igual número de meninos e bezerros estiveram brincando com Kṛṣṇa durante um ano inteiro, mas estes são diferentes daqueles que fica­ram sob a ilusão de minha potência mística. Quem são eles? De onde vieram?”

Nada é invisível ao Senhor Supremo. Portanto, o Senhor Kṛṣṇa pa­recia estar à procura dos bezerros e meninos apenas para encenar o pas­satempo teatral de confundir o senhor Brahmā. Depois que Brahmā se rendeu e ofereceu orações, o Senhor Kṛṣṇa voltou aos meninos e bezerros originais, que tinham a mesma aparência de antes, embora tivessem crescido um pouco devido ao transcorrer de um ano.

Segundo Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura, porque o Senhor Kṛṣṇa estava brincando tal qual um inocente vaqueirinho em Vṛndāvana, depois que o Brahmā de quatro cabeças ofereceu suas orações, o Senhor manteve Seu papel de vaqueirinho e, devido a isso, permaneceu em silêncio diante de Brahmā. O silêncio de Kṛṣṇa indica os seguin­tes pensamentos: “De onde veio este Brahmā de quatro cabeças? O que ele está fazendo? O que significam essas palavras que ele está falando? Estou ocupado à procura de Meus bezerros. Sou apenas um vaqueirinho e não entendo nada disso.” O senhor Brahmā havia conside­rado que o Senhor Kṛṣṇa era um vaqueirinho qualquer e O tratara como tal. Após aceitar as preces de Brahmā, Kṛṣṇa continuou a representar o papel de vaqueirinho, daí não ter respondido ao Brahmā de quatro cabeças. Aliás, Kṛṣṇa estava mais interessado em juntar-Se a Seus amigos vaqueirinhos para o almoço do piquenique à beira do rio Yamunā.

Texto

ekasminn api yāte ’bde
prāṇeśaṁ cāntarātmanaḥ
kṛṣṇa-māyāhatā rājan
kṣaṇārdhaṁ menire ’rbhakāḥ

Sinônimos

ekasmin — um; api — embora; yāte — tendo passado; abde — ano; prāṇa-īśam — o Senhor de suas vidas; ca — e; antarā — sem; ātma­naḥ — deles mesmos; kṛṣṇa — do Senhor Kṛṣṇa; māyā — pela potência ilusória; āhatāḥ — cobertos; rājan — ó rei; kṣaṇa-ardham — meio momento; menire — pensaram; arbhakāḥ — os meninos.

Tradução

Ó rei, embora tivessem passado um ano inteiro longe do Senhor de suas próprias vidas, os meninos haviam sido cobertos pela potência ilusória do Senhor Kṛṣṇa e, em razão disso, consideravam que aquele ano se passara como apenas a metade de um momento.

Texto

kiṁ kiṁ na vismarantīha
māyā-mohita-cetasaḥ
yan-mohitaṁ jagat sarvam
abhīkṣṇaṁ vismṛtātmakam

Sinônimos

kim kim — o que de fato; na vismaranti — as pessoas não esquecem; iha — neste mundo; māyā-mohita — confundidas pela ilusão; cetasaḥ — cujas mentes; yat — pelo que; mohitam — confundido; jagat — o mundo; sarvam — inteiro; abhīkṣṇam — constantemente; vismṛta-ātmakam — fazendo a pessoa esquecer até mesmo o seu próprio eu.

Tradução

De fato, o que não é esquecido por aqueles cujas mentes são confundidas pela potência ilusória do Senhor? Devido a tal poder de Māyā, o universo inteiro permanece em perpétua desorientação e, nessa atmosfera de esquecimento, ninguém pode entender sua própria identidade.

Comentário

SIGNIFICADO—Fica bem claro nesta passagem que o universo inteiro está perple­xo. Logo, mesmo eminentes semideuses como Indra e Brahmā não estão isentos do princípio do esquecimento. Uma vez que o Senhor Kṛṣṇa exerceu Sua potência ilusória interna sobre Seus amigos va­queirinhos e bezerros, não é nada espantoso que, durante um ano, eles não pudessem lembrar-se de sua posição. De fato, em virtude da po­tência ilusória externa do Senhor, as almas condicionadas esquecem sua existência não só por um ano, mas por muitos bilhões e bilhões de anos enquanto transmigram através do reino da ignorância chama­do mundo material.

Texto

ūcuś ca suhṛdaḥ kṛṣṇaṁ
sv-āgataṁ te ’ti-raṁhasā
naiko ’py abhoji kavala
ehītaḥ sādhu bhujyatām

Sinônimos

ūcuḥ — falaram; ca — e; suhṛdaḥ — os amigos; kṛṣṇam — ao Senhor Kṛṣṇa; su-āgatam — vieste todo o caminho de volta; te — Tu; ati­-raṁhasā — muito depressa; na — não; ekaḥ — um; api — mesmo; abho­ji — foi comido; kavalaḥ — bocado; ehi — por favor, vem; itaḥ — aqui; sādhu — corretamente; bhujyatām — toma Tua refeição.

Tradução

Os amigos vaqueirinhos disseram ao Senhor Kṛṣṇa: Voltaste tão depressa! Não comemos nem um bocado em Tua ausência. Por favor, vem até aqui e toma Tua refeição sem distrações.

Comentário

SIGNIFICADO—As palavras sv-āgataṁ te ’ti-raṁhasā indicam que os vaqueirinhos estavam congratulando o Senhor Kṛṣṇa por Sua rapidez em trazer os bezerros de volta da floresta. Agora os amados amigos do Senhor Kṛṣṇa incitavam-nO a sentar-Se de modo conveniente e comer até Sua plena satisfação. Segundo o livro Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, de Śrīla Prabhupāda, os amigos vaqueirinhos sentiam-se muito jubi­lantes e estavam ansiosos para comer na companhia de seu querido amigo Kṛṣṇa.

Texto

tato hasan hṛṣīkeśo
’bhyavahṛtya sahārbhakaiḥ
darśayaṁś carmājagaraṁ
nyavartata vanād vrajam

Sinônimos

tataḥ — então; hasan — sorrindo; hṛṣīkeśaḥ — o Senhor Kṛṣṇa, o senhor dos sentidos de todos; abhyavahṛtya — almoçando; saha — junto com; arbhakaiḥ — os vaqueirinhos; darśayan — mostrando; carma — a pele; ājagaram — do píton Aghāsura; nyavartata — retor­nou; vanāt — da floresta; vrajam — à vila de Vraja.

Tradução

Então, o Senhor Hṛṣīkeśa, sorridente, terminou Seu almoço na companhia de Seus amigos vaqueirinhos. Enquanto voltavam da floresta para suas casas em Vraja, o Senhor Kṛṣṇa mostrou aos vaqueirinhos a pele de Aghāsura, a serpente que fora morta.

Texto

barha-prasūna-vana-dhātu-vicitritāṅgaḥ
proddāma-veṇu-dala-śṛṅga-ravotsavāḍhyaḥ
vatsān gṛṇann anuga-gīta-pavitra-kīrtir
gopī-dṛg-utsava-dṛśiḥ praviveśa goṣṭham

Sinônimos

barha — com penas de pavão; prasūna — flores; vana-dhātu — e minerais da floresta; vicitrita — decorado; aṅgaḥ — Seu corpo transcendental; proddāma — grande; veṇu-dala — feita de uma vara de bambu; śṛṅga — da flauta; rava — pelo ressoar; utsava — com um festival; āḍhyaḥ — resplandecente; vatsān — os bezerros; gṛṇan — chamando; anu­ga — por Seus companheiros; gīta — cantadas; pavitra — purificantes; kīrtiḥ — Suas glórias; gopī — das senhoras vaqueiras; dṛk — para os olhos; utsava — um festival; dṛśiḥ — a visão dEle; praviveśa — Ele entrou; goṣṭham — o pasto das vacas.

Tradução

O corpo transcendental do Senhor Kṛṣṇa estava ornado com penas de pavão e flores e pintado com minerais da floresta, e Sua flauta de bambu ressoava bem alto e festiva. Enquanto Ele cha­mava Seus bezerros pelo nome, Seus amigos vaqueirinhos purifi­cavam o mundo inteiro cantando Suas glórias. Dessa maneira, o Senhor Kṛṣṇa entrou nos campos de pastagem de Seu pai, Nanda Mahārāja, e a visão de Sua beleza logo produziu um grande fes­tival para os olhos de todas as vaqueiras.

Comentário

SIGNIFICADO—Segundo Śrīla Jīva Gosvāmī e Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura, as gopīs mencionadas aqui são as senhoras mais velhas, tais como mãe Yaśodā, que amavam Kṛṣṇa com amor maternal. Os amigos vaqueirinhos de Kṛṣṇa sentiam-se todos tão orgulhosos das mara­vilhosas atividades de Kṛṣṇa que entraram na vila cantando Suas glórias.

Texto

adyānena mahā-vyālo
yaśodā-nanda-sūnunā
hato ’vitā vayaṁ cāsmād
iti bālā vraje jaguḥ

Sinônimos

adya — hoje; anena — por Ele; mahā-vyālaḥ — uma grande serpen­te; yaśodā — de Yaśodā; nanda — e Mahārāja Nanda; sūnunā — pelo filho; hataḥ — foi morta; avitāḥ — fomos salvos; vayam — nós; ca — e; asmāt — daquele demônio; iti — assim; bālāḥ — os meninos; vraje — em Vṛndāvana; jaguḥ — cantavam.

Tradução

Enquanto entravam na vila de Vraja, os vaqueirinhos can­tavam: “Hoje Kṛṣṇa nos salvou matando uma grande serpente!” Alguns dos meninos descreviam Kṛṣṇa como filho de Yaśodā; e outros, como filho de Nanda Mahārāja.

Comentário

SIGNIFICADO—Na verdade, o Senhor Kṛṣṇa tinha matado o demônio Aghāsura um ano antes, mas os meninos, desorientados pela potência mística de Brahmā durante um ano, não notaram o passar do tempo e, por isso, pensavam que, naquele mesmo dia, o Senhor Kṛṣṇa matara o demônio Aghāsura e agora estava voltando para casa com eles.

Texto

śrī-rājovāca
brahman parodbhave kṛṣṇe
iyān premā kathaṁ bhavet
yo ’bhūta-pūrvas tokeṣu
svodbhaveṣv api kathyatām

Sinônimos

śrī-rājā uvāca — o rei disse; brahman — ó brāhmaṇa, Śukadeva; para-udbhave — pela descendência de outro; kṛṣṇe — Senhor Kṛṣṇa; iyān — tanto; premā — amor; katham — como; bhavet — pode ser; yaḥ — que; abhūta-pūrvaḥ — sem precedentes; tokeṣu — pelos filhos; sva­-udbhaveṣu — seus próprios filhos; api — mesmo; kathyatām — por favor, explica.

Tradução

O rei Parīkṣit disse: Ó brāhmaṇa, como é que as esposas dos vaqueiros desenvolveram por Kṛṣṇa, filho de outrem, um amor puro tão sem precedentes – amor que elas nunca sentiram nem mesmo pelos próprios filhos? Por favor, explica-nos isto.

Texto

śrī-śuka uvāca
sarveṣām api bhūtānāṁ
nṛpa svātmaiva vallabhaḥ
itare ’patya-vittādyās
tad-vallabhatayaiva hi

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; sarveṣām — para todos; api — de fato; bhūtānām — seres vivos criados; nṛpa — ó rei; sva-ātmā — o próprio eu; eva — decerto; vallabhaḥ — o mais querido; itare — outros; apatya — filhos; vitta — riqueza; ādyāḥ — e assim por diante; tat — por aquele eu; vallabhatayā — baseado na afeição; eva hi — de fato

Tradução

Śrī Śukadeva Gosvāmī disse: Ó rei, para todo ser criado, o que há de mais querido, sem dúvida, é o próprio eu. A afeição por tudo mais – filhos, riquezas e assim por diante – deve-se apenas à afeição pelo eu.

Comentário

SIGNIFICADO—Às vezes, os pensadores modernos ficam perplexos ao estudarem a psicologia do comportamento moral. Embora toda entidade viva tenha como prioridade a autopreservação, conforme se afirma aqui, às vezes alguém sacrifica voluntariamente seu aparente interes­se em prol de atividades filantrópicas ou patrióticas, tais como dar seu dinheiro em benefício do próximo ou dar a vida em favor do in­teresse nacional. Tal comportamento dito abnegado parece contradi­zer o princípio do egocentrismo material e da autopreservação.

Como se explica neste verso, todavia, a entidade viva serve à so­ciedade, à nação, à família e assim por diante apenas porque esses objetos de afeição representam o conceito expandido do falso ego. O patrio­ta se vê como um eminente servidor de uma eminente nação, daí sacrificar a vida para satisfazer seu senso de egotis­mo. De maneira semelhante, é de conhecimento geral que um homem sente grande prazer em pensar que está sacrificando tudo para agra­dar a sua querida esposa e filhos. Um homem obtém enorme prazer egotista por sentir-se um abnegado benquerente de sua dita família e comunidade. Desse modo, para satisfazer seu orgulhoso sentido de falso ego, um homem está preparado até para sacrificar a vida. Este comportamento aparentemente contraditório é mais uma demonstra­ção da confusão decorrente da vida material, que, digamos, “não tem pés nem cabeça”, visto ser uma manifestação da grosseira ignorância da alma imaterial.

Texto

tad rājendra yathā snehaḥ
sva-svakātmani dehinām
na tathā mamatālambi-
putra-vitta-gṛhādiṣu

Sinônimos

tat — portanto; rāja-indra — ó melhor dos reis; yathā — como; snehaḥ — a afeição; sva-svaka — de cada indivíduo; ātmani — pelo eu; dehinām — dos seres corporificados; na — não; tathā — assim; mamatā-ālambi — por aquilo que alguém considera como suas pro­priedades; putra — filhos; vitta — riqueza; gṛha — lares; ādiṣu — e as­sim por diante.

Tradução

Por esta razão, ó melhor dos reis, a alma corporificada é autocentrada: ela é mais apegada ao seu corpo e ao próprio eu do que a seus ditos bens, como filhos, riqueza e lar.

Comentário

SIGNIFICADO—Hoje em dia, é uma prática comum em todo o mundo que a mãe mate o próprio filho no ventre caso o nascimento deste filho represente alguma inconveniência para ela. Da mesma forma, os filhos adultos avidamente colocam os pais idosos em asilos, em vez de se subme­terem a alguma inconveniência devido à presença deles em sua casa. Esses e inúmeros outros exemplos provam que as pessoas em geral estão mais apegadas ao próprio corpo e ego, que representam o “eu”, do que a sua família e outras posses, que representam o “meu”. Embora as almas condicionadas tenham muito orgulho de seu dito amor pela sociedade, família etc., todas elas, na realidade, estão agindo na plataforma do egoísmo grosseiro ou sutil.

Texto

dehātma-vādināṁ puṁsām
api rājanya-sattama
yathā dehaḥ priyatamas
tathā na hy anu ye ca tam

Sinônimos

deha-ātma-vādinām — que adotam a opinião de que o corpo é o eu; puṁsām — para pessoas; api — de fato; rājanya-sat-tama — ó melhor dos reis; yathā — como; dehaḥ — o corpo; priya-tamaḥ — muito queri­do; tathā — assim; na — não; hi — decerto; anu — relativo; ye — cujas coisas; ca — e; tam — àquele.

Tradução

De fato, para pessoas que pensam que o corpo é o eu, ó melhor dos reis, aqueles objetos cuja importância se encontra apenas em sua relação com o corpo nunca são tão queridos quanto o próprio corpo.

Texto

deho ’pi mamatā-bhāk cet
tarhy asau nātma-vat priyaḥ
yaj jīryaty api dehe ’smin
jīvitāśā balīyasī

Sinônimos

dehaḥ — o corpo; api — também; mamatā — da possessividade; bhāk — o foco; cet — se; tarhi — então; asau — aquele corpo; na — não; ātma-vat — do mesmo modo que a alma; priyaḥ — querido; yat — porque; jīryati — quando está envelhecendo; api — mesmo; dehe — o corpo; asmin — neste; jīvita-āśā — o desejo de continuar vivendo; ba­līyasī — muito forte.

Tradução

Se alguém chegar ao ponto de considerar o corpo como “meu” em vez de “eu”, decerto não considerará o corpo tão querido quanto o próprio eu. Afinal, mesmo quando o corpo fica velho e inútil, o desejo de continuar vivendo permanece forte.

Comentário

SIGNIFICADO—A expressão mamatā-bhāk é muito significativa neste contexto. Um homem tolo e qualquer pensa: “Eu sou este corpo.” Alguém já inteligente, de maior discriminação, pensa: “Este é o meu corpo.” Na literatura e folclore dos diversos povos, encontramos a história comum da pessoa velha e decrépita que sonha em obter um corpo novo e jovem. Logo, até homens banais têm alguma noção acerca da autor­realização, compreendendo por instinto que é possível para a alma existir em muitos corpos diferentes.

Apesar de o corpo de alguém inteligente ficar velho e inútil, tal pessoa continua com o forte desejo de viver, mesmo sabendo que o corpo não pode viver muito tempo mais. Isso indica que, pouco a pouco, ele está se conscientizando de que o eu é mais importante do que o corpo. Assim, o mero desejo de viver pode indiretamente levá-­lo a uma compreensão preliminar da autorrealização. E neste caso também, seu apego básico é ao próprio eu e não àquilo que suposta­mente lhe pertence.

Pode-se salientar que toda a discussão entre o rei Parīkṣit e Śukadeva Gosvāmī sobre a afeição ao próprio eu tem como finalidade levantar o assunto concernente ao motivo de as vacas e esposas dos vaqueiros de Vṛndāvana considerarem Kṛṣṇa mais querido do que o próprio eu delas e decerto mais querido do que seus próprios filhos. A discussão, então, prossegue.

Texto

tasmāt priyatamaḥ svātmā
sarveṣām api dehinām
tad-artham eva sakalaṁ
jagad etac carācaram

Sinônimos

tasmāt — portanto; priya-tamaḥ — muito querido; sva-ātmā — o próprio eu; sarveṣām — para todos; api — de fato; dehinām — seres vivos corporificados; tat-artham — por causa disto; eva — decerto; sa­kalam — todo; jagat — o universo criado; etat — este; cara-acaram — com suas entidades móveis e inertes.

Tradução

Portanto, é o próprio eu que é mais querido a todo ser vivo corporificado, e é apenas para a satisfação desse eu que existe toda a criação material de entidades móveis e inertes.

Comentário

SIGNIFICADO—A expressão carācaram indica as entidades vivas móveis, tais como os animais, e as entidades vivas inertes, tais como as árvores. Ou a expressão também pode se referir a bens móveis, tais como família e animais de estimação, e a bens imóveis, tais como casa e parafer­nália doméstica.

Texto

kṛṣṇam enam avehi tvam
ātmānam akhilātmanām
jagad-dhitāya so ’py atra
dehīvābhāti māyayā

Sinônimos

kṛṣṇam — o Senhor Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus; enam — este; avehi — apenas tenta entender; tvam — tu; ātmānam — a Alma; akhila-ātmanām — de todas as entidades vivas; jagat-hitāya — para o benefício do universo inteiro; saḥ — Ele; api — decerto; atra — aqui; dehī — um ser humano; iva — como; ābhāti — aparece; māyayā — por Sua potência interna.

Tradução

É importante que saibas que Kṛṣṇa é a Alma original de todas as entida­des vivas. Para o benefício do universo inteiro, Ele, por Sua misericórdia imotivada, aparece como um ser humano comum. Ele faz isso graças à Sua própria potência interna.

Comentário

SIGNIFICADO—No Caitanya-caritāmṛta, Madhya-līlā, capítulo vinte, verso 162, Śrīla Prabhupāda faz o seguinte comentário sobre este verso: “Parīkṣit Mahārāja perguntou a Śukadeva Gosvāmī por que Kṛṣṇa era tão que­rido aos habitantes de Vṛndāvana, que O amavam mais do que a seus próprios filhos ou a sua própria vida. Nessa ocasião, Śukadeva Gosvāmī respondeu que o ātmā, ou alma, de todos é muitíssimo querido, especialmente pelas entidades vivas que aceitaram corpos materiais. No entanto, este ātmā, alma espiritual, é parte integrante de Kṛṣṇa. Por essa razão, Kṛṣṇa é muito querido a toda entidade viva. Cada um tem muita estima por seu corpo e deseja protegê-lo a qualquer custo, pois, dentro do corpo, vive uma alma. Devido à relação ínti­ma entre a alma e o corpo, este é importante e querido a todos. De modo semelhante, a alma, sendo parte integrante de Kṛṣṇa, o Senhor Supremo, é muitíssima querida a todas as entidades vivas. Infe­lizmente, esquecida de sua posição constitucional, a alma pensa que é apenas o corpo (dehātma-buddhi). Assim, ela se sujeita às regras e regulações da natureza material. Quando, com sua inteligência, des­perta novamente sua atração por Kṛṣṇa, a entidade viva pode entender que não é o corpo, mas sim parte integrante de Kṛṣṇa. Desse modo, dotada de conhecimento, ela não mais trabalha sob o apego ao corpo e a tudo aquilo relacionado com o corpo (janasya moho ’yam ahaṁ mameti). A existência material, por causa da qual se pensa: ‘Eu sou o corpo, e isto me pertence’, também é ilusória. De­vemos canalizar nossa atração para Kṛṣṇa. O Śrīmad-Bhāgavatam (1.2.7) afirma:

vāsudeve bhagavati
bhakti-yogaḥ prayojitaḥ
janayaty āśu vairāgyaṁ
jñānaṁ ca yad ahaitukam

‘Quem presta serviço devocional à Suprema Personalidade de Deus, Śrī Kṛṣṇa, imediatamente adquire conhecimento imotivado e desape­go do mundo.’”

Texto

vastuto jānatām atra
kṛṣṇaṁ sthāsnu cariṣṇu ca
bhagavad-rūpam akhilaṁ
nānyad vastv iha kiñcana

Sinônimos

vastutaḥ — de fato; jānatām — para aqueles que compreendem; atra — neste mundo; kṛṣṇam — o Senhor Kṛṣṇa; sthāsnu — estacioná­rio; cariṣṇu — movente; ca — e; bhagavat-rūpam — as formas manifes­tas da Personalidade de Deus; akhilam — tudo; na — nada; anyat — ­mais; vastu — substância; iha — aqui; kiñcana — absolutamente.

Tradução

Aqueles neste mundo que compreendem o Senhor Kṛṣṇa como Ele é veem todas as coisas, quer estacionárias, quer móveis, como formas manifestas da Suprema Personalidade de Deus. Seme­lhantes pessoas iluminadas não conhecem nenhuma realidade à parte do Supremo Senhor Kṛṣṇa.

Comentário

SIGNIFICADO—Tudo existe dentro do Senhor Kṛṣṇa, e o Senhor Kṛṣṇa existe dentro de tudo. Ainda assim, a ordem de progressão é sempre do energético para a energia expandida. O Senhor Kṛṣṇa é a identidade original da qual emanam todas as outras identidades. Ele é o energético supre­mo do qual todas as categorias e dimensões de energia se manifes­tam. Desse modo, nossos corpos, nosso eu, nossa família, nossos amigos, nossa nação, nosso planeta, nosso universo etc., são todos manifestações do Senhor Supremo, que Se expande através de Suas potências pessoais. O Senhor Kṛṣṇa é decerto o supremo objeto de nosso amor e atração, e outros objetos, tais como corpo, família e lar, devem ser objetos secundários de nossa afeição. Além disso, um acurado estudo analítico da situação verdadeira revelará que mesmo os objetos secundários de amor também são manifestações do Senhor Kṛṣṇa. A conclusão é que o Senhor Kṛṣṇa é nosso único amigo e objeto de amor.

Em seu Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, Śrīla Prabhupāda faz o seguinte comentário sobre este verso: “Nada pode ser atrativo se não for uma expansão de Kṛṣṇa. Tudo o que é atrativo dentro da manifestação cósmica se deve a Kṛṣṇa. Kṛṣṇa é, portanto, o reservatório de todo o prazer. Kṛṣṇa é o princípio ativo de tudo, e os mais eminentes transcendentalistas veem tudo em relação com Kṛṣṇa. No Caitanya-caritāmṛta, afirma-se que um mahā-bhāgavata, ou um devoto altamente avançado, vê Kṛṣṇa como o princípio ativo em todas as entidades vivas móveis e inertes. Por conseguinte, ele vê tudo o que há dentro desta manifestação cósmica em relação com Kṛṣṇa.”

Texto

sarveṣām api vastūnāṁ
bhāvārtho bhavati sthitaḥ
tasyāpi bhagavān kṛṣṇaḥ
kim atad vastu rūpyatām

Sinônimos

sarveṣām — de todas; api — de fato; vastūnām — entidades; bhāva-­arthaḥ — a imanifesta e original fase causal da natureza material; bhavati — é; sthitaḥ — estabelecida; tasya — daquela natureza imani­festa; api — mesmo; bhagavān — a Suprema Personalidade de Deus; kṛṣṇaḥ — o Senhor Kṛṣṇa; kim — o que; atat — à parte dEle; vastu — coisa; rūpyatām — pode ser classificado.

Tradução

A forma original imanifesta da natureza material é a fonte de todas as coisas materiais, mas a Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa, é a fonte até mesmo dessa natureza material sutil. Então, o que se poderia classificar como sendo à parte dEle?

Texto

samāśritā ye pada-pallava-plavaṁ
mahat-padaṁ puṇya-yaśo murāreḥ
bhavāmbudhir vatsa-padaṁ paraṁ padaṁ
padaṁ padaṁ yad vipadāṁ na teṣām

Sinônimos

samāśritāḥ — tendo-se abrigado; ye — aqueles que; pada — nos pés; pallava — como botões de flores; plavam — que são um barco; mahat — da criação material total, ou das grandes almas; padam — o abrigo; puṇya — sumamente piedosa; yaśaḥ — cuja fama; mura-areḥ — no inimigo do demônio Mura; bhava — da existência material; ambu­dhiḥ — o oceano; vatsa-padam — a pegada deixada por um bezerro; param padam — a morada suprema, Vaikuṇṭha; padam padam — a cada passo; yat — onde; vipadām — dos tormentos materiais; na — ne­nhuma; teṣām — para eles.

Tradução

Para alguém que aceitou o barco dos pés de lótus do Senhor, que é o abrigo da manifestação cósmica e é famoso como Murāri, o inimigo do demônio Mura, o oceano do mundo material é como a água contida na pegada de um bezerro. Paraṁ padam, ou o lugar onde não há misérias materiais, ou Vaikuṇṭha, é sua meta, e não o lugar onde se corre perigo a cada passo da vida

Comentário

SIGNIFICADO—Esta tradução é extraída do comentário de Śrīla Prabhupāda ao Bhagavad-gītā Como Ele É, capítulo 2, verso 51.

Segundo Śrīla Śrīdhara Svāmī, este verso resume o conhecimento apresentado nesta seção do Śrīmad-Bhāgavatam. Os pés de lótus do Senhor Kṛṣṇa são descritos como pallava, botões de flores, porque são muito tenros e de um matiz rosado. Segundo Śrīla Sanātana Go­svāmī, a palavra pallava também indica que os pés de lótus do Senhor Kṛṣṇa são exatamente como árvores-dos-desejos, que podem satisfazer todos os desejos dos devotos puros do Senhor. Até eleva­dos devotos como Śrī Nārada, que são eles mesmos o grande refú­gio das almas condicionadas deste universo, refugiam-se nos pés de lótus do Senhor Śrī Kṛṣṇa. Portanto, é natural que, quando o Senhor Kṛṣṇa Se manifestou como todos os meninos e bezerros de Vṛndāvana, seus pais tivessem mais atração por eles do que antes. O Senhor Kṛṣṇa é o reservatório de todo o prazer e, por ser todo-atrativo, é o objeto último do amor de todas as pessoas.

Texto

etat te sarvam ākhyātaṁ
yat pṛṣṭo ’ham iha tvayā
tat kaumāre hari-kṛtaṁ
paugaṇḍe parikīrtitam

Sinônimos

etat — isto; te — para ti; sarvam — tudo; ākhyātam — descrito; yat — que; pṛṣṭaḥ — pedido; aham — eu; iha — a este respeito; tvayā — por ti; tat — aquilo; kaumāre — em Sua primeira infância (até o fim de Seu quinto ano); hari-kṛtam — executado pelo Senhor Hari; paugaṇḍe — em Sua segunda infância (a começar de Seu sexto ano); parikīrtitam — glorificado.

Tradução

Porque me perguntaste, descrevi para ti todas aquelas ativida­des que o Senhor Hari realizou quando tinha cinco anos, mas que não foram celebradas até Seu sexto aniversário.

Texto

etat suhṛdbhiś caritaṁ murārer
aghārdanaṁ śādvala-jemanaṁ ca
vyaktetarad rūpam ajorv-abhiṣṭavaṁ
śṛṇvan gṛṇann eti naro ’khilārthān

Sinônimos

etat — estes; suhṛdbhiḥ — junto com os amigos vaqueirinhos; cari­tam — passatempos; murāreḥ — do Senhor Murāri; agha-ardanam — a subjugação do demônio Aghāsura; śādvala — na relva da floresta; jemanam — o almoço; ca — e; vyakta-itarat — supramundana; rūpam — a forma transcendental do Senhor; aja — pelo senhor Brahmā; uru — primorosas; abhiṣṭavam — oferecimento de orações; śṛṇvan — ouvin­do; gṛṇan — cantando; eti — alcança, naraḥ — qualquer um; akhila­-arthān — todas as coisas desejáveis.

Tradução

Qualquer um que ouvir ou cantar estes passatempos que o Senhor Murāri executou com Seus amigos vaqueirinhos – a morte de Aghāsura, o almoço na relva da floresta, a manifesta­ção das formas transcendentais do Senhor e as maravilhosas preces oferecidas pelo senhor Brahmā – com certeza logrará todos os seus desejos espirituais.

Comentário

SIGNIFICADO—Segundo Śrīla Sanātana Gosvāmī, até mesmo quem está apenas disposto a ouvir e cantar os passatempos do Senhor Kṛṣṇa logrará a perfeição espiritual. Muitos devotos seriamente ocupados em propa­gar a consciência de Kṛṣṇa muitas vezes estão tão atarefados que não podem ouvir e cantar os passatempos do Senhor até seu pleno con­tento. Todavia, apenas em virtude de seu intenso desejo de sempre cantar e ouvir sobre o Senhor Kṛṣṇa, eles alcançarão a perfeição es­piritual. É evidente que, tanto quanto possível, devemos de fato cantar estes passatempos transcendentais do Senhor.

Texto

evaṁ vihāraiḥ kaumāraiḥ
kaumāraṁ jahatur vraje
nilāyanaiḥ setu-bandhair
markaṭotplavanādibhiḥ

Sinônimos

evam — assim; vihāraiḥ — com passatempos; kaumāraiḥ — da infância; kaumāram — a infância até os cinco anos; jahatuḥ — passaram; vraje — na terra de Vṛndāvana; nilāyanaiḥ — com brincadeiras de per­seguir; setu-bandhaiḥ — com a construção de pontes; markaṭa-utpla­vana — com o saltar de macacos; ādibhiḥ — e assim por diante.

Tradução

Dessa maneira, os meninos passaram sua infância na terra de Vṛndāvana a brincar de esconde-esconde, de construir pontes de brinquedo, de pular como macacos e de muitos outros jogos.

Comentário

SIGNIFICADO—Segundo Śrīla Sanātana Gosvāmī, a palavra nilāyanaiḥ refere-se a brincadeiras tais como esconde-esconde ou polícia e ladrão. Às vezes, os meninos pulavam de um lado para o outro como os macacos do exército do Senhor Rāmacandra e, depois, encenavam a construção da ponte de Śrī Laṅkā construindo pontes de brincadeira em lagos ou tanques. Às vezes, os meninos imitavam o passatempo de bater o oceano de leite, e, outras vezes, brincavam de pegar bola. Podemos sentir pleno prazer no mundo espiritual, com a mera condição de que fa­çamos tudo com amor puro por Deus, ou consciência de Kṛṣṇa.

Neste ponto, encerram-se os significados apresentados pelos humil­des servos de Sua Divina Graça A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhu­pāda referentes ao décimo canto, décimo quarto capítulo, do Śrīmad-Bhāgavatam, intitulado “As Orações de Brahmā ao Senhor Kṛṣṇa”.