CAPÍTULO DEZESSETE
A História de Kāliya
Este capítulo descreve por que Kāliya deixou a ilha das serpentes e como os residentes de Vṛndāvana foram salvos de um incêndio na floresta.
Quando o rei Parīkṣit indagou por que Kāliya partira da ilha Ramaṇaka, a morada das serpentes, e por que Garuḍa era hostil para com ele, Śrī Śukadeva Gosvāmī respondeu o seguinte: Todas as serpentes da ilha temiam que Garuḍa as devorasse. Para aplacá-lo, todos os meses elas lhe deixavam várias oferendas embaixo de uma figueira-de-bengala. Mas Kāliya, arrogante como era devido ao orgulho falso, comia ele próprio essas oferendas. Ao tomar conhecimento disso, Garuḍa ficou furioso e foi matar Kāliya, ao que a serpente começou a picar o grande pássaro. Garuḍa ferozmente atingiu-o com sua asa, fazendo Kāliya fugir para um lago adjacente ao rio Yamunā a fim de salvar sua vida.
Certo dia, Garuḍa foi ao Yamunā e começou a comer alguns peixes. Saubhari Ṛṣi tentou detê-lo, mas Garuḍa, perturbado devido à fome, recusou-se a obedecer às proibições do sábio, e em resposta este amaldiçoou Garuḍa dizendo que, se alguma vez voltasse ali, ele morreria de imediato. Ao ouvir isso, Kāliya se sentiu livre para continuar a viver ali sem temores. Por fim, contudo, ele foi expulso por Śrī Kṛṣṇa.
Quando viram Śrī Kṛṣṇa sair do lago, belamente decorado com muitas diferentes joias e ornamentos, o Senhor Balarāma e todos os residentes de Vṛndāvana abraçaram-nO com grande prazer. Nesse momento, os mestres espirituais, sacerdotes e brāhmaṇas eruditos disseram a Nanda Mahārāja, o rei dos vaqueiros, que, apesar de seu filho ter ficado preso nas garras de Kāliya, foi pela boa fortuna do rei que agora Ele estava livre de novo.
Porque estavam famintos, sedentos e exaustos, os residentes de Vṛndāvana passaram aquela noite nas margens do Yamunā. No meio da noite, aconteceu que um incêndio irrompeu na floresta, que ficara seca durante a estação de verão. No momento em que o fogo acercou os moradores adormecidos da vila, eles acordaram de repente e correram para Śrī Kṛṣṇa em busca de proteção. Então, o Senhor Śrī Kṛṣṇa de poder ilimitado, vendo Seus queridos parentes e amigos tão aflitos, engoliu de imediato o terrível incêndio da floresta.
Texto
nāgālayaṁ ramaṇakaṁ
kathaṁ tatyāja kāliyaḥ
kṛtaṁ kiṁ vā suparṇasya
tenaikenāsamañjasam
Sinônimos
śrī-rājā uvāca — o rei disse; nāga — das serpentes; ālayam — a residência; ramaṇakam — a ilha chamada Ramaṇaka; katham — por que; tatyāja — abandonou; kāliyaḥ — Kāliya; kṛtam — foi feito; kim vā — e por que; suparṇasya — de Garuḍa; tena — com ele, Kāliya; ekena — só; asamañjasam — inimizade.
Tradução
[Após ter ouvido como o Senhor Kṛṣṇa castigara Kāliya,] o rei Parīkṣit indagou: Por que Kāliya deixou a ilha Ramaṇaka, a morada das serpentes, e por que Garuḍa assumiu uma atitude tão hostil só para com ele?
Texto
upahāryaiḥ sarpa-janair
māsi māsīha yo baliḥ
vānaspatyo mahā-bāho
nāgānāṁ prāṅ-nirūpitaḥ
nāgāḥ parvaṇi parvaṇi
gopīthāyātmanaḥ sarve
suparṇāya mahātmane
Sinônimos
śrī-śukaḥ uvāca — Śukadeva Gosvāmī disse; upahāryaiḥ — que estavam qualificadas para fazer oferendas; sarpa-janaiḥ — pela raça das serpentes; māsi māsi — todo mês; iha — aqui (em Nāgālaya); yaḥ — que; baliḥ — oferenda como tributo; vānaspatyaḥ — ao pé de uma árvore; mahā-bāho — ó Parīkṣit de braços poderosos; nāgānām — para as serpentes; prāk — outrora; nirūpitaḥ — ordenado; svam svam — cada uma a sua; bhāgam — porção; prayacchanti — presenteiam; nāgāḥ — as serpentes; parvaṇi parvaṇi — uma vez por mês; gopīthāya — para a proteção; ātmanaḥ — delas mesmas; sarve — todas elas; suparṇāya — a Garuḍa; mahā-ātmane — o poderoso
Tradução
Śukadeva Gosvāmī disse: Para evitar que Garuḍa as comesse, as serpentes haviam outrora feito um acordo com ele segundo o qual cada uma delas faria uma oferenda mensal como tributo a ser posta embaixo de uma árvore. Desse modo, todo mês, conforme a escala, ó rei Parīksit de braços poderosos, cada serpente trazia sua oferenda no devido tempo ao poderoso transportador de Viṣṇu em troca de proteção.
Comentário
SIGNIFICADO—Śrīla Śrīdhara Svāmī apresenta uma explicação alternativa para este verso. Upahāryaiḥ também se pode traduzir como “por aqueles que estão para ser comidos”, e sarpa-janaiḥ como “aqueles seres humanos que foram dominados pela raça das serpentes ou que pertenciam a ela”. Segundo essa interpretação, um grupo de seres humanos caíra sob o controle das serpentes e estava sujeito a ser comido por elas. Para evitar isso, os seres humanos faziam uma oferenda mensal para as serpentes, que, por sua vez, ofereciam parte daquela oferenda a Garuḍa para que este não as comesse. A tradução em particular dada acima baseia-se no comentário de Śrīla Sanātana Gosvāmī e na tradução de Śrīla Prabhupāda em seu Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus. Seja como for, todos os ācāryas concordam que as serpentes pagavam um tributo para se protegerem de Garuḍa.
Texto
kādraveyas tu kāliyaḥ
kadarthī-kṛtya garuḍaṁ
svayaṁ taṁ bubhuje balim
Sinônimos
viṣa — por causa de seu veneno; vīrya — e sua força; mada — em intoxicação; āviṣṭaḥ — absorto; kādraveyaḥ — o filho de Kadru; tu — por outro lado; kāliyaḥ — Kāliya; kadarthī-kṛtya — desprezando; garuḍam — Garuḍa; svayam — ele mesmo; tam — aquela; bubhuje — comeu; balim — a oferenda.
Tradução
Embora todas as outras serpentes fizessem as oferendas a Garuḍa no devido tempo, uma serpente – o arrogante Kāliya, filho de Kadru – comia todas essas oferendas antes que Garuḍa pudesse reivindicá-las. Assim, Kāliya desafiou diretamente o transportador do Senhor Viṣṇu.
Texto
bhagavān bhagavat-priyaḥ
vijighāṁsur mahā-vegaḥ
kāliyaṁ samapādravat
Sinônimos
tat — isto; śrutvā — ouvindo; kupitaḥ — furioso; rājan — ó rei; bhagavān — o poderoso Garuḍa; bhagavat-priyaḥ — o querido devoto da Suprema Personalidade de Deus; vijighāṁsuḥ — desejando matar; mahā-vegaḥ — o velocíssimo; kāliyam — contra Kāliya; samupādravat — arremeteu.
Tradução
Ó rei, o poderosíssimo Garuḍa, que é muito querido ao Senhor Supremo, ficou furioso ao tomar conhecimento disso. Desejando matar Kāliya, ele arremeteu contra a serpente com imensa velocidade.
Comentário
SIGNIFICADO—Śrīla Sanātana Gosvāmī explica que a palavra mahā-vega indica que ninguém pode impedir a grande velocidade de Garuḍa.
Texto
pratyabhyayād utthita-naika-mastakaḥ
dadbhiḥ suparṇaṁ vyadaśad dad-āyudhaḥ
karāla-jihrocchvasitogra-locanaḥ
Sinônimos
tam — a ele, Garuḍa; āpatantam — atacando; tarasā — rapidamente; viṣa — do veneno; āyudhaḥ — que possuía a arma; prati — para; abhyayāt — correu; utthita — erguidas; na eka — muitas; mastakaḥ — suas cabeças; dadbhiḥ — com suas presas; suparṇam — Garuḍa; vyadaśat — picou; dat-āyudhaḥ — cujas presas eram armas; karāla — terríveis; jihvā — suas línguas; ucchvasita — expandidos; ugra — e terríveis; locanaḥ — seus olhos.
Tradução
No momento em que Garuḍa lançou-se rapidamente sobre ele, Kāliya, que tinha a arma do veneno, ergueu suas numerosas cabeças para contra-atacar. Mostrando suas línguas ferozes e expandindo seus olhos horríveis, Kāliya então picou Garuḍa com as armas de suas presas.
Comentário
SIGNIFICADO—Os ācāryas explicam que Kāliya usava sua arma de veneno à distância, cuspindo o veneno sobre o inimigo, e de perto, picando-o com suas terríveis presas.
Texto
pracaṇḍa-vego madhusūdanāsanaḥ
pakṣeṇa savyena hiraṇya-rociṣā
jaghāna kadru-sutam ugra-vikramaḥ
Sinônimos
tam — dele, Kāliya; tārkṣya-putraḥ — o filho de Kaśyapa; saḥ — ele, Garuḍa; nirasya — desviando-se; manyu-mān — cheio de ira; pracaṇḍa-vegaḥ — movendo-se com terrível velocidade; madhusūdana-āsanaḥ — o transportador do Senhor Madhusūdana, Kṛṣṇa; pakṣeṇa — com a asa; savyena — esquerda; hiraṇya — como ouro; rociṣā — a refulgência da qual; jaghāna — atacou; kadru-sutam — o filho de Kadru (Kāliya); ugra — poderosa; vikramaḥ — sua proeza.
Tradução
A fim de rechaçar o ataque de Kāliya, o irado filho de Tārkṣya moveu-se com uma velocidade estonteante. Então, o poderosíssimo transportador do Senhor Madhusūdana, com a asa esquerda, que brilhava como ouro, atacou o filho de Kadru.
Texto
kāliyo ’tīva vihvalaḥ
hradaṁ viveśa kālindyās
tad-agamyaṁ durāsadam
Sinônimos
suparṇa — de Garuḍa; pakṣa — pela asa; abhihataḥ — atingido; kāliyaḥ — Kāliya; atīva — extremamente; vihvalaḥ — transtornado; hradam — em um lago; viveśa — entrou; kālindyāḥ — do rio Yamunā; tat-agamyam — inacessível a Garuḍa; durāsadam — difícil de entrar.
Tradução
Atingido pela asa de Garuḍa, Kāliya ficou extremamente transtornado, motivo pelo qual se abrigou em um lago adjacente ao rio Yamunā. Garuḍa não podia entrar nesse lago. Aliás, nem mesmo podia aproximar-se dele.
Texto
garuḍo bhakṣyam īpsitam
nivāritaḥ saubhariṇā
prasahya kṣudhito ’harat
Sinônimos
tatra — ali (naquele lago); ekadā — certa vez; jala-caram — uma criatura aquática; garuḍaḥ — Garuḍa; bhakṣyam — a comida própria para ele; īpsitam — desejou; nivāritaḥ — proibido; saubhariṇā — por Saubhari Muni; prasahya — criando coragem; kṣudhitaḥ — sentindo fome; aharat — apanhou.
Tradução
Naquele mesmo lago, Garuḍa certa vez desejou comer um peixe – visto que peixe, afinal, era o alimento natural para ele. Embora proibido pelo sábio Saubhari, que estava meditando ali dentro da água, Garuḍa criou coragem e, sentindo fome, apanhou o peixe.
Comentário
SIGNIFICADO—Śukadeva Gosvāmī agora está explicando por que Garuḍa não podia aproximar-se do lago no rio Yamunā. Faz parte da natureza das aves comer peixe, e, portanto, devido ao arranjo do Senhor, o grande pássaro Garuḍa não comete nenhuma ofensa ao nutrir-se com peixes. Por outro lado, o fato de Saubhari Muni proibir uma personalidade muito superior de comer seu alimento normal constituiu uma ofensa. Segundo Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura, Saubhari cometeu duas ofensas: a primeira, ele ousou dar uma ordem a uma alma sumamente elevada como Garuḍa, e a segunda, impediu Garuḍa de satisfazer seu desejo.
Texto
dīnān mīna-patau hate
kṛpayā saubhariḥ prāha
tatratya-kṣemam ācaran
Sinônimos
mīnān — os peixes; su-duḥkhitān — infelicíssimos; dṛṣṭvā — vendo; dīnān — desditosos; mīna-patau — o senhor dos peixes; hate — sendo morto; kṛpayā — por compaixão; saubhariḥ — Saubhari; prāha — falou; tatratya — para aqueles que vivem lá; kṣemam — o bem-estar; ācaran — tentando promover.
Tradução
Ao ver como os desafortunados peixes daquele lago ficaram muito infelizes com a morte de seu líder, Saubhari, sob a impressão de estar agindo com misericórdia e para o benefício dos residentes do lago, lançou a seguinte maldição.
Comentário
SIGNIFICADO—A esse respeito, Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura explica que quando nossa suposta compaixão não se harmoniza com a ordem do Senhor Supremo, ela não causa nada além de distúrbios. Porque Saubhari proibira que Garuḍa fosse àquele lago, Kāliya se mudou para lá e montou seu quartel-general, o que calhou na ruína de todos os residentes do lago.
Texto
yadi matsyān sa khādati
sadyaḥ prāṇair viyujyeta
satyam etad bravīmy aham
Sinônimos
atra — neste lago; praviśya — entrando; garuḍaḥ — Garuḍa; yadi — se; matsyān — os peixes; saḥ — ele; khādati — comer; sadyaḥ — imediatamente; prāṇaiḥ — de sua força vital; viyujyeta — será privado; satyam — verdadeiramente; etat — isto; bravīmi — estou falando; aham — eu.
Tradução
Se alguma vez Garuḍa entrar novamente neste lago e comer os peixes daqui, ele perderá a vida de imediato. O que estou dizendo é a verdade.
Comentário
SIGNIFICADO—Os ācāryas explicam sobre este ponto que, devido ao apego e afeição material de Saubhari Muni por um peixe, ele não foi capaz de ver a situação de um ponto de vista espiritual. O nono canto do Śrīmad-Bhāgavatam descreve sua queda decorrente dessa ofensa. Por causa do orgulho falso, Saubhari Muni perdeu seu poder de austeridade e, com ele, perdeu sua beleza e felicidade espirituais. Quando Garuḍa foi ao Yamunā, Saubhari Muni pensou: “Ainda que ele seja um companheiro pessoal do Senhor Supremo, vou amaldiçoá-lo e até matá-lo caso ele desobedeça à minha ordem.” Uma atitude ofensiva dessa natureza contra um vaiṣṇava elevado com certeza destruirá a posição auspiciosa de qualquer um.
Como se descreve no nono canto, Saubhari Muni casou-se com muitas lindas mulheres e sofreu muito na companhia delas. Porém, porque uma vez se tornara glorioso em virtude de ter-se refugiado no rio Yamunā em Śrī Vṛndāvana, ele acabou sendo salvo.
Texto
nānyaḥ kaścana lelihaḥ
avātsīd garuḍād bhītaḥ
kṛṣṇena ca vivāsitaḥ
Sinônimos
tam — isto; kāliyaḥ — Kāliya; param — só; veda — sabia; na — não; anyaḥ — outra; kaścana — alguma; lelihaḥ — serpente; avātsīt — residiu; garuḍāt — de Garuḍa; bhītaḥ — temeroso; kṛṣṇena — por Kṛṣṇa; ca — e; vivāsitaḥ — expulso.
Tradução
De todas as serpentes, somente Kāliya tomou ciência deste assunto e, por temor a Garuḍa, Kāliya estabeleceu residência naquele lago do Yamunā. Mais tarde, o Senhor Kṛṣṇa o expulsou.
Texto
divya-srag-gandha-vāsasam
mahā-maṇi-gaṇākīrṇaṁ
jāmbūnada-pariṣkṛtam
labdha-prāṇā ivāsavaḥ
pramoda-nibhṛtātmāno
gopāḥ prītyābhirebhire
Sinônimos
kṛṣṇam — o Senhor Kṛṣṇa; hradāt — para fora do lago; viniṣkrāntam — erguendo-Se; divya — divinas; srak — usando guirlandas; gandha — fragrâncias; vāsasam — e roupas; mahā-maṇi-gaṇa — por muitas joias finas; ākīrṇam — coberto; jāmbūnada — com ouro; pariṣkṛtam — adornado; upalabhya — vendo; utthitāḥ — erguendo-se; sarve — todos eles; labdha-prāṇāḥ — que recuperam sua força vital; iva — assim como; asavaḥ — sentidos; pramoda — de alegria; nibhṛta-ātmānaḥ — estando cheios; gopāḥ — os vaqueiros; prītyā — com afeição; abhirebhire — abraçaram-nO.
Tradução
[Retomando sua descrição de como Kṛṣṇa puniu Kāliya, Śukadeva Gosvāmī continuou:] Kṛṣṇa saiu do lago usando guirlandas, fragrâncias e roupas divinas, coberto com muitas joias finas e decorado com ouro. Ao verem-nO, os vaqueiros levantaram-se todos imediatamente, assim como os sentidos de alguém inconsciente voltam à vida. Cheios de grande júbilo, eles O abraçaram com muita afeição.
Texto
gopyo gopāś ca kaurava
kṛṣṇaṁ sametya labdhehā
āsan śuṣkā nagā api
Sinônimos
yaśodā rohiṇī nandaḥ — Yaśodā, Rohiṇī e Nanda Mahārāja; gopyaḥ — as esposas dos vaqueiros; gopāḥ — os vaqueiros; ca — e; kaurava — ó Parīkṣit, descendente de Kuru; kṛṣṇam — o Senhor Kṛṣṇa; sametya — encontrando; labdha — tendo recuperado; īhāḥ — suas funções conscientes; āsan — elas se tornaram; śuṣkāḥ — secas; nagāḥ — as árvores; api — até mesmo.
Tradução
Tendo recuperado suas funções vitais, Yaśodā, Rohiṇī, Nanda e todos os outros vaqueiros e suas esposas aproximaram-se de Kṛṣṇa. Ó descendente de Kuru, até mesmo as árvores ressequidas voltaram à vida.
Texto
jahāsāsyānubhāva-vit
premṇā tam aṅkam āropya
punaḥ punar udaikṣata
gāvo vṛṣā vatsataryo
lebhire paramāṁ mudam
Sinônimos
rāmaḥ — o Senhor Balarāma; ca — e; acyutam — Kṛṣṇa, a infalível Suprema Personalidade de Deus; āliṅgya — abraçando; jahāsa — riu; asya — dEle; anubhāva-vit — conhecendo bem a onipotência; premṇā — por amor; tam — a Ele; aṅkam — em Seu próprio colo; āropya — erguendo; punaḥ punaḥ — muitas vezes; udaikṣata — olhou para; gāvaḥ — as vacas; vṛṣāḥ — os touros; vatsataryaḥ — as novilhas; lebhire — alcançaram; paramām — o supremo; mudam — prazer.
Tradução
O Senhor Balarāma abraçou Seu infalível irmão e riu, conhecendo bem a extensão do poder de Kṛṣṇa. Devido ao grande sentimento de amor, Ele O colocou em Seu colo e olhou para Ele repetidas vezes. As vacas, touros e novilhas também sentiram o mais sublime prazer.
Texto
guravaḥ sa-kalatrakāḥ
ūcus te kāliya-grasto
diṣṭyā muktas tavātmajaḥ
Sinônimos
nandam — de Nanda Mahārāja; viprāḥ — os brāhmaṇas; samāgatya — aproximando-se; guravaḥ — personalidades respeitáveis; sa-kalatrakāḥ — junto com suas esposas; ūcuḥ — disseram; te — eles; kāliya-grastaḥ — apanhado por Kāliya; diṣṭyā — pela Providência; muktaḥ — liberto; tava — teu; ātma-jaḥ — filho.
Tradução
Todos os brāhmaṇas respeitáveis, junto com suas esposas, adiantaram-se para saudar Nanda Mahārāja e disseram-lhe: “Teu filho estava em poder de Kāliya, mas, pela graça da Providência, agora Ele está livre.”
Texto
kṛṣṇa-nirmukti-hetave
nandaḥ prīta-manā rājan
gāḥ suvarṇaṁ tadādiśat
Sinônimos
dehi — deves dar; dānam — caridade; dvi-jātīnām — aos brāhmaṇas; kṛṣṇa-nirmukti — a segurança de Kṛṣṇa; hetave — por causa de; nandaḥ — Nanda Mahārāja; prīta-manāḥ — satisfeito em sua mente; rājan — ó rei Parīkṣit; gāḥ — vacas; suvarṇam — ouro; tadā — então; ādiśat — deu.
Tradução
Os brāhmaṇas, então, aconselharam Nanda Mahārāja: “Para garantir que teu filho Kṛṣṇa sempre estará livre do perigo, deves dar caridade aos brāhmaṇas.” Então, com a mente satisfeita e muito contente, ó rei, Nanda Mahārāja deu-lhes vacas e ouro de presente.
Texto
naṣṭa-labdha-prajā satī
pariṣvajyāṅkam āropya
mumocāśru-kalāṁ muhuḥ
Sinônimos
yaśodā — mãe Yaśodā; api — e; mahā-bhāgā — a afortunadíssima; naṣṭa — tendo perdido; labdha — e recuperado; prajā — seu filho; satī — a casta senhora; pariṣvajya — abraçando; aṅkam — em seu colo; āropya — levantando; mumoca — derramava; aśru — de lágrimas; kalām — uma torrente; muhuḥ — vezes e mais vezes.
Tradução
A afortunadíssima mãe Yaśodā, tendo perdido seu filho e depois o recuperado, colocou-O em seu colo. A casta senhora derramava constantes torrentes de lágrimas enquanto O abraçava vezes e mais vezes.
Texto
kṣut-tṛḍbhyāṁ śrama-karṣitāḥ
ūṣur vrayaukaso gāvaḥ
kālindyā upakūlataḥ
Sinônimos
tām — aquela; rātrim — noite; tatra — lá; rāja-indra — ó mais excelso dos reis; kṣut-tṛḍbhyām — pela fome e sede; śrama — e pelo cansaço; karṣitāḥ — enfraquecidos; ūṣuḥ — permaneceram; vraja-okasaḥ — o povo de Vṛndāvana; gāvaḥ — e as vacas; kālindyāḥ — do Yamunā; upakūlataḥ — perto da margem.
Tradução
Ó melhor dos reis [Parīkṣit], porque se sentiam muito fracos devido à fome, sede e cansaço, os residentes de Vṛndāvana, bem como as vacas, passaram a noite onde estavam, deitando-se perto da margem do Kālindī.
Comentário
SIGNIFICADO—Śrīla Jīva Gosvāmī salienta que, embora as pessoas estivessem fracas devido à fome e à sede, elas não beberam o leite das vacas que ali estavam, pois temiam que estivesse contaminado pelo veneno da serpente. Os residentes de Vṛndāvana estavam tão exultantes por ter de volta seu amado Kṛṣṇa que não quiseram regressar para casa. Queriam ficar com Kṛṣṇa na margem do Yamunā para poder vê-lO continuamente. Então, decidiram descansar perto da beiro do rio.
Texto
dāvāgniḥ sarvato vrajam
suptaṁ niśītha āvṛtya
pradagdhum upacakrame
Sinônimos
tadā — então; śuci — do verão; vana — na floresta; udbhūtaḥ — erguendo-se; dāva-agniḥ — em um incêndio; sarvataḥ — por todos os lados; vrajam — o povo de Vṛndāvana; suptam — adormecido; niśīthe — no meio da noite; āvṛtya — rodeando; pradagdhum — a queimar; upacakrame — começou.
Tradução
Durante a noite, enquanto todos os moradores da vila de Vṛndāvana estavam adormecidos, irrompeu um grande incêndio dentro da floresta, que se achava ressequida por causa do verão. O fogo cercou os habitantes de Vraja por todos os lados e começou a sufocá-los.
Comentário
SIGNIFICADO—Śrīla Sanātana Gosvāmī e Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura comentam que talvez algum amigo leal de Kāliya tenha assumido a forma de um incêndio na floresta para vingar seu amigo, ou talvez o incêndio tenha sido manifestado por um demônio seguidor de Kaṁsa.
Texto
dahyamānā vrajaukasaḥ
kṛṣṇaṁ yayus te śaraṇaṁ
māyā-manujam īśvaram
Sinônimos
tataḥ — então; utthāya — acordando; sambhrāntāḥ — agitados; dahyamānāḥ — prestes a serem queimados; vraja-okasaḥ — os habitantes de Vraja; kṛṣṇam — a Kṛṣṇa; yayuḥ — foram; te — eles; śaraṇam — para obter abrigo; māyā — por Sua potência; manujam — aparecendo como um ser humano; īśvaram — a Suprema Personalidade de Deus.
Tradução
Em seguida, os habitantes de Vṛndāvana acordaram, extremamente aflitos devido ao grande incêndio que ameaçava queimá-los. Então, eles se refugiaram em Kṛṣṇa, o Senhor Supremo, que parecia um ser humano comum em virtude de Sua potência espiritual.
Comentário
SIGNIFICADO—O śruti, ou os mantras védicos, declaram que svarūpa-bhūtayā nitya-śaktyā māyākhyayā: “A potência eterna do Senhor chamada māyā é inata em Sua forma original.” Logo, dentro do corpo espiritual eterno do Senhor Supremo existe uma potência infinita que, sem esforço, manipula toda a existência de acordo com o desejo onisciente da Verdade Absoluta. Os residentes de Vṛndāvana refugiaram-se em Kṛṣṇa, pensando: “Este abençoado menino com certeza receberá poder de Deus para nos salvar.” Eles lembraram as palavras do sábio Garga Muni, ditas na cerimônia do nascimento do Senhor Kṛṣṇa, anena sarva-durgāṇi yūyam añjas tariṣyatha: “Através de Seu poder, superareis sem dificuldade todos os obstáculos.” (Śrīmad-Bhāgavatam 10.8.16) Portanto, os residentes de Vṛndāvana, que tinham plena fé em Kṛṣṇa, abrigaram-se no Senhor com a esperança de serem salvos da ameaça do iminente desastre representado pelo incêndio da floresta.
Texto
he rāmāmita-vikrama
eṣa ghoratamo vahnis
tāvakān grasate hi naḥ
Sinônimos
kṛṣṇa — ó Kṛṣṇa; kṛṣṇa — ó Kṛṣṇa; mahā-bhāga — ó Senhor de toda a opulência; he rāma — ó Senhor Balarāma, fonte de toda a felicidade; amita-vikrama — Vós, cujo poder é ilimitado; eṣaḥ — este; ghoratamaḥ — terribilíssimo; vahniḥ — incêndio; tāvakān — que somos Vossos; grasate — está devorando; hi — de fato; naḥ — a nós.
Tradução
[Os residentes de Vṛndāvana disseram:] Kṛṣṇa, Kṛṣṇa, ó Senhor de toda opulência! Ó Rāma, possuidor de poder ilimitado! Este incêndio aterrador está prestes a devorar-nos, Vossos devotos!
Texto
kālāgneḥ suhṛdaḥ prabho
na śaknumas tvac-caraṇaṁ
santyaktum akuto-bhayam
Sinônimos
su-dustarāt — do insuperável; naḥ — a nós; svān — Vossos próprios devotos; pāhi — por favor, protegei; kāla-agneḥ — do fogo da morte; suhṛdaḥ — Vossos verdadeiros amigos; prabho — ó mestre supremo; na śaknumaḥ — somos incapazes; tvat-caraṇam — Vossos pés; santyaktum — de abandonar; akutaḥ-bhayam — que afugentam todo o medo.
Tradução
Ó Senhor, somos Vossos verdadeiros amigos e devotos. Por favor, protegei-nos deste insuperável fogo da morte. Jamais poderemos abandonar Vossos pés de lótus, que afugentam todo o medo.
Comentário
SIGNIFICADO—Os residentes de Vṛndāvana disseram a Kṛṣṇa: “Se este incêndio fatal nos exterminar, ficaremos separados de Vossos pés de lótus, e isso é insuportável para nós. Portanto, apenas para que possamos continuar servindo a Vossos pés de lótus, por favor, protegei-nos.”
Texto
nirīkṣya jagad-īśvaraḥ
tam agnim apibat tīvram
ananto ’nanta-śakti-dhṛk
Sinônimos
ittham — desta maneira; sva-jana — de Seus próprios devotos; vaiklavyam — o estado de perturbação; nirīkṣya — vendo; jagat-īśvaraḥ — o Senhor do universo; tam — aquele; agnim — incêndio; apibat — bebeu; tīvram — terrível; anantaḥ — o Senhor ilimitado; ananta-śakti-dhṛk — o possuidor de potências ilimitadas.
Tradução
Vendo Seus devotos tão perturbados, Śrī Kṛṣṇa, o infinito Senhor do universo e possuidor de poder infinito, engoliu, então, o terrível incêndio da floresta.
Comentário
Neste ponto, encerram-se os significados apresentados pelos humildes servos de Sua Divina Graça A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupāda referentes ao décimo canto, décimo sétimo capítulo, do Śrīmad-Bhāgavatam, intitulado “A História de Kāliya”.