Skip to main content

Capítulo Doze

A Encarnação Mohinī-mūrti Confunde o Senhor Śiva

Este capítulo descreve como o senhor Śiva ficou confuso ao ver a bela encarnação Mohinī-mūrti da Suprema Personalidade de Deus e como ele posteriormente voltou à razão. Ao ouvir sobre os passatempos que a Suprema Personalidade de Deus, Hari, realizava apresentando-Se como uma mulher atraente, o senhor Śiva montou em seu touro e foi ver o Senhor. Acompa­nhado de sua esposa, Umā, e de seus servos, os bhūta-gaṇa, ou fan­tasmas, aproximou-se dos pés de lótus do Senhor. O senhor Śiva ofereceu reverências ao Senhor Supremo, reconhecendo-O como o Senhor onipenetrante, a forma universal, o controlador supremo da criação, a Superalma, o lugar que serve de repouso para todos e a completamente independente causa de todas as causas. Assim, ele ofereceu orações, nas quais descrevia o Senhor com toda a veraci­dade. Então, expressou o seu desejo. A Suprema Personalidade de Deus é muito bondosa com os Seus devotos. Portanto, para satisfazer o desejo do Seu devoto, o senhor Śiva, Ele expandiu Sua energia e Se manifestou sob a forma de uma belíssima mulher atraente. Ao ver essa forma, até mesmo o senhor Śiva se deixou cativar. Mais tarde, pela graça do Senhor, ele se controlou. Isso demonstra que, pelo poder da energia externa do Senhor, todos são cativados pela forma feminina presente neste mundo material. Entretanto, é pela graça da Suprema Personalidade de Deus que a influência de māyā pode ser anulada. Isso foi evidenciado pelo senhor Śiva, o mais ele­vado devoto do Senhor. Primeiro, ele ficou cativo, mas, depois, pela graça do Senhor, conseguiu dominar-se. Declara-se a esse respeito que somente um devoto puro pode controlar-se diante da aparência atrativa de māyā. Por outro lado, ao cair prisioneira do aspecto ex­terno de māyā, a entidade viva não pode vencer esse impasse. Depois que foi agraciado pelo Senhor Supremo, o senhor Śiva, juntamente com sua esposa, Bhavānī, e com seus companheiros, os fantasmas, circundou o Senhor. Então, partiu para sua própria morada. Śukadeva Gosvāmī conclui este capítulo descrevendo as qualidades transcendentais de Uttamaśloka, a Suprema Personalidade de Deus, e declarando que o Senhor pode ser glorificado através de nove classes de serviço devocional, começando com śravaṇaṁ kīrtanam.

Texto

śrī-bādarāyaṇir uvāca
vṛṣa-dhvajo niśamyedaṁ
yoṣid-rūpeṇa dānavān
mohayitvā sura-gaṇān
hariḥ somam apāyayat
vṛṣam āruhya giriśaḥ
sarva-bhūta-gaṇair vṛtaḥ
saha devyā yayau draṣṭuṁ
yatrāste madhusūdanaḥ

Sinônimos

śrī-bādarāyaṇiḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; vṛṣa-dhva­jaḥ — o senhor Śiva, que é carregado por um touro; niśamya — ouvindo; idam — esta (notícia); yoṣit-rūpeṇa — assumindo uma forma de mulher; dānavān — os demônios; mohayitvā — encantando; sura-­gaṇān — aos semideuses; hariḥ — a Suprema Personalidade de Deus; somam — néctar; apāyayat — fez beberem; vṛṣam — o touro; āruhya — montando em; giriśaḥ — senhor Śiva; sarva — todos; bhūta-gaṇaiḥ — pelos fantasmas; vṛtaḥ — cercado; saha devyā — com Umā; yayau — foi; draṣṭum — ver; yatra — onde; āste — fica; madhusūdanaḥ — Senhor Viṣṇu.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī disse: A Suprema Personalidade de Deus, Hari, em forma de mulher, cativou os demônios e possibilitou aos semideuses beberem o néctar. Após ouvir sobre esses passatempos, o senhor Śiva, que é carregado por um touro, dirigiu-se ao lugar onde reside Madhusūdana, o Senhor. Acompanhado de sua espo­sa Umā, e cercado pelos seus companheiros, os fantasmas, o senhor Śiva foi até ali para ver o Senhor na forma de uma mulher.

Texto

sabhājito bhagavatā
sādaraṁ somayā bhavaḥ
sūpaviṣṭa uvācedaṁ
pratipūjya smayan harim

Sinônimos

sabhājitaḥ — bem recebido; bhagavatā — pela Suprema Personalidade de Deus, Viṣṇu; sa-ādaram — com grande respeito (como convém ao senhor Śiva); sa-umayā — com Umā; bhavaḥ — senhor Śambhu (senhor Śiva); su-upaviṣṭaḥ — estando confortavelmente sentado; uvāca — disse; idam — isto; pratipūjya — oferecendo respeito; smayan — sorrindo; harim — ao Senhor.

Tradução

A Suprema Personalidade de Deus recebeu o senhor Śiva e Umā com grande respeito, e, após sentar-se confortavelmente, o senhor Śiva prestou ao Senhor a devida adoração e, sorrindo, falou o seguinte.

Texto

śrī-mahādeva uvāca
deva-deva jagad-vyāpiñ
jagad-īśa jagan-maya
sarveṣām api bhāvānāṁ
tvam ātmā hetur īśvaraḥ

Sinônimos

śrī-mahādevaḥ uvāca — o senhor Śiva (Mahādeva) disse; deva-deva — ó melhor semideus entre os semideuses; jagat-vyāpin — ó Senhor oni­penetrante; jagat-īśa — ó mestre do universo; jagat-maya — ó meu Senhor, que, através de Vossa energia, Vos transformais nesta criação; sarveṣām api — todas as espécies de; bhāvānām — situações; tvam — Vós; ātmā — a força motriz; hetuḥ — devido a isto; īśvaraḥ — o Senhor Supremo, Parameśvara.

Tradução

O Senhor Mahādeva disse: Ó principal semideus entre os semideu­ses, ó Senhor onipenetrante, mestre do universo, através de Vossa energia Vos transformais na criação. Sois a raiz e a causa eficiente de tudo. Não sois material. Na verdade, sois a Superalma ou a suprema força viva de tudo. Portanto, sois Parameśvara, o supremo controlador de todos os controladores.

Comentário

SIGNIFICADO—Viṣṇu, a Suprema Personalidade de Deus, reside no mundo material como o sattva-guṇa-avatāra. O senhor Śiva é o tamo-guṇa­-avatāra, e o senhor Brahmā, o rajo-guṇa-avatāra, mas, embora esteja incluído entre eles, o Senhor Viṣṇu pertence a outra categoria. O Senhor Viṣṇu é deva-deva, o principal de todos os semideuses. Uma vez que o senhor Śiva está neste mundo material, a energia do Supremo Senhor Viṣṇu inclui o senhor Śiva. O Senhor Viṣṇu, portanto, é chamado jagad-vyāpī, “o Senhor onipenetrante”. Às vezes, o senhor Śiva é chamado Maheśvara, em consequência do que as pessoas concluem que o senhor Śiva é tudo. Mas aqui o senhor Śiva trata o Senhor Viṣṇu por Jagadīśa, “o mestre do universo”. Às vezes, o senhor Śiva é chamado Viśveśvara, mas aqui ele se dirige ao Senhor Viṣṇu como Jaganmaya, indicando que até mesmo Viśveśvara está sob o controle do Senhor Viṣṇu. O Senhor Viṣṇu é o mestre do mundo espiritual, mas Ele também controla o mundo material, como se afirma na Bhagavad-gītā (mayādhyakṣeṇa prakṛtiḥ sūyate sacarācaram). O senhor Brahmā e o senhor Śiva às vezes são também chamados de īśvara, mas o īśvara supremo é o Senhor Viṣṇu, o Senhor Kṛṣṇa. Como se afirma na Brahma­-saṁhitā, īśvaraḥ paramaḥ kṛṣṇaḥ: o Senhor Supremo é Kṛṣṇa, o Senhor Viṣṇu. Tudo o que tem existência funciona em perfeita ordem devido ao Senhor Viṣṇu. Aṇḍāntara-stha-paramāṇu-cayāntara-stham. Mesmo paramāṇu, os pequeninos átomos, funcionam devido ao fato de o Senhor Viṣṇu estar presente dentro deles.

Texto

ādy-antāv asya yan madhyam
idam anyad ahaṁ bahiḥ
yato ’vyayasya naitāni
tat satyaṁ brahma cid bhavān

Sinônimos

ādi — o começo; antau — e o fim; asya — deste cosmo manifesto ou de qualquer objeto material ou visível; yat — aquilo que; madhyam — entre o começo e o fim, a manutenção; idam — esta manifestação cósmica; anyat — algo diferente de Vós; aham — o conceito mental errôneo; bahiḥ — alheias a Vós; yataḥ — por causa de; avyayasya — o inexaurível; na — não; etāni — todas essas diferenças; tat — esta; satyam — a Verdade Absoluta; brahma — o Supremo; cit — espiritual; bhavān — Vossa Onipotência.

Tradução

O manifesto, o imanifesto, o falso ego, o começo, a manutenção e a aniquilação desta manifestação cósmica, todos provêm de Vós, ó Suprema Personalidade de Deus. Porém, como sois a Verdade Absoluta, a suprema alma espiritual absoluta, o Brahman Supremo, mudanças tais como nascimento, morte e subsistência não existem em Vós.

Comentário

SIGNIFICADO—De acordo com os mantras védicos, yato vā imāni bhūtāni jāyante: tudo emana da Suprema Personalidade de Deus. Como o próprio Senhor afirma na Bhagavad-gītā (7.4):

bhūmir āpo ’nalo vāyuḥ
khaṁ mano buddhir eva ca
ahaṅkāra itīyaṁ me
bhinnā prakṛtir aṣṭadhā

“Terra, água, fogo, ar, éter, mente, inteligência e falso ego – juntos, todos estes oito elementos formam Minhas energias materiais separadas.” Em outras palavras, os ingredientes da manifestação cósmica também se incorporam na energia da Suprema Personalidade de Deus. Entretanto, isso não significa que, como os ingredientes provêm dEle, Ele passa a ser incompleto. Pūrṇasya pūrṇam ādāya pūrṇam evāvaśiṣyate: “Porque Ele é o todo completo, muito embora tantas unidades completas emanem dEle, Ele Se mantém em equilíbrio com­pleto.” Logo, o Senhor é chamado avyaya, inexaurível. Sem aceitar a Verdade Absoluta como acintya-bhedābheda, simultaneamente igual e diferente, ninguém pode entender com clareza a Verdade Absoluta. O Senhor é a raiz de tudo. Aham ādir hi devānām: Ele é a causa da qual se originam todos os devas, ou semideuses. Ahaṁ sarvasya prabhavaḥ: tudo emana dEle. Em todos os casos – nomi­nativo, acusativo, positivo, negativo e assim por diante –, tudo o que possamos conceber em toda essa manifestação cósmica é de fato o Senhor Supremo. Para Ele, não existem distinções tais como “isto é meu, e aquilo pertence a outrem”, porque Ele é tudo. Portanto, Ele é chamado avyaya – imutável e inexaurível. Como é avyaya, o Senhor Supremo é a Verdade Absoluta, o Brahman Supremo inteiramente espiritual.

Texto

tavaiva caraṇāmbhojaṁ
śreyas-kāmā nirāśiṣaḥ
visṛjyobhayataḥ saṅgaṁ
munayaḥ samupāsate

Sinônimos

tava — Vossos; eva — na verdade; caraṇa-ambhojam — pés de lótus; śreyaḥ-kāmāḥ — pessoas que desejam o êxito máximo, a meta última da vida; nirāśiṣaḥ — sem desejo material; visṛjya — abandonando; ubhayataḥ — nesta e na próxima vida; saṅgam — apego; munayaḥ — grandes sábios; samupāsate — adoram.

Tradução

Os devotos puros ou as grandes pessoas santas que desejam alcançar a meta máxima da vida e que estão completamente livres de todos os desejos materiais, através dos quais se procura o gozo dos senti­dos, ocupam-se constantemente no transcendental serviço aos Vossos pés de lótus.

Comentário

SIGNIFICADO—Está no mundo material todo aquele que pensa: “Eu sou este corpo e tudo o que se refere a este meu corpo é meu.” Ato gṛha-kṣetra-sutāpta-vittair janasya moho ’yam ahaṁ mameti. Essa é uma carac­terística da vida material. No conceito de vida material, pensa-se: “Esta é minha casa, esta é minha terra, esta é minha família, este é o meu Estado” e assim por diante. Mas os munayaḥ, as pessoas santas que seguem os passos de Nārada Muni, simplesmente se ocupam no transcendental serviço amoroso ao Senhor, sem nenhum desejo de gozo dos seus sentidos. Anyābhilāṣitā-śūnyaṁ jñāna-karmādy-anāvṛtam. Seja nesta vida, seja na próxima, o único interesse desses devotos santos é servir à Suprema Personalidade de Deus. Assim, eles também são absolutos porque não têm outros desejos. Estando livres da dualidade inerente ao desejo material, eles são chamados śreyas-kāmāḥ. Em outras palavras, eles não estão envolvidos em dharma (religiosidade), artha (desenvolvimento econômico) ou kāma (gozo dos sentidos). O único interesse desses devotos é mokṣa, a liberação. Esse não é o mokṣa dos filósofos māyāvādīs, através do qual alguém busca tornar-se uno com o Supremo. Caitanya Mahā­prabhu explicou que o verdadeiro mokṣa significa refugiar-se nos pés de lótus da Personalidade de Deus. O Senhor elucidou muito bem esse fato enquanto instruía Sārvabhauma Bhaṭṭācārya. Sārvabhauma Bhaṭṭācārya queria corrigir a palavra mukti-pade encontrada no Śrīmad-Bhāgavatam, mas Caitanya Mahāprabhu informou-o de que não era preciso retificar nenhuma palavra do Śrīmad-Bhāgavatam. Ele esclareceu que mukti-pade refere-se aos pés de lótus da Suprema Personalidade de Deus, Viṣṇu, que oferece mukti e, portanto, é cha­mado Mukunda. O devoto puro não está preocupado com afazeres materiais. Ele não está interessado em religiosidade, desenvolvimento econômico ou gozo dos sentidos. Tudo o que ele quer é servir aos pés de lótus do Senhor.

Texto

tvaṁ brahma pūrṇam amṛtaṁ viguṇaṁ viśokam
ānanda-mātram avikāram ananyad anyat
viśvasya hetur udaya-sthiti-saṁyamānām
ātmeśvaraś ca tad-apekṣatayānapekṣaḥ

Sinônimos

tvam — Vossa Onipotência; brahma — a Verdade Absoluta onipenetrante; pūrṇam — inteiramente completo; amṛtam — que jamais é aniquilado; viguṇam — situado espiritualmente, livre dos modos da natureza material; viśokam — sem lamentação; ānanda-mātram — sempre em bem-aventurança transcendental; avikāram — imutável; ananyat — separado de tudo; anyat — entretanto, sois tudo; viśvasya — da manifestação cósmica; hetuḥ — a causa; udaya — do começo; sthiti — ma­nutenção; saṁyamānām — e de todos os administradores que controlam os vários departamentos da manifestação cósmica; ātma-īśvaraḥ — a Superalma que dá orientação a todos; ca — também; tat-apekṣa­tayā — todos dependem de Vós; anapekṣaḥ — sempre plenamente in­dependente.

Tradução

Meu Senhor, sois o Brahman Supremo, completo em tudo. Sendo inteiramente espiritual, sois eterno, livre dos modos da natureza ma­terial e cheio de bem-aventurança transcendental. Na verdade, para Vós não há possibilidade de lamentação. Como sois a causa supre­ma, a causa de todas as causas, sem Vós nada pode existir. Todavia, em uma relação de causa e efeito, somos diferentes de Vós, pois, em certo sentido, a causa e o efeito são diferentes. Sois a causa que ori­gina a criação, manifestação e aniquilação, e concedeis bênçãos a todas as entidades vivas. Para poderem obter o resultado de suas atividades, todos dependem de Vós, mas, quanto a Vós, sois sempre independente.

Comentário

SIGNIFICADO—Na Bhagavad-gītā (9.4), a Suprema Personalidade de Deus diz:

mayā tatam idaṁ sarvaṁ
jagad avyakta-mūrtinā
mat-sthāni sarva-bhūtāni
na cāhaṁ teṣv avasthitaḥ

“Sob Minha forma imanifesta, Eu penetro todo este universo. Todos os seres estão em Mim, mas Eu não estou neles.” Desse modo, ex­plica-se igualdade e diferença simultâneas, e essa filosofia é conhecida como acintya-bhedābheda. Tudo é o Brahman Supremo, a Perso­nalidade de Deus, mas a Pessoa Suprema é diferente de tudo. Na verdade, como está situado à parte de tudo o que é mate­rial, o Senhor é o Brahman Supremo, a causa suprema, o contro­lador supremo. Īśvaraḥ paramaḥ kṛṣṇaḥ sac-cid-ānanda-vigrahaḥ. O Senhor é a causa suprema, e Sua forma nada tem a ver com os modos da natureza material. Segundo a oração oferecida pelo devo­to: “Assim como Vosso devoto está completamente livre de todos os desejos, Vossa Onipotência também está completamente livre de desejos. Sois plenamente independente. Embora todas as entida­des vivas se ocupem a Vosso serviço, não dependeis do serviço de ninguém. Embora, ao criardes este mundo material, o tenhais tornado completo, tudo depende de Vossa sanção. Como se afirma na Bhagavad-gītā, mattaḥ smṛtir jñānam apohanaṁ ca: a lembran­ça, o conhecimento e o esquecimento vêm de Vós. Embora nada possa ser feito de modo independente, agis independentemente do serviço prestado por Vossos servos. Para alcançar a liberação, as entidades vivas dependem de Vossa misericórdia, mas, quando quereis conceder-lhes a liberação, não dependeis de nenhuma outra pessoa. Na verdade, por Vossa misericórdia espontânea, podeis libertar qualquer pessoa. Aqueles que recebem Vossa misericórdia são chamados kṛpā-siddhas. Para alguém alcançar a plataforma de perfeição, precisa de muitas e muitas vidas (bahūnāṁ janmanām ante jñānavān māṁ prapadyate). Entretanto, mesmo sem se submeter a severas austeridades, a pessoa que recebe Vossa misericórdia pode alcançar a perfeição. O serviço devocional deve ser imotivado e livre de contratempos (ahaituky apratihatā yayātmā suprasīdati). Esta posição é definida como nirā­śiṣaḥ, ou não ficar aguardando resultados. O devoto puro oferece-Vos continuamente transcendental serviço amoroso, mas, mesmo assim, sem depender do serviço dela, podeis oferecer misericórdia a qualquer pessoa.”

Texto

ekas tvam eva sad asad dvayam advayaṁ ca
svarṇaṁ kṛtākṛtam iveha na vastu-bhedaḥ
ajñānatas tvayi janair vihito vikalpo
yasmād guṇa-vyatikaro nirupādhikasya

Sinônimos

eka — o único; tvam — Vossa Onipotência; eva — na verdade; sat — que está existindo, como o efeito; asat — que não é existente, como a causa; dvayam — ambos; advayam — sem dualidade; ca — e; svarṇam — ouro; kṛta — manufaturado em diferentes formas; ākṛtam — a fonte que origina o ouro (a mina de ouro); iva — como; iha — neste mundo; na — não; vastu-bhedaḥ — diferença de substância; ajñānataḥ — somen­te devido à ignorância; tvayi — a Vós; janaiḥ — pela massa geral de pessoas; vihitaḥ — deve ser feita; vikalpaḥ — diferenciação; yasmāt — por causa de; guṇa-vyatikaraḥ — livre das diferenças criadas pelos modos da natureza material; nirupādhikasya — sem nenhuma designação material.

Tradução

Meu querido Senhor, unicamente Vossa Onipotência é a causa e o efeito. Portanto, embora pareçais ser dois, sois o uno absoluto. Assim como não há diferença entre o ouro de um adorno áureo e o ouro da mina, não há diferença entre causa e efeito; ambos são a mesma coisa. É somente devido à ignorância que as pessoas inven­tam diferenças e dualidades. Sois livre da contaminação material, e, uma vez que todo o cosmo é causado por Vós e não pode existir sem Vós, ele é um efeito de Vossas qualidades transcendentais. Por­tanto, o conceito segundo o qual o Brahman é a verdade e o mundo é falso não pode vigorar.

Comentário

SIGNIFICADO—Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura diz que as entidades vivas são representações da potência marginal da Suprema Personalidade de Deus, ao passo que os vários corpos aceitos pelas entidades vivas são produtos da energia material. Assim, o corpo é considerado material, e a alma, espiritual. A origem de ambos, entretanto, é a mesma Suprema Personalidade de Deus. Como o Senhor explica na Bhagavad-gītā (7.4-5):

bhūmir āpo ’nalo vāyuḥ
khaṁ mano buddhir eva ca
ahaṅkāra itīyaṁ me
bhinnā prakṛtir aṣṭadhā
apareyam itas tv anyāṁ
prakṛtiṁ viddhi me parām
jīva-bhūtāṁ mahā-bāho
yayedaṁ dhāryate jagat

“Terra, água, fogo, ar, éter, mente, inteligência e falso ego – juntos, todos estes oito elementos formam Minhas energias materiais separadas. Além dessas, ó Arjuna de braços poderosos, existe uma outra energia, a Minha energia superior, que consiste das entidades vivas que exploram os recursos desta natureza material inferior.” Logo, tanto a matéria quanto as entidades vivas são mani­festações da energia do Senhor Supremo. Uma vez que a energia e o energético não são diferentes e uma vez que as energias material e marginal são energias do energético supremo, o Senhor Supremo, em última análise, a Suprema Personalidade de Deus é tudo. Para ilustrar, pode-se apresentar o exemplo do ouro bruto e do ouro que foi moldado em vários adornos. Um brinco de ouro e o ouro da mina são diferentes apenas como causa e efeito; a não ser por isso, eles são a mesma coisa. O Vedānta-sūtra descreve que o Brahman é a causa de tudo. Janmādy asya yataḥ. Tudo nasce do Brahman Supremo, do qual tudo emana como diferentes energias. Portanto, nenhuma dessas energias deve ser considerada falsa. A posição tomada pelos māyāvādīs na qual eles fazem distinção entre o Brahman e māyā deve-se apenas à ignorância.

Em seu Bhāgavata-candra-candrikā, Śrīmad Vīrarāghava Ācārya descreve a filosofia vaiṣṇava da seguinte maneira. A manifestação cósmica é descrita como sat e asat, como cit e acit. A matéria é acit, e a força viva é cit, mas a sua origem é a Suprema Personalidade de Deus, em quem não há diferença entre matéria e espírito. De acordo com este conceito, a manifestação cósmica, que consiste em matéria e espírito, não é diferente da Suprema Personalidade de Deus. Idaṁ hi viśvaṁ bhagavān ivetaraḥ: “Esta manifestação cósmica também é a Suprema Personalidade de Deus, embora pareça diferente dEle.” Na Bhagavad-gītā (9.4), o Senhor diz:

mayā tatam idaṁ sarvaṁ
jagad avyakta-mūrtinā
mat-sthāni sarva-bhūtāni
na cāhaṁ teṣv avasthitaḥ

“Sob Minha forma imanifesta, Eu penetro todo este universo. Todos os seres estão em Mim, mas Eu não estou neles.” Por conseguin­te, embora alguém talvez diga que a Pessoa Suprema é diferente da manifestação cósmica, na verdade, Ele não o é. O Senhor diz que mayā tatam idaṁ sarvam: “Em Meu aspecto impessoal, espalho­-Me por todo o mundo.” Portanto, este mundo não é diferente dEle. Há uma diferença de nome apenas. Por exemplo, quer façamos referên­cias a brincos de ouro, pulseiras de ouro ou colares de ouro, em úl­tima análise, todos eles são ouro. De modo semelhante, todas as diferentes manifestações de matéria e espírito são, em última análi­se, unas com a Suprema Personalidade de Deus. Ekam evādvitīyaṁ brahma. Esta é a versão védica (Chāndogya Upaniṣad 6.2.1). Existe unidade porque tudo emana do Brahman Supremo. O exemplo já mencionado é que não há diferença entre um brinco de ouro e o ouro como ele é encontrado na mina. Entretanto, devido ao conceito māyāvāda, os filósofos vaiśeṣikas criam diferenças. Eles dizem que brahma satyaṁ jagan mithyā: “A Verdade Absoluta é real, e a manifestação cósmica é falsa.” Mas por que o jagat deveria ser considerado mithyā? O jagat é uma emanação do Brahman. Logo, o jagat também é verdadeiro.

Portanto, os vaiṣṇavas não consideram o jagat como mithyā, senão que veem tudo como uma realidade relacionada com a Suprema Personalidade de Deus.

anāsaktasya viṣayān
yathārham upayuñjataḥ
nirbandhaḥ kṛṣṇa-sambandhe
yuktaṁ vairāgyam ucyate
prāpañcikatayā buddhyā
hari-sambandhi-vastunaḥ
mumukṣubhiḥ parityāgo
vairāgyaṁ phalgu kathyate

“Todos os objetos devem ser aceitos para o serviço ao Senhor e não para o gozo dos sentidos de alguém. Aquele que aceita algo sem apego porque entende que isso está relacionado com Kṛṣṇa, estabe­lece-se na renúncia chamada yuktaṁ vairāgyam. Tudo o que é favo­rável à prestação de serviço ao Senhor deve ser bem acolhido e não deve ser rejeitado como um artigo material.” (Bhakti-rasāmṛta-sindhu 1.2.255-256) O jagat não deve ser rejeitado como mithyā. Ele é ver­dade, e a verdade é percebida por aquele que ocupa tudo no serviço ao Senhor. Uma flor que é aceita para o gozo dos sentidos é mate­rial, mas, quando um devoto oferece a mesma flor à Suprema Perso­nalidade de Deus, ela é espiritual. O alimento obtido e preparado para si próprio é material, ao passo que o alimento cozido para o Senhor Supremo é prasāda espiritual. É preciso apenas ter percepção. Na verdade, tudo é dado pela Suprema Personalidade de Deus e, portanto, tudo é espiritual, mas aqueles que não são avançados e não têm o devido conhecimento fazem distinções, visto que se subme­tem às interações dos três modos da natureza material. Com relação a isso, Śrīla Jīva Gosvāmī diz que, embora o Sol seja a única luz, o brilho solar, que se desdobra em sete cores, e a escuridão, que é a ausência do brilho solar, não são diferentes do Sol, pois, sem a existência deste, tais diferenciações não podem existir. Talvez haja uma nomenclatura bastante diversificada devido às diferentes condi­ções, mas todas essas definições acabam sendo o Sol. Portanto, os Purāṇas dizem:

eka-deśa-sthitasyāgner
jyotsnā vistāriṇī yathā
parasya brahmaṇaḥ śaktis
tathedam akhilaṁ jagat

“Assim como a luz do fogo, que está situado em determinado lugar, espalha-se por toda parte, as energias da Suprema Personalidade de Deus, Parabrahman, espalham-se por todo este universo.” (Viṣṇu Purāṇa 1.22.53) No plano material, podemos perceber diretamen­te o brilho solar espalhando-se de acordo com diferentes nomes e atividades, mas, em última análise, o Sol é apenas um. Igualmente, sarvaṁ khalv idaṁ brahma: tudo é uma expansão do Brahman Supremo. Portanto, o Senhor Supremo é tudo, Ele é único e nEle não há cisão. Nada existe separado da Suprema Personalidade de Deus.

Texto

tvāṁ brahma kecid avayanty uta dharmam eke
eke paraṁ sad-asatoḥ puruṣaṁ pareśam
anye ’vayanti nava-śakti-yutaṁ paraṁ tvāṁ
kecin mahā-puruṣam avyayam ātma-tantram

Sinônimos

tvām — a Vós; brahma — a verdade suprema, a Verdade Absoluta, Brahman; kecit — algumas pessoas, a saber, o grupo de māyāvādīs conhecidos como vedantistas; avayanti — consideram; uta — decerto; dharmam — religião; eke — alguns outros; eke — alguns outros; param — transcendental; sat-asatoḥ — tanto à causa quanto ao efeito; puruṣam — ­a Pessoa Suprema; pareśam — o controlador supremo; anye — outros; avayanti — descrevem; nava-śakti-yutam — dotado com nove potências; param — transcendentais; tvām — a Vós; kecit — alguns; mahā­-puruṣam — a Suprema Personalidade de Deus; avyayam — sem perda de energia; ātma-tantram — supremamente independente.

Tradução

Aqueles que são conhecidos como vedantistas impersonalistas con­sideram-Vos o Brahman impessoal. Outros, conhecidos como filó­sofos mīmāṁsakas, consideram-Vos como a religião. Os filósofos do sāṅkhya consideram-Vos como a pessoa transcendental que está além de prakṛti e puruṣa e que controla até mesmo os semideuses. Os seguidores dos códigos do serviço devocional conhecidos como Pañcarātras consideram-Vos como sendo dotado de nove potências diferentes. E os filósofos patañjalas, os seguidores de Patañjali Muni, consideram-Vos como a suprema e independente Personalidade de Deus, à qual ninguém é igual ou superior.

Texto

nāhaṁ parāyur ṛṣayo na marīci-mukhyā
jānanti yad-viracitaṁ khalu sattva-sargāḥ
yan-māyayā muṣita-cetasa īśa daitya-
martyādayaḥ kim uta śaśvad-abhadra-vṛttāḥ

Sinônimos

na — nem; aham — eu; para-āyuḥ — aquela personalidade que vive milhões e milhões de anos (senhor Brahmā); ṛṣayaḥ — os sete ṛṣis dos sete planetas; na — nem; marīci-mukhyāḥ — encabeçados por Marīci Ṛṣi; jānanti — conhecemos; yat — por quem (o Senhor Supremo); viracitam — este universo, que foi criado; khalu — na verdade; sat­tva-sargāḥ — embora nascidos no modo da bondade material; yat­-māyayā — pela influência de cuja energia; muṣita-cetasaḥ — seus corações são confundidos; īśa — ó meu Senhor; daitya — os demônios; martya­-ādayaḥ — os seres humanos e outros; kim uta — o que falar de; śaśvat — sempre; abhadra-vṛttāḥ — influenciados pelas qualidades inferiores da natureza material.

Tradução

Ó meu Senhor, eu, que sou considerado o melhor dos semideuses, e o senhor Brahmā e os grandes ṛṣis, encabeçados por Marīci, nascemos do modo da bondade. Entretanto, estamos desorientados por Vossa energia ilusória e não podemos entender o que é esta criação. Neste caso, o que dizer de outros indivíduos, tais como os demônios e seres humanos, que estão nos modos inferiores da natureza mate­rial [rajo-guṇa e tamo-guṇa]? Como eles conseguirão conhecer-Vos?

Comentário

SIGNIFICADO—Falando francamente, nem mesmo aqueles situados no modo da bondade material podem entender a posição da Suprema Personalidade de Deus. O que dizer, então, daqueles que estão situados em rajo-guṇa e tamo-guṇa, as qualidades básicas da natureza material? Como podemos sequer imaginar a Suprema Personalidade de Deus? Existem muitos filósofos tentando entender a Verdade Absoluta, mas, como estão situados nas qualidades inferiores da natureza material e são viciados em tantos maus hábitos, tais como beber, comer carne, fazer sexo ilícito e participar de jogos de azar, como podem conceber a Suprema Personalidade de Deus? Isso lhes é impossível. Para os dias atuais, o pāñcarātrikī-vidhi, como enunciado por Nārada Muni, é a única esperança. Portanto, Śrīla Rūpa Gosvāmī cita o seguinte verso do Brahma-yāmala:

śruti-smṛti-purāṇādi-
pañcarātra-vidhiṁ vinā
aikāntikī harer bhaktir
utpātāyaiva kalpate

“O serviço devocional ao Senhor que ignora os textos védicos autorizados, tais como as Upaniṣads, os Purāṇas e o Nārada-pañcarātra, é uma simples e inútil perturbação na sociedade.” (Bhakti-rasāmṛta-sindhu 1.2.101) Aqueles que são muito avançados em conhecimento e estão situados no modo da bondade seguem as instruções védicas contidas no śruti e no smṛti e em outras escrituras religiosas, incluindo o pāñcarātrikī-vidhi. Quem não adota este processo para entender a Suprema Personalidade de Deus acaba criando apenas distúrbios. Nesta era de Kali, muitos gurus despontaram e, como não aludem ao śruti-smṛti-purāṇādi-pāñcarātrika-vidhi, causam grande perturbação no mundo no que diz respeito às pessoas poderem compreender a Verdade Absoluta. Entretanto, aqueles que estão sob a orientação de um mestre espiritual qualificado e seguem o pāñcarātrikī-vidhi podem entender a Verdade Absoluta. Afirma-se que pañcarātrasya kṛtsnasya vaktā tu bhagavān svayam: o sistema pañcarātra é falado pela Suprema Personalidade de Deus, assim como a Bhagavad-gītā. Vāsudeva-śaraṇā vidur añjasaiva: apenas aquele que se refugiou nos pés de lótus de Vāsudeva pode entender a verdade.     

bahūnāṁ janmanām ante
jñānavān māṁ prapadyate
vāsudevaḥ sarvam iti
sa mahātmā sudurlabhaḥ

“Após muitos nascimentos e mortes, aquele que tem verdadeiro conhecimento rende-se a Mim, sabendo que sou a causa de todas as causas e de tudo o que existe. É muito raro encontrar semelhante grande alma.” (Bhagavad-gītā 7.19) Somente aqueles que se renderam aos pés de lótus de Vāsudeva podem entender a Verdade Absoluta.

vāsudeve bhagavati
bhakti-yogaḥ prayojitaḥ
janayaty āśu vairāgyaṁ
jñānaṁ ca yad ahaitukam

“Aquele que presta serviço devocional à Personalidade de Deus, Śrī Kṛṣṇa, imediatamente adquire conhecimento sem causa e desapego do mundo.” (Śrīmad-Bhāgavatam 1.2.7) Portanto, Vāsudeva, Bhagavān Śrī Kṛṣṇa, ensina pessoalmente na Bhagavad-gītā (18.66):

sarva-dharmān parityajya
mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja

“Abandona todas as variedades de religião e simplesmente rende-te a Mim.”

bhaktyā mām abhijānāti
yāvān yaś cāsmi tattvataḥ

“É unicamente através do serviço devocional que alguém pode en­tender a Suprema Personalidade de Deus como Ele é.” (Bhagavad-gītā 18.55) Se a Suprema Personalidade de Deus não é inteiramente compreen­dido nem mesmo pelo senhor Śiva ou pelo senhor Brahmā, então, muito mais difícil é que os outros O compreendam – mas Ele pode ser entendido através do processo de bhakti-yoga.

mayy āsakta-manāḥ pārtha
yogaṁ yuñjan mad-āśrayaḥ
asaṁśayaṁ samagraṁ māṁ
yathā jñāsyasi tac chṛṇu

Se, através do simples processo de ouvir Vāsudeva falar sobre Si mesmo, alguém pratica bhakti-yoga refugiando-se em Vāsudeva, Kṛṣṇa, pode entender tudo sobre Ele. Na verdade, pode entendê-lO perfeitamente (samagram).

Texto

sa tvaṁ samīhitam adaḥ sthiti-janma-nāśaṁ
bhūtehitaṁ ca jagato bhava-bandha-mokṣau
vāyur yathā viśati khaṁ ca carācarākhyaṁ
sarvaṁ tad-ātmakatayāvagamo ’varuntse

Sinônimos

saḥ — Vossa Onipotência; tvam — a Suprema Personalidade de Deus; samīhitam — que foi criada (por Vós); adaḥ — desta manifesta­ção cósmica material; sthiti-janma-nāśam — criação, manutenção e aniquilação; bhūta — das entidades vivas; īhitam ca — e as diferentes atividades ou esforços; jagataḥ — de todo o mundo; bhava-bandha-mokṣau — enredando-se nas complicações materiais ou libertando-se delas; vāyuḥ — o ar; yathā — como; viśati — entra; kham — no vasto firmamento; ca — e; cara-acara-ākhyam — e tudo o que é móvel e inerte; sarvam — tudo; tat — isto; ātmakatayā — devido à Vossa presença; avagamaḥ — tudo é conhecido por Vós; avaruntse — sois onipenetrante e, portanto, conheceis tudo.

Tradução

Meu Senhor, sois o conhecimento supremo personificado. Conhe­ceis tudo sobre esta criação e seu começo, manutenção e aniquilação, e conheceis todas as atividades empreendidas pelas entidades vivas, mediante as quais elas ou se enredam neste mundo material ou se libertam dele. Assim como o ar entra no vasto firmamento e em todos os corpos de todas as entidades móveis e inertes, Vós estais presente em toda parte e, portanto, sois o conhecedor de tudo.

Comentário

SIGNIFICADO—Como se afirma na Brahma-saṁhitā:

eko ’py asau racayituṁ jagad-aṇḍa-koṭiṁ
yac-chaktir asti jagad-aṇḍa-cayā yad-antaḥ
aṇḍāntara-stha-paramāṇu-cayāntara-sthaṁ
govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi

“Adoro Govinda, a Personalidade de Deus, que, mediante uma de Suas porções plenárias, adentra-Se na existência de todo o universo e de toda partícula atômica e com isto manifesta ilimitadamente através da criação material Sua energia infinita.” (Brahma-saṁhitā 5.35)

ānanda-cinmaya-rasa-pratibhāvitābhis
tābhir ya eva nija-rūpatayā kalābhiḥ
goloka eva nivasaty akhilātma-bhūto
govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi

“Adoro Govinda, o Senhor primordial, que, em Seu próprio domí­nio, Goloka, reside com Rādhā, a qual, assemelhando-Se à própria figura espiritual do Senhor, corporifica a potência extática [hlādinī]. Acompanham-nOs as confidentes dEla, as quais personificam extensões da forma corpórea de Rādhā e estão imbuídas e impregnadas de rasa espiritual eterna e bem-aventurada.” (Brahma-saṁhitā 5.37)

Embora esteja sempre presente em Sua morada (goloka eva ni­vasati), Govinda também está presente em toda parte. Nada Lhe é desconhecido, e nada pode ficar escondido dEle. Na analogia aqui formulada, compara-se o Senhor ao ar, que é diferente de tudo embora esteja no vasto firmamento e dentro de todos os corpos.

Texto

avatārā mayā dṛṣṭā
ramamāṇasya te guṇaiḥ
so ’haṁ tad draṣṭum icchāmi
yat te yoṣid-vapur dhṛtam

Sinônimos

avatārāḥ — encarnações; mayā — por mim; dṛṣṭāḥ — foram vistas; ramamāṇasya — enquanto demonstrais Vossos vários passatempos; te — Vossas; guṇaiḥ — pelas manifestações das qualidades transcendentais; saḥ — senhor Śiva; aham — eu; tat — essa encarnação; draṣṭum icchāmi — desejo ver; yat — a qual; te — Vossa; yoṣit-vapuḥ — um corpo de mulher; dhṛtam — foi aceito.

Tradução

Meu Senhor, vi todas as espécies de encarnações que manifestastes através de Vossas qualidades transcendentais, e agora que aparecestes como uma bela mocinha, desejo ver essa forma de Vossa Onipotência.

Comentário

SIGNIFICADO—Quando o senhor Śiva se aproximou do Senhor Viṣṇu, o Senhor Viṣṇu perguntou-lhe por que ele fora procurá-lO. Agora, o senhor Śiva revela o seu desejo. Ele queria ver a recente encarnação de Mohinī-mūrti, que o Senhor Viṣṇu assumira para distribuir o néctar surgido a partir da batedura do Oceano de Leite.

Texto

yena sammohitā daityāḥ
pāyitāś cāmṛtaṁ surāḥ
tad didṛkṣava āyātāḥ
paraṁ kautūhalaṁ hi naḥ

Sinônimos

yena — por essa encarnação; sammohitāḥ — ficaram cativados; daityāḥ — os demônios; pāyitāḥ — foram alimentados; ca — também; amṛtam — com néctar; surāḥ — os semideuses; tat — essa forma; didṛk­ṣavaḥ — desejando ver; āyātāḥ — viemos até aqui; param — muito; kautūhalam — grande ansiedade; hi — na verdade; naḥ — nossa.

Tradução

Meu Senhor, viemos aqui porque desejávamos ver a forma que Vossa Onipotência mostrou aos demônios para cativá-los completa­mente e, dessa maneira, possibilitar aos semideuses beberem o néctar. Estou muito ansioso para ver essa forma.

Texto

śrī-śuka uvāca
evam abhyarthito viṣṇur
bhagavān śūla-pāṇinā
prahasya bhāva-gambhīraṁ
giriśaṁ pratyabhāṣata

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; evam — dessa maneira; abhyarthitaḥ — sendo solicitado; viṣṇuḥ bhagavān — o Senhor Viṣṇu, a Suprema Personalidade de Deus; śūla-pāṇinā — pelo senhor Śiva, que porta um tridente em sua mão; prahasya — rindo; bhāva­gambhīram — com muita gravidade; giriśam — ao senhor Śiva; pratya­bhāṣata — respondeu.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī disse: Ao receber este pedido do senhor Śiva, que porta um tridente em sua mão, o Senhor Viṣṇu sorriu com gravidade e dirigiu ao senhor Śiva a seguinte resposta.

Comentário

SIGNIFICADO—A Suprema Personalidade de Deus, Viṣṇu, é conhecido como Yo­geśvara. Yatra yogeśvaraḥ kṛṣṇaḥ. Os yogīs místicos querem alcan­çar poderes praticando o sistema de yoga, mas Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, é conhecido como o Supremo Senhor de todo o poder místico. O senhor Śiva queria ver Mohinī-mūrti, que estava cativando o mundo inteiro, e o Senhor Viṣṇu pensava seriamente em como também cativar o senhor Śiva. Portanto, utiliza-se aqui a pa­lavra bhāva-gambhīram. A energia material ilusória é representada por Durgādevī, a esposa de Girīśa, ou o senhor Śiva. Durgādevī não podia cativar a mente do senhor Śiva, mas agora que o senhor Śiva queria ver a forma feminina do Senhor Viṣṇu, Este, através do Seu poder místico, assumiria uma forma que encantaria até mesmo o senhor Śiva. Portanto, o Senhor Viṣṇu estava grave e, ao mesmo tempo, sorridente.

Texto

śrī-bhagavān uvāca
kautūhalāya daityānāṁ
yoṣid-veṣo mayā dhṛtaḥ
paśyatā sura-kāryāṇi
gate pīyūṣa-bhājane

Sinônimos

śrī-bhagavān uvāca — a Suprema Personalidade de Deus disse; kautūhalāya — para a confusão; daityānām — dos demônios; yoṣit­-veṣaḥ — a forma de uma bela mulher; mayā — por Mim; dhṛtaḥ — aceita; paśyatā — vendo que Me era necessário; sura-kāryāṇi — para satisfazer o interesse dos semideuses; gate — tendo sido arrebatada; pīyūṣa-bhājane — a jarra de néctar.

Tradução

A Suprema Personalidade de Deus disse: Quando os demônios ar­rebataram a jarra de néctar, assumi a forma de uma bela mulher para confundi-los, enganando-os simplesmente, e fazendo com que agissem em favor do inte­resse dos semideuses.

Comentário

SIGNIFICADO—Quando a Suprema Personalidade de Deus assumiu a forma da bela Mohinī-mūrti, os demônios decerto ficaram cativados, mas isso não se verificou com os semideuses ali presentes. Em outras palavras, aqueles que têm uma mentalidade demoníaca deixam-se confundir pela beleza feminina, mas aqueles que são avançados em consciência de Kṛṣṇa, ou mesmo aqueles na plataforma da bondade, não se desorientam. A Suprema Personalidade de Deus sabia que, como não é uma pessoa comum, o senhor Śiva não se deixa confundir nem mesmo pela mulher mais bela. O próprio Cupido tentou despertar os desejos luxuriosos do senhor Śiva quando este se encontrava na presença de Pārvatī, mas o senhor Śiva não se agitou de modo algum. Ao contrário, os olhos chispantes do senhor Śiva reduziram o Cupido a cinzas. Portanto, o Senhor Viṣṇu teve que pensar meticulosamente que bela forma feminina seria capaz de con­fundir até mesmo o senhor Śiva. Por isso, Ele sorria gravemente, como se afirma no verso anterior (prahasya bhāva-gambhīram). De um modo geral, uma bela mulher não consegue despertar luxúria no senhor Śiva, mas o Senhor Viṣṇu estava ponderando se have­ria alguma forma de mulher capaz de fasciná-lo.

Texto

tat te ’haṁ darśayiṣyāmi
didṛkṣoḥ sura-sattama
kāmināṁ bahu mantavyaṁ
saṅkalpa-prabhavodayam

Sinônimos

tat — isto; te — a ti; aham — eu; darśayiṣyāmi — mostrarei; didṛkṣoḥ — desejoso de ver; sura-sattama — ó melhor dos semideuses; kāminām — das pessoas que são muito luxuriosas; bahu — muito; mantavyam — um objeto de adoração; saṅkalpa — desejos luxuriosos; prabhava-udayam — fazendo surgir impetuosamente.

Tradução

Ó melhor dos semideuses, agora te mostrarei Minha forma que é muito apreciada por aqueles que são luxuriosos. Como desejas ver essa forma, Eu a revelarei em tua presença.

Comentário

SIGNIFICADO—O episódio em que o senhor Śiva desejou ver o Senhor Viṣṇu revelar a mais atraente e bela forma de mulher decerto era um divertimento engraçado. O senhor Śiva sabia que não poderia ser agitado por nenhuma beldade. “Os Daityas na certa se desorientaram”, pensou ele, “porém, se nem mesmo os semideuses ficaram agitados, o que dizer de mim, que sou o melhor de todos os semideuses?” En­tretanto, porque o senhor Śiva queria ver o Senhor Viṣṇu na forma de uma mulher, o Senhor Viṣṇu decidiu aparecer como uma mulher e lhe mostrar uma forma que imediatamente o deixaria submerso em um oceano de desejos luxuriosos. Com efeito, portanto, o Senhor Viṣṇu disse ao senhor Śiva: “Eu te mostrarei Minha forma de mulher, mas, se acaso ficares agitado com desejos luxuriosos, não coloques a culpa em Mim.” Os atraentes traços femininos são apreciados por aqueles que são afetados por desejos luxuriosos, mas aqueles que estão acima desses desejos, que estão na plataforma da consciên­cia de Kṛṣṇa, dificilmente se desorientam. No entanto, pelo desejo supremo da Personalidade de Deus, tudo pode acontecer. Esse era um teste para ver se o senhor Śiva poderia permanecer sereno.

Texto

śrī-śuka uvāca
iti bruvāṇo bhagavāṁs
tatraivāntaradhīyata
sarvataś cārayaṁś cakṣur
bhava āste sahomayā

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; iti — assim; bru­vāṇaḥ — enquanto falava; bhagavān — o Senhor Viṣṇu, a Suprema Personalidade de Deus; tatra — lá; eva — imediatamente; antaradhīya­ta — desapareceu da visão do senhor Śiva e de seus associados; sarvataḥ — para toda parte; cārayan — movendo; cakṣuḥ — os olhos; bhavaḥ — senhor Śiva; āste — permaneceu; saha-umayā — com sua esposa Umā.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī prosseguiu: Após dizer essas palavras, a Suprema Personalidade de Deus, Viṣṇu, desapareceu imediatamente, e o senhor Śiva ali permaneceu com Umā, procurando-O em todas as direções com os olhos inquie­tos.

Texto

tato dadarśopavane vara-striyaṁ
vicitra-puṣpāruṇa-pallava-drume
vikrīḍatīṁ kanduka-līlayā lasad-
dukūla-paryasta-nitamba-mekhalām

Sinônimos

tataḥ — depois disso; dadarśa — o senhor Śiva viu; upavane — em uma bela floresta; vara-striyam — uma mulher muito formosa; vicitra — muitas variedades; puṣpa — de flores; aruṇa — rosadas; pallava — folhas; drume — no meio das árvores; vikrīḍatīm — ocupada em diver­tir-Se; kanduka — com uma bola; līlayā — em passatempos lúdicos; lasat — brilhante; dukūla — por um sári; paryasta — coberta; nitamba — em Seus quadris; mekhalām — vestida com um cinto.

Tradução

Depois disso, em uma bela floresta circunvizinha, cheia de árvores com folhas rosadas e muitas variedades de flores, o senhor Śiva viu uma formosa mulher brincando com uma bola. Seus quadris esta­vam cobertos com um sári brilhante e enfeitados com um cinto.

Texto

āvartanodvartana-kampita-stana-
prakṛṣṭa-hāroru-bharaiḥ pade pade
prabhajyamānām iva madhyataś calat-
pada-pravālaṁ nayatīṁ tatas tataḥ

Sinônimos

āvartana — caindo; udvartana — e subindo; kampita — tremor; stana — dos dois seios; prakṛṣṭa — belos; hāra — e das guirlandas; uru-bharaiḥ — devido à pesada carga; pade pade — a cada passo; prabhajyamānām iva — como se fosse se quebrar; madhyataḥ — na porção média do corpo; calat — movendo-se dessa maneira; pada-pravālam — pés avermelha­dos como coral; nayatīm — movendo-se; tataḥ tataḥ — aqui e ali.

Tradução

Porque a bola pulava para cima e para baixo, Seus seios tremiam à medida em que Ela brincava com a bola, e, devido ao peso daqueles seios e de Suas compactas guirlandas de flores, Sua cintura parecia que Se quebraria a cada passo de Seus dois pés macios, que, avermelhados como o coral, moviam-se de um lugar para outro.

Texto

dikṣu bhramat-kanduka-cāpalair bhṛśaṁ
prodvigna-tārāyata-lola-locanām
sva-karṇa-vibhrājita-kuṇḍalollasat-
kapola-nīlālaka-maṇḍitānanām

Sinônimos

dikṣu — em todas as direções; bhramat — movimento; kanduka — da bola; cāpalaiḥ — inquietude; bhṛśam — de vez em quando; prodvig­na — cheios de ansiedade; tāra — olhos; āyata — largos; lola — inquietos; locanām — com esses olhos; sva-karṇa — em Suas próprias orelhas; vibhrājita — refulgentes; kuṇḍala — brincos; ullasat — brilhantes; kapo­la — maçãs do rosto; nīla — azuladas; alaka — com cabelos; maṇḍita — estava decorado; ānanām — o rosto.

Tradução

O rosto da mulher estava decorado com olhos amplos, belos e desquietados, que se moviam à medida que a bola pulava para lá e para cá, conforme Sua mão a jogava. Os dois brilhantes brincos em Suas orelhas, parecendo reflexos azulados, decoravam as reluzentes maçãs de Seu rosto, e o cabelo espalhado pelo Seu rosto A tornava ainda mais bela de se ver.

Texto

ślathad dukūlaṁ kabarīṁ ca vicyutāṁ
sannahyatīṁ vāma-kareṇa valgunā
vinighnatīm anya-kareṇa kandukaṁ
vimohayantīṁ jagad-ātma-māyayā

Sinônimos

ślathat — escorregando ou afrouxando-se; dukūlam — o sári; kaba­rīm ca — e o cabelo; vicyutām — soltando-se e desgrenhando-se; sannahyatīm — tentando prender; vāma-kareṇa — com a mão esquerda; valgunā — muito belamente atrativa; vinighnatīm — golpeando; anya­-kareṇa — com a mão direita; kandukam — a bola; vimohayantīm — dessa maneira cativando a todos; jagat — o mundo inteiro; ātma­-māyayā — através da potência espiritual, a energia interna.

Tradução

Conforme Ela brincava com a bola, o sári que cobria Seu corpo se afrouxava, e Seu cabelo ficava em desalinho. Ela tentava prender Seu cabelo com Sua bela mão esquerda e, ao mesmo tempo, brincava com a bola, acertando-a com Sua mão direita. Isso era tão atraente que o Senhor Supremo, através de Sua potência interna, cativou a todos.

Comentário

SIGNIFICADO—Na Bhagavad-gītā (7.14), afirma-se que daivī hy eṣā guṇa-mayī mama māyā duratyayā: a potência externa da Suprema Personalidade de Deus é extremamente forte. Na verdade, todos são inteiramen­te cativados por sua atividade. O senhor Śambhu (Śiva) assumiu uma posição na qual não se esperava que ele fosse cativado pela potência externa, mas, como queria cativá-lo também, o Senhor Viṣṇu ma­nifestou Sua potência interna para agir da mesma maneira que Sua potência externa age para cativar as entidades vivas comuns. O Senhor Viṣṇu pode cativar qualquer pessoa, mesmo uma personalidade tão grande como o Senhor Śambhu.

Texto

tāṁ vīkṣya deva iti kanduka-līlayeṣad-
vrīḍāsphuṭa-smita-visṛṣṭa-kaṭākṣa-muṣṭaḥ
strī-prekṣaṇa-pratisamīkṣaṇa-vihvalātmā
nātmānam antika umāṁ sva-gaṇāṁś ca veda

Sinônimos

tām — a Ela; vīkṣya — após observar; devaḥ — senhor Śambhu; iti — dessa maneira; kanduka-līlayā — brincando com a bola; īṣat — discre­to; vrīḍā — com recato; asphuṭa — não muito perceptível; smita — com um sorriso; visṛṣṭa — enviado; kaṭākṣa-muṣṭaḥ — derrotado pelos olha­res; strī-prekṣaṇa — olhando para aquela bela mulher; pratisamīkṣaṇa — e sendo constantemente olhado por Ela; vihvala-ātmā — cuja mente estava agitada; na — não; ātmānam — ele próprio; antike — (si­tuados) ali perto; umām — sua esposa, a mãe Umā; sva-gaṇān ca — e seus associados; veda — o senhor Śiva pôde entender.

Tradução

Enquanto o senhor Śiva observava a bela mulher brincando com a bola, às vezes Ela olhava para ele e sorria discretamente, com recato. Olhando para a bela mulher que o observava, ele se esqueceu de si mesmo e de Umā, sua belíssima esposa, bem como de seus as­sociados que vieram com ele.

Comentário

SIGNIFICADO—Na confirmação do cativeiro deste mundo material, uma bela mulher pode cativar um homem vistoso, e um homem galante consegue cativar uma formosa mulher. Foi isso o que começou a acontecer quando o senhor Śiva observou a bela mocinha brincan­do com a bola. Nessas atividades, a influência do Cupido é muito proeminente. À medida que os dois parceiros movem suas sobrance­lhas e olham um para o outro, seus desejos luxuriosos aumentam cada vez mais. Essa troca de desejos luxuriosos ocorreu entre o senhor Śiva e a bela mulher, muito embora Umā e os associados do senhor Śiva lhe estivessem fazendo companhia. É assim como funciona a atração entre homem e mulher no mundo material. O senhor Śiva é tido como estando acima de toda essa atração, mas ele caiu vítima do cativante poder do Senhor Viṣṇu. Portanto, com as seguintes pa­lavras, Ṛṣabhadeva explica a natureza da atração luxuriosa:

puṁsaḥ striyā mithunī-bhāvam etaṁ
tayor mitho hṛdaya-granthim āhuḥ
ato gṛha-kṣetra-sutāpta-vittair
janasya moho ’yam ahaṁ mameti

“A atração entre macho e fêmea é o princípio básico da existência material. Com base nessa falsa concepção, que amarra os corações do homem e da mulher, a pessoa se sente atraída por seu corpo, lar, propriedade, filhos, parentes e riquezas. Dessa maneira, sua vida se enche de ilusões e ela pensa em termos de ‘eu e meu’.” (Śrīmad-Bhāgavatam 5.5.8) Quando um homem e uma mulher trocam sentimentos luxu­riosos, ambos se tornam vítimas e, com isso, aprisionam-se neste mundo material de várias maneiras.

Texto

tasyāḥ karāgrāt sa tu kanduko yadā
gato vidūraṁ tam anuvrajat-striyāḥ
vāsaḥ sasūtraṁ laghu māruto ’harad
bhavasya devasya kilānupaśyataḥ

Sinônimos

tasyāḥ — da bela mulher; kara-agrāt — da mão; saḥ — aquela; tu — mas; kandukaḥ — a bola; yadā — quando; gataḥ — escapou; vidūram — para longe; tam — aquela bola; anuvrajat — começou a seguir; striyā — daquela mulher; vāsaḥ — a veste protetora; sa-sūtram — com o cinto; laghu — por serem muito delicados; mārutaḥ — a brisa; aharat — arrastou; bhavasya — quando o senhor Śiva; devasya — o principal semi­deus; kila — na verdade; anupaśyataḥ — estava sempre olhando.

Tradução

Quando a bola escapou-Lhe da mão e caiu a uma certa distância, a mulher começou a segui-la, mas, enquanto o senhor Śiva observava essas atividades, uma brisa subitamente arrastou o delicado vestido e cinto que A cobriam.

Texto

evaṁ tāṁ rucirāpāṅgīṁ
darśanīyāṁ manoramām
dṛṣṭvā tasyāṁ manaś cakre
viṣajjantyāṁ bhavaḥ kila

Sinônimos

evam — dessa maneira; tām — a Ela; rucira-apāṅgīm — possuindo todos os traços atraentes; darśanīyām — agradáveis de se ver; manora­mām — belamente formada; dṛṣṭvā — vendo; tasyām — nEla; manaḥ cakre — pensou; viṣajjantyām — que estava atraída por ele; bhavaḥ — senhor Śiva; kila — na verdade.

Tradução

Nessas circunstâncias, o senhor Śiva viu a mulher, a qual possuía todas as partes de Seu corpo muito bem distribuídas, e a bela mulher também olhou para ele. Portanto, achando que Ela Se sentia atraída por ele, o senhor Śiva ficou muito atraído por Ela.

Comentário

SIGNIFICADO—O senhor Śiva observava todas as partes do corpo da bela mulher, e Ela também olhava para ele com olhos inquietos. Logo, como pensou que Ela também Se sentia atraída por ele, Śiva agora queria tocá-lA.

Texto

tayāpahṛta-vijñānas
tat-kṛta-smara-vihvalaḥ
bhavānyā api paśyantyā
gata-hrīs tat-padaṁ yayau

Sinônimos

tayā — por Ela; apahṛta — roubado; vijñānaḥ — bom senso; tat-kṛta — feito por Ela; smara — pelo sorriso; vihvalaḥ — tendo ficado louco por Ela; bhavānyāḥ — enquanto Bhavānī, a esposa do senhor Śiva; api — embora; paśyantyāḥ — estivesse presenciando todo esse episódio; gata-hrīḥ — desprovido de toda a vergonha; tat-padam — ao lugar onde Ela estava situada; yayau — dirigiu-se.

Tradução

Tendo o seu bom senso sido roubado pela mulher devido aos desejos luxuriosos de desfrutar com Ela, o senhor Śiva ficou tão louco por Ela que, mesmo na presença de Bhavānī, não hesitou em abordá-lA.

Texto

sā tam āyāntam ālokya
vivastrā vrīḍitā bhṛśam
nilīyamānā vṛkṣeṣu
hasantī nānvatiṣṭhata

Sinônimos

— aquela mulher; tam — senhor Śiva; āyāntam — que se aproximava; ālokya — vendo; vivastrā — Ela estava despida; vrīḍitā — muito acanhada; bhṛśam — muito; nilīyamānā — estava escondendo-Se; vṛk­ṣeṣu — entre as árvores; hasantī — sorrindo; na — não; anvatiṣṭhata — permanecia no mesmo lugar.

Tradução

A bela mulher já estava despida e, ao perceber o senhor Śiva vindo em Sua direção, ficou extremamente acanhada. Então, passou a sorrir, mas escondeu-Se entre as árvores, sempre mudando de lugar.

Texto

tām anvagacchad bhagavān
bhavaḥ pramuṣitendriyaḥ
kāmasya ca vaśaṁ nītaḥ
kareṇum iva yūthapaḥ

Sinônimos

tām — a Ela; anvagacchat — seguia; bhagavān — o senhor Śiva; bhavaḥ — conhecido como Bhava; pramuṣita-indriyaḥ — cujos sentidos estavam agitados; kāmasya — de desejos luxuriosos; ca — e; vaśam — vítima; nītaḥ — tendo-se tornado; kareṇum — uma elefanta; iva — assim como; yūthapaḥ — um elefante.

Tradução

Com os sentidos agitados, o senhor Śiva, vítima de desejos luxuriosos, começou a segui-La, assim como um elefante segue uma elefanta.

Texto

so ’nuvrajyātivegena
gṛhītvānicchatīṁ striyam
keśa-bandha upānīya
bāhubhyāṁ pariṣasvaje

Sinônimos

saḥ — senhor Śiva; anuvrajya — seguindo-A; ati-vegena — com grande velocidade; gṛhītvā — agarrando; anicchatīm — embora Ela não desejasse ser agarrada; striyam — a mulher; keśa-bandhe — no cacho de cabelo; upānīya — arrastando-A para perto; bāhubhyām — com seus braços; pariṣasvaje — abraçou-A.

Tradução

Após segui-LA com grande velocidade, o senhor Śiva agarrou-Lhe as tranças e trouxe-A para perto de si. Embora contra Seus desejos, ele A abraçou.

Texto

sopagūḍhā bhagavatā
kariṇā kariṇī yathā
itas tataḥ prasarpantī
viprakīrṇa-śiroruhā
ātmānaṁ mocayitvāṅga
surarṣabha-bhujāntarāt
prādravat sā pṛthu-śroṇī
māyā deva-vinirmitā

Sinônimos

— a mulher; upagūḍhā — sendo capturada e abraçada; bhagava­ — pelo senhor Śiva; kariṇā — por um elefante; kariṇī — uma elefanta; yathā — como; itaḥ tataḥ — para lá e para cá; prasarpantī — contorcendo-Se como uma cobra; viprakīrṇa — desgrenhado; śiroruhā — todo o Seu cabelo; ātmānam — Ela mesma; mocayitvā — desvencilhando-Se; aṅga — ó rei; sura-ṛṣabha — do melhor dos semideuses (senhor Śiva); bhuja-antarāt — do aperto dos braços; prādravat — começou a correr bem depressa; — Ela; pṛthu-śroṇī — tendo os quadris muito grandes; māyā — potência interna; deva-vinirmitā — manifestada pela Suprema Personalidade de Deus.

Tradução

Abraçada pelo senhor Śiva como uma elefanta abraça­da por seu macho, a mulher, cujo cabelo estava em desalinho, con­torceu-Se como uma cobra. Ó rei, essa mulher, que tinha os quadris grandes e elevados, era uma criação de yogamāyā, apresentada pela Suprema Personalidade de Deus. De alguma maneira, Ela consegiu desvencilhar-Se do afetuoso abraço do senhor Śiva e fugiu.

Texto

tasyāsau padavīṁ rudro
viṣṇor adbhuta-karmaṇaḥ
pratyapadyata kāmena
vairiṇeva vinirjitaḥ

Sinônimos

tasya — daquele que é o Senhor Supremo; asau — senhor Śiva; pa­davīm — o rasto; rudraḥ — senhor Śiva; viṣṇoḥ — do Senhor Viṣṇu; adbhuta-karmaṇaḥ — daquele que age muito maravilhosamente; pratya­padyata — começou a seguir; kāmena — pelo desejo luxurioso; vairi­ṇā iva — como se fosse pelo inimigo; vinirjitaḥ — sendo fustigado.

Tradução

Como se estivesse sendo fustigado por um inimigo na forma de desejos luxuriosos, o senhor Śiva perseguia o rasto do Senhor Viṣṇu, que age muito maravilhosamente e que assumira a forma de Mohinī.

Comentário

SIGNIFICADO—O senhor Śiva não pode ser vitimado por māyā. Portanto, deve-se entender que o senhor Śiva estava sendo dominado pela potência in­terna do Senhor Viṣṇu. Através de Suas várias potências, o Senhor Viṣṇu pode realizar muitas atividades maravilhosas.

parāsya śaktir vividhaiva śrūyate
svābhāvikī jñāna-bala-kriyā ca

(Śvetāśvatara Upaniṣad 6.8)

O Senhor Supremo tem várias potências, através das quais Ele pode agir com muita eficácia. Para realizar algo que exija muita habilidade, Ele não precisa sequer dar-Se ao trabalho de analisar as cir­cunstâncias. Uma vez que o senhor Śiva estava sendo controlado pela mulher, deve-se compreender que isso não era feito por uma mulher, senão que era o próprio Senhor Viṣṇu quem o fazia.

Texto

tasyānudhāvato retaś
caskandāmogha-retasaḥ
śuṣmiṇo yūthapasyeva
vāsitām anudhāvataḥ

Sinônimos

tasya — dele (senhor Śiva); anudhāvataḥ — que estava seguindo; retaḥ — o sêmen; caskanda — eliminado; amogha-retasaḥ — daquela pessoa cuja ejaculação nunca é em vão; śuṣmiṇaḥ — louco; yūthapa­sya — do elefante; iva — assim como; vāsitām — a uma elefanta que está sujeita a engravidar; anudhāvataḥ — seguindo.

Tradução

Assim como um elefante segue uma elefanta fértil, o senhor Śiva seguia a bela mulher e eliminou muito sêmen, muito embora sua ejaculação nunca fosse em vão.

Texto

yatra yatrāpatan mahyāṁ
retas tasya mahātmanaḥ
tāni rūpyasya hemnaś ca
kṣetrāṇy āsan mahī-pate

Sinônimos

yatra — em toda parte; yatra — e em qualquer parte; apatat — caiu; mahyām — na superfície do mundo; retaḥ — o sêmen; tasya — dele; mahā-ātmanaḥ — da grande personalidade (senhor Śiva); tāni — todos aqueles lugares; rūpyasya — de prata; hemnaḥ — de ouro; ca — e; kṣetrāṇi — minas; āsan — tornaram-se; mahī-pate — ó rei.

Tradução

Ó rei, em todas as partes da superfície do globo onde caiu o sêmen da grande personalidade, o senhor Śiva, surgiram, mais tarde, minas de ouro e prata.

Comentário

SIGNIFICADO—Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura comenta que aqueles que buscam ouro e prata podem adorar o senhor Śiva para, através dele, obter opulências materiais. O senhor Śiva vive sob uma árvore e nem mesmo constrói uma casa para morar, mas, embora ele aparentemente seja pobre, seus devotos, às vezes, têm muita opulência e ostentam enormes quantidades de prata e ouro. Parīkṣit Mahārāja posteriormente indaga sobre isso, e Śukadeva Gosvāmī responde.

Texto

sarit-saraḥsu śaileṣu
vaneṣūpavaneṣu ca
yatra kva cāsann ṛṣayas
tatra sannihito haraḥ

Sinônimos

sarit — ao longo das orlas dos rios; saraḥsu — e perto dos lagos; śaileṣu — perto das montanhas; vaneṣu — nas florestas; upavaneṣu — nos jardins e bosques; ca — também; yatra — onde quer que; kva — em qualquer parte; ca — também; āsan — existiam; ṛṣayaḥ — grandes sábios; tatra — ali; sannihitaḥ — estava presente; haraḥ — o senhor Śiva.

Tradução

Seguindo Mohinī, o senhor Śiva ia a toda parte – ao longo das orlas dos rios e lagos, perto das montanhas, perto das florestas, perto dos jardins, e em todos os lugares onde vivessem grandes sábios.

Comentário

SIGNIFICADO—Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura enfatiza que Mohinī-mūrti arrastou o senhor Śiva a todos esses lugares, especialmente ao local onde viviam grandes sábios, para ensinar aos sábios que o senhor Śiva ficara louco por uma bela mulher. Portanto, embora todos eles fossem grandes sábios e pessoas santas, não deveriam julgar-se livres, senão que seria bom que tomassem muito cuidado em relação a belas mulheres. Ninguém deve julgar-se liberado, capaz de suplantar o fascínio de uma bela mulher. Os śāstras prescrevem:

mātrā svasrā duhitrā vā
nāviviktāsano bhavet
balavān indriya-grāmo
vidvāṁsam api karṣati

“Ninguém deve ficar sozinho com uma mulher, mesmo que seja a própria mãe, irmã ou filha, pois os sentidos são tão incontrolavel­mente poderosos que, na presença de uma mulher, pode-se ficar agitado, mesmo que alguém seja muito erudito e avançado.” (Śrīmad-Bhāgavatam 9.19.17)

Texto

skanne retasi so ’paśyad
ātmānaṁ deva-māyayā
jaḍīkṛtaṁ nṛpa-śreṣṭha
sannyavartata kaśmalāt

Sinônimos

skanne — quando foi eliminado; retasi — o sêmen; saḥ — senhor Śiva; apaśyat — viu; ātmānam — que ele mesmo; deva-māyayā — pela māyā da Suprema Personalidade de Deus; jaḍīkṛtam — fora derrubado como um tolo; nṛpa-śreṣṭha— ó melhor dos reis (Mahārāja Parīkṣit); sannyavartata — protegem-se; kaśmalāt — da ilusão.

Tradução

Ó Mahārāja Parīkṣit, ó melhor dos reis, após ejacular seu sêmen, o senhor Śiva pôde ver o quanto fora vitimado pela ilusão criada pela Suprema Personalidade de Deus. Assim, ele passou a se proteger de qualquer outra māyā.

Comentário

SIGNIFICADO—Quando alguém é agitado por desejos luxuriosos ao ver uma mulher, esses desejos aumentam cada vez mais. Porém, quando o sêmen é ejaculado no ato sexual, os desejos luxuriosos arrefecem. O mesmo princípio agiu sobre o senhor Śiva. Ele se deixou encantar pela bela mulher Mohinī-mūrti, mas, quando perdeu o sêmen, voltou à razão e percebeu até que ponto fora vitimado após ter visto a mulher na floresta. Se alguém é treinado para proteger seu sêmen praticando celibato, natu­ralmente não é atraído pela beleza de uma mulher. Se alguém puder permanecer brahmacārī, evita muitos dos problemas da existência material. A existência material significa desfrutar do prazer do intercurso sexual (yan maithunādi-gṛhamedhi-sukham). Se alguém é ins­truído a respeito da vida sexual e aprende a proteger o seu sêmen, ele pode salvar-se do perigo da existência material.

Texto

athāvagata-māhātmya
ātmano jagad-ātmanaḥ
aparijñeya-vīryasya
na mene tad u hādbhutam

Sinônimos

atha — assim; avagata — estando plenamente convencido de; māhāt­myaḥ — a grandeza; ātmanaḥ — dele mesmo; jagat-ātmanaḥ — e da Suprema Personalidade de Deus; aparijñeya-vīryasya — que tem potência ilimitada; na — não; mene — considerou; tat — as atividades miraculo­sas da Suprema Personalidade de Deus, que conseguiram confundi-­lo; u ha — decerto; adbhutam — como maravilhosas.

Tradução

Assim, o senhor Śiva pôde entender tanto a sua posição quanto a da Suprema Personalidade de Deus, que tem potências ilimitadas. Tendo alcançado essa compreensão, não ficou surpre­so de modo algum com a maravilhosa maneira como o Senhor Viṣṇu agiu com ele.

Comentário

SIGNIFICADO—A Suprema Personalidade de Deus é conhecido como todo-pode­roso porque ninguém pode exceder nenhuma de Suas atividades. Na Bhagavad-gītā (7.7), o Senhor diz que mattaḥ parataraṁ nānyat kiñcid asti dhanañjaya: “Ó conquistador de riquezas, não há verda­de superior a Mim.” Ninguém pode igualar-se ao Senhor ou ser maior do que Ele, pois Ele é o mestre de todos. Como se afirma no Caitanya-caritāmṛta (Ādi 5.142): ekale īśvara kṛṣṇa, āra saba bhṛtya. Se a Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa, é o único mestre de todos, incluindo do senhor Śiva, fica mais fácil en­tender o domínio que Ele exerce sobre os demais. O senhor Śiva já conhecia o poder supremo do Senhor Viṣṇu, mas, quando real­mente viu que tinha sido desorientado, sentiu-se orgulhoso de ter um mestre tão excelente.

Texto

tam aviklavam avrīḍam
ālakṣya madhusūdanaḥ
uvāca parama-prīto
bibhrat svāṁ pauruṣīṁ tanum

Sinônimos

tam — a ele (senhor Śiva); aviklavam — não estando agitado pelo incidente que havia ocorrido; avrīḍam — sem estar inibido; ālakṣya — vendo; madhu-sūdanaḥ — a Suprema Personalidade da Deus, que é conhecido como Madhusūdana, o matador do demônio Madhu; uvāca — disse; parama-prītaḥ — estando muito satisfeito; bibhrat — assumindo; svām — Sua própria; pauruṣīm — original; tanum — forma.

Tradução

Ao ver o senhor Śiva tranquilo e desinibido, o Senhor Viṣṇu [Madhusūdana] ficou muito satisfeito. Então, reassumindo Sua forma original, Ele falou as seguintes palavras.

Comentário

SIGNIFICADO—Embora pasmado diante da potência do Senhor Viṣṇu, o senhor Śiva não se sentiu envergonhado. Em vez disso, estava orgulhoso de ser derrotado pelo Senhor Viṣṇu. Nada pode ser escondido da Su­prema Personalidade de Deus, pois Ele está no coração de todos. De fato, na Bhagavad-gītā (15.15), o Senhor diz que sarvasya cāhaṁ hṛdi sanniviṣṭo mattaḥ smṛtir jñānam apohanaṁ ca: “Eu estou si­tuado no coração de todos e é de Mim que vêm a lembrança, o co­nhecimento e o esquecimento.” Todo o ocorrido se deu por ordem da Suprema Personalidade de Deus e, portanto, não havia motivo para alguém ficar pesaroso ou envergonhado. Embora o senhor Śiva jamais seja derrotado por ninguém, quando derrotado pelo Senhor Viṣṇu, sentiu-se orgulhoso de ter um mestre tão excelso e poderoso.

Texto

śrī-bhagavān uvāca
diṣṭyā tvaṁ vibudha-śreṣṭha
svāṁ niṣṭhām ātmanā sthitaḥ
yan me strī-rūpayā svairaṁ
mohito ’py aṅga māyayā

Sinônimos

śrī-bhagavān uvāca — a Suprema Personalidade de Deus disse; diṣṭyā — toda a prosperidade; tvam — para ti; vibudha-śreṣṭha — ó melhor de todos os semideuses; svām — em tua própria; niṣṭhām — situação fixa; ātmanā — de teu próprio eu; sthitaḥ — estás situado; yat — como; me — Meu; strī-rūpayā — aparecimento como mulher; svairam — suficientemente; mohitaḥ — encantado; api — apesar de; aṅga — o senhor Śiva; māyayā — por Minha potência.

Tradução

A Suprema Personalidade de Deus disse: Ó melhor dos semideuses, embora tenhas passado por uma grande aflição devido ao fato de que Minha potência assumiu a forma de uma mulher, estás firme em tua posição. Portanto, desejo que obtenhas toda a boa fortuna.

Comentário

SIGNIFICADO—Como é o melhor dos semideuses, o senhor Śiva é o melhor de todos os devotos (vaiṣṇavānāṁ yathā śambhuḥ). Seu caráter exem­plar, portanto, foi louvado pela Suprema Personalidade de Deus, que o abençoou com as seguintes palavras: “Desejo-te toda a boa fortuna.” Quando um devoto fica um pouco orgulhoso, o Senhor Supremo, às vezes, manifesta Seu poder supremo para eliminar esse equívoco do devoto. Após ter sido bastante afligido pela potência do Senhor Viṣṇu, o senhor Śiva voltou à sua condição normal de tranquilidade. Essa é a posição do devoto. O devoto não deve deixar-­se agitar em circunstância alguma, nem mesmo nos piores reveses. Como se confirma na Bhagavad-gītā (6.22), yasmin sthito na duḥ­khena guruṇāpi vicālyate: devido à sua plena fé na Suprema Perso­nalidade de Deus, o devoto jamais se agita, nem mesmo nas maiores provações. Essa docilidade é possível somente no devoto de primeira classe, um dos quais é o senhor Śambhu.

Texto

ko nu me ’titaren māyāṁ
viṣaktas tvad-ṛte pumān
tāṁs tān visṛjatīṁ bhāvān
dustarām akṛtātmabhiḥ

Sinônimos

kaḥ — que; nu — na verdade; me — Minha; atitaret — pode superar; māyām — energia ilusória; viṣaktaḥ — apegada ao gozo dos sentidos materiais; tvat-ṛte — com exceção de ti; pumān — pessoa; tān — essas condições; tān — às pessoas materialmente apegadas; visṛjatīm — em superar; bhāvān — reações das atividades materiais; dustarām — muito difíceis de serem subjugadas; akṛta-ātmabhiḥ — por pessoas incapazes de controlar seus sentidos.

Tradução

Meu querido senhor Śambhu, além de ti, quem é que, dentro deste mundo material, pode superar Minha energia ilusória? De um modo geral, as pessoas estão apegadas ao gozo dos sentidos e ficam à mercê de sua influência. Na verdade, é-lhes muito difícil superar a influência da natureza material.

Comentário

SIGNIFICADO—Dos três principais semideuses – Brahmā, Viṣṇu e Maheśvara –, todos, com exceção de Viṣṇu, estão sob a influência de māyā. No Caitanya-caritāmṛta, eles são descritos como māyī, o que significa “sob a influência de māyā”. Porém, muito embora se associe com māyā, o senhor Śiva não se deixa influenciar. As entidades vivas são afetadas por māyā, mas, embora aparentemente se associe com māyā, o senhor Śiva não é afetado. Em outras palavras, com exceção do senhor Śiva, todas as entidades vivas dentro deste mundo material estão ao capricho de māyā. O senhor Śiva, portanto, não é viṣṇu-tattva nem jīva-tattva. Ele se situa entre as duas categorias.

Texto

seyaṁ guṇa-mayī māyā
na tvām abhibhaviṣyati
mayā sametā kālena
kāla-rūpeṇa bhāgaśaḥ

Sinônimos

— esta intransponível; iyam — isto; guṇa-mayī — consistindo nos três modos da natureza material; māyā — energia ilusória; na — não; tvām — a ti; abhibhaviṣyati — será capaz de confundir no futuro; mayā — comigo; sametā — unida; kālena — tempo eterno; kāla-rūpe­ṇa — na forma do tempo; bhāgaśaḥ — com suas diferentes partes.

Tradução

A energia material externa [māyā], que coopera coMigo na criação e que se manifesta nos três modos da natureza, não será capaz de continuar confundindo-te.

Comentário

SIGNIFICADO—Quando o senhor Śiva estava presente, sua esposa, Durgā, também estava com ele. No processo da criação da manifestação cósmica, Durgā trabalha em cooperação com a Suprema Personalidade de Deus. Na Bhagavad-gītā (9.10), o Senhor diz que mayādhyakṣeṇa prakṛtiḥ sūyate sacarācaram: “A energia material [prakṛti] funcio­na sob Minha direção, ó filho de Kuntī, e produz todos os seres móveis e inertes.” Prakṛti é Durgā.

sṛṣṭi-sthiti-pralaya-sādhana-śaktir ekā
chāyeva yasya bhuvanāni bibharti durgā

Todo o cosmo é criado por Durgā, que age em cooperação com o Senhor Viṣṇu, manifesto sob a forma de kāla, o tempo. Sa īkṣata lokān nu sṛjā. Sa imāl lokān asṛjata. Esta é a versão dos Vedas (Aitareya Upaniṣad 1.1.1-2). Acontece de māyā ser a esposa do senhor Śiva, e, assim, ele está associado com māyā, mas aqui o Senhor Viṣṇu assegura ao senhor Śiva que essa māyā não será capaz de continuar cativando-o.

Texto

śrī-śuka uvāca
evaṁ bhagavatā rājan
śrīvatsāṅkena sat-kṛtaḥ
āmantrya taṁ parikramya
sagaṇaḥ svālayaṁ yayau

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; evam — assim; bhagavatā — pela Suprema Personalidade de Deus; rājan — ó rei; śrīvatsa-­aṅkena — que sempre tem a marca de Śrīvatsa em seu peito; sat­kṛtaḥ — sendo muito aclamado; āmantrya — recebendo permissão de; tam — a Ele; parikramya — circungirando; sa-gaṇaḥ — com seus asso­ciados; sva-ālayam — à Sua própria morada; yayau — regressou.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī disse: Ó rei, tendo recebido estas palavras de louvor que lhe foram dirigidas pela Personalidade Suprema, que traz a marca de Śrīvatsa em Seu peito, o senhor Śiva circungirou-O. Assim, depois de pedir-Lhe permissão, o senhor Śiva, juntamente com seus associados, retornou à sua morada, o Kailāsa.

Comentário

SIGNIFICADO—Śrīla Viśvanātha Cakravartī Thākura relata que, quando o senhor Śiva oferecia reverências ao Senhor Viṣṇu, o Senhor Viṣṇu levantou-Se e abraçou-o. Portanto, usa-se aqui a palavra śrīvatsāṅkena. A marca de Śrīvatsa adorna o peito do Senhor Viṣṇu e, portanto, quando o Senhor Viṣṇu abraçou o senhor Śiva enquanto este O circundava, a marca de Śrīvatsa tocou o peito do senhor Śiva.

Texto

ātmāṁśa-bhūtāṁ tāṁ māyāṁ
bhavānīṁ bhagavān bhavaḥ
sammatām ṛṣi-mukhyānāṁ
prītyācaṣṭātha bhārata

Sinônimos

ātma-aṁśa-bhūtām — uma potência da Alma Suprema; tām — a ela; māyām — a energia ilusória; bhavānīm — que é a esposa do senhor Śiva; bhagavān — o poderoso; bhavaḥ — senhor Śiva; sammatām — aceita; ṛṣi-mukhyānām — pelos grandes sábios; prītyā — em júbilo; ācaṣṭa — começou a dirigir-se; atha — então; bhārata — ó Mahārāja Parīkṣit, descendente de Bharata.

Tradução

Ó descendente de Bharata Mahārāja, o senhor Śiva, em júbilo, dirigiu-se, então, à sua esposa Bhavānī, que é aceita por todas as autoridades como a potência do Senhor Viṣṇu.

Texto

ayi vyapaśyas tvam ajasya māyāṁ
parasya puṁsaḥ para-devatāyāḥ
ahaṁ kalānām ṛṣabho ’pi muhye
yayāvaśo ’nye kim utāsvatantrāḥ

Sinônimos

ayi — oh!; vyapaśyaḥ — viste; tvam — tu; ajasya — do não-nascido; māyām — a energia ilusória; parasya puṁsaḥ — da Pessoa Suprema; para- devatāyāḥ — a Verdade Absoluta; aham — eu mesmo; kalānām — das porções plenárias; ṛṣabhaḥ — a principal; api — embora; muhye — fui confundido; yayā — por ela; avaśaḥ — imperceptivelmente; anye — outros; kim uta — o que falar de; asvatantrāḥ — plenamente dependentes de māyā.

Tradução

O senhor Śiva disse: Ó deusa, acabaste de ver a energia ilusória da Suprema Personalidade de Deus, que é o não-nascido mestre de todos. Embora eu seja uma das principais expansões da Sua Onipo­tência, até mesmo eu fui iludido por Sua energia. O que dizer, então, dos outros, que dependem completamente de māyā?

Texto

yaṁ mām apṛcchas tvam upetya yogāt
samā-sahasrānta upārataṁ vai
sa eṣa sākṣāt puruṣaḥ purāṇo
na yatra kālo viśate na vedaḥ

Sinônimos

yam — sobre quem; mām — a mim; apṛcchaḥ — perguntaste; tvam — tu; upetya — aproximando-te de mim; yogāt — de realizar yoga místico; samā — anos; sahasra-ante — no final de mil; upāratam — cessando; vai — na verdade; saḥ — Ele; eṣaḥ — aqui está; sākṣāt — diretamente; puruṣaḥ — a Pessoa Suprema; purāṇaḥ — o original; na — não; yatra — onde; kālaḥ — tempo eterno; viśate — pode entrar; na — nem; vedaḥ — os Vedas.

Tradução

Quando, transcorridos mil anos, terminei de praticar o yoga mística, perguntaste-me em quem eu meditava. Aproveito para mostrar-te a Pessoa Suprema em quem o tempo não exerce influên­cia e quem os Vedas não podem entender.

Comentário

SIGNIFICADO—O tempo eterno entra em toda e qualquer parte, mas não poder entrar no reino de Deus. Tampouco podem os Vedas entender a Suprema Personalidade de Deus. Isso decorre do fato de que o Senhor é onipotente, onipresente e onisciente.

Texto

śrī-śuka uvāca
iti te ’bhihitas tāta
vikramaḥ śārṅga-dhanvanaḥ
sindhor nirmathane yena
dhṛtaḥ pṛṣṭhe mahācalaḥ

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; iti — assim; te — a ti; abhihitaḥ — expliquei; tāta — meu querido rei; vikramaḥ — proeza; śārṅga-dhanvanaḥ — da Suprema Personalidade de Deus, que carrega o arco Śārṅga; sindhoḥ — do Oceano de Leite; nirmathane — na ba­tedura; yena — por quem; dhṛtaḥ — foi mantida; pṛṣṭhe — nas costas; mahā-acalaḥ — a grande montanha.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī disse: Meu querido rei, a pessoa que sustentou a grande montanha sobre Suas costas para que o Oceano de Leite fosse batido é a mesma Suprema Personalidade de Deus, conhecido como Śārṅga-dhanvā. Acabei de descrever-te Suas proezas.

Texto

etan muhuḥ kīrtayato ’nuśṛṇvato
na riṣyate jātu samudyamaḥ kvacit
yad uttamaśloka-guṇānuvarṇanaṁ
samasta-saṁsāra-pariśramāpaham

Sinônimos

etat — esta narração; muhuḥ — constantemente; kīrtayataḥ — de alguém que canta; anuśṛṇvataḥ — e também ouve; na — não; riṣyate — anulado; jātu — em tempo algum; samudyamaḥ — o esforço; kvacit — em tempo algum; yat — porque; uttamaśloka — da Suprema Personalidade de Deus; guṇa-anuvarṇanam — descrevendo as qualidades transcendentais; samasta — todas; saṁsāra — da existência material; pariśra­ma — os sofrimentos; apaham — acabando.

Tradução

O esforço empreendido por alguém que constantemente ouve ou descreve esta narração da batedura do Oceano de Leite nunca será infrutífero. Na verdade, cantar as glórias da Suprema Personalidade de Deus é o único meio para se aniquilar todo sofrimento deste mundo material.

Texto

asad-aviṣayam aṅghriṁ bhāva-gamyaṁ prapannān
amṛtam amara-varyān āśayat sindhu-mathyam
kapaṭa-yuvati-veṣo mohayan yaḥ surārīṁs
tam aham upasṛtānāṁ kāma-pūraṁ nato ’smi

Sinônimos

asat-aviṣayam — não entendido pelos ateístas; aṅghrim — aos pés de lótus da Suprema Personalidade de Deus; bhāva-gamyam — compreendido pelos devotos; prapannān — plenamente rendidos; amṛtam­ — o néctar; amara-varyān — apenas aos semideuses; āśayat — deu de beber; sindhu-mathyam — produzido do Oceano de Leite; kapaṭa-yuva­ti-veṣaḥ — aparecendo como uma mocinha ilusória; mohayan — cativando; yaḥ — aquele que; sura-arīn — os inimigos dos semideuses; tam — a Ele; aham — eu; upasṛtānām — dos devotos; kāma-pūram — que satisfaz todos os desejos; nataḥ asmi — ofereço minhas respeitosas reverências.

Tradução

Assumindo a forma de uma mocinha e, então, confundindo os demônios, a Suprema Personalidade de Deus distribuiu aos Seus devotos, os semideuses, o néctar produzido através da batedura do Oceano de Leite. A essa Suprema Personalidade de Deus, que sempre satis­faz os desejos de Seus devotos, ofereço minhas respeitosas reverências.

Comentário

SIGNIFICADO—A moral da história referente ao episódio em que ocorreu a ba­tedura do Oceano de Leite é claramente apresentada pela Suprema Personalidade de Deus. Embora Ele seja igual com todos, Ele favorece Seus devotos devido à afeição natural. O Senhor diz na Bhagavad-­gītā (9.29):

samo ’haṁ sarva-bhūteṣu
na me dveṣyo ’sti na priyaḥ
ye bhajanti tu māṁ bhaktyā
mayi te teṣu cāpy aham

“Não invejo ninguém, tampouco sou parcial com alguém. Sou igual para com todos. Porém, todo aquele que Me presta serviço com devoção é um amigo, e está em Mim, e Eu também sou seu amigo.” Essa parcialidade da Suprema Personalidade de Deus é natural. Alguém cuida de seus filhos não devido à parcialidade, mas em uma reciprocidade amorosa. Os filhos dependem da afeição paterna, e o pai afe­tuoso mantém os filhos. Igualmente, porque os devotos conhecem apenas os pés de lótus do Senhor, o Senhor está sempre disposto a defen­der Seus devotos e satisfazer os seus desejos. Portanto, Ele diz que kaunteya pratijānīhi na me bhaktaḥ praṇaśyati: “Ó filho de Kuntī, declara ousadamente que Meu devoto jamais perece.”

Neste ponto, encerram-se os Significados Bhaktivedanta do oitavo canto, décimo segundo capítulo, do Śrīmad-Bhāgavatam, intitulado “A Encarnação Mohinī-mūrti Confunde o Senhor Śiva”.