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CAPÍTULO OITENTA E SETE

As Orações dos Vedas Personificados

Este capítulo apresenta as orações dos Vedas personificados em glorificação aos aspectos pessoal e impessoal do Senhor Nārāyaṇa.

O rei Parīkṣit perguntou a Śrīla Śukadeva Gosvāmī como os Vedas podem referir-se diretamente à Suprema Verdade Absoluta, Brahman, já que os Vedas tratam do reino material governado pelos três modos da natureza e Brahman é completamente transcendental a esses modos. Em resposta, Śukadeva Gosvāmī descreveu um antigo encontro entre Śrī Nārāyaṇa Ṛṣi e Nārada Muni em Badarikāśrama. Viajando para aquele eremitério sagrado, Nārada encontrou o Senhor rodeado de elevados residentes da vila próxima dali, chamada Kalāpa. Depois de prostrar-se diante de Nārāyaṇa Ṛṣi e Seus companheiros, Nārada apresentou-Lhe esta mesma questão. Em resposta, Nārāyaṇa Ṛṣi relatou uma narração de como esta mesma pergunta fora discutida muito tempo atrás entre os grandes sábios que viviam em Janaloka. Certa vez, esses sábios, sentindo interesse em conhecer a natureza da Verdade Absoluta, escolheram Sanandana Kumāra para falar sobre o assunto. Sanandana contou-lhes como os numerosos Vedas personificados, que apareceram como as primeiras emanações da respiração do Senhor Nārāyaṇa, recitaram orações para Sua glorificação pouco antes da criação. Sanandana, então, passou a recitar essas preces primorosas.

Os residentes de Janaloka ficaram perfeitamente satisfeitos ao ouvirem Sanandana recitar as orações dos Vedas personificados, que os iluminaram sobre a verdadeira natureza da Suprema Verdade Abso­luta, e, com sua adoração, honraram Sanandana. Nārada Muni ficou igualmente satisfeito de ouvir essa narração relatada por Śrī Nārāyaṇa Ṛṣi. Depois disso, ofereceu suas reverências ao Senhor e, então, foi ver seu discípulo Vedavyāsa, a quem explicou tudo o que ouvira.

Texto

śrī-parīkṣid uvāca
brahman brahmaṇy anirdeśye
nirguṇe guṇa-vṛttayaḥ
kathaṁ caranti śrutayaḥ
sākṣāt sad-asataḥ pare

Sinônimos

śrī-parīkṣit uvāca — Śrī Parīkṣit disse; brahman — ó brāhmaṇa (Śukadeva Gosvāmī); brahmāṇi — na Verdade Absoluta; anirdeśye — que não pode ser descrita com palavras; nirguṇe — que não tem qualidades; guṇa — as qualidades da natureza material; vṛttayaḥ — cuja esfe­ra de ação; katham — como; caranti — funcionam (referindo-se); śru­tayaḥ — os Vedas; sākṣāt — diretamente; sat — à substância material; asataḥ — e suas causas sutis; pare — naquilo que é transcendental.

Tradução

Śrī Parīkṣit disse: Ó brāhmaṇa, como os Vedas podem descre­ver diretamente a Suprema Verdade Absoluta, que não pode ser descrita com palavras? Os Vedas limitam-se a descrever as qualidades da natureza material, mas o Supremo é destituído dessas qualidades, sendo transcendental a todas as manifestações mate­riais e a suas causas.

Comentário

SIGNIFICADO—Antes de iniciar seu comentário sobre este capítulo, Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

vāg-īśā yasya vadane
lakṣmīr yasya ca vakṣasi
yasyāste hṛdaye saṁvit
taṁ nṛṣiṁham ahaṁ bhaje

“Adoro o Senhor Nṛsiṁha, em cuja boca residem os grandes mestres da eloquência, sobre cujo peito reside a deusa da fortuna e dentro de cujo coração reside a divina potência da consciência.”

sampradāya-viśuddhy-arthaṁ
svīya-nirbandha-yantritaḥ
śruti-stuti-mita-vyākhyāṁ
kariṣyāmi yathā-mati

“Desejando purificar minha sampradāya e estando preso pelo dever, apresentarei um breve comentário sobre as preces dos Vedas personificados, segundo o melhor de minha compreensão.”

śrīmad-bhāgavataṁ pūrvaiḥ
sārataḥ sanniṣevitam
mayā tu tad-upaspṛṣṭam
ucchiṣṭam upacīyate

“Visto que o Śrīmad-Bhāgavatam já foi perfeitamente honrado com as explicações de meus predecessores, só posso juntar os restos do que eles honraram.”

Śrīla Viśvanātha Cakravartī oferece sua própria invocação:

mama ratna-vaṇig-bhāvaṁ
ratnāny aparicinvataḥ
hasantu santo jihremi
na sva-svānta-vinoda-kṛt

“Os devotos santos podem rir de mim por me tornar um mercador de joias embora não saiba nada de joias preciosas. Mas não sinto vergonha, porque ao menos poderei entretê-los.”

na me ’sti vaiduṣy api nāpi bhaktir
virakti-raktir na tathāpi laulyāt
su-durgamād eva bhavāmi veda-
stuty-artha-cintāmaṇi-rāśi-gṛdhnuḥ

“Apesar de não ter sabedoria, devoção nem desapego, ainda assim estou ansioso por retirar a pedra filosofal das orações dos Vedas da fortaleza em que está sendo mantida.”

māṁ nīcatāyām aviveka-vāyuḥ
pravartate pātayituṁ balāc cet
likhāmy ataḥ svāmī-sanātana-śrī-
kṛṣṇāṅghri-bhā-stambha-kṛtāvalambaḥ

“Se o vento da imprudência – meu fracasso em reconhecer minha posição inferior – ameaçar me derrubar, então, ao escrever este comentário, devo me agarrar aos pilares refulgentes dos pés de Śrīdhara Svāmī, de Sanātana Gosvāmī e do Senhor Śrī Kṛṣṇa.”

praṇamya śrī-guruṁ bhūyaḥ
śrī-kṛṣṇaṁ karuṇārṇavam
loka-nāthaṁ jagac-cakṣuḥ
śrī-śukaṁ tam upāśraye

“Prostrando-me repetidas vezes diante de meu divino mestre espiritual e do Senhor Śrī Kṛṣṇa, o oceano de misericórdia, refugio-me em Śrī Śukadeva Gosvāmī, o protetor do mundo e seu olho universal.”

No final do capítulo anterior, Śukadeva Gosvāmī disse a Parīkṣit Mahārāja:

evaṁ sva-bhaktayo rājan
bhagavān bhakta-bhaktimān
uṣitvādiśya san-mārgaṁ
punar dvāravatīm agāt

“Então, ó rei, a Personalidade de Deus, que é devotado a Seus devotos, ficou algum tempo com Seus dois grandes devotos, ensinando-lhes o comportamento dos santos perfeitos. Depois, o Senhor regressou a Dvārakā.” Neste verso, a palavra san-mārgam pode ser compreendida de pelo menos três maneiras. Na primeira, toma-se sat como significando “devoto do Senhor Supremo”, de modo que san-mārgam quer dizer “o caminho de bhakti-yoga, o serviço devocio­nal”. Na segunda, com sat significando “um buscador do conhecimento transcendental”, san-mārgam quer dizer “o caminho filosófico do conhecimento”, que tem o Brahman impessoal como seu objeto. E na terceira, com sat referindo-se ao som transcendental dos Vedas, san-mārgam quer dizer “o processo de seguir os preceitos védicos”. A segunda e a terceira dessas interpretações de san-mārgam levam à questão de como os Vedas podem descrever a Verdade Absoluta.

Śrīla Śrīdhara Svāmī faz uma análise detalhada desse problema nos termos da disciplina tradicional da poética sânscrita. Devemos considerar que as palavras têm três espécies de capacidades expressivas, chamadas śabda-vṛttis. Essas são as diferentes maneiras pelas quais uma palavra se refere a seu significado, conhecidas como mukhya-vṛtti, lakṣaṇā-vṛtti e gauṇa-vṛtti. A śabda-vṛtti chamada mukhya é o sentido primário e literal da palavra: também conhecido como abhidhā, a “denotação” da palavra, ou seu sentido dicionarizado. Mukhya-vṛtti divide-se em duas subcategorias, a saber, rūḍhi e yoga. Um sentido primário chama-se rūḍhi quando se baseia no uso conven­cional, e yoga quando deriva do sentido de outra palavra através de regras etimológicas regulares.

Por exemplo, a palavra go (“vaca”) é um exemplo de rūḍhi, pois sua relação com seu sentido literal é puramente convencional. A de­notação da palavra pācaka (cozinheiro), por outro lado, é um yoga­-vṛtti, através da derivação da raiz pac (“cozinhar”) com adição do sufixo de agente ka.

Além de seu mukhya-vṛtti, ou sentido primário, uma palavra tam­bém pode ser usada num sentido secundário, metafórico. Esse uso se chama lakṣaṇā. A regra é que não se deve interpretar uma palavra metaforicamente se seu mukhya-vṛtti faz sentido no contexto dado; somente depois que mukhya-vṛtti falha em transmitir o sentido da palavra é que há justificativa para a aplicação de lakṣaṇā-vṛtti. A função de lakṣaṇā é explicada tecnicamente nos kāvya-śāstras como uma re­ferência estendida, indicando algo de alguma forma relacionado ao objeto do sentido literal. Assim, a frase gaṅgāyāṁ ghoṣaḥ literalmen­te significa “a vila pastoril no Ganges”. Mas como essa ideia é absurda, deve-se entender gaṅgāyām por seu lakṣaṇā como signi­ficando “na margem do Ganges”, por ser a margem algo relacionado com o rio. Gauṇa-vṛtti é um tipo especial de lakṣaṇā, em que o sentido se estende para alguma ideia de semelhança. Por exemplo, na frase siṁho devadattaḥ (Devadatta é um leão”), o heroico Deva­datta é metaforicamente chamado de leão por causa de suas qualidades leoninas. Em contraste, o exemplo da categoria geral de lakṣaṇā, isto é, gaṅgāyāṁ ghoṣaḥ, envolve uma relação não de semelhança, mas de localização.

Neste primeiro verso do octogésimo sétimo capítulo, Parīkṣit Mahārāja expressa sua dúvida sobre como as palavras dos Vedas podem referir-se à Verdade Absoluta por meio de alguma das espécies válidas de śabda-vṛtti. Ele pergunta, kathaṁ sākṣāt caranti: Como os Vedas podem descrever o Brahman diretamente por rūḍha-mukhya-vṛtti, o sentido literal baseado na convenção? Afinal, o Absoluto é anirdeśya, inacessível à designação. E como os Vedas podem sequer descrever o Brahman por gauṇa-vṛtti, metáfora baseada em qualida­des semelhantes?

Os Vedas são guṇa-vṛttayaḥ, cheios de descrições qualitativas, mas o Brahman é nirguṇa, destituído de qualidades. É óbvio que uma metáfora baseada em qualidades semelhantes não pode aplicar-se no caso de algo que não tem qualidades. Além do mais, Parīkṣit Mahārāja assinala que o Brahman é sad-asataḥ param, além de todas as causas e efeitos. Sem ter conexão alguma com ne­nhuma existência manifesta, sutil ou grosseira, o Absoluto não pode ser expresso nem por yoga-vṛtti, um sentido derivado etimologica­mente, nem por lakṣaṇā, uma metáfora, pois ambos exigem alguma relação de Brahman com outras entidades.

Dessa maneira, o rei Parīkṣit está perplexo sobre como as palavras dos Vedas podem descrever diretamente a Verdade Absoluta.

Texto

śrī-śuka uvāca
buddhīndriya-manaḥ-prāṇān
janānām asṛjat prabhuḥ
mātrārthaṁ ca bhavārthaṁ ca
ātmane ’kalpanāya ca

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śukadeva Gosvāmī disse; buddhi — inteligência material; indriya — sentidos; manaḥ — mente; prāṇān — e ar vital; janānām — das entidades vivas; asṛjat — emitiu; prabhuḥ — o Senhor Supremo; mātra — do gozo dos sentidos; artham — por causa; ca — e; bhava — do nascimento (e atividades que se lhe seguem); artham — por causa; ca — e; ātmane — para a alma (e sua obtenção de felicidade na próxima vida; akalpanāya — para seu abandono final das motivações materiais; ca — e.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī disse: O Senhor Supremo manifestou a inteligência, sentidos, mente e ar vital materiais das entidades vivas para que estas pudessem satisfazer seus desejos de gozo dos sentidos, nascerem repetidas vezes para se ocuparem em atividades fruitivas, tornarem-se elevadas em vidas futuras e, por fim, alcançarem a liberação.

Comentário

SIGNIFICADO—Na aurora da criação, quando as entidades vivas condicionadas se achavam adormecidas dentro do corpo transcendental do Senhor Viṣṇu, Ele iniciou o processo da criação produzindo as coberturas de inteligência, mente etc. para o benefício das entidades vivas. Como se afirma aqui, Viṣṇu é o Senhor independente (prabhu), e as enti­dades vivas são Seus jana, dependentes. Então, devemos compreen­der que o Senhor cria o cosmos inteiramente por causa das entidades vivas; compaixão é Seu único motivo.

Fornecendo corpos grosseiros e sutis às entidades vivas, o Senhor Supremo capacita as entidades vivas a buscarem o gozo dos sentidos e, na forma huma­na, a religiosidade, o desenvolvimento econômico e a liberação. Em cada corpo, a alma condicionada utiliza seus sentidos para o desfrute, e quando chega à forma humana, ela também deve cumprir vários deveres prescritos para ela nas diferentes fases de sua vida. Se cumprir fielmente seus deveres, ela ganhará um prazer mais refinado e duradouro no futuro; caso contrário, ela se degradará. E quando a alma por fim almeja libertar-se da vida material, o caminho da liberação está sempre disponível. Śrīla Viśvanātha Cakravartī comenta que o uso repetido da palavra ca (“e”) neste verso indica a importância de tudo o que o Senhor fornece – não só o caminho da liberação, mas também os caminhos da elevação gradual através da vida religiosa e do adequa­do gozo dos sentidos.

Em todos os seus empreendimentos, as entidades vivas dependem da misericórdia do Senhor para ter sucesso. Sem inteligência, sen­tidos, mente e ar vital, as entidades vivas não conseguem alcançar nada – nem elevação ao céu, purificação através do conhecimento, perfeição do sistema óctuplo de meditação ióguica, nem devoção pura atingida através do processo de bhakti-yoga, que começa por ouvir e cantar os nomes de Deus.

Se o Supremo providencia todas essas facilidades para o bem-estar das almas condicionadas, como Ele poderia ser impessoal? Longe de apresentar a Verdade Absoluta como impessoal em últi­ma análise, as Upaniṣads falam extensamente sobre Suas qualidades pessoais. O Absoluto descrito pelas Upaniṣads é livre de todas as qualidades materiais inferiores, mas, ainda assim, Ele é onisciente, onipotente, o amo e controlador de cada um e o reservatório de toda a eternidade, conhecimento e bem-aventurança. A Muṇḍaka Upaniṣad (1.1.9) declara que yaḥ sarva-jñaḥ sa sarva-vid yasya jñāna-mayaṁ tapaḥ: “Aquele que é onisciente, de quem provém a potência de todo o conhecimento – Ele é o mais sábio de todos.” Nas palavras da Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad (4.4.22, 3.7.3 e 1.2.4), sarvasya vāśī sarvasyeśānaḥ: “Ele é o Senhor e controlador de todos”; yaḥ pṛthivyāṁ tiṣṭhan pṛthivyā āntaraḥ: “Aquele que reside dentro da terra e a permeia”, e so ’kāmayata bahu syām: “Ele desejou: ‘Vou tornar­-Me muitos.’” De forma semelhante, a Aitareya Upaniṣad (3.11) de­clara que sa aikṣata tat tejo ’sṛjata: “Ele olhou para Sua potência, que então manifestou a criação”, enquanto a Taittirīya Upaniṣad (2.11) declara que satyaṁ jñānam anantaṁ brahma: “O Supremo é verdade e conhecimento ilimitados.”

A frase tat tvam asi, “Tu és aquilo” (Chāndogya Upaniṣad 6.8.7), cos­tuma ser citada pelos impersonalistas como confirmação da identida­de absoluta da alma jīva finita com seu criador. Śaṅkarācārya e seus seguidores elevam essas palavras à posição de um dos poucos mahā-vākyas, dizeres centrais que, segundo eles, exprimem o significado essencial do Vedānta. Os principais pensadores das clássicas escolas vaiṣṇavas de Vedānta, porém, discordam clamorosamente dessa interpretação. Os ācāryas Rāmānuja, Madhva, Baladeva Vidyābhūṣaṇa e outros ofereceram numerosas explicações alternativas segundo um estudo sistemático das Upaniṣads e outros śrutis.

A questão que Mahārāja Parīkṣit apresentou aqui – a saber, “Como é que os Vedas podem referir-se diretamente à Verdade Abso­luta?” – foi respondida da seguinte maneira por Śukadeva Gosvāmī: “O Senhor criou a inteligência e outros elementos em consideração aos seres vivos condicionados.” Um cético pode objetar que essa resposta não vem ao caso. Porém, a resposta de Śukadeva Gosvāmī de fato não é irrelevante, como explica Śrīla Viśvanātha Cakravartī. Res­postas a perguntas sutis muitas vezes devem ser formuladas indiretamente. Como o próprio Senhor Kṛṣṇa afirma em Suas instruções a Uddhava (Śrīmad-Bhāgavatam 11.21.35), parokṣa-vādā ṛṣayaḥ parokṣaṁ mama ca priyam: “Os videntes e mantras védicos falam em termos esotéricos, e também fico satisfeito com tais descrições confidenciais.” No presente contexto, os impersonalistas, em nome de quem Mahārāja Pa­rīkṣit fez esta pergunta, não podem apreciar a resposta direta, então, em lugar dela, Śukadeva Gosvāmī apresenta uma resposta indireta: “Dizes que o Brahman não pode ser descrito por palavras. Todavia, se o Senhor Supremo não tivesse criado a inteligência, mente e sentidos, então o som e os outros objetos de percepção seriam todos tão indescritíveis como o teu Brahman. Terias sido cego e surdo de nascença, e não sa­berias nada das formas e sons físicos, isso para não falar do Abso­luto. Então, assim como o Senhor misericordioso nos deu todas as faculdades de percepção para experimentar e descrever aos outros as sensações de visão, som etc., Ele também pode dar a alguém a capacidade receptiva para compreender o Brahman. Ele poderá, se assim o quiser, criar algum modo extraordinário para o funcionamen­to das palavras – além de suas referências ordinárias a substâncias, qualidades, categorias e ações materiais – que lhes possibilitarão exprimir a Verdade Suprema. Ele é, afinal, o Senhor onipotente (prabhu) e pode, sem dificuldades, tornar descritível o indescritível.”

O Senhor Matsya assegura ao rei Satyavrata que a Verdade Abso­luta pode ser conhecida através das palavras dos Vedas:

madīyaṁ mahimānaṁ ca
paraṁ brahmeti śabditam
vetsyasy anugrahītaṁ me
sampraśnair vivṛtaṁ hṛdi

“Serás completamente orientado e favorecido por Mim, e devido às tuas perguntas, tudo sobre Minhas glórias, que são conhecidas como paraṁ brahma, será manifesto dentro do teu coração. Assim, conhe­cerás tudo acerca de Mim.” (Śrīmad-Bhāgavatam 8.24.38)

A alma afortunada que foi agraciada pelo Senhor Supremo com o divino desejo de saber fará perguntas sobre a natureza do Absoluto e, ouvindo as respostas dadas pelos grandes sábios, registradas nos textos védicos, ela compreenderá o Senhor como Ele é. Assim, apenas pela misericórdia especial da Pessoa Suprema é que o Brahman se torna śabditam, “literalmente denotado por palavras”. De outro modo, sem a graça excepcional do Senhor, as palavras dos Vedas não podem revelar a Verdade Absoluta.

Śrīla Viśvanātha Cakravartī sugere que a palavra buddhi neste verso falado por Śukadeva Gosvāmī pode indicar o mahat-tattva, do qual evoluem as várias expansões do éter (tais como o som), que são designadas aqui como indriya. Mātrārtham, portanto, significa “a fim de usar o som transcendental para descrever o Brahman”, pois, precisamente com esse propósito, o Senhor Supremo inspirou a prakṛti a desenvol­ver o éter e o som.

Outro entendimento da finalidade da criação é expresso pelas palavras bhavārtham e ātmane kalpanāya (se for tomada a leitura kalpanāya em lugar de akalpanāya). Bhavārtham significa “para o bem das entidades vivas”. A adoração (kalpanam) do Eu Supremo (ātma­ne) é o meio pelo qual as entidades vivas podem cumprir a divina finalidade para a qual elas existem. Inteligência, mente e sentidos destinam-se a ser usados para adorar o Senhor Supremo, quer a entidade viva já os tenha elevado ao estado de purificação transcendental, quer não.

Como tanto os devotos purificados quanto os não purificados usam sua inteligência, mente e sentidos na adoração ao Senhor é algo descrito em referência à seguinte citação da Gopāla-tāpanī Upaniṣad (Pūrva 12):

sat-puṇḍarīka-nayanaṁ
meghābhaṁ vaidyutāmbaram
dvi-bhujaṁ mauna-mudrāḍhyaṁ
vana-mālinam īśvaram

“O Senhor Supremo, que apareceu em Sua forma de dois braços, tinha divinos olhos de lótus, pele cor de nuvem e roupas semelhantes ao raio. Ele usava uma guirlanda de flores silvestres, e Sua beleza se realçava por Sua pose de meditação silenciosa.” A inteligência e os sentidos transcendentais dos devotos perfeitos do Senhor percebem corretamente Sua beleza puramente espiritual, e suas rea­lizações ecoam na comparação dos olhos, corpo e roupas do Senhor Kṛṣṇa ao lótus, à nuvem e ao raio feita no Gopāla-tāpanī-śruti. Por outro lado, os devotos no nível de sādhana, que estão no proces­so de purificação, realizaram apenas pobremente a ilimitada beleza espiritual do Senhor Supremo. Não obstante, ouvindo passagens das escrituras tais como esta da Gopāla-tāpanī Upaniṣad, eles se ocupam em contemplá-lO segundo o melhor de sua capacidade, apesar de toda a inexperiência. Embora os devotos neófitos ainda não tenham aprendido a realizar por completo o Senhor ou a meditar com constância sequer na refulgência que rodeia Seu corpo, mesmo assim eles sentem prazer em presumir: “Estamos meditando em nosso Senhor.” E o Senhor Supremo, levado pelas ondas de Sua misericórdia sem limites, pensa: “Estes devotos estão meditando em Mim.” Quando a devoção deles amadurece, o Senhor os atrai para Seus pés a fim de que se ocupem em Seu serviço íntimo. Desse modo, conclui-se que os Vedas têm acesso à identidade pessoal do Supremo apenas devido à Sua misericórdia.

Texto

saiṣā hy upaniṣad brāhmī
pūrveśāṁ pūrva-jair dhṛtā
śrraddhayā dhārayed yas tāṁ
kṣemaṁ gacched akiñcanaḥ

Sinônimos

sā eṣā — este mesmo; hi — de fato; upaniṣatUpaniṣad, doutrina espiritual confidencial; brāhmī — referente à Verdade Absoluta; pūrveṣām — de nossos predecessores (como Nārada); pūrva-jaiḥ — pelos predecessores (tais como Sanaka); dhṛta — meditado; śraddhayā — com fé; dhārayet — meditar; yaḥ — quem quer que; tām — sobre ele; kṣemam — o sucesso último; gacchet — alcançará; akiñcanaḥ — livre de ligação material.

Tradução

Aqueles que vieram até mesmo antes de nossos antigos prede­cessores meditaram nesse mesmo conhecimento confidencial a respeito da Verdade Absoluta. De fato, qualquer um que se con­centrar com fé neste conhecimento ficará livre dos apegos mate­riais e alcançará a meta última da vida.

Comentário

SIGNIFICADO—Não se deve duvidar deste conhecimento confidencial relativo à Verdade Absoluta, pois ele é transmitido através de linhas autorizadas de sábios eruditos desde tempos imemoriais. Aquele que cultivar a ciência do Supremo com reverência, evitando as distrações dos rituais fruitivos e da especulação mental, aprenderá a abandonar as designações falsas do corpo material e da sociedade mundana e, assim, se qualificará para a perfeição.

Na opinião de Śrīla Viśvanātha Cakravartī, podem-se considerar os primeiros dois versos deste capítulo uma Upaniṣad sobre o assunto relativo ao Brahman. Śukadeva Gosvāmī aqui nega sua autoria com base no fato de que esta Upaniṣad foi falada anteriormente por Nārada Muni, que também ouviu a mesma de Sanaka Kumāra.

Texto

atra te varṇayiṣyāmi
gāthāṁ nārāyaṇānvitām
nāradasya ca saṁvādam
ṛṣer nārāyaṇasya ca

Sinônimos

atra — a este respeito; te — a ti; varṇayiṣyāmi — relatarei; gāthām — uma narração; nārāyaṇa-anvitām — sobre o Senhor Supremo, Nārāyaṇa; nāradasya — de Nārada; ca — e; saṁvādam — a conversa; ṛṣeḥ nārāyaṇasya — de Śrī Nārāyaṇa Ṛṣi; ca — e.

Tradução

A esse respeito, compartilharei contigo uma história sobre o Supremo Senhor Nārāyaṇa. Trata-se de uma conversa que aconteceu certa vez entre Śrī Nārāyaṇa Ṛṣi e Nārada Muni.

Comentário

SIGNIFICADO—O Senhor Nārāyaṇa tem dupla relação com a narração que virá a seguir: Nārāyaṇa é seu narrador e é o assunto descrito.

Texto

ekadā nārado lokān
paryaṭan bhagavat-priyaḥ
sanātanam ṛṣiṁ draṣṭuṁ
yayau nārāyaṇāśramam

Sinônimos

ekadā — certa vez; nāradaḥ — Nārada Muni; lokān — pelos mundos; paryaṭan — viajando; bhagavat — do Senhor Supremo; priyaḥ — o amado; sanātanam — primordial; ṛṣim — o sábio divino; draṣṭum — ver; yayau — foi; nārāyaṇa-āśramam — ao eremitério do Senhor Nārāyaṇa Ṛṣi.

Tradução

Certa vez, viajando entre os vários planetas do universo, Nārada, o amado devoto do Senhor, foi visitar o sábio primordial Nārāyaṇa em Seu āśrama.

Texto

yo vai bhārata-varṣe ’smin
kṣemāya svastaye nṛṇām
dharma-jñāna-śamopetam
ā-kalpād āsthitas tapaḥ

Sinônimos

yaḥ — quem; vai — de fato; bhārata-varṣe — na terra sagrada de Bhārata (Índia); asmin — esta; kṣemāya — para o bem-estar nesta vida; svastaye — e para o bem-estar na próxima vida; nṛṇām — de homens; dharma — com manutenção de padrões religiosos; jñāna — conhecimento espiritual; śama — e autocontrole; upetam — enriquecido; ā­kalpāt — desde o início do dia do senhor Brahmā; āsthitaḥ — executando; tapaḥ — austeridades.

Tradução

Desde o começo do dia de Brahmā, o Senhor Nārāyaṇa Ṛṣi tem se submetido a austeras penitências nesta terra de Bhārata enquanto cumpre com perfeição os deveres religiosos e exemplifica o conhecimento espiritual e o autocontrole – tudo para o bene­fício dos seres humanos tanto neste quanto no outro mundo.

Texto

tatropaviṣṭam ṛṣibhiḥ
kalāpa-grāma-vāsibhiḥ
parītaṁ praṇato ’pṛcchad
idam eva kurūdvaha

Sinônimos

tatra — lá; upaviṣṭam — sentado; ṛṣibhiḥ — por sábios; kalāpa-grāma — na vila de Kalāpa (próximo a Badarikāśrama); vāsibhiḥ — que residiam; parītam — rodeado; praṇataḥ — prostrando-se; apṛcchat — perguntou; idam eva — esta mesma (questão); kuru-udvaha — ó mais eminente dos Kurus.

Tradução

Ali, Nārada se aproximou do Senhor Nārāyaṇa Ṛṣi, que estava sentado entre sábios da vila de Kalāpa. Depois de prostrar-se diante do Senhor, ó herói dos Kurus, Nārada perguntou-Lhe o mesmo que me perguntaste.

Texto

tasmai hy avocad bhagavān
ṛṣīṇāṁ śṛṇvatām idam
yo brahma-vādaḥ pūrveṣāṁ
jana-loka-nivāsinām

Sinônimos

tasmai — a ele; hi — de fato; avocat — falou; bhagavān — o Senhor Supremo; ṛṣīṇām — os sábios; śṛṇvatām — enquanto ouviam; idam — isto; yaḥ — que; brahma — sobre a Verdade Absoluta; vādaḥ — discussão; pūrveṣām — antiga; jana-loka-nivāsinām — entre os habitantes de Janaloka.

Tradução

Enquanto os sábios ouviam, o Senhor Nārāyaṇa Ṛṣi contou a Nārada uma antiga discussão sobre a Verdade Absoluta ocorrida entre os residentes de Janaloka.

Texto

śrī-bhagavān uvāca
svāyambhuva brahma-satraṁ
jana-loke ’bhavat purā
tatra-sthānāṁ mānasānāṁ
munīnām ūrdhva-retasām

Sinônimos

śrī-bhagavān uvāca — o Senhor Supremo disse; svāyambhuva — ó filho do autógeno Brahmā; brahma — executado pela emissão de som transcendental; satram — um sacrifício; jana-loke — no planeta Jana­loka; abhavat — aconteceu; purā — no passado; tatra — lá; sthānām — entre os que residiam; mānasānām — nascidos da mente (de Brahmā); munīnām — sábios; ūrdhva — (que corria) para cima; retasām — cujo sêmen.

Tradução

A Personalidade de Deus disse: Ó filho do autógeno Brahmā, muito tempo atrás, em Janaloka, sábios que residiam ali executaram um grande sacrifício para a Verdade Absoluta vibrando sons transcendentais. Esses sábios, filhos da mente de Brahmā, eram todos perfeitos celibatários.

Comentário

SIGNIFICADO—Śrīla Śrīdhara Svāmī explica que a palavra satram aqui se refere a um sacrifício védico em que todos os participantes estão igualmen­te qualificados a servir como sacerdotes. Nesse caso, cada um dos sábios presentes em Janaloka podia falar igualmente bem sobre o as­sunto relativo ao Brahman.

Texto

śvetadvīpaṁ gatavati
tvayi draṣṭuṁ tad-īśvaram
brahma-vādaḥ su-saṁvṛttaḥ
śrutayo yatra śerate
tatra hāyam abhūt praśnas
tvaṁ māṁ yam anupṛcchasi

Sinônimos

śvetadvīpam — a Śvetadvīpa; gatavati — tendo ido; tvayi — tu (Nārada); draṣṭum — para ver; tat — dele; īśvaram — Senhor (Aniruddha); brahma — sobre a natureza do Supremo; vādaḥ — um simpósio; su — com entusiasmo; saṁvṛttaḥ — seguiu-se; śrutayaḥ — os Vedas; yatra — em quem (o Senhor Aniruddha, também conhecido como Kṣīroda­kaśāyī Viṣṇu); śerate — deitado para descansar; tatra — sobre Ele; ha — de fato; ayam — esta; abhūt — surgiu; praśnaḥ — questão; tvam — tu; mām — de Mim; yam — que; anupṛcchasi — estás perguntando mais uma vez.

Tradução

Naquela ocasião, aconteceu de estares visitando o Senhor em Śvetadvīpa – aquele Senhor Supremo em quem os Vedas repousam para descansar durante o período da aniquilação universal. Surgiu uma animada discussão entre os sábios de Janaloka sobre a natureza da Suprema Verdade Absoluta. De fato, levantou-se, então, a mesma questão que Me estás perguntando agora.

Texto

tulya-śruta-tapaḥ-śīlās
tulya-svīyāri-madhyamāḥ
api cakruḥ pravacanam
ekaṁ śuśrūṣavo ’pare

Sinônimos

tulya — igual; śruta — em ouvir dos Vedas; tapaḥ — a execução de penitências; śīlāḥ — cujo caráter; tulya — igual; svīya — para amigos; ari — inimigos; madhyamāḥ — pessoas neutras; api — embora; cakruḥ — fizeram; pravacanam — o orador; ekam — um deles; śuśrūṣavaḥ — ouvintes ávidos; apare — os outros.

Tradução

Embora aqueles sábios fossem todos igualmente qualificados em termos de estudo védico e austeridade, e embora todos eles vissem amigos, inimigos e pessoas neutras com igualdade, eles escolheram um dentre os sábios para ser o orador, e o restante formou um atento auditório.

Texto

śrī-sanandana uvāca
sva-sṛṣṭam idam āpīya
śayānaṁ saha śaktibhiḥ
tad-ante bodhayāṁ cakrus
tal-liṅgaiḥ śrutayaḥ param
yathā śayānaṁ saṁrājaṁ
vandinas tat-parākramaiḥ
pratyūṣe ’bhetya su-ślokair
bodhayanty anujīvinaḥ

Sinônimos

śrī-sanandanaḥ — Śrī Sanandana (o elevado filho nascido da mente de Brahmā, que fora escolhido para responder à indagação dos sábios); uvāca — disse; sva — por Si mesmo; sṛṣṭam — criado; idam — este (universo); āpīya — tendo recolhido; śayānam — estando dormindo; saha — com; śaktibhiḥ — Suas energias; tat — daquele (período da dissolução universal); ante — no final; bodhayām cakruḥ — acordaram-nO; tat — dEle; liṅgaiḥ — com (descrições de) características; śrutayaḥ — os Vedas; param — o Supremo; yathā — assim como; śayānam — dormin­do; saṁrājam — um rei; vandinaḥ — seus poetas cortesãos; tat — dele; parākramaiḥ — com (recitações) dos feitos heroicos; pratyūṣe — de madrugada; abhetya — aproximando-se dele; su-ślokaiḥ — poéticos; bo­dhayanti — acordam; anujīvinaḥ — seus servos.

Tradução

Śrī Sanandana respondeu: Depois que recolheu o universo que havia criado anteriormente, o Senhor Supremo deitou-Se por algum tempo como se houvesse adormecido, e todas as Suas energias ficaram dormentes dentro dEle. Quando chegou a ocasião da próxima criação, os Vedas personificados O despertaram cantando Suas glórias, assim como os poetas que servem um rei aproxi­mam-se dele de manhã e o acordam recitando seus feitos heroicos.

Comentário

SIGNIFICADO—Na época da criação, os Vedas são a primeira emanação da respiração do Senhor Mahā-Viṣṇu e, em forma personificada, eles O servem acordando-O de Seu sono místico. Essa afirmação feita por Sanandana indica que Sanaka e os outros sábios haviam feito a ele a mesma pergunta que Nārada fizera a Nārāyaṇa Ṛṣi e Mahārāja Parīkṣit fizera a Śukadeva Gosvāmī. Para responder a essa questão, Sanandana alude ao exemplo dos próprios Vedas personificados se dirigindo ao Senhor Mahā-Viṣṇu. Ainda que soubessem que o Senhor, sendo onisciente, não precisa ser informado de Suas glórias, os Vedas entusiasticamente aproveitaram essa oportunidade para louvá-lO.

Texto

śrī-śrutaya ūcuḥ
jaya jaya jahy ajām ajita doṣa-gṛbhīta-guṇāṁ
tvam asi yad ātmanā samavaruddha-samasta-bhagaḥ
aga-jagad-okasām akhila-śakty-avabodhaka te
kvacid ajayātmanā ca carato ’nucaren nigamaḥ

Sinônimos

śrī-śrutayaḥ ūcuḥ — os Vedas disseram; jaya jaya — vitória a Vós, vitória a Vós; jahi — por favor, derrotai; ajām — a eterna potência ilusória de māyā; ajita — ó invencível; doṣa — para criar discrepâncias; gṛbhīta — que assumiu; guṇām — as qualidades da matéria; tvam — Vós; asi — sois; yat — porque; ātmanā — em Vossa posição original; samavaruddha — completo; samasta — em todas; bhagaḥ — opulên­cias; aga — inertes; jagat — e móveis; okasām — daqueles que possuem corpos materiais; akhila — de todas; śakti — as energias; avabodha­ka — que despertais; te — Vós; kvacit — às vezes; ajayā — com Vossa energia material; ātmanā — e com Vossa energia espiritual interna; ca — também; carataḥ — ocupando; anucaret — podem apreciar; niga­maḥ — os Vedas.

Tradução

Os śrutis disseram: Vitória, vitória a Vós, ó invencível! Por Vossa própria natureza, sois perfeitamente pleno em todas as opu­lências; portanto, por favor, derrotai o eterno poder da ilusão, que assume o controle dos modos da natureza para criar dificul­dades para as almas condicionadas. Ó Vós que despertais todas as energias dos seres corporificados móveis e inertes, às vezes os Vedas podem reconhecer-Vos enquanto Vos divertis com Vossas potências material e espiritual.

Comentário

SIGNIFICADO—Segundo Śrīla Jīva Gosvāmī, os vinte e oito versos das orações dos Vedas personificados (versos 14-41) representam as opiniões de cada um dos vinte e oito śrutis mais importantes. Essas Upaniṣads principais e outros śrutis versam sobre várias abordagens da Verdade Absoluta, e dentre eles são supremos aqueles śrutis que enfatizam o serviço devocional puro e exclusivo à Suprema Personalidade de Deus. As Upaniṣads dirigem nossa atenção para a Personalidade de Deus primeiro negando o que é distinto dEle e, então, definindo al­gumas de Suas características importantes.

Śrīla Viśvanātha Cakravartī interpreta as primeiras palavras desta oração, jaya jaya, como significando “por favor, revelai Vossa sobre-excelência”. Repete-se a palavra jaya ou por reverência ou por júbilo.

“Como devo revelar Minha excelência?”, o Senhor poderia perguntar.

Os śrutis respondem pedindo-Lhe que misericordiosamente des­trua a ignorância de todos os seres vivos e os atraia para Seus pés de lótus.

O Senhor diz: “Mas māyā, que impõe ignorância às jīvas, é re­pleta de boas qualidades (gṛbhīta-guṇām). Por que devo opor-Me a ela?”

“Sim”, respondem os Vedas, “mas ela assumiu os três modos da natureza para confundir as almas condicionadas e fazê-las identifi­carem-se falsamente com seus corpos materiais. Seus modos de bonda­de, paixão e ignorância, além disso, são maculados (doṣa-gṛbhīta) porque não estais manifesto na presença deles.”

Os śrutis, então, dirigem-se ao Senhor como ajita, insinuando: “Só Vós não podeis ser vencido por māyā, ao passo que outros, como Brahmā, são derrotados por suas próprias falhas.”

O Senhor responde: “Mas que provas tendes de que ela não Me pode vencer?”

“A prova está no fato de que, em Vosso estado original, já realizastes a perfeição de todas as opulências.”

Neste ponto, o Senhor poderia objetar que apenas destruir a ignorância das jīvas não bastará para levá-las a Seus pés de lótus, pois a alma jīva, mesmo depois de dissipada sua ignorância, não pode alcançar o Senhor sem se ocupar no serviço devocional. Como o Senhor diz com Suas próprias palavras, bhaktyāham ekayā grāhyaḥ: “Eu só sou alcançado mediante o serviço devocional.” (Śrīmad-Bhāgavatam 11.14.21)

A essa objeção, os śrutis respondem: “Meu Senhor, ó Vós que despertais todas as energias, depois de criardes a inteligência e os sen­tidos dos seres vivos. Vós os inspirais a trabalhar duramente e gozar os frutos de seu trabalho. Além disso, por Vossa misericórdia, desper­tais a capacidade deles de seguir os caminhos progressivos de conhe­cimento, yoga místico e serviço devocional, permitindo-lhes avançar rumo a Vós em Vossos aspectos de Brahman, Paramātmā e Bha­gavān, respectivamente. E quando jñāna, yoga e bhakti amadurecem, dotais os seres vivos de poder para realizar-Vos diretamente em cada um de Vossos três aspectos.”

Se o Senhor pedisse uma prova autorizada para apoiar esta afirmação dos Vedas personificados, eles responderiam com humildade: Nós mesmos somos a prova. Em algumas ocasiões – como agora, a época da criação – associais-Vos com Vossa potência externa, māyā, ao passo que estais sempre presente com Vossa energia inter­na. É em momentos como este, quando Vossa atividade se manifesta externamente, que nós, os Vedas, podemos reconhecer-Vos em Vossa brincadeira.”

Dotados assim de autoridade por sua associação pessoal com o Senhor Supremo, os śrutis promulgam os processos de karma, jñāna, yoga e bhakti como vários meios para as almas condicionadas empregarem sua inteligência, sentidos, mente e vitalidade em busca da Verdade Absoluta.

Em muitas passagens, os Vedas glorificam as transcendentais qualidades pessoais do Supremo. O seguinte verso aparece na Śvetāśvatara Upaniṣad (6.11), Gopāla-tāpanī Upaniṣad (Uttara 97), e Brahma Upaniṣad (4.1):

eko devaḥ sarva-bhūteṣu gūḍhaḥ
sarva-vyāpī sarva-bhūtāntarātmā
karmādhyakṣaḥ sarva-bhūtādhivāsaḥ
sākṣī cetāḥ kevalo nirguṇaś ca

“O Senhor Supremo único vive oculto dentro de todas as coisas criadas. Ele permeia toda a matéria e está sentado no coração de todos os seres vivos. Como a Superalma que mora em seu coração, supervi­siona suas atividades materiais. Assim, embora não tenha qualidades materiais, Ele é a única testemunha e aquele que proporciona consciência.”

As qualidades pessoais do Supremo são ainda descritas nas seguintes citações das Upaniṣads, yaḥ sarva-jñaḥ sa sarva-vid yasya jñāna-mayaṁ tapaḥ: “Ele que é onisciente, de quem provém a potên­cia de todo o conhecimento – Ele é o mais sábio de todos” (Muṇḍaka Upaniṣad 1.1.9); sarvasya vaśī sarvasyeśānaḥ: “Ele é o Senhor e controlador de todos” (Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad 4.4.22); e yaḥ pṛthivyāṁ tiṣṭhan pṛthivyā āntaro yaṁ pṛthivī na veda: “Aquele que reside dentro da terra e a permeia, e que é desconhecido pela terra”. (Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad 3.7.3)

O papel do Senhor na criação é mencionado em muitas afirmações do śruti. A Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad (1.2.4) declara que so ’kāmayata bahu syām: “Ele desejou: ‘Vou tornar-Me muitos.’” A frase so ’kāmayata (“Ele desejou”) aqui indica que a personalidade do Senhor é eterna, pois, mesmo antes da criação, a Verdade Absoluta experimentou desejo, e desejo é um atributo exclusivo de pessoas. A Aitareya Upaniṣad (3.11) igualmente afirma que sa aikṣata tat-tejo ’sṛjata: “Ele viu, e Seu poder gerou a criação.” Neste trecho, a pa­lavra tat-tejaḥ refere-se à expansão parcial do Senhor, Mahā-Viṣṇu, que lança Seu olhar para māyā e, assim, manifesta a criação material. Ou tat-tejaḥ pode referir-se ao aspecto impessoal Brahman do Senhor, Sua potência de existência eterna e onipenetrante. Como se descreve na Śrī Brahma-saṁhitā (5.40):

yasya prabhā prabhavato jagad-aṇḍa-koṭi-
koṭiṣv aśeṣa-vasudhādi-vibhūti-bhinnam
tad brahma niṣkalam anantam aśeṣa-bhūtaṁ
govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi

“Adoro Govinda, o Senhor primordial, que é dotado de enorme poder. A refulgência deslumbrante de Sua forma transcendental é o Brahman impessoal, que é absoluto, completo e ilimitado e que manifesta as variedades de incontáveis planetas, com suas diferentes opulências, em milhões e milhões de universos.”

Resumindo esse verso, Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

jaya jayājita jahy aga-jaṅgamā-
vṛtim ajām upanīta-mṛṣā-guṇām
na hi bhavantam ṛte prabhavanty amī
nigama-gīta-guṇārṇavatā tava

“Todas as glórias, todas as glórias a Vós, o invencível! Por favor, derrotai a influência de Vossa eterna māyā, que encobre todas as criaturas móveis e inertes e que governa os modos da ilusão. Sem Vossa influência, todos esses mantras védicos seriam impotentes para cantar sobre Vós como o oceano de qualidades transcendentais.”

Texto

bṛhad upalabdham etad avayanty avaśeṣatayā
yata udayāstam-ayau vikṛter mṛdi vāvikṛtāt
ata ṛṣayo dadhus tvayi mano-vacanācaritaṁ
katham ayathā bhavanti bhuvi datta-padāni nṛṇām

Sinônimos

bṛhat — como o Supremo; upalabdham — percebido; etat — este (mundo); avayanti — consideram; avaśeṣatayā — quanto a ele ser a base onipenetrante da existência; yataḥ — desde; udaya — a geração; astam-ayau — e dissolução; vikṛteḥ — de uma transformação; mṛdi — de argila; — como se; avikṛtāt — (o próprio Supremo) não estar sujeito a transformação; ataḥ — portanto; ṛṣayaḥ — os sábios (que compilaram os mantras védicos); dadhuḥ — colocaram; tvayi — em Vós; manaḥ — suas mentes; vacana — palavras; ācaritam — e ações; katham — como; ayathā — não como eles são; bhavanti — tornam-se; bhuvi — sobre o solo; datta — colocados; padāni — os passos; nṛṇām — de homens.

Tradução

Este mundo perceptível é idêntico ao Supremo porque o Brahman Supremo é a base última de toda a existência, permanecen­do inalterado enquanto todas as coisas criadas são geradas a partir dele e acabam dissolvidas nele, assim como a argila permanece inal­terada pelos produtos feitos dela e de novo imersos nela. Assim, é para Vós somente que os sábios védicos dirigem todos os seus pensamentos, palavras e atos. Afinal, como poderiam os passos dos homens deixar de tocar a terra sobre a qual eles vivem?

Comentário

SIGNIFICADO—Pode pairar alguma dúvida sobre se os mantras védicos são unânimes quando identificam a Suprema Personalidade de Deus. Afinal, alguns mantras declaram que indro yāto ’vasitasya rājā: “Indra é o rei de todos os seres móveis e inertes” (Ṛg Veda 1.32.15), enquanto outros dizem que agnir mūrdhā divaḥ: “Agni é o chefe dos céus”, e outros mantras ainda designam diferentes deidades como o Absoluto. Pareceria, então, que os Vedas apresentam uma visão politeísta do mundo.

Em resposta a essa dúvida, os próprios Vedas explicam neste verso que só pode haver uma fonte de criação universal, chamada Brahman ou Bṛhat, “o maior”, que é a verdade singular que subjaz toda a existência e a permeia. Nenhuma deidade finita como Indra ou Agni pode desempenhar esse papel único, tampouco seriam os śrutis tão ignorantes de propor tal ideia. Como aqui o indica a palavra tvayi, o Senhor Viṣṇu sozinho é a Verdade Absoluta. Indra e outros semi­deuses podem ser glorificados de várias maneiras, mas eles possuem apenas aqueles poderes que o Senhor Viṣṇu lhes concede.

Os sábios védicos compreendem que este mundo inteiro – in­clusive Indra, Agni e tudo o que é perceptível aos olhos, ouvidos e outros sentidos – é idêntico à Verdade Suprema única, a Personali­dade de Deus, de nome Bṛhat, “o maior”, porque Ele é avaśeṣa, “a substância última que permanece”. A partir do Senhor, tudo se expande no momento da criação, e nEle tudo se dissolve durante a aniquilação. Ele existe antes e depois da manifestação material como a base cons­tante, conhecida aos filósofos como a “causa constituinte”, upādāna. A despeito do fato de que incontáveis manifestações emanam dEle, o Senhor Supremo existe eternamente inalterado – uma ideia que os śrutis enfatizam aqui especificamente através da palavra avikṛtāt.

As palavras mṛdi vā (“como no caso da argila”) aludem a uma famosa analogia falada por Udālaka a seu filho Śvetaketu na Chāndogya Upaniṣad (6.4.1), vācārambhanaṁ vikāro nāmadheyaṁ mṛttikety eva satyam: “Os objetos do mundo material existem apenas como nomes, transformações definidas pela linguagem, ao passo que a causa constituinte, como a argila de que se fazem potes, é a ver­dadeira realidade.” Uma massa de argila é a causa constituinte de vários potes, estátuas etc., mas a argila em si permanece inalterada em sua essência. Por fim, os potes e outros objetos serão destruídos e voltarão a ser argila. Do mesmo modo, o Senhor Supremo é a causa constituinte total, mas Ele permanece eternamente intocado pela transformação. Esse é o significado da afirmação sarvaṁ khalv idaṁ brahma: “Tudo é Brahman.” (Chāndogya Upaniṣad 3.14.1) Admirando-se com este mistério, o grande devoto Gajendra orou:

namo namas te ’khila-kāraṇāya
niṣkāraṇāyādbhuta-kāraṇāya

“Reverências repetidas vezes a Vós, a fonte de toda a criação. Sois a inconcebível causa de todas as causas, mas Vós próprio não tendes causa.” (Śrīmad-Bhāgavatam 8.3.15)

Prakṛti, a natureza material, costuma ser considerada a causa constituinte da criação, tanto na ciência ocidental quanto nos Vedas. Isso não contradiz o fato superior de que o Senhor Supremo é a causa final, pois a prakṛti é a energia dEle e está ela mesma sujeita a mudanças.

prakṛtir yasyopādānam
ādhāraḥ puruṣaḥ paraḥ
sato ’bhivyañjakaḥ kālo
brahma tat tritayaṁ tv aham

“O universo material é real, tendo prakṛti como seu ingrediente ori­ginal e estado final. O Senhor Mahā-Viṣṇu é o lugar de repouso da natureza, que se torna manifesta pelo poder do tempo. Dessa manei­ra, a natureza, o Viṣṇu onipotente e o tempo não são diferentes de Mim, a Suprema Verdade Absoluta.” A prakṛti, porém, sofre transformações, ao passo que seu Senhor, o supremo puruṣa, não. A prakṛti é a energia externa da Personalidade de Deus, mas Ele tem outra ener­gia – Sua energia interna – que é svarūpa-bhūtā, não-diferente de Sua própria essência. A energia interna do Senhor, tal qual Ele mesmo, jamais está sujeita a mudanças materiais.

Portanto, os mantras dos Vedas, bem como os ṛṣis que receberam estes mantras em meditação e os transmitiram para o benefício da humanidade, dirigem sua atenção em primeiro lugar para a Personalidade de Deus. Os sábios védicos dirigem as atividades de sua mente e palavras – isto é, o sentido interno bem como o sentido literal (abhidhā-vṛtti) de suas afirmações –, antes de tudo, para Ele, e apenas secundariamente para transformações separadas de prakṛti, tais como Indra e outros semideuses.

Assim como os passos de um homem, quer postos sobre barro, pedra ou tijolos, não podem deixar de tocar a superfície da terra, da mesma maneira qualquer coisa que os Vedas discutam dentro do reino da geração material, eles a relacionam com a Verdade Absoluta. A literatura mundana descreve fenômenos limitados, desprezando a relação de seus sujeitos com a realidade total, mas os Vedas sempre focalizam sua visão perfeita no Supremo. Como a Chāndogya Upaniṣad afirma em suas declarações mṛttikety eva satyam e sarvaṁ khalv idaṁ brahma, a realidade é compreendida de modo adequado quando se vê tudo como dependente do Brahman, o Absoluto, para sua exis­tência. Apenas o Brahman é real, não porque nada do que vemos neste mundo seja real, mas porque o Brahman é a causa final e absoluta de tudo. Assim, a palavra satyam, como se usa em mṛttikety eva satyam, foi definida em outro contexto como “causa constituinte” por uma autoridade não menor do que o próprio Senhor Kṛṣṇa:

yad upādāya pūrvas tu
bhāvo vikurute param
ādir anto yadā yasya
tat satyam abhidhīyate

“Um objeto material, composto ele mesmo de um ingrediente essencial, cria outro objeto material através de transformação. Deste modo, um objeto criado torna-se causa e base de outro objeto criado. Uma coisa específica pode ser chamada real pelo fato de possuir a nature­za básica de outro objeto que constitui sua causa e estado original.” (Śrīmad-Bhāgavatam 11.24.18)

Explicando a palavra Brahman, Śrīla Prabhupāda escreve em Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus: “A palavra Brahman indica o maior de todos e o mantenedor de tudo. Os impersonalistas sentem-se atraídos pela grandeza do céu, mas, por causa de seu pobre fundo de conhecimento, eles não sentem atração pela grandeza de Kṛṣṇa. Em nossa vida prática, porém, sentimos atração pela grandeza de uma pessoa e não pela grandeza de uma enorme montanha. Em realidade, o termo Brahman só se pode aplicar a Kṛṣṇa, daí Arjuna admitir na Bhagavad-gītā que o Senhor Kṛṣṇa é o Para-Brahman, ou o re­pouso supremo de tudo.”

“Kṛṣṇa é o Brahman Supremo por causa de Seu conhecimento ilimitado, potências ilimitadas, força ilimitada, influência ilimitada, beleza ilimitada e renúncia ilimitada. Portanto, a palavra Brahman só pode ser aplicada a Kṛṣṇa. Arjuna afirma que, como o Brahman impes­soal é a refulgência que emana como raios do corpo transcendental de Kṛṣṇa, Kṛṣṇa é o Para-Brahman. Tudo repousa em Brahman, mas o próprio Brahman repousa em Kṛṣṇa. Por isso, Kṛṣṇa é o Brahman último, ou Para-Brahman. Os elementos materiais são aceitos como energias inferiores de Kṛṣṇa porque, pela interação deles, a manifes­tação cósmica acontece, repousa em Kṛṣṇa e, depois da dissolução, torna a entrar no corpo de Kṛṣṇa como Sua energia sutil. Kṛṣṇa é, portanto, a causa tanto da manifestação quanto da dissolução.”

Em resumo, Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

druhiṇa-vahni-ravīndra-mukhāmarā
jagad idaṁ na bhavet pṛthag utthitam
bahu-mukhair api mantra-gaṇair ajas
tvam uru-mūrtir ato vinigadyase

“Os semideuses, encabeçados por Śiva, Agni, Sūrya e Indra, e de fato, todos os seres do universo, não vêm a existir independentemente de Vós. Os mantras dos Vedas, apesar de expressarem vários pontos de vista, todos falam sobre Vós, o Senhor não nascido que aparece em numerosas formas.”

Texto

iti tava sūrayas try-adhipate ’khila-loka-mala-
kṣapaṇa-kathāmṛtābdhim avagāhya tapāṁsi jahuḥ
kim uta punaḥ sva-dhāma-vidhutāśaya-kāla-guṇāḥ
parama bhajanti ye padam ajasra-sukhānubhavam

Sinônimos

iti — assim; tava — Vossos; sūrayaḥ — santos sábios; tri — dos três (sistemas planetários do universo, ou os três modos da natureza); adhipate — ó mestre; akhila — de todos; loka — os mundos; mala — a contaminação; kṣapaṇa — que erradica; kathā — de discussões; amṛta — néctar; abdhim — no oceano; avagāhya — mergulhando fundo; tapāṁsi — suas perturbações; jahuḥ — abandonaram; kim uta — que falar; punaḥ — além disso; sva — deles; dhāma — pelo poder; vidhuta — dissipadas; āśaya — de suas mentes; kāla — e do tempo; guṇāḥ — as (inde­sejáveis) qualidades; parama — ó supremo; bhajanti — adoram; ye — que; padam — Vossa verdadeira natureza; ajasra — ininterrupta; sukha — de felicidade; anubhavam — (em que há) experiência.

Tradução

Portanto, ó mestre dos três mundos, os sábios livram-se de todo o sofrimento mergulhando fundo no nectáreo oceano dos tópicos que tratam de Vós, o qual purifica toda a contaminação do universo. O que se dizer, então, daqueles que, tendo pela força espiritual livra­do suas mentes de maus hábitos e livrado a si mesmos do tempo, são capazes de adorar Vossa verdadeira natureza, ó supremo, encontrando nela bem-aventurança ininterrupta?

Comentário

SIGNIFICADO—Segundo Śrīla Jīva Gosvāmī, no verso precedente, aqueles śrutis cuja apresentação da Verdade Suprema poderia parecer impessoal esclareceram seu verdadeiro propósito. Agora, no verso presente, aqueles que focalizam exclusivamente a divina Personalidade de Deus, que falam de Seus passatempos transcendentais, têm sua vez para louvá-lO.

Porque todos os Vedas declaram a supremacia da Personalidade de Deus como a causa de todas as causas, as pessoas de discriminação devem adotar Sua adoração. Por mergulharem no oceano das glórias dEle, devotos inteligentes ajudam a dissipar a tristeza de todas as almas e diminuem seu ardente apego à vida materialista. Esses devotos que estão avançando abandonam aos poucos todo o apego material e perdem qualquer interesse que alguma vez tiveram nas incômodas austeridades de karma, jñāna e yoga.

Além desses devotos, encontram-se os sūris, conhecedores da ver­dade espiritual, que honram o oceano nectáreo das glórias do Senhor Supremo imergindo por completo dentro dele. Esses devotos madu­ros do Senhor Supremo alcançam uma perfeição inimaginável. O Senhor, correspondendo aos sinceros esforços deles, outorga-lhes o poder de compreendê-lO sob Sua forma pessoal. Lembrando em êxtase os pas­satempos íntimos do Senhor e Seu séquito, eles se libertam automati­camente dos últimos vestígios sutis de contaminação mental e da sensibilidade às inevitáveis dores da doença e da velhice.

Referindo-se ao poder purificador do serviço devocional, os śrutis dizem que tad yathā puṣkara-palāśa āpo na śliṣyante evam evaṁ-vidi pāpaṁ karma na śliṣyate: “Assim como a água não adere a uma flor de lótus, de igual modo as atividades pecaminosas não ade­rem a alguém que conheça a verdade dessa maneira.” O Śatapatha Brāhmaṇa (14.7.28), Taittirīya Brāhmaṇa (3.12.9.8), Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad (4.4.28) e Baudhāyana-dharma-śāstra (2.6.11.30), todos concordam, na karmaṇā lipyate pāpakena: “Dessa maneira, a pessoa deixa de macular-se com atividades pecaminosas.”

O Ṛg Veda (1.154.1) refere-se aos passatempos do Senhor Supremo da seguinte maneira, viṣṇor nu kaṁ vīryāṇi pravocaṁ yaḥ pārthivāni vimame rajāṁsi: “Só poderá enunciar por completo os feitos heroi­cos do Senhor Viṣṇu aquele que puder contar todas as partículas de poeira do mundo.” Muitos śruti-mantras glorificam o serviço devocional ao Senhor, tais como eko vaśī sarva-go ye ’nubhajanti dhīrās/ teṣāṁ sukhaṁ śāśvataṁ netareṣām: “Ele é o único Senhor e contro­lador onipresente; apenas aquelas almas sábias que O adoram conseguem a felicidade eterna, e ninguém mais.”

A esse respeito, Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

sakala-veda-gaṇerita-sad-guṇas
tvam iti sarva-manīṣi-janā ratāḥ
tvayi subhadra-guṇa-śravaṇādibhis
tava pada-smaraṇena gata-klamāḥ

“Porque todos os Vedas descrevem Vossas qualidades transcendentais, todos os homens reflexivos sentem-se atraídos por ouvir e cantar sobre Vossas qualidades todo-auspiciosas. Assim, lembrando-se de Vossos pés de lutos, eles se livram da aflição material.”

Texto

dṛtaya iva śvasanty asu-bhṛto yadi te ’nuvidhā
mahad-aham-ādayo ’ṇḍam asṛjan yad-anugrahataḥ
puruṣa-vidho ’nvayo ’tra caramo ’nna-mayādiṣu yaḥ
sad-asataḥ paraṁ tvam atha yad eṣv avaśeṣam ṛtam

Sinônimos

dṛtayaḥ — foles; iva — como se; śvasanti — respiram; asu-bhṛtaḥ — vivos; yadi — se; te — Vossos; anuvidhāḥ — fiéis seguidores; mahat — a energia material total; aham — falso ego; ādayaḥ — e os outros elementos da criação; aṇḍam — o ovo universal; asṛjan — produziram; yat — cuja; anugrahataḥ — pela misericórdia; puruṣa — da entidade viva; vidhaḥ — segundo as formas particulares; anvayaḥ — cuja entra­da; atra — entre estas; caramaḥ — o último; anna-maya-ādiṣu — entre as manifestações conhecidas como anna-maya etc.; yaḥ — que; sat­-asataḥ — da matéria grosseira e sutil; param — distinta; tvam — Vós; atha — e além disso; yat — que; eṣu — entre estas; avaśeṣam — subjacente; ṛtam — a realidade.

Tradução

Apenas quando se tornam Vossos fiéis seguidores é que aqueles que respiram estão de fato vivos; do contrário, sua respiração é como a de um fole. É apenas por Vossa misericórdia que os elementos, a começar do mahat-tattva e falso ego, criaram este universo ovoi­de. Entre as manifestações conhecidas como anna-maya e assim por diante, sois a última delas, que entra nas coberturas mate­riais juntamente com a entidade viva e assume as mesmas formas que esta aceita. Distinto das manifestações materiais grosseiras e sutis, sois a realidade subjacente a todas elas.

Comentário

SIGNIFICADO—A vida não tem objetivo para quem permanece ignorante de seu benfeitor mais benévolo e, assim, deixa de adorá-lO. A respiração de alguém assim não é melhor do que a respiração de um fole de ferreiro. A dádiva de se ter uma vida humana é uma oportunidade afortunada para a alma condicionada, mas, por afastar-se de seu Senhor, o ser vivo comete suicídio espiritual.

Nas palavras da Śrī Īśopaniṣad (3):

asuryā nāma te lokā
andhena tamasāvṛtāḥ
tāṁs te pretyābhigacchanti
ye ke cātma-hano janāḥ

“O matador da alma, não importa quem seja, tem de entrar nos planetas conhecidos como os mundos dos infiéis, cheios de trevas e ignorância.” Asuryāḥ significa “para ser obtido por demônios”, e demônios são pessoas que não têm devoção pelo Senhor Supremo, Viṣṇu. Essa definição é dada no Agni Purāṇa:

dvau bhūta-sargau loke ’smin
daiva āsura eva ca
viṣṇu-bhakti-paro daiva
āsuras tad-viparyayaḥ

“Há duas espécies de seres criados neste mundo: os divinos e os de­moníacos. Aqueles que se dedicam ao serviço devocional do Senhor Viṣṇu são divinos, e os que se opõem a tal serviço são demoníacos.”

De modo semelhante, a Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad (4.4.15) afirma que na ced avedīn mahatī vinaṣṭiḥ... ye tad vidur amṛtās te bhavanty athetare duḥkham evopayanti: “Se alguém não chega a conhecer o Supremo, ele tem de sofrer completa destruição... Aqueles que compreendem o Supremo tornam-se imortais, mas os demais inevitavel­mente sofrem.” A pessoa deve reviver sua consciência de Kṛṣṇa para se aliviar do sofrimento causado pela ignorância, mas o processo pelo qual se faz isso não precisa ser difícil, como o Senhor Kṛṣṇa nos garante na Bhagavad-gītā (9.34):

man-manā bhava mad-bhakto
mad-yājī māṁ namaskuru
mām evaiṣyasi yuktvaivam
ātmānaṁ mat-parāyaṇaḥ

“Ocupa tua mente em pensar sempre em Mim, torna-te Meu devoto, oferece-Me reverências e Me adora. Estando absorto por completo em Mim, com certeza virás a Mim.” A despeito de desqualificações e fraquezas, a pessoa precisa apenas voluntariamente tornar-se anu­vidha, servo confiante e digno de confiança do Senhor Supremo. A Kaṭha Upaniṣad (2.2.13) proclama:

nityo nityānāṁ cetanaś cetanānām
eko bahūnāṁ yo vidadhāti kāmān
taṁ pīṭha-gaṁ ye ’nupaśyanti dhīrās
teṣāṁ śāntiḥ śāśvatī netareṣām

“Entre todos os seres conscientes eternos, existe um que supre as necessidades de todos os outros. As almas sábias que O adoram em Sua morada alcançam paz eterna; as demais não atingem esse fim.”

O que é vivo, e o que é morto? Os corpos e mentes dos não-devo­tos materialistas parecem exibir os sintomas de vida, mas essa aparên­cia é enganadora. De fato, a alma condicionada tem pouco controle sobre sua própria existência corpórea. Contra a vontade, ela tem de excretar dejetos, adoecer de vez em quando e, por fim, envelhecer e morrer. E em sua mente ela, sem querer, experimenta ira, desejo e lamentação. O Senhor Kṛṣṇa descreve essa situação como yantrārūḍhāni māyayā (Bhagavad-gītā 18.61), viajar desamparadamente como um pas­sageiro em um veículo mecânico. A alma sem dúvida é viva, e isso é irrevogável, mas, em sua ignorância, sua vida interior fica coberta e esquecida. Em seu lugar, o autômato da mente e do corpo externos executam os ditames dos modos da natureza, que a forçam a agir de modo totalmente irrelevante para as necessidades dormentes da alma. Invocando os esquecidos prisioneiros da ilusão, a Śvetāśvatara Upaniṣad (2.5) apela:

śṛṇvantu viśve amṛtasya putrā
ā ye dhāmāni divyāni tasthuḥ

“Todos vós filhos da imortalidade, escutai, vós que um dia vivíeis no reino divino!”

Assim, por um lado, o que normalmente se considera como vivo – o corpo material – é de fato uma máquina morta manipulada pelos modos da natureza. E, por outro lado, o que o materialista vê condescendentemente como matéria inerte destinada à exploração está, em sua essência desconhecida, conectada com uma inteligência viva muito mais poderosa do que a sua. A civilização védica reco­nhece que a inteligência por trás da natureza pertence a semideuses que regem os vários elementos e, em última análise, ao próprio Senhor Supremo. A matéria, afinal, não pode agir coerentemente sem o im­pulso e guia de uma força viva. Como Kṛṣṇa afirma na Bhagavad-­gītā (9.10):

mayādhyakṣeṇa prakṛtiḥ
sūyate sa-carācaram
hetunānena kaunteya
jagad viparivartate

“Esta natureza material, que é uma de Minhas energias, funciona sob Minha direção, ó filho de Kuntī, produzindo todos os seres móveis e inertes. Obedecendo-lhe ao comando, esta manifestação é criada e aniquilada repetidas vezes.”

No início da criação, o Senhor Mahā-Viṣṇu olhou para a natureza material adormecida, prakṛti. Assim despertada, a prakṛti sutil começou a evoluir e transformar-se em formas mais concretas: primeiro o mahat, então o falso ego em conjunção com cada um dos três modos de prakṛti, e gradualmente os vários elementos materiais, incluindo a inteligência, a mente, os sentidos e os cinco elementos físicos com os semideuses que os regem. Mesmo depois de torna­rem-se separadamente manifestas, porém, as deidades responsáveis pelos vários elementos não puderam trabalhar juntas para produzir o mundo perceptível até que o Senhor Viṣṇu, por Sua misericórdia especial, interviesse mais uma vez. Isso é descrito no terceiro canto do Śrīmad-Bhāgavatam (3.5.38-39):

ete devāḥ kalā viṣṇoḥ
kāla-māyāṁśa-liṅginaḥ
nānātvāt sva-kriyānīśāḥ
procuḥ prāñjalayo vibhum
devā ūcuḥ
nanāma te deva padāravindaṁ
prapanna-tāpopaśamātapatram
yan-mūla-ketā yatayo ’ñjasoru-
saṁsāra-duḥkhaṁ bahir utkṣipanti

“As deidades controladoras desses elementos físicos são expansões do Senhor Viṣṇu dotadas de poder. Elas são corporificadas pelo tempo eterno sob a influência da energia externa, e são Suas partes integrantes. Por terem sido incumbidas de diferentes funções dos deveres universais e não terem sido capazes de executá-los, elas ofereceram fascinantes orações ao Senhor. Os semideuses disseram: ‘Ó Senhor, Vossos pés de lótus são como um guarda-chuva para as almas rendi­das, que as protege de todos os sofrimentos da existência material. Todos os sábios sob aquele abrigo lançam fora todos os sofrimentos materiais. Por isso, oferecemos nossas respeitosas reverências a Vossos pés de lótus.’”

Ouvindo as orações de todos os semideuses dos elementos, o Senhor Supremo mostrou-lhes, então, Seu favor (Śrīmad-Bhāgavatam 3.6.1-3):

iti tāsāṁ sva-śaktīnāṁ
satīnām asametya saḥ
prasupta-loka-tantrāṇāṁ
niśāmya gatim īśvaraḥ
kāla-saṁjñāṁ tadā devīṁ
bibhrac chaktim urukramaḥ
trayoviṁśati tattvānāṁ
gaṇaṁ yugapad āviśat
so ’nupraviṣṭo bhagavāṁś
ceṣṭā-rūpeṇa taṁ gaṇam
bhinnaṁ saṁyojayām āsa
suptaṁ karma prabodhayan

“Assim, o Senhor ouviu falar da suspensão das funções criadoras progressivas do universo devido à não-combinação de Suas potên­cias, tais como o mahat-tattva. Então, o Supremo e Poderoso Senhor entrou simultaneamente nos vinte e três elementos com a deusa Kālī, Sua energia externa, que sozinha amalgama todos os diferentes ele­mentos. Deste modo, quando a Personalidade de Deus entrou nos elementos através de Sua energia, todas as entidades vivas foram rea­nimadas para executar diferentes atividades, assim como uma pessoa dedica-se a seu trabalho após despertar do sono.”

Em Kṛṣṇa, Śrīla Prabhupāda explica os cinco níveis de ego que cobrem o eu: “Dentro do corpo, há cinco diferentes departamentos de existência, conhecidos como anna-maya, prāṇa-maya, mano-maya, vijñāna-maya e, por fim, ānanda-maya. [Estes são enumerados no Brahmānanda-vallī da Taittirīya Upaniṣad.] No início da vida, toda entidade viva tem consciência da comida. Uma criança ou um ani­mal se satisfaz apenas por conseguir boa comida. Essa fase da consciência, em que a meta é comer suntuosamente, chama-se anna­-maya. Anna quer dizer ‘alimento’. Depois disso, vive-se na consciência de estar vivo. Se a pessoa pode continuar a viver sem ser atacada ou destruída, ela se considera feliz. Essa fase se chama prāṇa-maya, ou consciência da própria existência. Depois dessa fase, quando a pessoa se situa na plataforma mental, essa consciência se chama mano-maya. A civilização material situa-se sobretudo nestas três fases – anna-maya, prāṇa-maya e mano-maya. A primeira preo­cupação das pessoas civilizadas é o desenvolvimento econômico. A próxima é a defesa contra a aniquilação, e a consciência seguinte é a especulação mental, a abordagem filosófica dos valores da vida.”

“Se, pelo processo evolutivo da vida filosófica, acontece de alguém alcançar a plataforma de vida intelectual e compreende que não é o corpo material, mas sim alma espiritual, ele se situa na fase vijñāna-­maya. Então, pela evolução da vida espiritual, ele entende o Senhor Supremo, ou a Alma Suprema. Quando a pessoa desenvolve sua relação com Ele e executa serviço devocional, essa fase da vida se chama consciência de Kṛṣṇa, a fase ānanda-maya. Ānanda-maya é a vida bem-aventurada de conhecimento e eternidade. Como se diz no Vedānta-sūtra, ānanda-mayo ’bhyāsāt. O Brahman Supremo e o Brahman subordinado, ou a Suprema Personalidade de Deus e as entidades vivas, são ambos felizes por natureza. Enquanto as entidades vivas estão situadas nas quatro fases inferiores de vida – anna-­maya, prāṇa-maya, mano-maya e vijñāna-maya –, considera-se que elas se encontram na condição de vida material, mas, logo que alguém alcança a fase de ānanda-maya, torna-se uma alma liberada. A Bhagavad-gītā chama essa fase ānanda-maya de fase brahma-bhūta. Ali, declara-se que não existe ansiedade nem aspirações na fase brahma-bhūta de vida. Essa fase começa quando a pessoa tem a mesma disposi­ção para com todas as entidades vivas, após o que se expande até a fase da consciência de Kṛṣṇa, na qual a pessoa deseja prestar serviço à Suprema Personalidade de Deus. Esse desejo de avançar no serviço devocional não é o mesmo que desejar o gozo dos sentidos na exis­tência material. Em outras palavras, o desejo continua na vida espiri­tual, mas ele se purifica. Quando se purificam, nossos sentidos ficam livres de todas as fases materiais, a saber, anna-maya, prāṇa-maya, mano-maya e vijñāna-maya, e situam-se na fase mais elevada – ānanda-maya, ou a vida bem-aventurada em consciência de Kṛṣṇa.”

“Os filósofos māyāvādīs consideram ānanda-maya como o estado em que se está imerso no Supremo. Para eles, ānanda-maya significa que a Superalma e a alma individual se tornam unas. Mas o fato verdadeiro é que unidade não quer dizer fundir-se no Supremo e perder a própria existência individual. Fundir-se na existência espiritual é a compreensão que a entidade viva tem da unidade qualitativa com o Senhor Supremo em Seus aspectos de eternidade e conhecimen­to. Mas a verdadeira fase ānanda-maya (bem-aventurada) se obtém quando a pessoa se ocupa no serviço devocional. Isso se confirma na Bhagavad-gītā: mad-bhaktiṁ labhate parām. A fase brahma-bhūta ānanda-maya só está completa quando existe intercâmbio de amor entre o Supremo e as entidades vivas subordinadas. A menos que alguém chegue a esta fase ānanda-maya de vida, sua respiração é como o respirar de um fole na oficina do ferreiro, a duração de sua vida é como a da árvore, e ele não é melhor do que animais inferiores, como os camelos, porcos e cães.”

Ao acompanhar a jīva dentro das coberturas de māyā, o Paramātmā não está preso pelo enredamento kármico como a jīva. Em vez disso, a conexão da Alma Suprema com essas coberturas é como a aparente conexão da Lua com alguns galhos de árvore através dos quais ela é vista. A Superalma é sad-asataḥ param, sempre transcendental às manifestações sutis e grosseiras de anna-maya e assim por diante, embora entre no meio delas como a testemunha que sanciona todas as atividades. Como causa final delas, a Superalma é, em certo sen­tido, idêntica aos produtos manifestados da criação, mas, em Sua identidade original (svarūpa), Ele permanece distinto. Neste segundo sentido, Ele é ānanda-maya sozinho, o último dos cinco kośas. Por­tanto, os śrutis dirigem-se a Ele aqui como avaśeṣam, a essência remanescente. Isso também está expresso no verso da Taittirīya Upaniṣad (2.7): raso vai saḥ. Dentro de Sua essência pessoal, o Senhor Supremo desfruta de rasa, a reciprocação das doçuras do serviço devocional, e integral ao jogo das rasas está a participação das jīvas rea­lizadas. Raso vai saḥ rasam hy evāyaṁ labdhvānandī bhavati: “Ele é a personificação de rasa, e a jīva que compreende rasa torna-se completamente extática.” Ou, nas palavras dos Vedas personificados que oram neste verso, a Superalma é ṛtam, que Śrīla Viśvanātha Ca­kravartī aqui interpreta como significando “compreendido por grandes sábios”.

Na opinião de Śrīla Viśvanātha Cakravartī, a última palavra de todas as escrituras autorizadas (sarvāntima-śruti) acha-se no aforis­mo raso vai saḥ, que é demonstravelmente uma referência ao Senhor Śrī Kṛṣṇa como a encarnação do prazer divino que se expande infi­nitamente (sarva-bṛhattamānanda). O Gopāla-tāpanī śruti (Uttara 96) declara, yo ’sau jāgrat-svapna-suṣuptim atītya turyātīto gopālaḥ: “O Senhor Kṛṣṇa, o vaqueiro, transcende não apenas a consciên­cia material de vigília, sonho e sono profundo, mas também o quarto reino da consciência espiritual pura.” A Superalma ānanda-maya é apenas um aspecto do primordial Senhor Govinda, como Ele declarou, viṣṭabhyāham idaṁ kṛtsnam ekāṁśena sthito jagat: “Com um simples fragmento de Mim mesmo, Eu penetro e sustento todo este universo.” (Bhagavad-gītā 10.42)

Os śrutis assim afirmam com muito tato que mesmo entre as várias formas pessoais da Divindade, Kṛṣṇa é o supremo. Compreendendo isso, Nārada Muni mais tarde oferecerá reverências ao Senhor Kṛṣṇa com as palavras namas tasmai bhagavate kṛṣṇāyāmala-kīrtaye (verso 46), muito embora Ele esteja diante do Senhor Nārāyaṇa Ṛṣi.

Śrīla Śrīdhara Svāmī conclui seus comentários sobre este verso com a oração:

nara-vapuḥ pratipādya yadi tvayi
śravaṇa-varṇana-saṁsmaraṇādibhiḥ
nara-hare na bhajanti nṛṇām idaṁ
dṛti-vad ucchvasitaṁ viphalaṁ tataḥ

“Ó Senhor Narahari, pessoas que alcançaram esta forma humana vivem em vão, apenas respirando como foles, caso deixem de Vos adorar através dos processos de ouvir sobre Vós, cantar Vossas gló­rias, lembrar-se de Vós e executar as outras práticas devocionais.”

Texto

udaram upāsate ya ṛṣi-vartmasu kūrpa-dṛśaḥ
parisara-paddhatiṁ hṛdayam āruṇayo daharam
tata udagād ananta tava dhāma śiraḥ paramaṁ
punar iha yat sametya na patanti kṛtānta-mukhe

Sinônimos

udaram — o abdômen; upāsate — adoram; ye — os que; ṛṣi — dos sábios; vartmasu — segundo os métodos padrão; kūrpa — grosseira; dṛśaḥ — cuja visão; parisara — do qual emanam todos os canais prânicos; paddhatim — o nó; hṛdayam — o coração; āruṇayaḥ — os sábios Āruṇis; daharam — sutil; tataḥ — de lá; udagāt — (a alma) se ergue; ananta — ó Senhor ilimitado; tava — Vosso; dhāma — lugar de aparecimento; śiraḥ — à cabeça; paramam — o destino mais elevado; punaḥ­ — de novo; iha — neste mundo; yat — que; sametya — alcançando; na pa­tanti — não caem; kṛta-anta — da morte; mukhe — na boca.

Tradução

Dentre os seguidores dos métodos estabelecidos por grandes sábios, aqueles com visão menos refinada adoram o Supremo como presente na região do abdômen, enquanto os Āruṇis adoram-nO como presente no coração, no centro sutil do qual emanam todos os canais prânicos. Dali, ó Senhor ilimitado, esses adoradores elevam sua consciência até o topo da cabeça, onde podem perce­ber-Vos diretamente. Então, atravessando o topo da cabeça rumo ao destino supremo, eles alcançam aquele lugar do qual jamais voltarão a cair neste mundo, na boca da morte.

Comentário

SIGNIFICADO—Nesta passagem, os śrutis que ensinam o yoga da meditação glorificam a Personalidade de Deus. Os vários processos de yoga são, em sua maioria, graduais e cheios de oportunidades de distração. Métodos autênticos de yoga, no entanto, visam todos à meditação na Superalma (Paramātmā), cuja residência primária está na região do coração ao lado da alma jīva. Essa manifestação do Paramātmā no coração é muito sutil e difícil de perceber (daharam), daí só yogīs avançados poderem perceber Sua presença ali.

Meditadores neófitos costumam praticar o processo de focalizar a presença secundária da Superalma em um dos centros inferiores de energia vital, tais como o mūlādhāra-cakra, na base da espinha; o svādhiṣṭhāna-cakra, na área do umbigo; ou o maṇipūra-cakra, no abdômen. O Senhor Kṛṣṇa refere-Se à Sua expansão como Paramātmā no cakra abdominal da seguinte maneira:

ahaṁ vaiśvānaro bhūtvā
prāṇinaṁ deham āsthitaḥ
prāṇāpāna-samāyuktaḥ
pacāmy annaṁ catur-vidham

“Nos corpos de todas as entidades vivas, Eu sou o fogo da diges­tão e Me uno ao ar vital, que sai e que entra, para digerir as quatro espécies de alimentos.” (Bhagavad-gītā 15.14) O Senhor Vaiśvānara rege a digestão e, em geral, concede a capacidade de movimento aos animais, seres humanos e semideuses. No julgamento dos śrutis que falam este verso, aqueles que limitam sua meditação a essa forma do Senhor são menos inteligentes, kūrpa-dṛśaḥ, o que literalmente significa “com olhos obstruídos pela poeira”.

Os yogīs superiores conhecidos como Āruṇis, por outro lado, adoram a Superalma em Sua forma de companheiro da jīva, o qual habita no coração, o Senhor que dota Seu dependente com o poder de co­nhecimento e que o inspira com todas as variedades de inteligência prática. E assim como o coração físico é o centro da circulação san­guínea, do mesmo modo o sutil cakra do coração é a encruzilhada de numerosos canais de prāṇa, chamados nāḍīs, que se estendem para todas as partes do corpo. Quando essas passagens foram bastan­te purificadas, os yogīs Āruṇis podem deixar a região do coração e se elevar ao cakra no topo do cérebro. Os yogīs que abandonam o corpo através desse cakra, o brahma-randhra, vão direto para o reino de Deus, de onde jamais precisam retornar. Dessa maneira, até mesmo o processo inseguro do yoga meditacional pode produzir o fruto da devoção pura se for seguido com perfeição.

Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura cita vários śruti-mantras que ecoam as palavras deste verso, udaraṁ brahmeti śārkarākṣā upāsate hṛdayaṁ brahmeti āruṇayo brahmā haivaitā ita ūrdhvaṁ tv evodasarpat tac-chiro ’śrayate: “Aqueles cuja visão está obscurecida iden­tificam o Brahman com o abdômen, ao passo que os Āruṇis adoram o Brahman no coração. Quem de fato compreendeu o Brahman viaja do coração ao topo da cabeça, onde se refugia no Senhor que ali Se manifesta.”

śataṁ caikā ca hṛdayasya nāḍyas
tāsāṁ mūrdhānam abhiniḥsṛtaikā
tayordhvam āyann amṛtatvam eti
viśvaṅṅ anyā utkramaṇe bhavanti

“Há cento e um canais prânicos sutis que emanam do coração. Um destes – o suṣumṇā – estende-se até o topo da cabeça. Elevando-­se através desse canal, a pessoa transcende a morte. Os outros canais levam a todas as direções, a várias espécies de renascimento.” (Chāndogya Upaniṣad 8.6.6)

As Upaniṣads referem-se repetidamente ao Paramātmā interior. A Śrī Śvetāśvatara Upaniṣad (3.12-13) descreve-O assim:

mahān prabhur vai puruṣaḥ
sattvasyaiṣa pravartakaḥ
su-nirmalāṁ imāṁ prāptim
īśāno jyotir avyayaḥ
aṅguṣṭha-mātraḥ puruṣo ’ntar-ātmā
sadā janānāṁ hṛdaye sanniviṣṭaḥ
hṛdā manīṣā manasābhikḷpto
ya etad vidur amṛtās te bhavanti

“A Suprema Personalidade de Deus torna-Se o Puruṣa para iniciar a expansão deste cosmos. Ele é a meta perfeitamente pura que os yogīs lutam por alcançar, o refulgente e infalível controlador último. Medindo o tamanho de um polegar, o Puruṣa está sempre presente como a Superalma dentro dos corações de todos os seres vivos. Pelo exer­cício adequado da inteligência, pode-se percebê-lO dentro do coração; aqueles que aprendem este método lograrão a imortalidade.”

Em conclusão, Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

udarādiṣu yaḥ puṁsāṁ
cintito muni-vartmabhiḥ
hanti mṛtyu-bhayam devo
hṛd-gataṁ tam upāsmahe

“Adoremos o Senhor Supremo, que reside no coração. Quando os seres mortais pensam nEle mediante os processos clássicos estabelecidos pelos grandes sábios e meditam nEle presente em Suas ex­pansões no abdômen e em outras regiões do corpo, o Senhor retribui destruindo todo o medo da morte.”

Texto

sva-kṛta-vicitra-yoniṣu viśann iva hetutayā
taratamataś cakāssy anala-vat sva-kṛtānukṛtiḥ
atha vitathāsv amūṣv avitathāṁ tava dhāma samaṁ
viraja-dhiyo ’nuyanty abhivipaṇyava eka-rasam

Sinônimos

sva — por Vós mesmo; kṛta — criadas; vicitra — variegadas; yoniṣu — dentro das espécies de vida; viśan — entrando; iva — aparentemente; hetutayā — como a motivação delas; taratamataḥ — segundo hierarquias; cakāssi — Vós Vos tornais visível; anala-vat — como o fogo; sva — Vossa; kta — criação; anukṛtiḥ — imitando; atha — portanto; vitathāsu — irreais; amūṣu — entre estas (várias espécies); avitatham — não irreal; tava — Vossa; dhāma — manifestação; samam — não diferenciada; viraja — imaculadas; dhiyaḥ — cujas mentes; anuyanti — compreendem; abhivipaṇyavaḥ — aqueles que estão livres de todos os enredamentos materiais (paṇa); eka-rasam — imutável.

Tradução

Aparentemente entrando nas várias espécies de seres vivos que criastes, Vós os inspirais a agir, manifestando-Vos segundo suas posições superiores e inferiores, assim como o fogo se manifesta de maneiras diferentes segundo a forma daquilo que ele queima. Portanto, pessoas de inteligência imaculada, que estão completamente livres de apegos materiais, compreendem que Vosso eu indiferenciado e imutável é a realidade permanente entre todas estas impermanentes formas de vida.

Comentário

SIGNIFICADO—Ouvindo essas orações dos Vedas personificados, em que os śrutis descrevem que a Superalma entra em incontáveis variedades de corpos materiais, um crítico talvez pergunte como o Supremo pode fazer isso sem tornar-Se limitado. De fato, proponentes da filosofia advaita não veem distinção essencial entre a Alma Suprema e Sua criação. Na concepção dos impersonalistas, o Absoluto inexplicavelmente ficou preso na armadilha da ilusão e, assim, tornou-Se primeiro um Deus pessoal e, depois, os semideuses, seres humanos, animais, plantas e, por fim, a matéria. Śaṅkarācārya e seus seguidores encontram enorme dificuldade para citar evidências védicas em apoio a essa teoria de como a ilusão se impôs ao Absoluto. Todavia, falando em seu próprio nome, os Vedas aqui respondem a essa objeção e se recusam a emprestar sua autoridade ao impersonalismo māyāvāda

O processo de criação chama-se, tecnicamente, sṛṣṭi, “emissão”. O Senhor Supremo emite Suas variadas energias, e essas partilham de Sua natureza, embora permaneçam distintas dEle. Esse fato é expres­so na verdadeira filosofia védica de acintya-bhedābheda, as inconce­bíveis unidade e diferença simultâneas do Senhor Supremo e Suas energias. Assim, embora cada uma das incontáveis almas individuais seja uma entidade distinta, todas as almas consistem na mesma subs­tância espiritual que o Supremo. Como partilham da essência espiri­tual do Senhor Supremo, as jīvas são não nascidas e eternas, assim como Ele o é. O Senhor Kṛṣṇa, falando a Arjuna no Campo de Ba­talha de Kurukṣetra, confirma isso:

na tv evāhaṁ jātu nāsaṁ
na tvaṁ neme janādhipāḥ
na caiva na bhaviṣyāmaḥ
sarve vayam ataḥ param

“Nunca houve um tempo em que Eu não existisse, nem tu, nem todos esses reis; e no futuro nenhum de nós deixará de existir.” (Bhagavad-gītā 2.12) A criação material é um arranjo especial para aquelas jīvas que escolheram separar-se do serviço ao Senhor Supremo, e, dessa manei­ra, a criação envolve a produção de um mundo de imitação onde elas podem tentar ser independentes.

Depois de criar as muitas espécies de vida material, o Senhor Supremo expande-Se em Sua própria criação como a Superalma a fim de prover a inteligência e inspiração de que cada ser vivo necessita para sua existência cotidiana. Como se afirma na Taittirīya Upaniṣad (2.6.2), tat sṛṣṭvā tad evānuprāviśat: “Depois de criar este mundo, Ele, então, entrou no mundo.” O Senhor entra no mundo material, mas sem formar nenhum vínculo que O prenda a ele; isso os śrutis decla­ram neste trecho com a frase viśann iva, “apenas parecendo entrar”. Taratamataś cakāssi significa que o Paramātmā entra no corpo de cada ser vivo, do eminente semideus Brahmā até o germe insigni­ficante, e exibe diferentes graus de Sua potência segundo a capaci­dade de iluminação de cada alma. Analavat sva-kṛtānukṛtiḥ: Assim como o fogo aceso em vários objetos queima segundo as diferentes formas daqueles objetos, de igual modo a Alma Suprema, entrando nos corpos de todas as criaturas vivas, ilumina a consciência de cada alma condicionada segundo a capacidade individual dela.

Mesmo no meio da criação e destruição materiais, o Senhor de todas as criaturas permanece eternamente inalterado, como o expres­sa aqui a palavra eka-rasam. Em outras palavras, o Senhor mantém eternamente Sua forma pessoal de prazer espiritual imensurável e imaculado. Os raros seres vivos que se desvencilham por comple­to (abhitas) das atividades materiais, ou paṇa (tornando-se, portanto, abhivipaṇyavaḥ), chegam a conhecer o Senhor como Ele é. Todo homem inteligente deve seguir o exemplo dessas grandes almas e suplicar-lhes a oportunidade de também se ocupar no serviço devo­cional ao Senhor Supremo.

Esta oração é recitada por śrutis cuja atitude se assemelha àquela que expressa o seguinte mantra da Śvetāśvatara Upaniṣad (6.11):

eko devaḥ sarva-bhūteṣu gūḍhaḥ
sarva-vyāpī sarva-bhūtāntarātmā
karmādhyakṣaḥ sarva-bhūtādhivāsaḥ
sākṣī cetā kevalo nirguṇaś ca

“O Senhor Supremo único vive oculto dentro de todas as coisas cria­das. Ele permeia toda a matéria e está sentado nos corações de todos os seres vivos. Como a Superalma que mora em seu coração, Ele supervisiona suas atividades materiais. Assim, embora não tenha qualidades materiais, Ele é a única testemunha e aquele que dá consciência.”

Śrīla Śrīdhara Svāmī apresenta sua própria oração:

sva-nirmiteṣu kāryeṣu
tāratamya-vivarjitam
sarvānusyūta-san-mātraṁ
bhagavantaṁ bhajāmahe

“Adoremos o Senhor Supremo, que entra nos produtos de Sua própria criação, mas permanece à parte das gradações materiais superio­res e inferiores deles. Ele é a existência indiferenciada e pura que tudo permeia.”

Texto

sva-kṛta-pureṣv amīṣv abahir-antara-saṁvaraṇaṁ
tava puruṣaṁ vadanty akhila-śakti-dhṛto ’ṁśa-kṛtam
iti nṛ-gatiṁ vivicya kavayo nigamāvapanaṁ
bhavata upāsate ’ṅghrim abhavam bhuvi viśvasitāḥ

Sinônimos

sva — por ele mesmo; kṛta — criados; pureṣu — nos corpos; amīṣu — estes; abahiḥ — não externamente; antara — ou internamente; saṁvaraṇam — cujo envoltório real; tava — Vossa; puruṣam — entidade viva; vadanti — (os Vedas) dizem; akhila — de todas; śakti — as energias; dhṛtaḥ — do possuidor; aṁśa — como a expansão; kṛtam — manifesta­da; iti — desta maneira; nṛ — da entidade viva; gatim — a posição; vi­vicya — determinando; kavayaḥ — sábios eruditos; nigama — dos Vedas; āvapanam — o campo em que são semeadas todas as oferendas; bhavataḥ — Vossos; upāsate — adoram; aṅghrim — os pés; abhavam — que provocam a cessação da existência material; bhuvi — na Terra; viśvasitāḥ — tendo desenvolvido fé.

Tradução

O ser vivo individual, embora habite os corpos materiais que criou para si mesmo por meio de seu karma, de fato não é coberto nem pela matéria sutil nem pela grosseira. Isso acontece assim porque, como descrevem os Vedas, ele é parte integrante de Vós, o possuidor de todas as potências. Tendo determinado que esta é a posição da entidade viva, os sábios eruditos ficam imbuídos de fé e adoram Vossos pés de lótus, aos quais se ofere­cem todos os sacrifícios védicos neste mundo e que são a fonte da liberação.

Comentário

SIGNIFICADO—Não somente o Senhor Supremo permanece por completo incontaminado quando reside nos corpos materiais das almas condicionadas, mas também as infinitesimais almas jīvas jamais são tocadas diretamen­te pelas coberturas de ignorância e luxúria que adquirem enquanto passam por repetidos ciclos de nascimentos e mortes. Por isso, a Taittirīya Upaniṣad (3.10.5) proclama que sa yaś cāyaṁ puruṣe yaś cāsāv āditye sa ekaḥ: “A alma do ser vivo corporificado é una com aquele que se encontra dentro do Sol.” De modo semelhante, a Chāndogya Upaniṣad (6.8.7) ensina que tat tvam asi: “Tu não és diferente daquela Verdade Suprema.”

Nesta oração, os Vedas personificados referem-se ao desfrutador finito dos corpos materiais (a alma jīva) como uma expansão do reservatório transcendental de todas as potências, o Senhor Supremo. O termo aṁśa-kṛtam, “feito como Sua porção”, deve ser compreen­dido de maneira adequada, porém, neste contexto. A jīva não é criada em tempo algum, nem é da mesma espécie de expansão do Senhor que as onipotentes expansões viṣṇu-tattvas. A Alma Suprema é o objeto adequado de toda adoração, e a alma jīva subordinada destina­-se a ser Seu adorador. O Senhor Supremo encena Seus passatem­pos mostrando-Se em inumeráveis aspectos de Sua personalidade, ao passo que a jīva é forçada a mudar de corpos sempre que suas reações kármicas acumuladas assim o ditam. Segundo o Śrī Nārada Pañcarātra:

yat taṭa-sthaṁ tu cid-rūpaṁ
sva-saṁvedyād vinirgatam
rañjitaṁ guṇa-rāgeṇa
sa jīva iti kathyate

“A potência marginal, que é espiritual por natureza, que emana da energia saṁvit autoconsciente e que fica maculada por seu apego aos modos da natureza material, chama-se jīva.”

Embora seja também uma expansão do Senhor Kṛṣṇa, a alma jīva se distingue das independentes expansões Viṣṇu de Kṛṣṇa por sua posição constitucional situada na margem entre o espírito e a maté­ria. Como explica o Mahā-varāha Purāṇa:

svāṁśaś cātha vibhinnāṁśa
iti dvidhā śa iṣyate
aṁśino yat tu sāmarthyaṁ
yat-svarūpaṁ yathā sthitiḥ
tad eva nāṇu-mātro ’pi
bhedaṁ svāṁśāṁśinoḥ kvacit
vibhinnāṁśo ’lpa-śaktiḥ syāt
kiñcit sāmarthya-mātra-yuk

“O Senhor Supremo é conhecido de duas maneiras: em termos de Suas expansões plenárias e de Suas expansões separadas. Entre as expansões plenárias e Sua fonte de expansão, jamais existe diferença essencial alguma quanto a Suas capacidades, formas ou situações. As expansões separadas, por outro lado, possuem apenas uma potência diminuta, sendo dotadas somente até certo ponto com os poderes do Senhor.”

A alma condicionada neste mundo parece como que coberta pela matéria, tanto interna quanto externamente. Externamente, a matéria grosseira a rodeia sob as formas de seu corpo e ambiente, enquanto, internamente, o desejo e a aversão influem em sua consciência. Todavia, da perspectiva transcendental dos sábios autorrealizados, ambas as espécies de cobertura material não têm substância. Pela eliminação lógica de todas as identidades materiais, que são erros de conceitua­ção baseados nas coberturas grosseira e sutil da alma, uma pessoa reflexiva pode determinar que a alma não é nada material. Ela é, na verdade, uma centelha pura do espírito divino, um servo da Divinda­de Suprema. Compreendendo isso, a pessoa deve adorar os pés de lótus do Senhor Supremo; tal adoração é a flor plenamente desabro­chada da árvore dos rituais védicos. A compreensão que se tem do esplendor dos pés de lótus do Senhor, nutrida aos poucos pelo oferecimento de sacrifícios védicos, produz automaticamente frutos tais como a liberação da existência material e a irrevogável fé na miseri­córdia do Senhor. Pode-se efetuar tudo isso enquanto ainda se vive no mundo material. Como declara o Senhor na Gopāla-tāpanī Upaniṣad (Uttara 47):

mathurā-maṇḍale yas tu
jambūdvīpe sthito ’tha vā
yo ’rcayet pratimāṁ prati
sa me priyataro bhuvi

“Quem Me adora sob Minha forma de Deidade enquanto vive no distrito de Mathurā ou, de fato, em qualquer lugar de Jambūdvīpa, torna-se muito querido para Mim neste mundo.”

Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

tvad-aṁśasya mameśāna
tvan-māyā-kṛta-bandhanam
tvad-aṅghri-sevām ādiśya
parānanda nivartaya

“Meu Senhor, por favor, libertai a Mim, Vossa expansão parcial, do cativeiro criado por Vossa māyā. Por favor, fazei isso, ó morada da suprema bem-aventurança, encaminhando-me ao serviço de Vossos pés.”

Texto

duravagamātma-tattva-nigamāya tavātta-tanoś carita-mahāmṛtābdhi-parivarta-pariśramaṇāḥ
na parilaṣanti kecid apavargam apīśvara te caraṇa-saroja-haṁsa-kula-saṅga-visṛṣṭa-gṛhāḥ

Sinônimos

duravagama — difícil de compreender; ātma — do eu; tattva — a verdade; nigamāya — a fim de propagar; tava — de Vós; ātta — que assumistes; tanoḥ — Vossas formas pessoais; carita — dos passatempos; mahā — vasto; amṛta — de néctar; abdhi — no oceano; parivarta — mergulhando; pariśramanāḥ — que foram aliviados da fadiga; na parila­ṣanti — não anseiam por; kecit — algumas pessoas; apavargam — liberação; api — mesmo; īśvara — ó Senhor; te — Vossos; caraṇa — aos pés; saroja — lótus; haṁsa — de cisnes; kula — com a comunidade; saṅga — por causa da associação; visṛṣṭa — abandonados; gṛhāḥ — cujos lares.

Tradução

Meu Senhor, algumas almas afortunadas obtiveram alívio da fadiga da vida material mergulhando no vasto oceano de néctar de Vossos passatempos, que encenais quando manifestais Vossas formas pessoais para propagar a insondável ciência do eu. Essas almas raras, indiferentes até mesmo à liberação, renunciam à felicidade do lar e da família por causa de sua associação com devo­tos que são como bandos de cisnes a se deleitarem próximo ao lótus de Vossos pés.

Comentário

SIGNIFICADO—Os brāhmaṇas ritualistas (smārtas) e os impersonalistas (māyā­vādīs) sempre tentam relegar o processo de bhakti-yoga a um papel relativo ou menor. Eles dizem que a devoção à Personalidade de Deus é para sentimentalistas que carecem de maturidade para obser­var rituais estritos ou dedicar-se ao rigoroso cultivo de conhecimento.

Neste verso, todavia, os Vedas personificados declaram de modo muito enfático a sobre-excelência do serviço devocional, identifican­do-o claramente com o ātma-tattva, a ciência do eu que os imperso­nalistas alegam com tanto orgulho ser algo do seu domínio pessoal. Śrīla Jīva Gosvāmī aqui define ātma-tattva como o mistério confidencial das formas pessoais, qualidades e passatempos do Senhor Supremo. Ele também apresenta um segundo sentido para a expressão ātta-tanoh. Em vez de significar “que assume vários corpos”, a expressão também pode significar “aquele que atrai a todos para Seu corpo transcendental”.

Os passatempos do Senhor Kṛṣṇa e Suas várias expansões e encarnações são um insondável oceano de desfrute. Quando alguém chega ao ponto de completa exaustão em suas buscas materialistas – quer tenha estado buscando o sucesso material, quer alguma noção impessoal de aniquilação espiritual –, ele pode obter alívio submergindo-se nesse néctar. Como Śrīla Rūpa Gosvāmī explica em seu compêndio sobre a ciência de bhakti-yoga, o Śrī Bhakti-rasāmṛta-sindhu (traduzido por Śrīla Prabhupāda como O Néctar da Devoção), quem saborear ao menos uma gota deste vasto oceano perderá para sempre todo desejo de qualquer outra coisa.

Dando uma interpretação alternativa à palavra pariśramaṇāḥ, Śrīla Viśvanātha Cakravartī comenta que, embora os devotos do Senhor fiquem fatigados após repetidos mergulhos nas infinitas ondas e correntes profundas do oceano dos passatempos de prazer do Senhor, esses devotos jamais desejam qualquer felicidade que não seja o serviço ao Senhor, nem mesmo a felicidade da liberação. Em vez disso, sua própria fadiga converte-se em prazer para eles, assim como a fadiga produzida pelo gozo sexual é prazerosa para os que são afei­tos à atividade sexual. Os devotos puros do Senhor Supremo ficam entusiasmados ao ouvirem as encantadoras narrações de Seus passatempos e se sentem impelidos a dançar, cantar, gritar bem alto, bater os calcanhares, desmaiar, soluçar e correr de um lado para o outro como loucos. Dessa maneira, ficam absortos demais em êxtase para notar qualquer desconforto físico.

Os vaiṣṇavas puros não desejam nem mesmo a liberação; isso para não falar de outras metas desejáveis, como uma elevada posição de regente dos planetas celestiais. Segundo a opinião geral, este grau de dedicação exclusiva é alcançado apenas raramente neste mundo, como os śrutis que falam este verso indicam pela palavra kecit (“alguns poucos”). Não apenas os devotos puros abandonam seu desejo de ganho futuro, mas também perdem toda a atração pelo que já possuem – os confortos comuns do lar e da vida familiar. A associação dos vaiṣṇavas santos – a sucessão discipular de mestres, discípulos e discí­pulos de discípulos – torna-se a verdadeira família para eles, cheia de personalidades semelhantes a cisnes, como Śrī Śukadeva Gosvāmī. Essas grandes personalidades sempre bebem o doce néctar do serviço aos pés de lótus do Senhor Supremo.

Muitos mantras das Upaniṣads e de outros śrutis declaram abertamente que o serviço devocional é superior até mesmo à liberação. Nas palavras da Nṛsiṁha-pūrva-tāpanī Upaniṣad, yaṁ sarve vedā namanti mumukṣavo brahma-vādinaś ca: “A Ele, todos os Vedas, todos os que buscam a liberação e todos os estudantes da Verdade Absoluta oferecem suas reverências.” Comentando este mantra, Śrī Śaṅkarācārya admite que muktā api līlayā vigrahaṁ kṛtvā bhajanti: “Até mesmo almas liberadas sentem prazer em estabelecer a Deidade do Senhor Supremo e adorá-lO.” O grande rival do ācārya Śaṅkara, Śrīla Madhvācārya Ānandatīrtha, cita a esse respeito seus śruti­-mantras favoritos, tais como muktā hy etam upāsate, muktānām api bhaktir hi paramānanda-rūpiṇī: “Mesmo aqueles que estão liberados adoram-nO, e mesmo para eles o serviço devocional é a encarnação da suprema bem-aventurança”, e amṛtasya dhārā bahudhā dohamānaṁ/ caraṇaṁ no loke su-dhitāṁ dadhātu/ oṁ tat sat: “Que Seus pés, que generosamente derramam dilúvios de néctar, concedam sa­bedoria a nós que vivemos neste mundo.”

Em resumo, Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

tvat-kathāmṛta-pāthodhau
viharanto mahā-mudaḥ
kurvanti kṛtinaḥ kecic
catur-vargaṁ tṛṇopamam

“Aquelas raras almas afortunadas que extraem grande prazer de se divertir no oceano de néctar dos assuntos a Vosso respeito conside­ram que as quatro proeminentes metas da vida [religiosidade, desenvolvimento econômico, gozo dos sentidos e liberação] não são mais importantes do que uma folha de relva.”

Texto

tvad-anupathaṁ kulāyam idam ātma-suhṛt-priya-vac
carati tathonmukhe tvayi hite priya ātmani ca
na bata ramanty aho asad-upāsanayātma-hano
yad-anuśayā bhramanty uru-bhaye ku-śarīra-bhṛtaḥ

Sinônimos

tvat — a Vós; anupatham — útil para servir; kulāyam — corpo; idam — este; ātma — eu; suhṛt — amigo; priya — e amado; vat — como; cara­ti — age; tathā — não obstante; unmukhe — que estão favoravelmente dispostos; tvayi — em Vós; hite — que são auxiliares; priye — que são afetuosos; ātmani — que são o próprio Eu deles; ca — e; na — não; bata — ai; ramanti — têm prazer; aho — ah; asat — do irreal; upāsa­nayā — pela adoração; ātma — eles mesmos; hanaḥ — matando; yat — em que (adoração do irreal); anuśayāḥ — cujos desejos persistentes; bhra­manti — vagueiam; uru — muito; bhaye — na medonha (existência material); ku — degradados; śarīra — corpos; bhṛtaḥ — carregando.

Tradução

Quando é usado para Vosso serviço devocional, este corpo humano age como o próprio eu, amigo e amado da pessoa. Mas desafortunadamente, embora sempre mostreis misericórdia para com as almas condicionadas e afetuosamente as ajudeis de todas as maneiras, e embora sejais o verdadeiro eu delas, as pessoas em geral deixam de deleitar-se em Vós. Em vez disso, cometem suicídio espiritual ao adorarem a ilusão. Oh! Porque persistem em aspi­rar por sucesso em sua devoção ao irreal, elas continuam a vagar por este terribilíssimo mundo, assumindo vários corpos degra­dados.

Comentário

SIGNIFICADO—Os Vedas usam palavras fortes para aqueles que escolhem permanecer na ilusão em vez de servir à todo-misericordiosa Personalidade de Deus. A Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad (4.3.15) afirma que ārāmam asya paśyanti na taṁ paśyati kaścana; na tam vidātha ya imā jajānānyad yuṣmākam antaram babhūva; nīhāreṇa prāvṛtā jalpyā cāsu-tṛpa uktha-śāsaś caranti: “Todos podem ver o lugar onde o Senhor Se manifestou neste mundo para Seu prazer, mas, ainda assim, ninguém O vê. Nenhum de vós conhece aquele que gerou todos esses seres vivos, daí haver uma grande diferença entre vossa visão e a dEle. Cobertos pela névoa da ilusão, vós, praticantes de rituais védicos, entregais-vos a conversas inúteis e viveis apenas para satisfazer os sentidos.”

O Senhor Supremo permeia este universo, como Ele diz na Bhagavad-gītā (9.4), mayā tataṁ idaṁ sarvaṁ jagat. Nada neste mundo, nem mesmo o mais insignificante pote de barro ou tira de pano, está desprovido da presença da Personalidade de Deus. Todavia, porque Ele Se mantém invisível aos olhos invejosos (avyakta-mūrtinā), os materialistas são desencaminhados por Sua energia material e pensam que a fonte da criação material é uma combinação de átomos e forças físicas.

Mostrando sua compaixão por tais tolos materialistas, os Vedas personificados os aconselham nesta oração a lembrarem-se do real propósito para o qual eles existem: servir ao Senhor, seu maior benquerente, com devoção amorosa. O corpo humano é o recurso ideal para reviver a consciência espiritual; seus órgãos – ouvidos, língua, olhos etc. – são muito apropriados para ouvir sobre o Senhor, cantar Suas glórias, adorá-lO e executar todos os outros aspectos essenciais do serviço devocional.

O corpo material está destinado a manter-se intacto por apenas pouco tempo, daí ele se chamar kulāyam, sujeito a “dissolver-se na terra” (kau līyate). Não obstante, se bem utilizado, ele pode ser o melhor amigo da pessoa. Quando alguém está imerso em consciência mate­rial, porém, o corpo torna-se um falso amigo, distraindo a entidade viva desorientada de seu verdadeiro interesse próprio. Pessoas ena­moradas demais por seus próprios corpos e os de seus parceiros, filhos, animais de estimação etc. estão de fato desviando sua devo­ção para a adoração da ilusão, asad-upāsanā. Dessa maneira, como aqui declaram os śrutis, tais pessoas cometem suicídio espiritual, ga­rantindo punição futura por deixarem de executar as responsabilidades superiores da existência humana. Como declara a Īśopaniṣad (3):

asuryā nāma te lokā
andhena tamasāvṛtāḥ
tāṁs te pretyābhigacchanti
ye ke cātma-hano janāḥ

“O matador da alma, não importa quem seja, tem de entrar nos plane­tas conhecidos como os mundos dos infiéis, cheios de trevas e igno­rância.”

Aqueles que estão excessivamente apegados ao gozo dos sentidos ou que adoram o impermanente sob a forma de escrituras e filosofias falsas e materialistas, mantêm desejos que os levam a corpos mais degradados em cada vida sucessiva. Como estão presos na armadilha do ciclo de rotação perpétua do saṁsāra, sua única esperança de salvação é conseguir uma oportunidade de ouvir as misericordiosas ins­truções faladas pelos devotos do Senhor Supremo.

Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

tvayy ātmani jagan-nāthe
man-mano ramatām iha
kadā mamedṛśaṁ janma
mānuṣaṁ sambhaviṣyati

“Quando receberei um nascimento humano em que minha mente sentirá prazer em Vós, que sois a Alma Suprema e o Senhor do universo?­”

Texto

nibhṛta-marun-mano-’kṣa-dṛḍha-yoga-yujo hṛdi yan
munaya upāsate tad arayo ’pi yayuḥ smaraṇāt
striya uragendra-bhoga-bhuja-daṇḍa-viṣakta-dhiyo
vayam api te samāḥ sama-dṛśo ’ṅghri-saroja-sudhāḥ

Sinônimos

nibhṛta — postos sob controle; marut — com respiração; manaḥ — mente; akṣa — e sentidos; dṛḍha-yoga — em yoga inabalável; yujaḥ — ocupados; hṛdi — no coração; yat — que; munayaḥ — sábios; upāsate — adoram; tat — aquilo; arayaḥ — inimigos; api — também; yayuḥ — alcançaram; smaraṇāt — lembrando; striyaḥ — mulheres; uraga-indra — de serpentes altivas; bhoga — (como) os corpos; bhuja — cujos braços; daṇḍa — como vara; viṣakta — atraídas; dhiyaḥ — cujas mentes; vayam — nós; api — também; te — a Vós; samāḥ — iguais; sama — igual; dṛśaḥ — cuja visão; aṅghri — dos pés; saroja — semelhante ao lótus; sudhāḥ — (saboreando) o néctar.

Tradução

Pelo simples fato de pensar sempre nEle, os inimigos do Senhor alcançaram a mesma Verdade Suprema que sábios fixos em yoga adoram mediante o controle da respiração, mente e sentidos. De igual modo, nós, śrutis, que em geral Vos vemos como onipene­trante, conseguiremos o mesmo néctar de Vossos pés de lótus que Vossas esposas são capazes de saborear por causa de sua atração amorosa por Vossos poderosos braços serpentinos, pois conside­rais a nós e a Vossas esposas da mesma maneira.

Comentário

SIGNIFICADO—Segundo o ācārya Śrī Jīva Gosvāmī, os poucos śrutis – como a Gopāla-tāpanī Upaniṣad – que identificam o vaqueirinho Kṛṣṇa como o Brahman absoluto em seu aspecto mais elevado tinham fi­cado até agora esperando pacientemente sua vez de falar. Mas depois de ouvirem os outros śrutis oferecerem orações que glorificavam publicamente a personalidade do Senhor, esses śrutis íntimos não puderam mais conter-se e, por isso, falaram fora de ordem neste verso.

Os seguidores do caminho do yoga místico subjugam os sentidos e a mente através da prática do controle da respiração e de severas austeridades. Caso logrem êxito em se purificar por completo por meio desta disciplina, eles podem, por fim, começar a compreender o Paramātmā, a forma pessoal de Brahman dentro do coração. E se continuam essa meditação sem desvio por muito tempo, podem aca­bar chegando ao ponto de verdadeira consciência de Deus. Mas o mesmo objetivo atingido desta maneira difícil e incerta foi também alcançado pelos demônios que foram mortos pelo Senhor Kṛṣṇa du­rante Seus passatempos na Terra. Sob a obsessão da inimizade ao Senhor, demônios como Kaṁsa e Śiśupāla obtiveram rapidamente a perfeição da liberação simplesmente por serem mortos por Ele.

Falando sobre si próprios, todavia, os Vedas personificados de­claram nesta passagem que prefeririam desenvolver amor por Deus aprendendo a seguir o exemplo de rendição favorável dos devotos íntimos do Senhor Kṛṣṇa, sobretudo as jovens gopīs de Vraja. Embora aparentassem ser mulheres simples atraídas pela beleza e força físicas do Senhor com sentimento conjugal, as deusas de Vraja exi­biam a perfeição máxima da meditação. Os śrutis desejam tornar-se exatamente como elas.

In this regard, Lord Brahmā relates the following historical account in the supplement to the Bṛhad-vāmana Purāṇa:

brahmānanda-mayo loko
vyāpī vaikuṇṭha-saṁjñitaḥ
tal-loka-vāsī tatra-sthaiḥ
stuto vedaiḥ parāt-paraḥ

“O mundo infinito de bem-aventurança espiritual chama-se Vaikuṇ­ṭha, onde vive a Verdade Suprema, sendo glorificada pelos Vedas personificados, que ali também estão presentes.”

ciraṁ stutvā tatas tuṣṭaḥ
parokṣaṁ prāha tān girā
tuṣṭo ’smi brūta bho prājñā
varaṁ yaṁ manasepsitam

“Certa vez, depois que os Vedas O haviam louvado com primorosas orações, o Senhor ficou muito satisfeito e falou-lhes com uma voz cuja fonte permanecia invisível: ‘Meus queridos sábios, estou muito satisfeito convosco. Por favor, pedi-Me alguma bênção que desejais secretamente.’”

śrutaya ūcuḥ
yathā tal-loka-vāsinyaḥ
kāma-tattvena gopikāḥ
bhajanti ramaṇaṁ matvā
cikīrṣājani nas tathā

“Os śrutis responderam: Nós desenvolvemos o desejo de nos tornarmos como as vaqueiras do mundo mortal que, inspiradas pela lu­xúria, adoram-Vos com a atitude de uma amante.”

śrī-bhagavān uvāca
durlabho durghaṭaś caiva
yuṣmākaṁ sa manorathaḥ
mayānumoditaḥ samyak
satyo bhavitum arhati

“Então, o Senhor disse: Este vosso desejo é difícil de satisfazer. Em verdade, ele é quase impossível. Mas como Eu o estou sancionando, vosso desejo se concretizará inevitavelmente.”

āgāmini viriñcau tu
jāte sṛṣṭy-artham udite
kalpaṁ sāraśvataṁ prāpya
vraje gopyo bhaviṣyatha

“Quando o próximo Brahmā nascer para executar fielmente seus deveres relacionados com a criação, e quando o dia de sua vida chamado Sārasvata-kalpa chegar, todos vós aparecereis em Vraja como gopīs.”

pṛthivyāṁ bhārate kṣetre
māthure mama maṇḍale
vṛndāvane bhaviṣyāmi
preyān vo rāsa-maṇḍale

“Na Terra, no país de Bhārata, em Meu distrito de Mathurā, na floresta de Vṛndāvana, Eu Me tornarei vosso amado no círculo da dança da rāsa.”

jāra-dharmeṇa su-snehaṁ
su-dṛḍhaṁ sarvato ’dhikam
mayi samprāpya sarve ’pi
kṛta-kṛtyā bhaviṣyatha

“Obtendo-Me assim como vosso amante, todos vós ganhareis o mais enaltecido e inabalável amor puro por Mim e, dessa maneira, satisfareis todas as vossas ambições.”

brahmovāca
śrutvaitac cintayantyas tā
rūpaṁ bhagavataś ciram
ukta-kālaṁ samāsādya
gopyo bhūtvā hariṁ gatāḥ

“O senhor Brahmā disse: Após ouvirem essas palavras, os śrutis meditaram por muito tempo na beleza da Personalidade de Deus. Quando afinal chegou o tempo designado, eles se tornaram gopīs e obtiveram a associação com Kṛṣṇa.”

Pode-se encontrar um relato semelhante no Sṛṣṭi-khaṇḍa do Padma Purāṇa, que descreve como o mantra Gāyatrī também se tornou uma gopī.

Com relação ao desenvolvimento de bhakti, o Senhor Kṛṣṇa diz ainda na Gopāla-tāpanī Upaniṣad (Uttara 4), apūtaḥ pūto bhavati yaṁ māṁ smṛtvā, avratī vratī bhavati yaṁ māṁ smṛtvā, niṣkāmaḥ sa-kāmo bhavati yaṁ māṁ smṛtvā, aśrotrī śrotrī bhavati yaṁ māṁ smṛtvā: “Por lembrar-se de Mim, quem é impuro torna-se puro. Por lembrar-se de Mim, quem não segue votos torna-se um estrito se­guidor de votos. Por lembrar-se de Mim, quem não tem desejos desenvolve desejos [de Me servir]. Por lembrar-se de Mim, quem não estudou os mantras védicos torna-se um perito conhecedor dos Vedas.”

A Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad (4.5.6) refere-se aos passos graduais no processo de tornar-se consciente de Kṛṣṇa, ātmā vā are draṣṭavyaḥ śrotavyo mantavyo nididhyāsitavyaḥ: “É o Eu que se deve observar, é sobre o Eu que se deve ouvir, pensar e meditar com con­centração fixa.” A ideia aqui é que se deve compreender o Eu Su­premo como diretamente visível em Sua plena personalidade pelos seguintes meios: Primeiro a pessoa deve ouvir as instruções de um representante qualificado do Paramātmā e aceitar as palavras de tal mestre espiritual em Seu coração oferecendo-lhe serviço humilde e es­forçando-se de todos os modos para agradá-lo. Deve, então, pon­derar continuamente a mensagem divina do mestre espiritual, com o objetivo de dissipar todas as dúvidas e concepções falsas. Então, a pessoa pode passar a meditar nos pés de lótus do Senhor Supremo com total convicção e determinação.

Pretensos jñānīs podem achar que as Upaniṣads louvam a percep­ção nirviśeṣa (impessoal) acerca do Supremo como mais completa e final do que a adoração sa-viśeṣa (pessoal) da Divindade Suprema. Todos os vaiṣṇavas honestos, todavia, concordam em aderir ao serviço devocional prestado ao Senhor Supremo, sempre meditando com pra­zer em Suas qualidades espirituais infinitamente admiráveis e varia­das. Nas palavras dos śruti-mantras, yam evaiṣa vṛṇute tena labhyas/ tasyaiṣa ātmā vivṛṇute tanūṁ svām: “Àquele a quem a Alma Supre­ma escolhe, Ele Se torna alcançável. A essa pessoa, a Alma Suprema revela Sua forma pessoal.” (Kaṭha Upaniṣad 1.2.23 e Muṇḍaka Upaniṣad 3.2.3)

Śrīla Śrīdhara Svāmī conclui com a oração:

caraṇa-smaraṇaṁ premṇā
tava deva su-durlabham
yathā kathañcid nṛ-hare
mama bhūyād ahar-niśam

“Ó Senhor, é muito raro conseguir lembrar-se amorosamente de Vossos pés de lótus. Por favor, ó Nṛhari, de algum modo, fazei com que eu tenha esta lembrança dia e noite.”

Texto

ka iha nu veda batāvara-janma-layo ’gra-saraṁ
yata udagād ṛṣir yam anu deva-gaṇā ubhaye
tarhi na san na cāsad ubhayaṁ na ca kāla-javaḥ
kim api na tatra śāstram avakṛṣya śayīta yadā

Sinônimos

kaḥ — quem; iha — neste mundo; nu — de fato; veda — conhece; bata — ah; avara — recente; janma — cujo nascimento; layaḥ — e aniquilação; agra-saram — quem veio primeiro; yataḥ — de quem; uda­gāt — surgiu; ṛṣiḥ — o sábio erudito, Brahmā; yam anu — seguindo a quem (Brahmā); deva-gaṇāḥ — os grupos de semideuses; ubhaye — ambos (aqueles que controlam os sentidos e aqueles que vivem nas regiões acima dos planetas celestiais); tarhi — naquele momento; na — não; sat — matéria grosseira; na — não; ca — também; asat — matéria sutil; ubhayam — aquilo que é formado de ambos (a saber, os corpos materiais); na ca — nem; kāla — do tempo; javaḥ — o fluxo; kim api na — nenhum absolutamente; tatra — lá; śāstram — escritura autorizada; avakṛṣya — recolhendo; śayīta — (o Senhor Supremo) deita; yadā — quando.

Tradução

Todos neste mundo nasceram há pouco tempo e logo morre­rão. Logo, como é que alguém aqui pode conhecer àquele que existia antes de tudo o mais e que deu origem ao primeiro sábio erudito, Brahmā, e a todos os semideuses subsequentes, tanto inferiores quanto superiores? Quando Ele Se deita e recolhe tudo para dentro de Si, nada mais permanece – nem matéria grossei­ra ou sutil, nem corpos compostos destas, nem a força do tempo, nem a escritura revelada.

Comentário

SIGNIFICADO—Aqui, os śrutis exprimem a dificuldade de conhecer o Supremo. O serviço devocional, ou bhakti-yoga, como se descreve nestas orações dos Vedas personificados, é o caminho mais seguro e fácil que leva ao conhecimento sobre o Senhor e à liberação. Em comparação, a busca filosófica de conhecimento, conhecida como jñāna-yoga, é muito difícil, embora seja estimada por aqueles que estão enojados da vida material, mas ainda não querem render-se ao Senhor. Enquan­to a alma finita continua invejosa da supremacia do Senhor, este não Se revela. Como Ele afirma na Bhagavad-gītā (7.25):

nāhaṁ prakāśaḥ sarvasya
yoga-māyā-samāvṛtaḥ
mūdho ’yaṁ nābhijānāti
loko mām ajam avyayam

“Eu nunca Me manifesto aos tolos e aos não inteligentes. Para eles, Eu estou coberto por Minha potência interna, e, portanto, eles não sabem que Eu sou não nascido e infalível.” E nas palavras do senhor Brahmā:

panthās tu koṭi-śata-vatsara-sampragamyo
vāyor athāpi manaso muni-puṅgavānām
so ’py asti yat-prapada-sīmny avicintya-tattve
govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi

“Adoro Govinda, o Senhor primordial, cuja ponta do dedão de Seus pés de lótus é tudo o que é alcançado pelos yogīs, que aspiram à transcendên­cia e dedicam-se ao prāṇāyāma, controlando a respiração; ou pelos jñānīs, que buscam o Brahman não-diferenciado pelo processo de eliminação do mundano durante um período de mais de milhares de milhões de anos.” (Brahma-saṁhitā 5.34)

Brahmā, o primeiro ser vivo a nascer neste universo, é também o principal sábio. Ele nasce do Senhor Nārāyaṇa, e dele aparecem as hostes de semideuses, incluindo tanto os controladores das atividades terrenas quanto os governantes dos céus. Todos esses seres poderosos e inteligentes são produtos relativamente recentes da energia criadora do Senhor. Como o primeiro orador dos Vedas, o senhor Brahmā deve conhecer-lhes o significado pelo menos tão bem quanto qual­quer outra autoridade, mas até mesmo ele conhece a Personalidade de Deus apenas até certo ponto. Conforme declara o Śrīmad-Bhāgavatam (1.3.35), veda-guhyāni hṛt-pateḥ: “O Senhor do coração esconde-Se no recesso mais recôndito do som védico.” Se Brahmā e os semi­deuses nascidos dele não podem conhecer facilmente o Senhor Su­premo, como, então, meros mortais podem esperar sucesso em sua busca independente pelo conhecimento?

Enquanto dura esta criação, os seres vivos enfrentam muitos obstá­culos no caminho do conhecimento. Por se identificarem com suas coberturas materiais, que consistem em corpo, mente e ego, eles adquirem toda sorte de preconceitos e concepções erradas. Mesmo que tenham a escritura divina para guiá-los e a oportunidade de executar os métodos prescritos de karma, jñāna e yoga, as almas con­dicionadas têm apenas um pequeno poder para obter conhecimento a respeito do Absoluto. E quando chega a ocasião da aniquilação, as escrituras védicas e seus preceitos reguladores tornam-se imanifestos, deixando as jīvas adormecidas em completa escuridão. Portanto, de­vemos abandonar nossos esforços fúteis para obter conhecimento sem devoção e simplesmente rendermo-nos à misericórdia do Senhor Supremo, atentos ao conselho do senhor Brahmā:

jñāne prayāsam udapāsya namanta eva
jīvanti san-mukharitāṁ bhavadīya-vārtām
sthāne sthitāḥ śruti-gataṁ tanu-vāṅ-manobhiḥ
ye prāyaśo jita jito ’py asi tais tri-lokyām

“Aqueles que, mesmo enquanto situados em suas posições sociais estabelecidas, rejeitam o processo de conhecimento especulativo e, com seu corpo, palavras e mente, oferecem todo o respeito às descri­ções acerca de Vossa personalidade e atividades, dedicando suas vidas a essas narrações, que são vibradas por Vós mesmo e por Vossos devotos puros, com certeza Vos conquistam, embora, de outro modo, sejais inconquistável por qualquer um dentro dos três mundos.” (Śrīmad-Bhāgavatam 10.14.3)

A esse respeito, a Taittirīya Upaniṣad (2.4.1) refere-se ao Supremo como yato vāco nivartante aprāpya manasā saha: “Onde cessam as palavras, e onde a mente não pode alcançar.” A Īśopaniṣad (4) declara:

anejad ekaṁ manaso javīyo
naitad devā āpnuvan pūrvam arśat
tad dhāvato ’nyān atyeti tiṣṭhat
tasmin apo mātariśvā dadhāti

“Embora permanente em Sua morada, a Personalidade de Deus é mais veloz do que a mente e pode ultrapassar a todos que correm. Os poderosos semideuses não podem aproximar-se dEle. Embora esteja em um só lugar, Ele controla aqueles que fornecem o ar e a chuva. Ele supera a todos em excelência.” E no Ṛg Veda (3.54.5), encontramos este mantra:

ko ’ddhā veda ka iha pravocat
kuta āyātāḥ kuta iyaṁ visṛṣṭiḥ
arvāg devā visarjanenā-
thā ko veda yata ā babhūva

“Quem neste mundo sabe de fato, e quem pode explicar, de onde veio esta criação? Os semideuses, afinal, são mais novos do que a criação. Quem, então, pode dizer por que este mundo veio a existir?”

Śrīla Śrīdhara Svāmī assim ora:

kvāhaṁ buddhy-ādi-saṁruddhaḥ
kva ca bhūman mahas tava
dīna-bandho dayā-sindho
bhaktiṁ me nṛ-hare diśa

 “Quem sou eu, um ser preso na armadilha das coberturas materiais, tais como inteligência mundana e assim por diante? E o que são Vossas glórias em comparação, ó Onipotente? Ó amigo dos caídos, ó oceano de misericórdia, Senhor Nṛhari, por favor, abençoai-me com Vosso serviço devocional.”

Texto

janim asataḥ sato mṛtim utātmani ye ca bhidāṁ
vipaṇam ṛtaṁ smaranty upadiśanti ta ārupitaiḥ
tri-guṇa-mayaḥ pumān iti bhidā yad abodha-kṛtā
tvayi na tataḥ paratra sa bhaved avabodha-rase

Sinônimos

janim — criação; asataḥ — do mundo manifestado (a partir de átomos); sataḥ — daquilo que é eterno; mṛtim — destruição; uta — também; ātmani — na alma; ye — que; ca — e; bhidām — dualidade; vipaṇam — negócio mundano; ṛtam — real; smaranti — declaram com autoridade; upadiśanti — ensinam; te — eles; ārupitaiḥ — em termos de ilusões im­postas à realidade; tri — três; guṇa — dos modos materiais; mayaḥ — composta; pumān — a entidade viva; iti — assim; bhidā — concepção dualística; yat — que; abodha — por ignorância; kṛtā — criada; tvayi­ — em Vós; na — não; tataḥ — a esta; paratra — transcendental; saḥ — aque­la (ignorância); bhavet — pode existir; avabodha — consciência total; rase — cuja composição.

Tradução

Supostas autoridades que declaram que a matéria é a origem da existência, que as qualidades permanentes da alma podem ser destruídas, que o eu se compõe de aspectos separados de espírito e matéria, ou que as transações materiais constituem a realidade – todas estas autoridades baseiam seus ensinamentos em ideias equivocadas e que escondem a verdade. O conceito dualista de que a entidade viva é produto dos três modos da natureza não passa de mero resultado da ignorância. Tal concepção não tem base real em Vós, pois sois transcendental a toda ilusão e sempre des­frutais de uma consciência total e perfeita.

Comentário

SIGNIFICADO—A verdadeira posição da Suprema Personalidade é um mistério sublime, como o é também a posição dependente da alma jīva. A maioria dos pensadores está enganada de um modo ou de outro sobre essas verdades, pois há incontáveis variedades de designações falsas que podem cobrir a alma e criar ilusões. As almas condicionadas tolas estão sujeitas a enganos óbvios, mas o poder ilusório de māyā pode facilmente subverter a inteligência até dos mais sofisticados filósofos e místicos. Por isso, existem sempre divergentes escolas de pensa­mento que propõem teorias conflitantes a respeito dos princípios bá­sicos da verdade.

Na filosofia indiana tradicional, os seguidores das filosofias vaiśeṣika, nyāya, sāṅkhya, yoga e mīmāṁsā têm todos suas próprias ideias errôneas, as quais os Vedas personificados ressaltam nesta oração. Os vaiśeṣikas dizem que o universo visível é criado a partir de um estoque original de átomos (janim asataḥ). Como declaram os Vaiśeṣika-sūtras (7.1.20) de Kaṇāda Ṛṣi, nityaṁ parimaṇḍalam: “Aquilo que tem o menor tamanho, o átomo, é eterno.” Kaṇāda e seus segui­dores também aceitam a eternidade de outras entidades não-atômicas, inclusive das almas que se tornam corporificadas, e até mesmo de uma Alma Suprema. Na cosmologia vaiśeṣika, porém, as almas e a Su­peralma têm apenas papéis simbólicos na produção atômica do universo. Śrīla Kṛṣṇa-dvaipāyana Vedavyāsa critica essa posição em seus Vedānta-sūtras (2.2.12): ubhayathāpi na karmātas tad-abhāvaḥ. Segundo este sūtra, não se pode alegar que, no momento da criação, os átomos primeiro se combinam porque são impelidos por algum impulso kármico que influencia os próprios átomos, já que os átomos por si sós, em seu estado primordial antes de se combinarem em obje­tos complexos, não têm responsabilidade ética que possa levá-los a adquirir reações piedosas e pecaminosas. Tampouco se pode explicar a combinação inicial dos átomos como resultado do karma remanes­cente das entidades vivas que jazem adormecidas antes da criação, já que essas reações são próprias de cada jīva e não podem ser transfe­ridas delas nem mesmo para outras jīvas, e o que se dizer de átomos inertes.

Alternativamente, a frase janim asataḥ pode ser tomada como alu­são à filosofia yoga de Patañjali Ṛṣi, visto que seus Yoga-sūtras ensi­nam a pessoa a como conseguir a posição transcendental de Brahman por meio de um processo mecânico de exercício e meditação. O mé­todo de yoga de Patañjali é aqui chamado asat porque ignora o aspecto essencial da devoção – rendição à vontade da Pessoa Suprema. Como diz o Senhor Kṛṣṇa na Bhagavad-gītā (17.28):

aśraddhayā hutaṁ dattaṁ
tapas taptaṁ kṛtaṁ ca yat
asad ity ucyate pārtha
na ca tat pretya no iha

 “Tudo aquilo que é feito como sacrifício, caridade ou penitência sem fé no Supremo, ó filho de Pṛthā, é impermanente. Chama-se asat e é inútil tanto nesta vida quanto na próxima.”

Os Yoga-sūtras reconhecem a Personalidade de Deus de maneira indireta, mas apenas como um auxílio que o yogī que está avançando pode utilizar. Īśvara-praṇidhānād vā: “A meditação devocional em Deus é mais um meio de se conseguir concentração.” (Yoga-sūtra 1.23) Em contraste, a filosofia vedānta de Bādarāyaṇa Vedavyāsa enfatiza o serviço devocional não apenas como o principal meio de libe­ração, mas também como idêntico à própria liberação. Ā-prāyaṇāt tatrāpi hi dṛṣṭam: “A adoração ao Senhor continua até o momento da liberação, e de fato prossegue também no estado liberado, como revelam os Vedas.” (Vedānta-sūtra 4.1.12)

Gautama Ṛṣi, em seus Nyāya-sūtras, propõe que se pode alcançar a liberação mediante a negação tanto da ilusão quanto da infelicidade, duḥkha-janma-pravṛtti-doṣa-mithyā-jñānānām uttarottarāpāye tad-anantarābhāvād apavargaḥ: “Pela sucessiva destruição de concei­tos falsos, mau caráter, ação enleante, renascimento e dor – o desaparecimento de um destes permitindo o desaparecimento do pró­ximo – pode-se alcançar a liberação final.” (Nyāya-sūtra 1.1.2) Mas como acreditam que a consciência não é uma qualidade essencial da alma, os seguidores da filosofia nyāya ensinam que uma alma libera­da não tem consciência. A ideia nyāya de liberação, portanto, coloca a alma em um estado de pedra morta. Os Vedas personificados chamam de sato mṛtim a tentativa desses filósofos de matar a consciência inata da alma. Porém, o Vedānta-sūtra (2.3.17) afirma de forma inequívoca que jño ’ta eva: “A alma jīva é sempre um conhecedor.”

Embora a alma seja, em verdade, consciente e ativa, os proponentes da filosofia sāṅkhya erradamente separam essas duas funções da força viva (ātmani ye ca bhidām), atribuindo consciência à alma (puruṣa) e atividade à natureza material (prakṛti). Segundo o Sāṅkhya-kārikā (19-20):

tasmāc ca viparyāsāt
siddhaṁ sākṣitvaṁ puruṣasya
kaivalyaṁ madhya-sthyaṁ
draṣṭṛtvam akartṛ-bhāvaś ca

“Assim, visto que as diferenças aparentes entre os puruṣas são ape­nas superficiais (decorrentes dos vários modos da natureza que os cobrem), prova-se que a verdadeira condição do puruṣa é a de testemunha, caracterizada por sua separatividade, sua indiferença passiva, sua condição de observador e sua inatividade.”

tasmāt tat-saṁyogād
acetanaṁ cetanā-vad iva liṅgam
guṇa-kartṛtve ’pi tathā
karteva bhavaty udāsīnaḥ

“Dessa maneira, pelo contato com a alma, o corpo sutil inconsciente parece ser consciente, enquanto a alma parece ser o agente, embora esteja à parte da atividade dos modos da natureza.”

Śrīla Vyāsadeva refuta essa ideia na seção do Vedānta-sūtra (2.3.31-39) que começa com kartā śāstrārtha-vattvāt: “A alma jīva tem que ser um realizador de ações, porque os preceitos das escrituras devem ter algum propósito.” O ācārya Baladeva Vidyābhūṣaṇa, em seu Govinda-bhāṣya, explica: “A jīva, e não os modos da natureza, é o agente. Por quê? Porque os preceitos das escrituras devem ter algum propósito (śāstrārtha-vattvāt). Por exemplo, preceitos das escrituras tais como svarga-kāmo yajeta (‘Quem deseja alcançar o céu deve executar sacrifício ritualístico’) e ātmānam eva lokam upāsīta (Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad 1.4.15): ‘Deve-se realizar adoração com o objetivo de alcançar o reino espiritual’) são significativas apenas se existe um agente consciente. Se os modos da natureza fossem o agente, essas declarações não teriam propósito. Afinal, os preceitos das escrituras ocupam a entidade viva em executar ações prescritas convencendo que ela pode agir de tal forma que produzirá certos resultados agra­dáveis. Tal mentalidade não pode ser despertada nos modos inertes da natureza.”

Jaimini Ṛṣi, em seus Pūrva-mīmāṁsā-sūtras, apresenta o traba­lho material e seus resultados como o somatório de toda a realidade (vipaṇam ṛtam). Ele e proponentes posteriores da filosofia karma­-mīmāṁsā ensinam que a existência material é infinita – que não existe liberação. Para eles, o ciclo do karma é perpétuo, e o melhor a que se pode aspirar é a um nascimento superior entre os semideu­ses. Portanto, eles dizem que todo o propósito dos Vedas é ocupar os seres humanos em rituais para criar bom karma, em consequência do que a primordial responsabilidade da alma madura é verificar o sen­tido exato dos preceitos védicos sobre os sacrifícios e executá-los. Codanā-lakṣaṇo ’rtho dharmaḥ: “Dever é aquilo que é indicado pelos preceitos dos Vedas.” (Pūrva-mīmāṁsā-sūtra 1.1.2)

Todavia, o Vedānta-sūtra – sobretudo no quarto capítulo, que trata da meta última da vida – descreve em detalhes o potencial da alma para se libertar dos nascimentos e mortes, ao passo que subor­dina o sacrifício ritualístico ao papel de ajudar a quem deseja quali­ficar-se para receber conhecimento espiritual. Como afirma o próprio Vedānta-sūtra (4.1.16), agnihotrādi tu tat-kāryāyaiva tad-darśanāt: “O Agnihotra e outros sacrifícios védicos destinam-se apenas a pro­duzir conhecimento conforme mostram as afirmações dos Vedas.” E as próprias últimas palavras do Vedānta-sūtra (4.4.22) proclamam que anāvṛtti śabdāt: “A alma liberada jamais retorna a este mundo, como se promete na escritura revelada.”

Assim, as conclusões falaciosas dos filósofos especuladores provam que mesmo grandes estudiosos e sábios muitas vezes se confundem devido ao mau uso de sua inteligência dada por Deus. Como diz a Kaṭha Upaniṣad (1.2.5):

avidyāyām antare vartamānāḥ
svayaṁ dhīrāḥ paṇḍitam-manyamānāḥ
jaṅghanyamānāḥ pariyanti mūḍhā
andhenaiva nīyamānā yathāndhāḥ

“Presos nas garras da ignorância, autoproclamados sábios conside­ram-se autoridades eruditas. Ludibriados, eles vagueiam por este mundo como cegos guiando cegos.”

Das seis filosofias ortodoxas da tradição védica – sāṅkhya, yoga, nyāya, vaiśeṣika, mīmāṁsā e vedānta – apenas o vedānta de Bādarāyaṇa Vyāsa está livre de erro, e mesmo este somente quando explicado de maneira apropriada pelos genuínos ācāryas vaiṣṇavas. Cada uma das seis escolas, não obstante, faz alguma contribuição prática à educação védica: o sāṅkhya ateísta explica como os elementos naturais evoluem do sutil para o grosseiro, o yoga de Patañjali descreve o método de meditação dividido em oito fases, o nyāya estabelece as técnicas da lógica, o vaiśeṣika considera as categorias metafísicas básicas da realidade, e o mīmāṁsā estabelece os instrumentos clássicos da interpretação das escrituras. Além destas seis, há também as filosofias mais desviadas, tais como as dos budistas, jainistas e cār­vākas, cujas teorias de niilismo e materialismo negam a integridade espiritual da alma eterna.

Em última análise, a única fonte perfeitamente confiável de co­nhecimento é o próprio Deus. A Personalidade de Deus é avabodha-­rasa, o reservatório infinito de visão infalível. Para os que dependem dEle com absoluta convicção, Ele concede o olho divino do conheci­mento. Outros, que seguem suas próprias teorias especulativas, têm de tatear em busca da verdade através da cortina escurecedora de māyā. Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

mithyā-tarka-śukarkaśerita-mahā-vādāndhakārāntara-
bhrāmyan-manda-mater amanda-mahimaṁs tvad-jñāna-vartmāsphuṭam
śrīman mādhava vāmana tri-nayana śrī-śaṅkara śrī-pate
govindeti mudā vadan madhu-pate muktaḥ kadā syām aham

“Para a alma perplexa que divaga nas trevas daquelas eminentes filosofias promovidas pelos ásperos métodos da falsa lógica, o cami­nho do verdadeiro conhecimento sobre Vós, ó Senhor de glória mag­nífica, permanece invisível. Ó Senhor de Madhu, esposo da deusa da fortuna, quando alcançarei a liberação através do cantar jubiloso de Vossos nomes – Mādhava, Vāmana, Trinayana, Śrī Śaṅkara, Śrīpati e Govinda?”

Texto

sad iva manas tri-vṛt tvayi vibhāty asad ā-manujāt
sad abhimṛśanty aśeṣam idam ātmatayātma-vidaḥ
na hi vikṛtiṁ tyajanti kanakasya tad-ātmatayā
sva-kṛtam anupraviṣṭam idam ātmatayāvasitam

Sinônimos

sat — real; iva — como se; manaḥ — a mente (e suas manifestações); tri-vṛt — de três espécies (pelos modos da natureza material); tvayi — em Vós; vibhāti — parece; asat — irreal; ā-manujāt — estendendo-se aos seres humanos; sat — como real; abhimṛśanti — consideram; aśeṣam — inteiro; idam — este (mundo); ātmatayā — como não diferente do Eu; ātma-vidaḥ — os conhecedores do Eu; na — não; hi — de fato; vikṛtim — as transformações; tyajanti — rejeitam; kanakasya — de ouro; tat-ātma­tayā — visto que são não diferentes dele; sva — por Si mesmo; ktam — criado; anupraviṣṭam — e penetrado; idam — este; ātmatayā — como não diferente dEle mesmo; avasitam — verificado.

Tradução

Os três modos da natureza material englobam tudo neste mundo – dos fenômenos mais simples até o complexo corpo hu­mano. Embora pareçam reais, esses fenômenos não passam de um falso reflexo da realidade espiritual, sendo uma superimposi­ção da mente sobre Vós. Ainda assim, aqueles que conhecem o Eu Supremo consideram real a criação material inteira, visto ser esta não diferente do Eu. Assim como objetos feitos de ouro de fato não devem ser rejeitados, já que sua substância é ouro ver­dadeiro, da mesma maneira este mundo é, sem dúvida, não dife­rente do Senhor que o criou e, então, entrou nele.

Comentário

SIGNIFICADO—Em certo sentido, o mundo visível é real (sat), enquanto, em outro, ele não o é (asat). A substância deste universo é fato sólido, por ser a energia externa do Senhor, mas as formas que māyā impõe a esta substância são apenas temporárias. E porque as formas materiais são manifestações temporárias, aqueles que as consideram permanen­tes estão em ilusão. Eruditos impersonalistas, todavia, interpretam mal essa divisão de sat e asat; negando a realidade aceita pelo senso comum, eles declaram que não apenas a forma material é irreal, mas também a substância material, e confundem sua própria essência espiritual com a do Todo Absoluto. Um filósofo māyāvādī tomaria as palavras faladas pelos Vedas personificados na oração precedente – tri-guṇa-mayaḥ pumān iti bhidā – como uma negação de qual­quer distinção entre o Paramātmā e a alma jīva. Ele alegaria que, como a incorporação material da jīva é uma exibição efêmera dos três modos da natureza, quando a ignorância da jīva é destruída pelo conhecimento, ela se torna o Paramātmā, a Alma Suprema; cativeiro, liberação e o mundo manifesto são todos criações irreais da ignorân­cia. Em resposta a tais ideias, os Vedas aqui esclarecem a verdadeira relação entre sat e asat.

Na literatura śruti, encontramos esta afirmação, asato ’dhimano ’sṛjyata, manaḥ prajāpatim asṛjat, prajāpatiḥ prajā asṛjat, tad vā idaṁ manasy eva paramaṁ pratiṣṭhitaṁ yad idaṁ kiṁ ca: “A mente suprema foi criada originalmente a partir do asat. Essa mente criou o Prajāpati, e o Prajāpati criou todos os seres vivos. Desse modo, a mente sozinha é o alicerce último de tudo o que existe neste mundo.” Embora os impersonalistas, interpretando erroneamente essa citação, pudessem advogar que toda a existência manifesta se baseia na irrealidade da ilusão (asat), o uso aparentemente oposto da palavra asat nesta passagem de fato refere-se à causa original, a Divindade Suprema, porque Ele é transcen­dental à existência material (sat). A lógica do Vedānta-sūtra (2.1.17) corrobora essa interpretação, ao passo que nega a interpretação equi­vocada dos impersonalistas, asad-vyapadeśān neti cen na dharmāntareṇa vākya-śeṣāt: “Se alguém objetar que o mundo material e sua fonte não podem ser de uma só substância porque o mundo foi chama­do irreal, nós respondemos: ‘Não, porque a afirmação de que Brahman é asat faz sentido em termos de Ele ter qualidades distintas daquelas da criação.’” A Taittirīya Upaniṣad (2.7.1) também declara que asad vā idam agra āsīt: “No início desta criação, apenas asat estava presente.”

Na opinião de Śrīla Jīva Gosvāmī, a palavra adhimanaḥ na passa­gem acima citada refere-se ao regente da mente agregada do universo, o Senhor Aniruddha, que aparece como expansão plenária de Śrī Nārāyaṇa quando este deseja criar. O Prajāpati é Brahmā, o pai de todos os outros seres criados. Descreve-se isso na Mahā-nārāyaṇa Upaniṣad (1.4), atha punar eva nārāyaṇaḥ so ’nyaṁ kāmaṁ manasā dhyāyet; tasya dhyānāntaḥ-sthasya lalanāt svedo ’patat; tā imā pratatāpa tāsu tejo hiraṇ-mayam aṇḍaṁ tatra brahmā catur-mukho ’jāyata: “Então, o Senhor Nārāyaṇa meditou sobre outro desejo Seu, e, enquanto pon­derava, uma gota de suor caiu de Sua testa. Todas as criações mate­riais evoluíram da fermentação dessa gota. Então, apareceu o ígneo ovo dourado do universo, e, dentro desse globo, nasceu o Brahmā de quatro cabeças.”

Quando se manufatura um objeto em particular, este aparece como uma transformação de sua causa constituinte, como no caso da joia feita de ouro. Pessoas que querem ouro não rejeitarão brincos ou colares de ouro, pois esses objetos ainda são ouro, apesar de sua modificação. Os verdadeiros jñānīs veem neste exemplo mundano uma analogia com a relação diferente-porém-não-diferente entre o Puruṣa e Suas emanações, tanto materiais quanto espirituais. Dessa maneira, este conhecimento transcendental liberta-os do cativeiro da ilusão, pois eles podem, então, ver o Senhor em toda a Sua criação.

Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

yat sattvataḥ sadā bhāti
jagad etad asat svataḥ
sad-ābhāsam asaty asmin
bhagavantaṁ bhajāma tam

“Adoremos a Suprema Personalidade de Deus, em virtude de cuja existência substancial este mundo criado parece existir perpetuamen­te, embora, em essência, seja insubstancial. Como a Superalma, Ele constitui a representação do real dentro desta irrealidade.”

Texto

tava pari ye caranty akhila-sattva-niketatayā
ta uta padākramanty avigaṇayya śiro nirṛteḥ
parivayase paśūn iva girā vibudhān api tāṁs
tvayi kṛta-sauhṛdāḥ khalu punanti na ye vimukhāḥ

Sinônimos

tava — a Vós; pari ye caranti — que adoram; akhila — de todas; sattva — as entidades criadas; niketatayā — como o refúgio; te — eles; uta — simplesmente; padā — com seus pés; ākramanti — pisam; aviga­ṇayya — desprezando; śiraḥ — a cabeça; nirṛteḥ — da morte; parivaya­se — amarrais; paśūn iva — como animais; girā — com Vossas palavras (dos Vedas); vibudhān — sábios; api — mesmo; tān — a eles; tvayi — a quem; kṛta — aqueles que fizeram; sauhṛdāḥ — amizade; khalu — de fato; punanti — purificam; na — não; ye — que; vimukhāḥ — hostis.

Tradução

Os devotos que Vos adoram como o refúgio de todos os seres desprezam a Morte e pisam sobre sua cabeça. Porém, com as pala­vras dos Vedas, amarrais os não-devotos como animais, embora eles sejam estudiosos de vasta erudição. Só Vossos devotos afetuo­sos é que podem purificar a si e aos outros, e não aqueles que são hostis a Vós.

Comentário

SIGNIFICADO—Os Vedas personificados rejeitaram agora as filosofias equivoca­das de várias escolas divergentes: o asad-utpatti-vāda dos vaiśeṣikas, que presumem a existência de uma fonte material de criação; o sad­vināśa-vāda dos naiyāyikas, que querem privar de consciência a alma liberada; o saguṇatva-bheda-vāda dos sāṅkhyas, que isolam a alma de todas as suas qualidades aparentes; o vipaṇa-vāda dos mīmāṁsakas, que condenam a alma ao castigo do envolvimento eterno no comércio mundano do karma; e o vivarta-vāda dos māyāvādīs, que difamam a vida real da alma neste mundo como alucinação. Tendo rejeitado todas essas ideias, os Vedas personificados apresentam agora a filosofia do serviço devocional, paricaryā-vāda.

Os vaiṣṇavas que aceitam esta filosofia ensinam que a alma jīva é uma partícula atômica de personalidade espiritual que possui conheci­mento diminuto, não é independente e não tem qualidades materiais. Por ser diminuta, ela é propensa a cair sob o controle da energia material, onde sofre as dores da vida material. Ela pode acabar com esse sofrimento e recuperar o abrigo da divina energia interna do Senhor Supremo somente através da prestação de serviço devocional ao Senhor, e não através do trabalho fruitivo, especulação mental ou algum outro processo.

Como o Senhor Kṛṣṇa diz com Suas próprias palavras:

bhaktyāham ekayā grāhyaḥ
śraddhayātmā priyaḥ satām
bhaktiḥ punāti man-niṣṭhā
śva-pākān api sambhavāt

“Apenas por praticar serviço devocional imaculado com plena fé em Mim pode-se obter a Mim, a Suprema Personalidade de Deus. Sou naturalmente querido por Meus devotos, que Me aceitam como a única meta de seu serviço amoroso. Dedicando-se a tal serviço devo­cional puro, até os comedores de cães podem se purificar da contaminação de seu nascimento inferior.” (Śrīmad-Bhāgavatam 11.14.21)

Os devotos da Personalidade de Deus adoram-nO como o refú­gio (niketa) de tudo o que existe (akhila-sattva). Além disso, esses mesmos devotos vaiṣṇavas podem ser chamados akhila-sattva-niketa no sentido de que sua morada e refúgio é a verdade filosófica da rea­lidade (sattvam) dos mundos material e espiritual. Dessa maneira, Śrīpāda Madhvācārya, em seu Vedānta-sūtra-bhāṣya, cita o śruti­-mantra, satyaṁ hy evedaṁ viśvam asṛjata: “Ele criou este mundo como real.” E o sétimo canto do Śrīmad-Bhāgavatam (7.1.11) refere-­se ao Senhor Supremo como pradhāna-pumbhyāṁ naradeva satya-kṛt: “O criador de um universo real de matéria e entidades vivas.”

Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura ressalta ainda outro sentido mais confidencial de akhila-sattva-niketa: que as moradas pessoais do Senhor Supremo de modo algum são khila, ou imperfeitas, daí se chamarem Vaikuṇṭha, os reinos livres de ansiedade e restrição. Os vaiṣṇavas cujo serviço devocional o Senhor bondosamente aceitou são tão seguros de Sua proteção que não temem mais a morte, que se torna para eles apenas mais um passo fácil no caminho de volta a seu lar eterno.

Mas apenas os devotos do Senhor Supremo são qualificados para se livrarem do medo da morte? Por que todos os outros místicos e estudiosos eruditos são desqualificados? Aqui, os śrutis respondem: “Qualquer um que seja vimukha, que não voltou seu rosto para o Senhor com a forte expectativa de receber Sua misericórdia, está preso na ilusão pelas mesmas palavras dos Vedas que iluminam os devotos rendi­dos.” Os próprios Vedas advertem que tasya vāk-tantir nāmāni dāmāni; tasyedaṁ vācā tantyā nāmabhir dāmabhiḥ sarvaṁ sitam: “Os fios deste som transcendental formam um cordão de nomes sagrados, mas também um conjunto de cordas enleantes. Com a corda de seus preceitos, os Vedas atam o mundo inteiro, deixando todos os seres agrilhoados por falsas designações.”

A realidade da alma e da Superalma é aparokṣa, perceptível, mas apenas para alguém com visão transcendental. Os filósofos cujos cora­ções são impuros presumem erradamente que essa verdade é, em vez disso, parokṣa, sobre a qual apenas se pode especular, mas nunca ter uma experiência direta. O conhecimento de tais pensadores pode ajudá-los a dissipar certas dúvidas e falsos conceitos sobre os aspectos inferio­res da realidade, mas é inútil quando se trata de transcender a ilusão material e aproximar-Se da Verdade Absoluta. Como regra geral, apenas os devotos que fielmente prestam serviço amoroso ao Senhor Supre­mo até o ponto de purificação completa recebem Sua graça sob a forma de aparokṣa-jñāna, percepção direta de Sua grandeza e maravilhosa compaixão. A Personalidade de Deus, sem dúvida, é livre para conceder Sua misericórdia até a quem não merece, como o faz quando mata pessoalmente demônios ofensivos, mas Ele está muito menos inclinado a abençoar māyāvādīs e outros filósofos ateístas.

Não se deve pensar, porém, que os devotos de Viṣṇu são ignoran­tes porque talvez não sejam versados em análise e argumentação filo­sóficas. A realização perfeita da alma deve ser obtida não através de seus próprios esforços de especulação mental, mas através do favor do Senhor. Ouvimos isso da autoridade védica (Kaṭha Upaniṣad 2.2.23 e Muṇḍaka Upaniṣad 3.2.3):

nāyam ātmā pravacanena labhyo
na medhayā na bahunā śrutena
yam evaiṣa vṛṇute tena labhyas
tasyaiṣa ātmā vivṛṇute tanūṁ svām

“Não se pode alcançar este Eu Supremo pela argumentação, nem pelo uso do poder independente do cérebro, nem pelo estudo de muitas escrituras. Na verdade, apenas pode alcançar o Eu aquele a quem o Eu escolhe favorecer. A essa pessoa, o Eu revela Sua verdadeira forma pessoal.”

Em outra parte, o śruti descreve o sucesso do devoto, dehānte devaḥ paraṁ brahma tārakaṁ vyacaṣṭe: “No final da vida deste corpo, a alma santificada percebe o Senhor Supremo tão claramente quanto alguém vê as estrelas no céu.” E em sua última afirmação, a Śvetāś­vatara Upaniṣad (6.23) oferece esse incentivo aos aspirantes a vaiṣṇavas:

yasya deve parā bhaktir
yathā deve tathā gurau
tasyaite kathitā hy arthāḥ
prakāśante mahātmanaḥ

“Àquelas grandes almas que têm fé inabalável tanto no Senhor quanto no mestre espiritual, todo o conteúdo do conhecimento védico é-lhes automaticamente revelado.”

A esse respeito, Śrīla Jīva Gosvāmī cita outros versos da Śrī Śve­tāśvatara Upaniṣad (4.7-8 e 4.13):

juṣṭaṁ yadā paśyaty anyam īśam
asya mahimānam iti vīta-śokaḥ
ṛco ’kṣare pare vyoman
yasmin devā adhi viśve niṣeduḥ
yas taṁ veda kim ṛcā kariṣyati
ya it tad vidus ta ime samāsate

“O Senhor Supremo é aquele a quem se referem os mantras do Ṛg Veda, que reside no mais elevado céu eterno e que eleva Seus devo­tos santos a essa mesma posição. Quem desenvolve amor puro por Ele e compreende Seu status inigualável, aprecia então Suas glórias e livra-se do pesar. Que outro bem os mantras do Ṛg podem conce­der a quem conhece aquele Senhor Supremo? Todos os que chegam a conhecê-lO alcançam o destino supremo.”

yo vedānām adhipo
yasmiḻ lokā adhiśrītāḥ
ya īśo ’sya dvipadaś catuṣpadas
tasmai devāya haviṣā vidhema

“A Ele que é o mestre de todos os Vedas, em quem repousam todos os planetas, que é o Senhor de todas as criaturas conhecidas, tanto bípedes como quadrúpedes – a Ele, a Personalidade de Deus, oferecemos nossa adoração com oblações de ghī.”

Referindo-se àqueles que desejam a liberação, Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

tapantu tāpaiḥ prapatantu parvatād
aṭantu tīrthāni paṭhantu cāgamān
yajantu yāgair vivadantu vādair
hariṁ vina naiva mṛtiṁ taranti

“Que eles se sujeitem a austeridades, atirem-se do alto das monta­nhas, viajem aos lugares sagrados, estudem as escrituras, executem adoração com sacrifícios de fogo e discutam várias filosofias – mas, sem o Senhor Hari, eles jamais atravessarão a morte.”

Texto

tvam akaraṇaḥ sva-rāḍ akhila-kāraka-śakti-dharas
tava balim udvahanti samadanty ajayānimiṣāḥ
varṣa-bhujo ’khila-kṣiti-pater iva viśva-sṛjo
vidadhati yatra ye tv adhikṛtā bhavataś cakitāḥ

Sinônimos

tvam — Vós; akaraṇaḥ — sem sentidos materiais; sva-rāṭ — autorreful­gente; akhila — de todas; kāraka — as funções sensoriais; śakti — das potências; dharaḥ — o mantenedor; tava — Vosso; balim — tributo; udvahanti — carregam; samadanti — e partilham de; ajayā — juntamente com a natureza material; animiṣāḥ — os semideuses; varṣa — dos distritos de um reino; bhujaḥ — os governantes; akhila — inteira; kṣiti — da terra; pateḥ — do senhor; iva — como se; viśva — do universo; sṛjaḥ — os criadores; vidadhati — executam; yatra — em que; ye — eles; tu — de fato; adhikṛtā — designados; bhavataḥ — de Vós; cakitāḥ — com medo.

Tradução

Embora não tenhais sentidos materiais, Vós sois o sustentador autorrefulgente dos poderes sensoriais de todos. Os semideuses e a própria natureza material oferecem-Vos tributo, enquanto também desfrutam o tributo que lhes oferecem seus adoradores, assim como governantes subordinados dos vários distritos de um reino oferecem tributo a seu senhor, o proprietário supremo da terra, e, ao mesmo tempo, também desfrutam o tributo que seus súditos lhes pagam. Desta maneira, por medo de Vós, os criado­res universais executam fielmente seus serviços prescritos.

Comentário

SIGNIFICADO—Todos os seres vivos inteligentes devem reconhecer a soberania do Senhor e ocupar-se voluntariamente no serviço devocional a Ele. Esse é o consenso dos Vedas personificados. Mas o Senhor Nārāyaṇa, enquanto ouvia essas orações, poderia ter feito a sensata pergunta: “Já que também tenho uma forma corpórea com órgãos dos sentidos e membros, não serei apenas outro agente e desfrutador? Sobretudo visto que, como a Superalma no coração de todo ser, Eu supervisiono incontáveis órgãos e membros, como é que não estou implicado na soma total do gozo dos sentidos de todos?” “Não”, replicam aqui os śrutis reunidos, “não tendes sentidos materiais, apesar do que sois o controlador absoluto de tudo.” Como se exprime na Śvetāśvatara Upaniṣad (3.19):

apāṇi-pādo javano grahītā
paśyaty acakṣuḥ sa śṛṇoty akarṇaḥ
sa vetti vedyaṁ na ca tasya vettā
tam āhur agryaṁ puruṣaṁ purāṇam

“Ele não tem pés nem mãos, apesar do que é o corredor mais veloz e pode agarrar qualquer coisa. Embora não tenha olhos nem ouvidos, Ele vê e ouve. Ninguém O conhece, mas Ele é o conhecedor e o objeto do conhecimento. Os sábios descrevem-nO como a suprema e origi­nal Personalidade de Deus.”

As mãos, pés, olhos e ouvidos da Pessoa Suprema não são como os de uma alma condicionada comum, que são provenientes do falso ego, uma substância material. Em vez disso, as características transcendentalmente belas do Senhor são manifestações diretas de Sua natureza interna. Dessa maneira, diferente da alma e do corpo dos seres vivos condicionados, o Senhor e Sua forma corpórea são idên­ticos em todos os aspectos. Além disso, Suas mãos de lótus, pés de lótus, olhos de lótus e outros membros não são restritos em suas funções. Śrī Brahmā, a primeira criatura do Senhor, glorifica essa Sua qualidade:

angāni yasya sakalendriya-vṛttimanti
paśyanti pānti kalayanti ciraṁ jaganti
ānanda-cinmaya-sad-ujjvala-vigrahasya
govindam ādi-puruṣam tam ahaṁ bhajāmi

“Adoro Govinda, o Senhor primordial, cuja forma transcendental é plena de bem-aventurança, verdade e substancialidade, sendo plena do mais deslumbrante esplendor. Cada um dos membros dessa figura transcendental possui as funções integrais de todos os demais órgãos, e Ele vê, mantém e manifesta eternamente os universos infinitos, tanto os espirituais quanto os mundanos.” (Brahma-saṁhitā 5.32)

Śrīla Viśvanātha Cakravartī apresenta uma explicação alternativa das palavras akhila-śakti-dhara: O poder que o Senhor Supremo mantém dentro de Si mesmo é akhila, livre das limitações de tudo o que é khila, ou inferior e insignificante. Ele energiza os sentidos do ser vivo, como se descreve na Kena Upaniṣad (1.2), śrotrasya śrotraṁ manaso mano yad vāco ha vācam: “Ele é o ouvido do ouvido, a mente da mente, e a capacidade de falar da fala.” E a Śvetāśvatara Upaniṣad (6.8) de­clara:

na tasya kāryaṁ karaṇaṁ ca vidyate
na tat-samaś cābhyadhikaś ca dṛśyate
parāsya śaktir vividhaiva śrūyate
svābhāvikī jñāna-bala-kriyā ca

“Ele não tem trabalho material a executar, nem sentidos materiais com os quais executá-lo. Não há ninguém que se iguale a Ele ou que O su­pere. Dos Vedas, ouvimos como o Senhor Supremo possui múltiplas energias – as potências de conhecimento, força e ação –, cada uma das quais age autonomamente.”

Indra e os outros semideuses que governam os seres mortais são eles mesmos servos da Personalidade de Deus, como o são seus su­periores – Brahmā e seus filhos, os criadores secundários. Todos esses grandes deuses e sábios adoram o Senhor Supremo mediante a execução de seus respectivos serviços de administrar o universo e prover orientação religiosa para a humanidade.

Os poderosos controladores do universo submetem-se com ame­drontada reverência ao controlador supremo, o Senhor Śrī Viṣṇu. Como declara a Taittirīya Upaniṣad (2.8.1):

bhīṣāsmād vātaḥ pavate
bhīṣād eti sūryaḥ
bhīṣāsmād agniś cendraś ca
mṛtyur dhāvati pañcamaḥ

“Por temor a Ele, o vento sopra. Por temor a Ele, o Sol se move e Agni e Indra executam seus deveres. E a morte, o quinto deles, foge correndo por temor a Ele.”

Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

anindriyo ’pi yo devaḥ
sarva-kāraka-śakti-dhṛk
sarva-jñaḥ sarva-kartā ca
sarva-sevyaṁ namāmi tam

“O Senhor Supremo não tem sentidos materiais, mesmo assim Ele controla as funções sensoriais de toda entidade viva. Ele é o conhe­cedor de tudo, o executor último de toda ação, e o objeto apropriado do serviço devocional de todos. Ofereço-Lhe minhas reverências.”

Texto

sthira-cara-jātayaḥ syur ajayottha-nimitta-yujo
vihara udīkṣayā yadi parasya vimukta tataḥ
na hi paramasya kaścid aparo na paraś ca bhaved
viyata ivāpadasya tava śūnya-tulāṁ dadhataḥ

Sinônimos

sthira — estacionárias; cara — e móveis; jātayaḥ — espécies de vida; syuḥ — tornam-se manifestas; ajayā — com a energia material; uttha — despertadas; nimitta — suas motivações para atividade (e os corpos sutis ativados por estas); yujaḥ — assumindo; viharaḥ — diversão; udīk­ṣayā — por Vosso breve olhar; yadi — se; parasya — dEle que está afas­tado; vimukta — ó eternamente liberado; tataḥ — dela; na — não; hi — de fato; paramasya — para o supremo; kaścit — qualquer um; aparaḥ — não estranho; na — nem; paraḥ — estranho; ca — também; bhavet — pode ser; viyataḥ — para o céu etéreo; iva — como se; apadasya — que não tem qualidades perceptíveis; tava — para Vós; śūnya — com um vazio; tulām — uma semelhança; dadhataḥ — que assumes.

Tradução

Ó Senhor transcendental e eternamente liberado, Vossa energia material provoca o aparecimento das várias espécies de vida mó­veis e inertes mediante a ativação de seus desejos materiais, mas só quando e se brincais com ela lançando-lhe um breve olhar. Vós, a Suprema Personalidade de Deus, não vedes ninguém como amigo íntimo nem como estranho, assim como o céu etéreo não tem conexão com qualidades perceptíveis. Nesse sentido, pareceis um vazio.

Comentário

SIGNIFICADO—Não apenas os seres vivos são totalmente dependentes do independente e todo-poderoso Senhor para sua manutenção e bem-estar, mas até o próprio fato de sua existência corporificada se deve apenas à excepcional misericórdia dEle. A Personalidade de Deus não tem nenhum interesse em assuntos materiais, já que Ele nada tem a ganhar dos mesquinhos prazeres deste mundo e é cem por cento livre de qual­quer contaminação de inveja ou luxúria. Ele está exclusivamente en­volvido em íntimos passatempos amorosos com Seus devotos puros no eterno reino de Suas energias espirituais. Portanto, a única razão pela qual Ele alguma vez volta a atenção para o trabalho de criar o mundo material é para ajudar a trazer as almas perdidas de volta para esse círculo interno de desfrute eterno.

Para tentar levar uma vida separada do Senhor, as almas rebeldes têm de receber corpos adequados e um ambiente ilusório onde possam encenar suas fantasias de independência. O misericordioso Senhor concorda em deixá-las aprender essa lição à sua maneira e, por isso, lança um olhar para Mahāmāyā, Sua energia encarregada da criação material. Mediante esse simples olhar, ela desperta e, em nome dEle, faz todos os arranjos necessários. Ela e seus auxiliares elaboram in­contáveis variedades de corpos grosseiros e sutis de semideuses, seres humanos, animais etc., bem como inúmeras situações em mundos celestiais e infernais – tudo isso somente para dar às almas condicionadas as exatas facilidades que elas desejam e merecem.

Embora os desinformados possam culpar a Deus pelo sofrimento de Suas criaturas, um estudante sincero da literatura védica apreciará a preocupação imparcial do Senhor Supremo com cada alma. Visto que Ele nada tem a perder ou ganhar, não há razão para Ele fazer distinções entre amigos e adversários. Podemos escolher opor-nos a Ele e fazer todos os esforços para esquecê-lO, mas Ele jamais nos esquece, nem para de fornecer tudo o que necessitamos, juntamente com Sua orientação invisível.

Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

tvad-īkṣaṇa-vaśa-kśobha-
māyā-bodhita-karmabhiḥ
jatān saṁsarataḥ khinnān
nṛ-hare pāhi naḥ pitaḥ

“Ó pai, ó Senhor que apareceis como metade homem, metade leão, por favor, salvai aqueles que nasceram no interminável ciclo de nas­cimentos e mortes. Essas almas estão aflitas por causa de seu envol­vimento kármico, o qual māyā despertou quando Vosso olhar a agitou, fazendo com que agisse.”

Texto

aparimitā dhruvās tanu-bhṛto yadi sarva-gatās
tarhi na śāsyateti niyamo dhruva netarathā
ajani ca yan-mayaṁ tad avimucya niyantṛ bhavet
samam anujānatāṁ yad amataṁ mata-duṣṭatayā

Sinônimos

aparimitāḥ — incontáveis; dhruvāḥ — permanentes; tanu-bhṛtaḥ — as entidades vivas corporificadas; yadi — se; sarva-gatāḥ — onipresentes; tarhi — então; na — não; śāsyatā — soberania; iti — tal; niyamaḥ — domínio; dhruva — ó imutável; na — não; itarathā — do contrário; aja­ni — foi gerado; ca — e; yat-matam — de cuja substância; tat — daquele; avimucya — não se separando; niyantṛ — regulador; bhavet — deve ser; samam — igualmente presente; anujānatām — daqueles que supostamente conhecem; yat — que; amatam — compreenderam mal; mata — ­do que é conhecido; duṣṭatayā — por causa da imperfeição.

Tradução

Se as incontáveis entidades vivas fossem onipenetrantes e pos­suíssem formas que nunca mudassem, não poderíeis ser o go­vernante absoluto delas, ó imutável. Mas como elas são Vossas expansões localizadas e suas formas estão sujeitas a mudança, sois Vós que as controlais. De fato, aquilo que fornece os ingre­dientes para a produção de algo é necessariamente seu controlador, visto que um produto jamais existe separado de sua causa constituinte. É mera ilusão alguém pensar que conhece o Senhor Supremo, que está igualmente presente em cada uma de Suas ex­pansões, pois qualquer conhecimento que se obtenha por meios materiais é certamente imperfeito.

Comentário

SIGNIFICADO—Porque a alma condicionada não pode compreender diretamente o Supremo, os Vedas costumam se referir a essa Verdade Suprema usando termos impessoais tais como Brahman e oṁ tat sat. Se um erudito qualquer presume conhecer o significado confidencial dessas referências simbólicas, ele deve ser rejeitado como um impostor. Nas palavras do Śrī Kena Upaniṣad (2.1), yadi manyase su-vedeti dabhram evāpi nūnaṁ tvaṁ vettha brahmaṇo rūpaṁ, yad asya tvaṁ yad asya deveṣu: “Se acreditas conhecer bem o Brahman, então teu conhecimento é muito escasso. Se acreditas poder identificar a forma de Brahman dentre os semideuses, de fato conheces bem pouco.” Em outra passagem, afirma-se:

yasyāmataṁ tasya mataṁ
mataṁ yasya na veda saḥ
avijñātaṁ vijānatāṁ
vijñātam avijānatām

“Quem quer que negue ter alguma opinião própria sobre a Verdade Suprema está correto em sua opinião, ao passo que quem tem sua própria opinião sobre o Supremo não O conhece. Ele é desconhecido para aqueles que alegam conhecê-lO, e apenas pode ser conhecido por aqueles que não alegam conhecê-lO.” (Kena Upaniṣad 2.3)

Ācārya Śrīdhara Svāmī apresenta a seguinte explicação desse verso: Muitos filósofos estudaram os mistérios da vida de vários pontos de vista e formaram teorias extremamente diferentes. Os māyāvādīs advaitas, por exemplo, propõem que existe apenas um ser vivo e um poder de ilusão (avidyā) que o encobre, criando a aparência de plura­lidade. Mas essa hipótese conduz à conclusão absurda de que, quando qualquer ser vivo se libera, todos obtêm a liberação. Se, por outro lado, há muitos avidyās para cobrir o ser vivo único, cada avidyā cobrirá apenas alguma parte dele, e teríamos de falar sobre ele tornar-se em parte liberado em ocasiões determinadas enquanto suas outras partes permanecem em cativeiro. Isso também é obviamente absurdo. Logo, a pluralidade dos seres vivos é uma conclusão inevitável.

Além disso, há outros teóricos, a saber, os proponentes da filosofia nyāya e vaiśeṣika, que sustentam que a alma jīva é infinita em tamanho. Se as almas fossem infinitesimais, argumentam esses eruditos, elas não permeariam seus próprios corpos, ao passo que, se fossem de tamanho médio, seriam divisíveis em partes e assim não poderiam ser eternas, pelo menos segundo os axiomas da metafísica nyāya­-vaiśeṣika. Mas se as numerosas almas jīvas eternas são, cada uma delas, infinitamente grandes, como poderiam ser cobertas por algum poder de cativeiro, quer pertencente a avidyā, quer pertencente ao próprio Senhor Supremo? Segundo essa teoria, não pode haver ilusão para a alma, nem limitação da qual deva se libertar. As almas infinitas devem permanecer eternamente como são, sem mudança. Isso significaria que as almas seriam todas iguais a Deus, pois esse não teria campo de ação para controlar tais rivais onipenetrantes e imutáveis.

Os śruti-mantras védicos, que asseveram de modo inequívoco o domínio do Senhor sobre as almas individuais, não podem ser vali­damente contestados. Um verdadeiro filósofo deve aceitar as afirma­ções do śruti como uma autoridade confiável em todos os assuntos que abordam. Com certeza, em numerosas passagens, os textos védicos contrastam a unicidade perpétua e imutável do Senhor Supremo com as corporificações sempre mutantes dos seres vivos apanhados no ciclo de nascimentos e mortes.

Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

antar-yantā sarva-lokasya gītaḥ
śrutyā yuktyā caivam evāvaseyaḥ
yaḥ sarva-jñaḥ sarva-śaktir nṛṣiṁhaḥ
śrīmantaṁ taṁ cetasaivāvalambe

“Em meu coração, refugio-me nEle que é glorificado como o con­trolador interno de todos os mundos, e a quem os Vedas averiguam em verdade através do raciocínio lógico. Ele é Nṛsiṁha, o onisciente e onipotente Senhor da deusa da fortuna.”

Texto

na ghaṭata udbhavaḥ prakṛti-pūruṣayor ajayor
ubhaya-yujā bhavanty asu-bhṛto jala-budbuda-vat
tvayi ta ime tato vividha-nāma-guṇaiḥ parame
sarita ivārṇave madhuni lilyur aśeṣa-rasāḥ

Sinônimos

na ghaṭate — não acontece; udbhavaḥ — a geração; prakṛti — da natureza material; pūruṣayoḥ — e da alma que é seu desfrutador; ajayoḥ — que são não nascidos; ubhaya — de ambos; yujā — pela combinação; bhavanti — vêm a existir; asu-bhṛtaḥ — corpos vivos; jala — na água; budbuda — bolhas; vat — como; tvayi — em Vós; te ime — estes (seres vivos); tataḥ — portanto; vividha — vários; nāma — com nomes; guṇaiḥ — e qualidades; parame — no Supremo; saritaḥ — rios; iva — como; arṇave — dentro do oceano; madhuni — em mel; lilyuḥ — fundem-se; aśeṣa — todos; rasāḥ — sabores.

Tradução

Nem a natureza material nem a alma que tenta desfrutá-la nascem em tempo algum. Ainda assim, os corpos vivos vêm a existir quando estes dois se combinam, assim como bolhas se formam quando a água se encontra com o ar. E assim como os rios fundem-se no oceano ou o néctar de muitas flores diferentes se mistura no mel, da mesma forma todos esses seres condicionados terminam fun­dindo-se outra vez em Vós, o Supremo, juntamente com seus vários nomes e qualidades.

Comentário

SIGNIFICADO—Sem apropriada orientação espiritual, alguém pode interpretar mal a afirmação dos Vedas de que entidades vivas emanam do Senhor como significando que elas vieram a existir neste processo e ter­minarão voltando à não-existência. Mas se as entidades vivas só tivessem existência temporária, então, quando uma delas morresse, seu karma restante simplesmente desapareceria sem ter sido esgotado, e quando uma alma nascesse, ela apareceria com um karma inexplicável, que nada fizera para obter. Além disso, a liberação de um ser vivo significaria a erradicação total de sua identidade e existência.

A verdade, todavia, é que a essência da alma é una com a de Brahman, assim como a pequena porção de espaço contida em um pote de barro é una em essência com o céu que se expande por toda a parte. E assim como o fazer e o quebrar de um pote, o “nascimento” de uma alma individual consiste em primeiro ela ser coberta por um corpo material, e sua “morte”, ou liberação, consiste na destruição de seus corpos grosseiro e sutil de uma vez por todas. Com certeza tal “nascimento” e “morte” acontecem apenas pela misericórdia do Senhor Supremo.

A combinação da natureza material e seu controlador que produz os numerosos seres condicionados na criação material é comparada aqui à combinação de água e ar que produz incontáveis bolhas de es­puma na superfície do mar. Assim como a causa eficiente, o ar, im­pele a causa constituinte, a água, a converter-se em bolhas, de igual modo, por Seu olhar, o Supremo Puruṣa inspira a prakṛti a transformar-­se no conjunto de elementos materiais, e as inumeráveis formas ma­teriais manifestam-se a partir desses elementos. A prakṛti, então, serve como o upādāna-kāraṇa, ou causa constituinte, da criação. Em última análi­se, porém, já que ela é também uma expansão do Senhor Supremo, é apenas o Senhor que é a causa constituinte bem como a causa eficien­te. É isso o que se declara na Taittirīya Upaniṣad (2.2.1), tasmād vā etasmād ātmana ākāśaḥ sambhūtaḥ: “Desta Alma Suprema, o éter evoluiu”, e so ’kāmayata bahu syāṁ prajāyeya: “Ele desejou: ‘Que Eu Me torne muitos expandindo-Me em progênie.’”

As almas jīvas individuais não são criadas quando “nascem” do Senhor Supremo e da prakṛti, tampouco são destruídas quando voltam a “fundir-se” no Senhor, reunindo-se a Ele nos aprazíveis passa­tempos de Seu reino eterno. E da mesma maneira que as jīvas in­finitesimais podem parecer submeter-se a nascimentos e mortes sem nenhuma mudança real, o Senhor Supremo pode produzir e recolher Suas emanações sem que Ele mesmo sujeite-Se a qualquer transfor­mação. Por isso, a Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad (4.5.14) assevera que avināśi vāre ’yam ātmā: “Este ātmā é de fato indestrutível” – uma afirmação que tanto se pode aplicar à Alma Suprema quanto à alma jīva subordinada.

Como explicou Śrīla Śrīdhara Svāmī, a dissolução da condição ma­terial do ser vivo ocorre de duas maneiras: parcial e completa. A dis­solução parcial ocorre quando a alma experimenta o sono sem sonhos, quando deixa o corpo e quando todas as almas entram novamente no corpo de Mahā-Viṣṇu por ocasião da aniquilação universal. Esses diferentes tipos de dissolução são como a mistura do néctar trazido de diferen­tes espécies de flores pelas abelhas. Os diferentes sabores de néctar representam as adormecidas reações kármicas de cada entidade viva, que ainda existem mas não podem distinguir-se facilmente umas das outras. Em contraste, a dissolução última da condição material da alma é sua liberação do saṁsāra, que é como o fluir dos rios para o oceano. Assim como as águas de diferentes rios se misturam após entrarem no oceano e tornam-se indistinguíveis umas das outras; do mesmo modo, as falsas designações materiais das jīvas são abando­nadas no momento da liberação, e todas as jīvas liberadas mais uma vez situam-se igualmente como servas do Senhor Supremo.

As Upaniṣads descrevem essas dissoluções da seguinte maneira, yathā saumya madhu madhu-kṛto nitiṣṭhanti nānātyayānāṁ vṛkṣānāṁ rasān samavahāram ekatāṁ saṅgayanti. te yathā tatra na vivekaṁ labhante amuṣyāhaṁ vṛkṣasya raso ’smy anuisyāhaṁ raso ’smīty evam eva khalu saumyemāḥ sarvāḥ prajāḥ sati sampadya na viduḥ sati sampradyāmaḥe: “Meu caro menino, esta [dissolução parcial] asse­melha-se ao que acontece quando as abelhas recolhem mel extraindo néctar das flores de várias espécies de árvores e amalgamam tudo em uma mistura única. Assim como os néctares misturados não podem distinguir: ‘Sou o sumo de tal e tal flor’, ou ‘Sou o sumo de outra flor’, da mesma maneira, caro menino, quando todas estas entidades vivas se fundem, elas não podem pensar conscientemente: ‘Agora nos fundimos.’” (Chāndogya Upaniṣad 6.9.1-2)

yathā nadyaḥ syandamānāḥ samudre
’staṁ gacchanti nāma-rūpe vihāya
tathā vidvān nāma-rūpād vimuktaḥ
parāt-paraṁ puruṣam upaiti divyam

“Assim como os rios fluem para sua dissolução no mar, abandonan­do seus nomes e formas ao chegarem a seu destino, analogamente o homem sábio que se liberta dos nomes e formas materiais alcança o Absoluto Supremo, a maravilhosa Personalidade de Deus.” (Muṇḍaka Upaniṣad 3.2.8)

Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

yasminn udyad-vilayam api yad bhāti viśvaṁ layādau
jīvopetaṁ guru-karuṇayā kevalātmāvabodhe
atyantāntaṁ vrajati sahasā sindhu-vat sindhu-madhye
madhye cittaṁ tri-bhuvana-guruṁ bhāvaye taṁ nṛ-siṁham

“O Senhor Supremo é autorrefulgente e onisciente. Por Sua grandio­sa misericórdia, este universo, que está sujeito a repetidas criações e destruições, permanece presente dentro dEle depois de fundir-se de novo nEle, juntamente com as entidades vivas por ocasião da dissolução cósmica. Essa retração total da manifestação universal ocorre de repente, como o fluir do rio para o oceano. No âmago de meu coração, medito naquele mestre dos três mundos, o Senhor Nṛsiṁha.”

Texto

nṛṣu tava mayayā bhramam amīṣv avagatya bhṛśaṁ
tvayi su-dhiyo ’bhave dadhati bhāvam anuprabhavam
katham anuvartatāṁ bhava-bhayaṁ tava yad bhru-kuṭiḥ
sṛjati muhus tri-nemir abhavac-charaṇeṣu bhayam

Sinônimos

nṛṣu — entre seres humanos; tava — Vossa; māyayā — pela energia ilusória; bhramam — confusão; amīṣu — entre estes; avagatya — compreendendo; bhṛśam — fervoroso; tvayi — para Vós; su-dhiyaḥ — aqueles que são sábios; abhave — para a fonte de liberação; dadhati — prestam; bhāvam — serviço amoroso; anuprabhavam — potente; katham — como; anuvartatām — para aqueles que Vos seguem fielmente; bhava — da vida material; bhayam — temor; tava — Vosso; yat — desde que; bhru — das sobrancelhas; kuṭiḥ — o franzir; sṛjati — cria; muhuḥ — repetida­mente; tri-nemiḥ — de três aros (nas três fases do tempo, a saber, pas­sado, presente e futuro); a — não; bhavat — em Vós; śaraṇeṣu — para aqueles que se abrigam; bhayam — temor.

Tradução

As almas sábias que compreendem como Vossa māyā enga­na todos os seres humanos prestam poderoso serviço amoroso a Vós, que sois a fonte de liberação dos nascimentos e mortes. Como, de fato, o medo da vida material pode afetar Vossos fiéis servos? Por outro lado, Vossas sobrancelhas franzidas – a roda do tempo, a qual tem três aros – aterrorizam repetidamente aqueles que se recusam a abrigar-se em Vós.

Comentário

SIGNIFICADO—Os Vedas revelam seu segredo mais precioso – o serviço devocio­nal à Personalidade de Deus – somente àqueles que estão cansados da ilusão material, que se baseia num falso sentido de independên­cia do Senhor. A Vājasaneyī-saṁhitā (32.11) do Yajur Veda Branco contém o seguinte mantra:

parītya bhūtāni parītya lokān
parītya sarvāḥ pradiśo diśaś ca
upasthāya prathama-jāmṛtasyā-
tmanātmānam abhisaṁviveśa

“Depois de passar por todas as espécies de vida, todos os sistemas planetários e todos os limites do espaço em todas as direções, a pessoa se aproxima da Alma original da imortalidade. Então, recebe a opor­tunidade de entrar permanentemente em Seu domínio e adorá-lO com serviço pessoal.”

Os proponentes de várias filosofias materialistas divergentes podem considerar-se muito sábios, mas de fato todos eles estão iludidos pela māyā do Senhor Supremo. Os vaiṣṇavas reconhecem esse padrão de ilusão geral e submetem-se ao Senhor Supremo mediante as atitudes devocionais de serviço, amizade etc. Em vez do calor e luta da discussão filosófica, os vaiṣṇavas puros experimentam apenas prazer a cada momento, dado que o objeto de seu amor é aquele que põe fim a todo o enredamento material. E os devotos do Senhor Viṣṇu desfru­tam de um prazer constante não só nesta vida, mas também nas vidas futuras. Em quaisquer nascimentos que aceitem, eles gozam de um intercâmbio amo­roso com o Senhor. Por isso, o vaiṣṇava sincero ora:

nātha yoni-sahasreṣu
yeṣu yeṣu bhramāmy aham
tatra tatrācyutā bhaktir
acyutāstu dṛḍhā tvayi

“Por onde quer que eu vagueie, ó amo, entre milhares de espécies de vida, que em toda situação eu tenha firme e fixa devoção a Vós, ó Acyuta.” (Viṣṇu Purāṇa)

Alguns filósofos questionarão como os vaiṣṇavas podem superar sua armadilha material sem um conhecimento analítico completo das entidades tvam (“tu”, a jīva) e tat (“aquilo”, o Supremo), e sem desenvolver um ódio suficiente à vida material. Os Vedas personifi­cados aqui respondem que não há possibilidade de a ilusão material continuar a agir sobre os devotos do Senhor porque, mesmo nas fases iniciais do serviço devocional, todo o medo e apego são retirados pela graça do Senhor.

O tempo é a causa original de todo o temor neste mundo. De fato, com suas três divisões, a saber, passado, presente e futuro, ele cria terror ante a perspectiva de doença, morte e sofrimento infernal imi­nentes –, mas apenas para aqueles que deixaram de obter abrigo aos pés do Senhor Supremo. Como o próprio Senhor diz no Rāmāyaṇa (Laṅkā-khaṇḍa 18.33):

sakṛd eva prapanno yas
tavāsmīti ca yācate
abhayaṁ sarvadā tasmai
dadāmy etad vrataṁ mama

“Para quem quer que ao menos uma vez se renda a Mim, dizendo: ‘Sou Vosso’, Eu dou eterno destemor. Este é Meu voto solene.” Além disso, o Senhor diz na Bhagavad-gītā (7.14):

daivī hy eṣā guṇa-mayī
mama māyā duratyayā
mām eva ye prapadyante
māyāṁ etāṁ taranti te

“Esta Minha energia divina, que consiste nos três modos da natureza material, é difícil de ser suplantada. Mas aqueles que se renderam a Mim podem facilmente transpô-la.”

Os vaiṣṇavas não gostam de desperdiçar seu tempo em prolongada e infrutífera discussão sobre áridos assuntos filosóficos. Eles pre­ferem adorar a Personalidade de Deus a disputar com adversários fi­losóficos. A compreensão dos vaiṣṇavas concorda com a mensagem essencial da escritura revelada. A concepção que esses devotos têm da Suprema Verdade Absoluta como o oceano infinito de personali­dade e passatempos amorosos em Suas adoráveis formas de Kṛṣṇa, Rāma e outras manifestações divinas, e sua concepção de si mesmos como servos eternos dEle, equivalem à perfeita conclusão da filoso­fia vedānta em termos das entidades tat e tvam.

A Personalidade de Deus e Suas emanações, tais como as almas jīvas, são diferentes e não diferentes ao mesmo tempo, assim como o Sol e os raios que emanam dele. Existem mais jīvas do que alguém pode contar, e cada uma delas está eternamente viva em consciência, como confirmam os śrutis: nityo nityānāṁ cetanaś cetanānām. (Kaṭha Upaniṣad 5.13 e Śvetāśvatara Upaniṣad 6.13) Quando são geradas do corpo do Mahā-Viṣṇu no início da criação material, as jīvas são todas iguais no sentido de que são todas partículas atômicas da energia marginal do Senhor. De acordo com suas diferentes condições, no entanto, elas se di­videm em quatro grupos: Algumas são cobertas pela ignorância, que obscurece sua visão como uma nuvem. Outras se libertam da igno­rância através de uma combinação de conhecimento e devoção. Um terceiro grupo de almas torna-se dotado de devoção pura, com uma leve mistura de desejo de conhecimento especulativo e atividade fruitiva. Essas almas obtêm corpos purificados constituídos de co­nhecimento perfeito e bem-aventurança, com os quais podem ocupar­-se no serviço ao Senhor. Por fim, há aquelas que são desprovidas de qualquer ligação com a ignorância; estas são os companheiros eternos do Senhor.

A posição marginal da alma jīva é descrita no Nārada Pañcarātra:

yat taṭa-sthaṁ tu cid-rūpaṁ
sva-saṁvedyād vinirgatam
rañjitaṁ guṇa-rāgeṇa
sa jīva iti kathyate

“Deve-se entender a potência taṭastha como emanação da energia saṁvit [de conhecimento] do Senhor. Essa emanação, chamada jīva, fica condicionada pelas qualidades da natureza material.” Porque a diminuta jīva vive dentro da margem, entre a potência externa ilusó­ria do Senhor, māyā, e Sua potência espiritual interna, cit, a jīva é chamada taṭastha, “marginal”. Ao lograr a liberação mediante o cultivo de devoção ao Senhor, porém, ela fica completamente sob o abrigo da potência interna do Senhor, e nesse momento ela não está mais maculada pelos modos da natureza material. O Senhor Kṛṣṇa confirma isso na Bhagavad-gītā (14.26):

māṁ ca yo ’vyabhicāreṇa
bhakti-yogena sevate
sa guṇān samatītyaitān
brahma-bhūyāya kalpate

“Aquele que se ocupa em serviço devocional pleno e não falha em circunstância alguma transcende de imediato os modos da natureza material e chega, então, ao nível de Brahman.”

O objeto da adoração da alma é compreendido em três aspectos: Brahman, Paramātmā e Bhagavān. O Brahman impessoal é como a radiante refulgência do Sol; a Superalma, ou Paramātmā, é como o globo solar; e a Personalidade de Deus, Bhagavān, é como a deidade que rege o Sol, complementada por sua elaborada comitiva e para­fernália. Ou, para citar outra analogia, viajantes que se aproximam de uma cidade não podem, à distância, distinguir suas características, mas apenas ver algo vagamente brilhando adiante deles. Ao chegarem mais perto, podem perceber alguns dos edifícios mais altos. Então, quando estão bastante perto, eles verão a cidade como ela é – uma fervilhante metrópole com muitos cidadãos, residências, edifícios pú­blicos, rodovias e parques. Da mesma maneira, pessoas inclinadas à meditação impessoal podem, quando muito, conseguir alguma percep­ção da refulgência do Senhor Supremo (Brahman), aqueles que se aproximam mais podem aprender a vê-lO como o Senhor no coração (Paramātmā), e aqueles que chegam muito perto podem conhecê-lO em Sua plena personalidade (Bhagavān).

Em resumo, Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

saṁsāra-cakra-krakacair vidīrṇam
udīrṇa-nānā-bhava-tāpa-taptam
kathañcid āpannam iha prapannaṁ
tvam uddhara śrī-nṛhare nṛ-lokam

“Ó Śrī Nṛhari, por favor, salvai aqueles seres humanos que têm so­frido todas as espécies de tormentos e foram cortados em pedaços pela roda afiada do saṁsāra, mas que agora, de alguma maneira, encontraram-Vos e estão rendendo-se a Vós.”

Texto

vijita-hṛṣīka-vāyubhir adānta-manas tura-gaṁ
ya iha yatanti yantum ati-lolam upāya-khidaḥ
vyasana-śatānvitāḥ samavahāya guroś caraṇaṁ
vaṇija ivāja santy akṛta-karṇa-dharā jaladhau

Sinônimos

vijita — conquistados; hṛṣīka — com sentidos; vāyubhiḥ — e ar vital; adānta — não posta sob controle; manaḥ — a mente; tura-gam — (que é como) um cavalo; ye — aqueles que; iha — neste mundo; yatan­ti — esforçam-se; yantum — por regular; ati — muito; lolam — instável; upāya — por seus vários métodos de cultivo; khidaḥ — aflitos; vyasa­na — perturbações; śata — por centenas; anvitāḥ — acompanhados; sa­mavahāya — abandonando; guroḥ — do mestre espiritual; caraṇam — os pés; vaṇijaḥ — mercadores; iva — como se; aja — ó não-nascido; santi — são; akṛta — não tendo levado; karṇa-dharāḥ — um timoneiro; jala­dhau — no oceano.

Tradução

A mente é como um cavalo impetuoso que nem mesmo pessoas que regularam os sentidos e a respiração podem controlar. Aque­les neste mundo que tentam domar a mente descontrolada, mas que abandonam os pés de seu mestre espiritual, deparam-se com centenas de obstáculos em seu cultivo de várias práticas penosas. Ó Senhor não-nascido, eles são como mercadores em um barco no oceano que não contrataram um timoneiro.

Comentário

SIGNIFICADO—Para se qualificar para alcançar o amor a Deus, o fruto maduro da liberação, a pessoa deve primeiro sujeitar a mente material rebelde. Apesar de difícil, pode-se conseguir isso quando se substitui o vício ao gozo dos sentidos pelo gosto aos prazeres superiores da vida espiritual. Mas é apenas pelo favor do representante de Deus, o mestre es­piritual, que se pode conseguir esse gosto superior.

O mestre espiritual abre os olhos do discípulo para as maravilhas do reino transcendental, como o indicam as orações do Gāyatrī no mantra semente do conhecimento divino: aiṁ.

A Muṇḍaka Upaniṣad (1.2.12) declara:

tad-vijñānārthaṁ sa gurum evābhigacchet
samit-pāṇiḥ śrotriyaṁ brahma-niṣṭham

“Para compreender de modo correto essas coisas, a pessoa deve aproximar-se humildemente, com lenha na mão, de um mestre espi­ritual que seja versado nos Vedas e firmemente devotado à Verdade Absoluta.” E a Kaṭha Upaniṣad (2.9) declara:

naiṣā tarkeṇa matir āpaneyā
proktānyenaiva su-jñānāya preṣṭha

“Essa realização, meu caro menino, não pode ser conseguida através de lógica. Ela deve ser falada por um mestre espiritual de qualifica­ção excepcional a um discípulo instruído.”

Os não-vaiṣṇavas costumam negligenciar a importância de render­-se a um mestre espiritual que esteja em uma linha autorizada de suces­são discipular. Confiando, em vez disso, em suas próprias capacidades, yogīs e jñānīs orgulhosos exibem seu aparente sucesso para impres­sionar o mundo, mas a glória deles é apenas temporária:

yuñjānānām abhaktānāṁ
prāṇāyāmādibhir manaḥ
akṣīṇa-vāsanaṁ rājan
dṛśyate punar utthitam

“A mente dos não-devotos que se empenham em práticas tais como prāṇāyāma não está completamente livre dos desejos materiais. Por isso, ó rei, veem-se surgir outra vez na mente deles os desejos ma­teriais.” (Śrīmad-Bhāgavatam 10.51.60)

Por outro lado, um humilde e resoluto devoto do Senhor Viṣṇu e dos vaiṣṇavas tem garantia de vitória fácil sobre a mente obstinada. Ele não precisa se preocupar em praticar o sistema óctuplo de yoga nem tomar outras medidas similares para manter sua mente estável. Sarvaṁ caitad gurau bhaktyā puruṣo hy añjasā jayet: “A pessoa pode facilmente obter todas estas metas pelo simples fato de ser devotado a seu mestre espiritual.” Em vez disso, um não-devoto pode conquistar os sentidos e o ar vital e, mesmo assim, deixar de domar a mente, que continuará a correr sem controle como um cavalo selva­gem. Ele sofrerá interminável ansiedade em sua penosa execução de várias práticas espirituais e, no final, continuará tão perdido no vasto oceano material quanto sempre esteve. A analogia dada aqui é muito apropriada: Um grupo de mercadores que sai às pressas em uma viagem por mar com a expectativa de obter grande lucro, mas deixa de con­tratar um timoneiro experiente para o barco, simplesmente experimentará grande dificuldade.

O Bhāgavatam declara a importância do mestre espiritual autênti­co em muitas passagens, tais como neste verso do décimo primeiro canto (20.17):

nṛ-deham ādyam su-labhaṁ su-durlabhaṁ
plavaṁ su-kalpaṁ guru-karṇa-dhāram
mayānukūlena nabhasvateritaṁ
pumān bhavābdhiṁ na taret sa ātma-hā

“O corpo humano, que pode conceder todo o benefício da vida, é obtido automaticamente pelas leis da natureza, embora seja uma con­quista muito rara. Pode-se comparar este corpo humano a um barco perfeitamente construído que tem o mestre espiritual como capitão e as instruções da Personalidade de Deus como ventos favoráveis impelindo-o em seu curso. Considerando todas essas vantagens, o ser humano que não utiliza sua vida para atravessar o oceano da existên­cia material deve ser considerado o matador da própria alma.” Por­tanto, o primeiro dever de alguém que leve a sério a vida humana é encontrar um mestre espiritual que possa guiá-lo na consciência de Kṛṣṇa.

Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

yadā parānanda-guro bhavat-pade
padaṁ mano me bhagaval labheta
tadā nirastākhila-sādhana-śramaḥ
śrayeya saukhyaṁ bhavataḥ kṛpātaḥ

“Ó guru transcendentalmente bem-aventurado, quando minha mente encontrar enfim um lugar a teus pés de lótus, todo o cansativo esfor­ço de minhas práticas espirituais terminará, e experimentarei a mais intensa felicidade por tua misericórdia.”

Texto

svajana-sutātma-dāra-dhana-dhāma-dharāsu-rathais
tvayi sati kiṁ nṛṇām śrayata ātmani sarva-rase
iti sad ajānatāṁ mithunato rataye caratāṁ
sukhayati ko nv iha sva-vihate sva-nirasta-bhage

Sinônimos

svajana — com servos; suta — filhos; ātma — corpo; dāra — espo­sa; dhana — dinheiro; dhāma — lar; dharā — terra; asu — vitalidade; rathaiḥ — e veículos; tvayi — quando Vós; sati — tornastes-Vos; kim — que (utilidade); nṛṇām — para seres humanos; śrayataḥ — que estão se abrigando; ātmani — seu próprio Eu; sarva-rase — a personificação de todos os prazeres; iti — assim; sat — a verdade; ajānatām — para aqueles que não conseguem apreciar; mithunataḥ — de combinações sexuais; rataye — para o gozo dos sentidos; caratām — executando; sukhaya­ti — concede felicidade; kaḥ — o que; nu — absolutamente; iha — neste (mundo); sva — por sua própria natureza; vihate — que está sujeito à destruição; sva — por sua própria natureza; nirasta — que é desprovido; bhage — de qualquer essência.

Tradução

Para aqueles que se refugiam em Vós, revelais-Vos como a Superalma, a personificação de todo o prazer transcendental. De que servem para tais devotos seus servos, filhos, corpos, espo­sas, dinheiro, casas, terra, boa saúde ou veículos? E para aqueles que não conseguem apreciar a verdade sobre Vós e continuam atrás dos prazeres da vida sexual, o que poderia haver em todo este mundo – um lugar inerentemente condenado à destruição e destituído de significado – que lhes pudesse dar verdadeira felicidade?

Comentário

SIGNIFICADO—O serviço devocional ao Senhor Viṣṇu é considerado puro quando o único desejo da pessoa é agradar ao Senhor. Situado nessa consciên­cia perfeita, um vaiṣṇava não tem mais interesse em ganhos munda­nos e, assim, está isento da obrigação de executar quaisquer sacrifícios ritualísticos e de seguir práticas austeras de yoga. Como declara a Muṇḍaka Upaniṣad (1.2.12):

parīkṣya lokān karma-citān brāhmaṇo
nirvedam āyān nāsty akṛtaḥ kṛtena

“Quando um brāhmaṇa reconhece que a elevação aos planetas celestiais não passa de outra forma de acúmulo de karma, ele se torna renunciado e não mais se corrompe por suas ações.” A Bṛhad­āraṇyaka Upaniṣad (4.4.9) e a Kaṭha Upaniṣad (6.14) confirmam:

yadā sarve pramucyante
kāmā ye ’sya hṛdi śritāḥ
atha martyo ’mṛto bhavaty
atra brahma samaśnute

“Quando abandona por completo todos os desejos pecaminosos que abriga em seu coração, a pessoa troca a mortalidade pela vida espi­ritual eterna e alcança o verdadeiro prazer na Verdade Absoluta.” E a Gopāla-tāpanī Upaniṣad (Pūrva 15) conclui, bhaktir asya bhajanaṁ tad ihāmutropādhi-nairāsyenāmuṣmin manaḥ-kalpanam etad eva naiṣkarmyam: “Serviço devocional é o processo de adorar o Senhor Supremo. Ele consiste em fixar a própria mente nEle por tornar-se desinteressado de todas as designações materiais, tanto nesta vida quanto na próxima. Isso, de fato, é verdadeira renúncia.”

Os itens mencionados aqui pelos śrutis são todos medidas de avaliação do sucesso mundano: svajanāḥ, servos; ātmā, um belo corpo; sutāḥ, filhos de quem se orgulhar; dārāḥ, uma esposa atraente e competente; dhanam, ativos financeiros; dhāma, uma residência prestigiosa; dharā, posse de terras; asavaḥ, saúde e força, e rathāḥ, carros e outros veículos que exibem o status de alguém. Mas quem começou a experimentar o êxtase do serviço devocional perde toda a atração por essas coisas, pois encontra verdadeira satisfação no Senhor Supremo, o reservatório de todo o prazer, que desfruta partilhando Seus próprios prazeres com Seus servos.

Todos nós somos livres para escolher o rumo de nossa vida: po­demos ou dedicar nosso corpo, mente, palavras, talento e riqueza à glória de Deus, ou ignorá-lO e, em vez disso, lutar por nossa felicidade pessoal. O segundo caminho leva a uma vida de escravi­dão ao sexo e à ambição, na qual a alma nunca encontra verdadeira satisfação, senão que sofre continuamente. Os vaiṣṇavas ficam aflitos ao ver os materialistas sofrendo dessa maneira e, por isso, sempre se esforçam por iluminá-los.

Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

bhajato hi bhavān sākṣāt
paramānanda-cid-dhanaḥ
ātmaiva kim ataḥ kṛtyaṁ
tuccha-dāra-sutādibhiḥ

“Para aqueles que Vos adoram, tornais-Vos o seu próprio Eu e o te­souro espiritual da máxima bem-aventurança deles. De que lhes ser­vem esposas mundanas, filhos mundanos etc.?”

Texto

bhuvi puru-puṇya-tīrtha-sadanāny ṛṣayo vimadās
ta uta bhavat-padāmbuja-hṛdo ’gha-bhid-aṅghri-jalāḥ
dadhati sakṛn manas tvayi ya ātmani nitya-sukhe
na punar upāsate puruṣa-sāra-harāvasathān

Sinônimos

bhuvi — na Terra; puru — muito; puṇya — piedosos; tīrtha — lugares de peregrinação; sadanāni — e moradas pessoais do Senhor Supremo; ṛṣayaḥ — sábios; vimadāḥ — livres de orgulho falso; te — eles; uta — de fato; bhavat — Vossos; pada — pés; ambuja — lótus; hṛdaḥ — em cujos corações; agha — pecados; bhit — que destrói; aṅghri — (tendo banhado) cujos pés; jalāḥ — a água; dadhati — voltam; sakṛt — ao menos uma vez; manaḥ — suas mentes; tvayi — para Vós; ye — que; ātmani — para a Alma Suprema; nitya — sempre; sukhe — quem é feliz; na punaḥ — nunca mais; upāsate — adoram; puruṣa — de um homem; sāra — as qualidades essenciais; hara — que roubam; āvasathān — seus lares mundanos.

Tradução

Os sábios livres de falso orgulho vivem nesta Terra a frequen­tar os locais sagrados de peregrinação e aqueles lugares onde o Senhor Supremo exibiu Seus passatempos. Porque esses devotos conservam Vossos pés de lótus em seus corações, a água que lava seus pés destrói todos os pecados. Qualquer um que ao menos uma vez volta sua mente para Vós, a sempre bem-aventurada Alma de toda a existência, não mais se dedica a servir a vida fa­miliar no lar, o que simplesmente rouba as boas qualidades de um homem.

Comentário

SIGNIFICADO—A qualificação de um aspirante a sábio é que ele aprendeu sobre a Verdade Absoluta com autoridades padrão e desenvolveu uma sóbria atitude de renúncia. Para desenvolver sua capacidade de discriminar o importante do que é sem importância, tal pessoa costuma vagar de um lugar sagrado para outro, aproveitando-se da companhia das grandes almas que frequentam esses lugares ou neles residem. Se, no decurso de suas viagens, o aspirante a sábio puder começar a perceber os pés de lótus do Senhor Supremo no âmago de seu coração, ele ficará livre da ilusão do falso ego e do doloroso cativeiro de luxúria, inveja e cobiça. Embora ele ainda possa ir aos lugares de peregrina­ção para banhar-se e, assim, livrar-se de seus pecados, o sábio já pu­rificado tem o poder de santificar os outros com a água que lava seus pés e com as instruções que transmite após tê-las vivenciado. Semelhante sábio é descrito na Muṇḍaka Upaniṣad (2.2.9):

bhidyate hṛdaya-granthiś
chidyante sarva-saṁśayāḥ
kṣīyante cāsya karmāṇi
tasmin dṛṣṭe parāvare

“O nó no coração é desfeito, as apreensões são cortadas em pedaços e a cadeia de ações fruitivas se acaba quando alguém vê o Senhor Supremo em toda parte, dentro de todos os seres superiores e inferiores.” Aos sábios que alcançaram essa fase, a Muṇḍaka Upaniṣad (3.2.11) assim presta homenagem, namaḥ paramarṣibhyaḥ, namaḥ paramarṣibhyaḥ: “Reverências aos elevadíssimos sábios, reverên­cias aos elevadíssimos sábios!”

Deixando de lado a afetuosa companhia de esposas, filhos, amigos e seguidores, os santos vaiṣṇavas viajam aos dhāmas sagrados onde se pode efetuar a adoração ao Senhor Supremo com mais sucesso – lugares como Vṛndāvana, Māyāpur e Jagannātha Purī, ou qual­quer outro lugar onde se reúnam devotos sinceros do Senhor Viṣṇu. Mesmo aqueles vaiṣṇavas que não aceitaram sannyāsa e ainda moram em casa ou no āśrama do guru, mas que alguma vez saborearam ao menos uma gota do prazer sublime do serviço devocional, também terão pouca inclinação a meditar nos prazeres de uma vida familiar materialista, que priva o homem de seu discernimento, determinação, sobriedade, tolerância e paz de espírito.

Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

muñcann aṅga tad aṅga-saṅgam aniśaṁ tvām eva sañcintayan
santaḥ santi yato yato gata-madās tān āśramān āvasan
nityaṁ tan-mukha-paṅkajād vigalita-tvat-puṇya-gāthāmṛta-
srotaḥ-samplava-sampluto nara-hare na syām ahaṁ deha-bhṛt

“Meu querido Senhor, quando eu abandonar todo o gozo dos sentidos e me ocupar incessantemente em meditar em Vós, e quando fixar residência nos eremitérios dos devotos santos e livres de falso orgulho, então ficarei completamente imerso na inundação de néctar que verte das bocas de lótus dos devotos enquanto eles cantam histórias sagra­das sobre Vós. E então, ó Senhor Narahari, jamais voltarei a nascer em um corpo material.”

Texto

sata idaṁ utthitaṁ sad iti cen nanu tarka-hataṁ
vyabhicarati kva ca kva ca mṛṣā na tathobhaya-yuk
vyavahṛtaye vikalpa iṣito ’ndha-paramparayā
bhramayati bhāratī ta uru-vṛttibhir uktha-jaḍān

Sinônimos

sataḥ — daquilo que é permanente; idam — este (universo); utthitam — surgido; sat — permanente; iti — assim; cet — se (alguém propõe); nanu — decerto; tarka — por contradição lógica; hatam — refutado; vya­bhicarati — é inconsistente; kva ca — em alguns casos; kva ca — em outros casos; mṛṣā — ilusão; na — não; tathā — assim; ubhaya — de ambos (o real e a ilusão); yuk — a conjunção; vyavahṛtaye — por causa dos assuntos comuns; vikalpaḥ — uma situação imaginária; iṣitaḥ — desejada; andha — de homens cegos; paramparayā — por uma suces­são; bhramayati — confunde; bhāratī — as palavras de sabedoria; te — Vossas; uru — numerosas; vṛttibhiḥ — com suas funções semânticas; uktha — por frases usadas em rituais; jaḍān — embrutecidos.

Tradução

Pode-se propor que este mundo é permanentemente real porque é gerado a partir da realidade permanente, mas tal argumento está sujeito à refutação lógica. Algumas vezes, de fato, a não-diferença aparente de uma causa e seu efeito deixa de se confirmar, e outras vezes o produto de algo real é ilusório. Além disso, este mundo não pode ser permanentemente real, pois ele partilha das natu­rezas não somente da realidade absoluta, mas também da ilusão que encobre aquela realidade. Na verdade, as formas visíveis deste mundo são apenas um arranjo imaginário ao qual recorre uma sucessão de pessoas ignorantes a fim de facilitar seus assuntos ma­teriais. Com seus vários sentidos e implicações, as palavras eru­ditas dos Vedas confundem todas as pessoas cujas mentes foram embrutecidas por ouvirem os encantamentos dos rituais sacrificatórios.

Comentário

SIGNIFICADO—Segundo Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura, as Upaniṣads ensinam que este mundo criado é real, mas temporário. É esse entendimento que os devotos do Senhor Viṣṇu abraçam. Mas há também filósofos materialistas, como os proponentes do karma-mīmāṁsā, de Jaimini Ṛṣi, que alegam que este mundo é a única realidade e que existe eternamente. Para Jaimini, o ciclo de ações e reações kármicas é perpétuo, sem possibilidade alguma de liberação e de consecução de um reino diferente, transcendental. Mostra-se a falácia desse ponto de vista, porém, mediante o exame cuidadoso dos mantras das Upani­ṣads, que contêm muitas descrições de uma existência espiritual superior. Por exemplo, sad eva saumyedam agra āsīd ekam evādvitīyam: “Meu caro menino, apenas a Verdade Absoluta, única e incompa­rável existia antes desta criação.” (Chāndogya Upaniṣad 6.2.1) Também vijñānam ānandaṁ brahma: “A realidade suprema é conhecimento divino e bem-aventurança.” (Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad 3.9.34)

Nesta oração dos Vedas personificados, resume-se o argumento dos materialistas com as palavras sata idam utthitaṁ sat: “O mundo visível é permanentemente real porque é gerado a partir da realidade perma­nente.” Em geral, segundo o que estabelece este argumento, aquilo que é produzido de algum elemento é composto daquele elemento. Por exemplo, brincos e outros adornos feitos de ouro partilham da substância do ouro. Assim, concluem os lógicos do pensamento mīmāṁsā que, visto que o mundo como o conhecemos é uma manifestação de uma reali­dade eterna, ele também é eternamente real. Mas a expressão ablativa sânscrita sataḥ, “da realidade eterna”, indica uma separação categórica de causa e efeito. Portanto, aquilo que é criado de sat, a realidade permanente, deve ser significativamente diferente dela – em outras palavras, temporário. Dessa maneira, o argumento dos ma­terialistas é falho porque prova exatamente o contrário daquilo que pretende provar (tarka-hatam), isto é, que o mundo tal como o conhecemos é tudo o que existe, que é eterno e que não há realidade transcendental separada.

Em defesa, os mīmāsakas podem alegar que eles não estão tentando provar a não-diferença per se, mas sim tentando refutar a pos­sibilidade da diferença, ou, em outras palavras, a possibilidade de alguma realidade separada do mundo conhecido. Essa tentativa de apoiar o argumento mīmāṁsā é facilmente refutada pela frase vyabhicarati kva ca: quer dizer, há exemplos contrários que se desviam da regra geral. Às vezes, de fato, a fonte é muito diferente do que ela produz, como no caso de um homem e seu jovem filho, ou de um martelo e a destruição de um pote de barro.

Os mīmāṁsakas responderiam: A criação do universo não é da mesma espécie de causalidade dos vossos exemplos contrários: o pai e o martelo são apenas causas eficientes, ao passo que sat é também a causa cons­tituinte deste universo. Essa resposta é antecipada pelas palavras kva ca mṛṣā (“e algumas vezes o efeito é ilusório”). No caso da percepção falsa de uma cobra onde há uma corda no chão, a corda é a causa constituinte da ilusão de se perceber uma cobra, que difere em muitos aspectos da cobra imaginada, mais obviamente no fato de ela ser real.

Os mīmāṁsakas mais uma vez retrucariam: Mas a causa constituinte da cobra ilusória não é apenas a cobra por si mesma; é a corda mais a ignorância (avidyā) do observador. Como avidyā não é uma substância, a cobra que ela produz é chamada de ilusão. Mas o mesmo é ver­dadeiro, respondem os Vedas personificados, no caso da criação do universo a partir de sat em conjunção com a ignorância (tathobhaya-­yuk); aqui o elemento irreal de ilusão, māyā, é o conceito errado de que os seres vivos têm de que seus corpos e outras formas materiais mu­táveis são permanentes.

Os mīmāṁsakas respondem: Mas nossa experiência deste mundo é válida porque as coisas que experimentamos são úteis para a ativida­de prática. Se nossa experiência não fosse válida, jamais poderíamos ter certeza de que nossas percepções correspondiam aos fatos. Seríamos como um homem que, apesar de exame exaustivo, ainda teria de suspeitar que uma corda pudesse ser uma cobra. Não, aqui respondem os śrutis, as configurações temporárias da matéria são, não obstante, uma imitação ilusória da eterna realidade espiritual, habilmente inventadas para satisfazer o desejo que as entidades vivas condicionadas têm de atividade material (vyavahṛtaye vikalpa iṣitaḥ). A ilusão de este mundo ser permanente é sustentada por uma sucessão de cegos que aprendem a ideia materialista de seus predecessores e transmitem essa ilusão a seus descendentes. Qualquer um pode ver que uma ilusão muitas vezes continua pelo impulso de impressões mentais remanescentes, mesmo quando sua base não está mais pre­sente. Assim, através de toda a história, filósofos cegos têm desenca­minhado outros cegos convencendo-os da ideia absurda de que eles podem alcançar a perfeição por ocuparem-se em rituais mundanos. Pes­soas tolas podem estar dispostas a trocar moedas falsas entre si, mas um homem prudente sabe que esse dinheiro é inútil para a atividade prática de comprar comida, remédio e outras necessidades. E se for dado como caridade, o dinheiro falso não gerará crédito piedoso.

Os mīmāṁsakas retrucam: Como o realizador sincero dos rituais védicos pode ser um tolo iludido, já que as Saṁhitās e os Brāhmaṇas das escrituras védicas estabelecem que os frutos do karma são eter­nos? Por exemplo, akṣayyaṁ ha vai cāturmāsya-yājinaḥ su-kṛtaṁ bhavati: “Para quem observa os votos de Cāturmāsya, resulta um bom karma inesgotável”, e apāma somam amṛta babhūma: “Bebe­mos o soma e nos tornamos imortais.” (Ṛg Veda 8.43.3)

Os śrutis respondem ressaltando que as palavras eruditas da Personalidade de Deus, que formam os Vedas, confundem aqueles cuja fraca inteligência foi esmagada pelo peso da fé excessiva no karma. A palavra específica aqui utilizada é uru-vṛttibhiḥ, que indica que os mantras védicos, com sua confusa variedade de sentidos nos modos semânticos de gauṇa, lakṣaṇā etc., guardam seus mistérios sublimes de todos menos daqueles que têm fé no Senhor Viṣṇu. Os Vedas, em verdade, não querem dizer em seus preceitos que os frutos do karma são eternos, mas apenas indiretamente descrevem em metáfo­ras o quão louváveis são os sacrifícios regulados. A Chāndogya Upaniṣad declara em termos inequívocos que os resultados do karma ritualís­tico são impermanentes, tad yatheha karma-cito lokaḥ kṣīyate evam evāmutra puṇya-cito lokaḥ kṣīyate: “Assim como qualquer benefício que a pessoa trabalha arduamente para obter neste mundo acaba se esgotando, da mesma forma, qualquer vida que ela ganhar para si no outro mundo por meio de sua piedade também acabará no final.” (Chāndogya Upaniṣad 8.1.16) Conforme o testemunho de muitos śruti­-mantras, o universo material inteiro não passa de uma emanação temporária da Verdade Suprema; a Muṇḍaka Upaniṣad, por exemplo, diz:

yathorṇa-nābhiḥ sṛjate gṛhṇate ca
yathā pṛthivyām oṣadhayaḥ sambhavanti
yathā sataḥ puruṣāt keśa-lomāni
tathākṣarāt sambhavatīha viśvam

“Assim como a teia é produzida e recolhida pela aranha, assim como as plantas crescem da terra, e assim como os pelos crescem da ca­beça e do corpo de uma pessoa viva, analogamente este universo é gerado a partir do inesgotável Supremo.” (Muṇḍaka Upaniṣad 1.1.7)

Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

udbhūtaṁ bhavataḥ sato ’pi bhuvanaṁ san naiva sarpaḥ srajaḥ
kurvat kāryaṁ apīha kūta-kanakaṁ vedo ’pi naivaṁ paraḥ
advaitaṁ tava sat paraṁ tu paramānandaṁ padaṁ tan mudā
vande sundaram indirānuta hare mā muñca mām ānatam

“Embora tenha surgido de Vós, que sois a própria substância da realidade, este mundo não é eternamente real. A cobra ilusória que surge da impressão causada por uma corda não é uma realidade permanen­te, nem o são as transformações produzidas do ouro. Os Vedas nunca dizem que elas são. A realidade não-dual, transcendental e verdadeira é Vosso sumamente bem-aventurado reino pessoal. A essa bela morada, ofereço minhas reverências. Ó Senhor Hari, a quem a deusa Indirā sempre se prostra, eu também me prostro diante de Vós. Por­tanto, por favor, jamais me deixeis.”

Texto

na yad idam agra āsa na bhaviṣyad ato nidhanād
anu mitam antarā tvayi vibhāti mṛṣaika-rase
ata upamīyate draviṇa-jāti-vikalpa-pathair
vitatha-mano-vilāsam ṛtam ity avayanty abudhāḥ

Sinônimos

na — não; yat — porque; idam — este (universo); agre — no começo; āsa — existia; na bhaviṣyat — não existirá; ataḥ — daqui; nidhanāt anu — depois de sua aniquilação; mitam — deduzido; antarā — no meio tempo; tvayi — dentro de Vós; vibhāti — parece; mṛṣā — falso; ekarase — cuja experiência de êxtase espiritual é imutável; ataḥ — assim; upamīyate — entende-se por comparação; draviṇa — de substância material; jāti — nas categorias; vikalpa — das transformações; pathaiḥ — com as variedades; vitatha — contrária ao fato; manaḥ — da mente; vilāsam — fantasia; ṛtam — real; iti — assim; avayanti — pensam; abudhāḥ — os ininteligentes.

Tradução

Visto que este universo não existia antes de sua criação e não existirá mais depois de sua aniquilação, concluímos que, neste ínterim, ele não é mais do que uma manifestação que se imagina ser visível dentro de Vós, cujo prazer espiritual jamais muda. Comparamos este universo à transformação de várias substâncias materiais em diversas formas. Com certeza aqueles que acredi­tam que esta invenção da imaginação é substancialmente real são menos inteligentes.

Comentário

SIGNIFICADO—Tendo assim derrotado todas as tentativas dos ritualistas de provar a realidade substancial da criação material, os Vedas personificados agora apresentam uma evidência positiva do contrário – que este mundo é irreal por ser temporário. Antes da criação do universo e depois de sua dissolução, apenas a realidade espiritual do Senhor Supremo, juntamente com Sua morada e séquito, continuam a existir. Os śrutis confirmam isso, ātmā va idam eka evāgra āsīt: “Antes da criação deste universo, apenas o Eu existia.” (Aitareya Upaniṣad 1.1) Nāsad āsīn no sad āsīt tadānīm: “Naquele tempo, nem os aspectos sutis da matéria nem os grosseiros estavam presentes.” (Ṛg Veda 10.129.1)

Pode-se entender a relatividade da criação mediante uma analogia. Quando materiais básicos como argila e metal são processados e recebem a forma de vários produtos, os objetos criados existem separadamente da argila e do metal apenas em nome e forma. A substância básica permanece inalterada. Analogamente, quando as energias do Senhor Supremo se transformam nas coisas conhecidas deste mundo, essas coisas existem à parte dEle apenas em nome e forma. Na Chāndo­gya Upaniṣad (6.1.4-6), o sábio Udālaka explica a seu filho uma analogia semelhante, yathā saumyaikena mṛtpiṇḍena sarvaṁ mṛn-mayaṁ vijñātam syād vācārambhaṇaṁ vikāro nāmadheyaṁ mṛttikety eva satyam: “Por exemplo, meu caro menino, por se compreender um único bloco de argila, pode-se compreender tudo o que é feito de argila. A existência de produtos transformados não passa de uma criação da linguagem, uma questão de atribuir designações: apenas a ar­gila é real.”

Em conclusão, não existe prova convincente de que as coisas deste mundo sejam eternas ou substanciais, ao passo que há esmagadora prova de que são temporárias e condicionadas por designações falsas. Portanto, apenas os ignorantes podem tomar como reais as permutações imaginárias da matéria.

Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

mukuṭa-kuṇḍala-kaṅkaṇa-kiṅkiṇī-
pariṇataṁ kanakaṁ paramārthataḥ
mahad-ahaṅkṛti-kha-pramukhaṁ tathā
nara-harer na paraṁ paramārthataḥ

“Transformações do ouro tais como coroas, brincos, pulseiras e guizos de tornozelo, em última análise, não são separadas do próprio ouro. De modo semelhante, os elementos materiais – encabeçados pelo mahat, o falso ego e o éter – não são, em última análise, separados do Senhor Narahari.”

Texto

sa yad ajayā tv ajām anuśayīta guṇāṁś ca juṣan
bhajati sarūpatāṁ tad anu mṛtyum apeta-bhagaḥ
tvam uta jahāsi tām ahir iva tvacam ātta-bhago
mahasi mahīyase ’ṣṭa-guṇite ’parimeya-bhagaḥ

Sinônimos

saḥ — ele (o ser vivo individual); yat — porque; ajayā — pela influência da energia material; tu — mas; ajām — aquela energia material; anuśayīta — repousa perto; guṇān — suas qualidades; ca — e; juṣan — as­sumindo; bhajati — aceita; sa-rūpatām — formas semelhantes (às qua­lidades da natureza); tat-anu — seguindo-se a isso; mṛtyum — a morte; apeta — privado; bhagaḥ — de seus bens; tvam — Vós; uta — por outro lado; jahāsi — deixais de lado; tām — a ela (a energia material); ahiḥ — uma cobra; iva — como se; tvacam — sua pele (velha e abandonada); ātta-bhagaḥ — dotado de todos os bens; mahasi — em Vossos poderes espirituais; mahīyase — sois glorificado; aṣṭa-guṇite — óctupla; apari­meya — ilimitada; bhagaḥ — cuja grandeza.

Tradução

A natureza material ilusória incita o diminuto ser vivo a abraçá-la, e, como resultado, ele assume formas compostas de suas qua­lidades. Subsequentemente, ele perde todas as suas qualidades espirituais e tem de sujeitar-se a repetidas mortes. Vós, toda­via, evitais a energia material da mesma maneira que uma cobra abandona sua pele velha. Glorioso em Vossa posse das oito perfeições místicas, Vós desfrutais ilimitadas opulências.

Comentário

SIGNIFICADO—Embora a jīva seja espírito puro, igual em qualidade ao Senhor Supremo, ela está inclinada a se degradar por abraçar a ignorância da ilusão material. Quando fica encantada pelas seduções de māyā, ela aceita corpos e sentidos que são planejados para deixá-la desfrutar em esquecimento. Produzidos da matéria-prima dos três modos de māyā – bondade, paixão e ignorância –, esses corpos envolvem a alma espiritual em variedades de infelicidade, que culminam em morte e renascimento.

A Alma Suprema e a alma individual partilham da mesma natureza espiritual, mas a Alma Suprema não pode ser aprisionada pela ignorância como Sua companheira infinitesimal. A fumaça pode ofuscar o brilho de uma pequena esfera de cobre derretido, envolvendo sua luz em escuridão, mas o vasto globo solar jamais sofrerá a mesma espécie de eclipse. Māyā, afinal, é a fiel serva da Personalidade de Deus, a expansão externa de Sua potência interna, yogamāyā. O Śrī Nārada Pañcarātra afirma o seguinte em uma conversa entre Śruti e Vidyā:

asyā āvarikā-śaktir
mahā-māyākhileśvarī
yayā mugdhaṁ jagat sarvaṁ
sarve dehābhimāninaḥ

“A potência encobridora proveniente dela é mahāmāyā, o regulador de tudo o que é material. O universo inteiro fica perplexo por causa dela, e assim todo ser vivo se identifica falsamente com o corpo ma­terial.”

Assim como uma cobra se desfaz de sua pele velha, sabendo que esta não é parte de sua identidade essencial, do mesmo modo o Senhor Supremo sempre evita Sua energia material externa. Não há insuficiência nem limite para qualquer uma de Suas oito opulências místicas, que consistem em aṇimā (o poder de tornar-se infinitesi­mal), mahimā (a capacidade de tornar-se infinitamente grande) etc. Portanto, a sombra da escuridão material não tem nenhuma possibi­lidade de entrar no domínio de Suas glórias resplandecentes e inigua­láveis.

Por causa daqueles cuja compreensão da vida espiritual está apenas despertando aos poucos, as Upaniṣads às vezes falam em termos gerais de ātmā ou Brahman, sem distinguir abertamente a diferença entre a alma superior e a inferior, o Paramātmā e a jivātmā. Contudo, descrevem essa dualidade em termos inequívocos com muita frequência:

dvā suparṇā sayujā sakhāyā
samānaṁ vṛkṣaṁ pariṣasvajāte
tayor anyaḥ pippalaṁ svādv atty
anaśnann anyo ’bhicākaśīti

“Duas aves companheiras estão pousadas juntas na mesma árvore pippala. Uma delas saboreia os frutos da árvore, enquanto a outra se abstém de comer e, em vez disso, observa Seu amigo.” (Śvetāśvatara Upaniṣad 4.6) Nesta analogia, as duas aves são a alma e a Superalma, a árvore é o corpo, e o sabor dos frutos são as variedades de prazer dos sentidos.

Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

nṛtyantī tava vīkṣaṇāṅgaṇa-gatā kāla-svabhāvādibhir
bhāvān sattva-rajas-tamo-guṇa-mayān unmīlayantī bahūn
mām ākramya padā śirasy ati-bharaṁ sammardayanty āturaṁ
māyā te śaraṇaṁ gato ’smi nṛ-hare tvām eva tāṁ vāraya

“O olhar que lançais a Vossa consorte engloba o tempo, as propen­sões materiais das entidades vivas etc. Esse olhar dança sobre o rosto dela e, dessa maneira, desperta a multidão de entidades criadas, que nascem nos modos da bondade, paixão e ignorância. Ó Senhor Nṛhari, Vossa māyā colocou seu pé em minha cabeça e está pisando nela com muita força, causando-me grande aflição. Agora, vim até Vós em busca de refúgio. Por favor, fazei-a desistir.”

Texto

yadi na samuddharanti yatayo hṛdi kāma-jaṭā
duradhigamo ’satāṁ hṛdi gato ’smṛta-kaṇṭha-maṇiḥ
asu-tṛpa-yoginām ubhayato ’py asukhaṁ bhagavann
anapagatāntakād anadhirūḍha-padād bhavataḥ

Sinônimos

yadi — se; na samuddharanti — não erradicam; yatayaḥ — pessoas na ordem de vida renunciada; hṛdi — em seus corações; kāma — do de­sejo material; jaṭāḥ — os vestígios; duradhigamaḥ — impossível de ser compreendido; asatām — para os impuros; hṛdi — no coração; gataḥ — tendo entrado; asmṛta — esquecida; kaṇṭha — no pescoço; maṇiḥ — uma joia; asu — seus ares vitais; tṛpa — que satisfazem; yoginām — para praticantes de yoga; ubhayataḥ — em ambos (os mundos); api — mesmo; asukham — infelicidade; bhagavan — ó Personalidade de Deus; ana­pagata — que não foi embora; antakāt — da morte; anadhirūḍha — não conseguido; padāt — cujo reino; bhavataḥ — de Vós.

Tradução

Os membros da ordem renunciada que não conseguem erra­dicar os últimos vestígios do desejo material de seus corações permanecem impuros, razão pela qual não permitis que eles Vos com­preendam. Embora estejais presente em seus corações, para eles sois como uma joia usada no pescoço de um homem que esqueceu totalmente que ela está ali. Ó Senhor, aqueles que praticam yoga apenas para o gozo dos sentidos devem ser castigados tanto nesta vida quanto na próxima: pela morte, que não os deixará, e por Vós, cujo reino eles não poderão alcançar.

Comentário

SIGNIFICADO—A mera exibição de renúncia não basta para que alguém tenha acesso ao reino de Deus. É compulsório passar por uma total mudan­ça de coração, cujos sintomas são uma completa falta de interesse pelos autodestrutivos hábitos de gozo dos sentidos, tanto grosseiros como sutis. Não só deve o verdadeiro sábio abster-se até mesmo de pensar em sexo ilícito, consumo de carne, intoxicação e jogatina, como deve também abandonar seus desejos de reputação e posição. Todas juntas, essas exigências resultam em um desafio formidável, mas os frutos da verdadeira renúncia em consciência de Kṛṣṇa compen­sam uma vida inteira de empenho.

A Muṇḍaka Upaniṣad (3.2.2) confirma as declarações deste verso, kāmān yaḥ kāmayate manyamānaḥ sa karmabhir jāyate tatra tatra: “Mesmo um renunciante reflexivo, se mantiver desejos mundanos, será forçado por suas reações kármicas a nascer repetidas vezes em várias circunstâncias.” Filósofos e yogīs trabalham arduamente para livrar-se de nascimentos e mortes, mas porque não estão dispostos a abandonar sua orgulhosa independência, suas meditações carecem de devoção ao Senhor Supremo, de forma que eles não atingem a perfeição da renúncia – o amor puro por Deus. Esse amor puro é a única meta de um vaiṣṇava sincero, e, portanto, ele deve ser vigilante e resistir às tentações naturais, que se apresentam sob a forma de lucro, adoração e distinção, e também ao impulso de se fundir num esquecimento im­pessoal que tudo consome. Como afirma Śrīla Rūpa Gosvāmī em seu Bhakti-rasāmṛta-sindhu (1.1.11):

anyābhilāṣitā-śūnyaṁ
jñāna-karmādy-anāvṛtam
ānukūlyena kṛṣṇānu-
śīlanaṁ bhaktir uttamā

“Quando se desenvolve o serviço devocional de primeira classe, a pessoa deve estar destituída de todos os desejos materiais, do conhe­cimento obtido pela filosofia monística e da ação fruitiva. O devoto deve servir a Kṛṣṇa constante e favoravelmente, como Kṛṣṇa deseja.”

Para aqueles que se submetem à rigorosa disciplina do yoga apenas para agradar aos sentidos, é inevitável o sofrimento prolongado. Fome, doença, degeneração na velhice, ferimentos por acidentes, violência infligida pelos outros – estas são algumas das ilimitadas varieda­des de sofrimento que se pode experimentar em vários graus neste mundo. E, no final, a morte está esperando, seguida de doloroso cas­tigo pelas atividades pecaminosas. Sobretudo aqueles que se entrega­ram livremente ao gozo dos sentidos à custa da vida alheia podem esperar um castigo tão severo que é inimaginável. Mas a maior dor da existência material não é a desgraça nesta vida ou ser mandado para o inferno após a morte: é o vazio em que se encontra alguém que se esqueceu de sua relação eterna com a Personalidade de Deus.

Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

dambha-nyāsa-miṣeṇa vañcita-janaṁ bhogaika-cintāturaṁ
sammuhyantam ahar-niśaṁ viracitodyoga-klamair ākulam
ājñā-laṅghinam ajñam ajña-janatā-sammānanāsan-madaṁ
dīnānātha dayā-nidhāna paramānanda prabho pāhi mām

“O hipócrita que engana a si próprio com uma simulação de renúncia pensa somente em gozo dos sentidos e, por isso, sofre constantemente. Confuso dia e noite, ele é dominado pelos inesgotáveis esforços que inventa para si. Esse tolo desobedece a Vossas leis e se corrompe devido ao anseio de ser respeitado por outros tolos. Ó protetor dos caídos, ó outorgador de misericórdia, ó mestre sumamente bem-­aventurado, por favor, salvai essa pessoa, que sou eu mesmo.”

Texto

tvad avagamī na vetti bhavad-uttha-śubhāśubhayor
guṇa-viguṇānvayāṁs tarhi deha-bhṛtāṁ ca giraḥ
anu-yugam anv-ahaṁ sa-guṇa gīta-paramparayā
śravaṇa-bhṛto yatas tvam apavarga-gatir manu-jaiḥ

Sinônimos

tvat — a Vós; avagamī — quem compreende; na vetti — não presta atenção; bhavat — de Vós; uttha — que surgem; śubha-aśubhayoḥ — da auspiciosidade e inauspiciosidade; guṇa-viguṇa — do bem e do mal; anvayān — às atribuições; tarhi — consequentemente; deha-bhṛtām — de seres vivos corporificados; ca — também; giraḥ — as palavras; anu­-yugam — em cada era; anu-aham — cada dia; sa-guṇa — ó Vós que sois dotado de qualidades; gīta — de recitação; paramparayā — pela cadeia de sucessão; śravaṇa — através da audição; bhṛtaḥ — levado; yataḥ — por causa disso; tvam — Vós; apavarga — da liberação; gatiḥ — a meta final; manujaiḥ — por seres humanos, descendentes de Manu.

Tradução

Quando alguém Vos compreende, ele não se preocupa mais com sua boa ou má fortuna decorrente de atos passados piedosos ou pecaminosos, já que sois Vós apenas que controlais essa boa ou má fortuna. Semelhante devoto realizado também desconsidera o que os seres vivos comuns dizem sobre ele. Todos os dias, ele enche os ouvidos com Vossas glórias, que são recitadas em cada era pela sucessão ininterrupta dos descendentes de Manu, e assim tornais­-Vos para ele a salvação última.

Comentário

SIGNIFICADO—O verso 39 deixa bem claro que os renunciantes impersonalistas continuarão a sofrer nascimento após nascimento. Pode-se perguntar se tal sofrimento é justificado, pois a posição de renunciante deveria eximi-lo do sofrimento, quer ele tenha uma atitude devocional, quer não. Como declara o śruti-mantra, eṣa nityo mahimā brāhmaṇasya na karmaṇā vardhate no kanīyān: “A glória perpétua de um brāhmaṇa nunca aumenta nem diminui como resultado de qualquer de suas atividades.” (Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad 4.4.28) Para refutar seme­lhante objeção, os Vedas personificados oferecem esta oração.

Jñānīs e yogīs impersonalistas não estão qualificados para obter o alívio completo das reações do karma – um privilégio reservado apenas àqueles que são tvad-avagamī, devotos puros ocupados cons­tantemente em ouvir e cantar assuntos relativos à Personalidade de Deus. Os devotos seguram com firmeza os pés de lótus do Senhor Supremo mediante sua inabalável consciência de Kṛṣṇa e, por isso, não precisam aderir à risca às ordens e proibições dos Vedas. Eles podem ignorar sem temor as reações aparentemente boas ou más do trabalho que executam apenas para o prazer do Senhor Supremo e podem igualmente ignorar qualquer coisa que os outros talvez digam sobre eles, seja louvor, seja censura. Um humilde vaiṣṇava absorto no prazer do saṅkīrtana, glorificação do Senhor, presta pouca atenção ao elogio feito a ele, o qual julga um engano, e aceita de bom grado toda crítica, a qual considera apropriada.

Recebe-se o canto autorizado das glórias do Senhor Supremo quando se ouve com fé “os filhos de Manu”, a sucessão discipular dos vaiṣṇavas santos que vem através das eras até os dias de hoje. Esses sábios seguem bem o exemplo de Svāyambhuva Manu, o ances­tral da humanidade:

ayāta-yāmās tasyāsan
yāmāḥ svāntara-yāpanāḥ
śṛṇvato dhyāyato viṣṇoḥ
kurvato bruvataḥ kathāḥ

“Embora a duração da vida de Svāyambhuva gradualmente chegasse ao fim, sua longa vida, que abrangia uma era manvantara, não foi gasta em vão, uma vez que ele sempre se dedicou a ouvir, contemplar, anotar e cantar os passatempos do Senhor.” (Śrīmad-Bhāgavatam 3.22.35)

Mesmo que um devoto neófito caia dos padrões do comportamen­to adequado devido à força de seus maus hábitos passados, o Senhor todo-misericordioso não o rejeitará. Como declara o Senhor Śrī Kṛṣṇa:

tair ahaṁ pūjanīyo vai
bhadrakṛṣṇa-nivāsibhiḥ
tad-dharma-gati-hīnā ye
tasyāṁ mayi parāyaṇāḥ
kalinā grasitā ye vai
tesāṁ tasyām avasthitiḥ
yathā tvaṁ saha putraiś ca
yathā rudro gaṇaiḥ saha
yathā śrīyābhiyukto ’haṁ
tathā bhakto mama priyaḥ

“Para aqueles que moram em Bhadrakṛṣṇa [o distrito de Mathurā], Eu sou o objeto de toda a adoração. Mesmo que deixem de cultivar de modo correto os princípios religiosos que se devem observar na terra santa, os residentes daquele lugar ainda se tornam devotados a Mim apenas em virtude de morar lá. Ainda que Kali [a presente era de desavenças] os mantenha em seu domínio, eles obtêm crédito por morar nesse lugar. Meu devoto que vive em Ma­thurā é tão querido como tu [Brahmā] e teus filhos – Rudra e seus seguidores – e a Deusa Śrī e Eu mesmo.”

Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

avagamaṁ tava me diśa mādhava
sphurati yan na sukhāsukha-saṅgamaḥ
śravaṇa-varṇana-bhāvam athāpi vā
na hi bhavāmi yathā vidhi-kiṅkaraḥ

“Ó Mādhava, por favor, deixai-me compreender-Vos para que eu não mais experimente o enredamento do prazer e da dor materiais. Ou então, por favor, concedei-me gosto por ouvir e cantar sobre Vós. Desse modo, já não serei um escravo dos preceitos ritualísticos.”

Texto

dyu-pataya eva te na yayur antam anantatayā
tvam api yad-antarāṇḍa-nicayā nanu sāvaraṇāḥ
kha iva rajāṁsi vānti vayasā saha yac chrutayas
tvayi hi phalanty atan-nirasanena bhavan-nidhanāḥ

Sinônimos

dyu — do céu; patayaḥ — os senhores; eva — mesmo; te — Vosso; na yayuḥ — não podem alcançar; antam — o fim; anantatayā — por ser ilimitado; tvam — Vós; api — mesmo; yat — quem; antara — dentro de; aṇḍa — dos universos; nicayāḥ — multidões; nanu — de fato; sa — juntamente com; āvaranāḥ — suas coberturas externas; khe — no céu; iva — como; rajāṁsi — partículas de poeira; vānti — são levadas pelo vento; vaya­sā saha — com a roda do tempo; yat — porque; śrutayaḥ — os Vedas; tvayi — em Vós; hi — de fato; phalanti — frutificam; atat — daquilo que é distinto da Verdade Absoluta; nirasanena — pela eliminação; bhavat — em Vós; nidhanāḥ — cuja conclusão última.

Tradução

Porque sois ilimitado, nem os senhores do céu nem mesmo Vós podeis jamais alcançar o limite de Vossas glórias. Os incontáveis universos, cada qual envolvido em seu invólucro, são impelidos pela roda do tempo a vaguear dentro de Vós, como partículas de poeira a voar pelo céu. Seguindo seu método de eliminação de tudo o que é separado do Supremo, os śrutis tornam-se bem-­sucedidos ao revelar-Vos como a sua conclusão máxima.

Comentário

SIGNIFICADO—Agora, em sua última oração, os Vedas personificados levam à con­clusão de que todos os śrutis, mediante suas várias referências literais e metafóricas, descrevem, em última análise, a identidade, as qualidades pessoais e os poderes da Suprema Personalidade de Deus. As Upaniṣads glorificam-nO sem cessar, yad ūrdhvaṁ gārgi divo yad arvāk pṛthivyā yad antarā dyāvā-pṛthivī ime yad bhūtaṁ bhavac ca bhaviṣyac ca: “Minha cara filha de Garga, a grandeza dEle abran­ge tudo o que está acima de nós no céu, tudo abaixo da superfície da terra, tudo entre o céu e a terra, e tudo o que já existiu, existe agora ou existirá.” (Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad 3.8.4)

Para esclarecer o sentido desta oração final dos śrutis, Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura apresenta a seguinte conversa entre o Senhor Nārāyaṇa e os Vedas personificados: Os Vedas disseram: “O senhor Brahmā e os outros governantes dos planetas celestiais ainda não conseguiram descrever os limites de Vossas glórias. O que nós podemos fazer, então, já que somos insignificantes em compara­ção com esses formidáveis semideuses?”

O Senhor Nārāyaṇa respondeu: “Não. Vós śrutis sois dotados de visão mais sublime do que os semideuses que governam este universo. Sereis capazes de alcançar o limite de Minhas glórias se não parardes agora.”

“Mas nem Vós podeis encontrar Vosso limite!”

“Se esse é o caso, o que quereis dizer quando Me chamais de onisciente e onipotente?”

“Concluímos que possuís essas características pelo próprio fato de serdes ilimitado. Decerto, se alguém desconhece algo que nem mesmo existe, como um chifre de coelho, isso não deprecia sua onisciência, e se alguém não consegue encontrar tal não-entidade, isso não limita sua onipotência. Sois tão vasto que inumeráveis uni­versos flutuam dentro de Vós. Cada um desses universos é rodea­do de sete camadas compostas dos elementos materiais, e cada uma dessas coberturas concêntricas é sucessivamente dez vezes maior do que a anterior. Embora jamais possamos descrever a verdade completa sobre Vós, aperfeiçoamos nossa existência ao declararmos que sois o verdadeiro assunto dos Vedas.”

“Mas por que pareceis insatisfeitos?”

“Porque Śrīla Vyāsadeva descreveu nos Vedas a existência transcendental de Brahman, Paramātmā e Bhagavān apenas em resumo. Ao ver a necessidade de desenvolver melhor sua descrição a respeito do Supremo, ele escolheu concentrar-se no assunto referente ao Brahman, o aspecto impessoal do Supremo conhecido como tat (‘aquilo’), explicando Brahman mediante a negação de tudo o que difere dele. Assim como num campo onde caiu acidentalmente um estojo de joias, essas podem ser recuperadas caso se retiram as pedras, galhos e lixo indesejados; do mesmo modo, no reino visível de māyā e suas cria­ções, a Verdade Absoluta pode ser encontrada por um processo de eliminação. Já que nós, Vedas, não podemos enumerar toda catego­ria material, entidade individual, qualidade e movimento no universo do início até o fim dos tempos, e já que a verdade a respeito de Brahman, Paramātmā e Bhagavān ainda continuaria intacta mesmo que descrevêssemos todas essas coisas e depois as descartássemos, por esse meio de investigação nós nunca esperamos alcançar uma definição final sobre Vós. É apenas por Vossa misericórdia que podemos fazer alguma tentativa de nos aproximarmos de Vós, a sumamente inacessível Verdade Absoluta.”

Há muitas afirmações do śruti que levam adiante o trabalho de atan-nirasanam, o processo de distinguir o Supremo de tudo o que é inferior. A Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad (3.8.8), por exemplo, declara que asthūlam anaṇu ahrasvam adīrgham alohitam asneham acchāyam atamo ’vāyv anākāśam asaṅgam arasam agandham acakṣuṣkam aśrotram agamano ’tejaskam aprāṇam asukham amātram anantaram abāhyam: “Ele não é grande nem pequeno, curto nem comprido, quente nem frio, não está na sombra nem na escuridão. Tampouco é ele o vento ou o éter. Não está em contato com coisa alguma e não tem gosto, cheiro, olhos, ouvidos, movimento, potência, ar vital, prazer, medida, interior ou exterior.” A Kena Upaniṣad (3) declara que anyad eva tad viditād atho aviditād adhi: “O Brahman é dife­rente do que é conhecido e do que ainda está por ser conhecido.” E a Kaṭha Upaniṣad (2.14) afirma que anyatra dharmād anyatrādharmād anyatrāsmāt kṛtākṛtāt: “O Brahman está fora do âmbito de religião e irreligião, de ação piedosa e impiedosa.”

Segundo as regras da linguística e da lógica, uma negação não pode ser ilimitada: deve haver algum correlativo positivo do qual ela seja a negação. No caso do exaustivo atan-nirasanam dos Vedas, sua negação de que qualquer coisa material seja absolutamente real, o correlativo é a Suprema Personalidade de Deus, o Senhor Śrī Kṛṣṇa.

Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

dyu-patayo vidur antam ananta te
na ca bhavān na giraḥ śruti-maulayaḥ
tvayi phalanti yato nama ity ato
jaya jayeti bhaje tava tat-padam

“Os deuses do céu não conhecem Vosso limite, ó Senhor infinito, nem mesmo Vós o conheceis. Porque as palavras transcendentais dos sublimes śrutis tornam-se frutíferas ao Vos revelar, ofereço-Vos minhas reverências. Dessa maneira, adoro-Vos como a Verdade Absoluta, dizendo: ‘Todas as glórias a Vós! Todas as glórias a Vós!’”

Texto

śrī-bhagavān uvāca
ity etad brahmaṇaḥ putrā
āśrutyātmānuśāsanam
sanandanam athānarcuḥ
siddhā jñātvātmano gatim

Sinônimos

śrī-bhagavān uvāca — o Senhor Supremo (Śrī Nārāyaṇa Ṛṣi) disse; iti — assim; etat — esta; brahmaṇaḥ — de Brahmā; putrāḥ — os filhos; āśrutya — tendo ouvido; ātma — sobre o Eu; anuśāsanam — instrução; sanandanam — ao sábio Sanandana; atha — então; ānarcuḥ — adoraram; siddhāḥ — perfeitamente satisfeitos; jñātvā — compreendendo; ātmanaḥ — seu; gatim — destino derradeiro.

Tradução

O Senhor Supremo, Śrī Nārāyaṇa Ṛṣi, disse: Tendo ouvido essas instruções sobre o Eu Supremo, a Personalidade de Deus, os filhos de Brahmā entenderam, então, o seu destino final. Eles ficaram perfeitamente satisfeitos e, com sua adoração, honraram Sanandana.

Comentário

SIGNIFICADO—Śrīla Jīva Gosvāmī explica que se pode entender ātmānuśāsanam tanto como instruções dadas para beneficiar as almas jīvas quanto como instruções sobre a relação da entidade viva com o fundamento de toda a existência. De igual modo, ātmano gatim significa tanto o destino da alma jīva quanto o meio para se alcançar a Alma Suprema. Por ouvirem as vinte e oito orações dos Vedas personificados, que abrangem a elucidação da brahmopaniṣat falada no início deste capítulo, os sábios reunidos em Brahmaloka fizeram grande progresso rumo à sua meta de amor puro por Deus.

Texto

ity aśeṣa-samāmnāya-
purāṇopaniṣad-rasaḥ
samuddhṛtaḥ pūrva-jātair
vyoma-yānair mahātmabhiḥ

Sinônimos

iti — assim; aśeṣa — de todos; samāmnāya — os Vedas; purāṇa — e Purāṇas; upaniṣat — que abrange o mistério confidencial; rasaḥ — o néctar; samuddhṛtaḥ — destilado; pūrva — no passado distante; jātaiḥ — por aqueles que nasceram; vyoma — nas regiões superiores do universo; yānaiḥ — que viajam; mahā-ātmabhiḥ — pessoas santas.

Tradução

Assim, os santos antigos que viajam nos céus superiores destilaram esta essência nectárea e confidencial de todos os Vedas e Purāṇas.

Texto

tvaṁ caitad brahma-dāyāda
śraddhayātmānuśāsanam
dhārayaṁś cara gāṁ kāmaṁ
kāmānāṁ bharjanaṁ nṛṇām

Sinônimos

tvam — tu; ca — e; etat — isto; brahma — de Brahmā; dāyāda — ó herdeiro (Nārada); śraddhayā — com fé; ātma-ānuśāsanam — instrução sobre a ciência do Eu; dhārayan — meditando sobre; cara — vagueia; gām — a Terra; kāmam — como desejas; kāmānām — os desejos materiais; bharjanam — que queima por completo; nṛṇām — dos homens.

Tradução

E enquanto vagueias pela Terra livremente, Meu querido filho de Brahmā, deves meditar com fé nestas instruções a respeito da ciência do Eu, as quais queimam por completo os desejos materiais de todos os homens.

Comentário

SIGNIFICADO—Nārada, o filho de Brahmā, ouviu de Śrī Nārāyaṇa Ṛṣi esta narra­ção. O epíteto brahmā-dāyāda também significa que Nārada alcançou o Brahman sem esforço, como se fosse Seu patrimônio hereditário.

Texto

śrī-śuka uvāca
evaṁ sa ṛṣiṇādiṣṭaṁ
gṛhītvā śraddhayātmavān
pūrṇaḥ śruta-dharo rājann
āha vīra-vrato muniḥ

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śukadeva Gosvāmī disse; evam — desta maneira; saḥ — ele (Nārada); ṛṣiṇā — pelo sábio (Śrī Nārāyaṇa Ṛṣi); ādiṣṭam — ordenado; gṛhītvā — aceitando; śraddhayā — fielmente; ātma-vān — autocontrolado; pūraḥ — bem-sucedido em todos os seus propósitos; śruta — sobre o que ouvira; dharaḥ — meditando; rājan — ó rei (Parīkṣit); āha — disse; vīra — como o de um heroico kṣatriya; vrataḥ — cujo voto; muniḥ — o sábio.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī disse: Quando Śrī Nārāyaṇa Ṛṣi lhe deu essa ordem, o autocontrolado sábio Nārada, cujo voto é tão heroi­co como o de um guerreiro, aceitou-a com firme fé. Então, bem­-sucedido em todos os seus propósitos, ele pensou no que ouvira, ó rei, e respondeu o seguinte ao Senhor.

Texto

śrī-nārada uvāca
namas tasmai bhagavate
kṛṣṇāyāmala-kīrtaye
yo dhatte sarva-bhūtānām
abhavāyośatīḥ kalāḥ

Sinônimos

śrī-nāradaḥ uvāca — Śrī Nārada disse; namaḥ — reverências; tasmai — a Ele; bhagavate — ao Senhor Supremo; kṛṣṇāya — Kṛṣṇa; ama­la — imaculadas; kīrtaye — cujas glórias; yaḥ — que; dhatte — manifesta; sarva — de todos; bhūtānām — os seres vivos; abhavāya — para a liberação; uśatīḥ — todo-atrativas; kalāḥ — expansões.

Tradução

Śrī Nārada disse: Ofereço Minhas reverências a Ele, que tem fama imaculada, o Supremo Senhor Kṛṣṇa, que manifesta Suas expansões pessoais todo-atrativas para que todos os seres vivos possam alcançar a liberação.

Comentário

SIGNIFICADO—Śrīla Śrīdhara Svāmī observa que o fato de Nārada dirigir-se a Śrī Nārāyaṇa Ṛṣi como uma encarnação do Senhor Kṛṣṇa é perfeitamen­te apropriado, de acordo com a seguinte afirmação do Śrīmad-Bhāgavatam (1.3.28), ete cāṁśa-kalāḥ puṁsaḥ/ kṛṣṇas tu bhagavān svayam: “Todas as encarnações acima mencionadas [inclusive Nārāyaṇa Ṛṣi] são ou porções plenárias ou porções das porções plenárias do Senhor, mas o Senhor Śrī Kṛṣṇa é a Personalidade de Deus original.”

Em seu comentário sobre esse verso, Śrīla Viśvanātha Cakravartī retrata o Senhor Nārāyaṇa Ṛṣi perguntando: “Por que ofereces reverências a Kṛṣṇa em vez de a Mim, teu guru, que estou bem aqui diante de ti?” Nārada explica sua ação dizendo que o Senhor Kṛṣṇa assume encarnações todo-atrativas como Śrī Nārāyaṇa Ṛṣi para acabar com a vida material das almas condicionadas. Oferecendo reverências ao Senhor Kṛṣṇa, portanto, Nārada honra Nārāyaṇa Ṛṣi e todas as outras manifestações do Supremo também.

Esta oração de Nārada é o néctar essencial que ele extraiu das ora­ções dos Vedas personificados, que foram elas mesmas extraídas do doce oceano de todos os segredos dos Vedas e Purāṇas. Como recomenda a Gopāla-tāpanī Upaniṣad (Pūrva 50), tasmāt kṛṣṇa eva paro devas taṁ dhyāyet taṁ rasayet taṁ bhajet taṁ yajed iti; oṁ tat sat: “Kṛṣṇa, portanto, é a Divindade Suprema. Deve-se meditar nEle, saborear o intercâmbio amoroso com Ele, adorá-lO e oferecer-­Lhe sacrifícios.”

Texto

ity ādyam ṛṣim ānamya
tac-chiṣyāṁś ca mahātmanaḥ
tato ’gād āśramaṁ sākṣāt
pitur dvaipāyanasya me

Sinônimos

iti — assim falando; ādyam — o principal; ṛṣim — ao sábio (Nārāyaṇa Ṛṣi); ānamya — prostrando-se; tat — dEle; śiṣyān — aos discípulos; ca — e; mahā-ātmanaḥ — grandes santos; tataḥ — de lá (Nārāyaṇāśrama); agāt — foi; āśramam — para o eremitério; sākṣāt — direto; pituḥ — do progenitor; dvaipāyanasya — Dvaipāyana Vedavyāsa; me — meu.

Tradução

[Śukadeva Gosvāmī continuou:] Depois de dizer essas pala­vras, Nārada prostrou-se diante de Śrī Nārāyaṇa Ṛṣi, o principal dos sábios, e também diante de Seus discípulos santos. Então, re­gressou ao eremitério de meu pai, Dvaipāyana Vyāsa.

Texto

sabhājito bhagavatā
kṛtāsana-parigrahaḥ
tasmai tad varṇayām āsa
nārāyaṇa-mukhāc chrutam

Sinônimos

sabhājitaḥ — honrado; bhagavatā — pela expansão pessoal do Senhor Supremo (Vyāsadeva); kṛta — tendo feito; āsana — de um assento; parigrahaḥ — a aceitação; tasmai — a ele; tat — aquilo; varṇayām āsa — descreveu; nārāyaṇa-mukhāt — da boca de Śrī Nārāyaṇa Ṛṣi; śru­tam — que tinha ouvido.

Tradução

Vyāsadeva, a encarnação da Personalidade de Deus, saudou Nārada Muni respeitosamente e ofereceu-lhe um assento, que ele aceitou. Nārada, então, descreveu a Vyāsa o que ouvira da boca de Śrī Nārāyaṇa Ṛṣi.

Texto

ity etad varṇitaṁ rājan
yan naḥ praśnaḥ kṛtas tvayā
yathā brahmaṇy anirdeśye
nīṛguṇe ’pi manaś caret

Sinônimos

iti — assim; etat — isto; varṇitam — relatado; rājan — ó rei (Parīkṣit); yat — que; naḥ — a nós; praśnaḥ — pergunta; kṛtaḥ — feita; tvayā — por ti; yathā — como; brahmaṇi — na Verdade Absoluta; anirdeśye — que não pode ser descrita com palavras; nirguṇe — que não tem qualida­des materiais; api — mesmo; manaḥ — a mente; caret — move-se.

Tradução

Respondi assim à pergunta que me fizeste, ó rei, sobre como a mente pode ter acesso à Verdade Absoluta, que é indescritível por palavras materiais e destituída de qualidades materiais.

Texto

yo ’syotprekṣaka ādi-madhya-nidhane yo ’vyakta-jīveśvaro
yaḥ sṛṣṭvedam anupraviśya ṛṣiṇā cakre puraḥ śāsti tāḥ
yaṁ sampadya jahāty ajām anuśayī suptaḥ kulāyaṁ yathā
taṁ kaivalya-nirasta-yonim abhayaṁ dhyāyed ajasraṁ harim

Sinônimos

yaḥ — quem; asya — este (universo); utprekṣakaḥ — aquele que vigia; ādi — em seu começo; madhya — meio; nidhane — e fim; yaḥ — que; avyakta — do não-manifestado (a natureza material); jīva — e das entidades vivas; īśvaraḥ — o Senhor; yaḥ — que; sṛṣṭvā — tendo gerado; idam — este (universo); anupraviśya — entrando; ṛṣiṇā — juntamente com a alma jīva; cakre — produziu; puraḥ — corpos; śāsti — regula; tāḥ — a eles; yam — a quem; sampadya — por render-se; jahāti — abandona; ajām — o não-nascido (a natureza material); anuśayī — abraçando-a; suptaḥ — uma pessoa adormecida; kulāyam — seu corpo; yathā — como; tam — sobre Ele; kaivalya — por Sua condição puramente espiritual; nirasta — mantido afastado; yonim — o nascimento material; abhayam — para obter o destemor; dhyāyet — deve-se meditar; ajasram — incessantemente; harim — no Supremo Senhor Kṛṣṇa.

Tradução

Ele é o Senhor que protege eternamente este universo, que existe antes, durante e depois de sua manifestação. Ele é o amo tanto da energia material imanifesta quanto da alma espiritual. Depois de gerar a criação, Ele entra nela, acompanhando cada entidade viva. Ali, Ele cria os corpos materiais e, então, permanece como seu regulador. Rendendo-se a Ele, pode-se escapar do abra­ço da ilusão, assim como uma pessoa ao sonhar esquece o próprio corpo. Quem deseja libertar-se do medo deve meditar incessantemente nEle, o Senhor Hari, que está sempre na plataforma da perfeição e, por isso, jamais Se sujeita ao nascimento material.

Comentário

SIGNIFICADO—Por dirigir um olhar ao universo adormecido na ocasião de lançar as almas jīvas na criação, o Senhor Supremo provê todas as suas necessidades: Para aqueles seres vivos que são trabalhadores fruitivos, Ele provê a inteligência e sentidos necessários para lograr sucesso no trabalho material. Para aqueles que buscam conhecimento transcen­dental, Ele provê a inteligência pela qual eles podem fundir-se na refulgência espiritual de Deus, alcançando assim a liberação. E para os devotos, Ele provê a compreensão que os leva a Seu serviço devo­cional puro.

Para providenciar estas variadas facilidades, o Senhor impele a natureza material a começar o processo da evolução universal. Dessa maneira, o Senhor é nimitta-kāraṇam, ou a causa eficiente da criação. Ele é também upādāna-kāraam, a causa constituinte, uma vez que tudo emana dEle e apenas Ele está constantemente presente antes, durante e depois da manifestação do cosmos criado. O próprio Senhor Nā­rāyaṇa declara isso no Catuḥ-ślokī Bhāgavatam:

aham evāsam evāgre
nānyad yat sad-asat-param
paścād ahaṁ yad etac ca
yo ’vaśiṣyeta so ’smy aham

“Sou Eu, a Personalidade de Deus, que existia antes da criação, quando não havia nada além de Mim. Tampouco havia a natureza material, a causa desta criação. Aquilo que agora vês também sou Eu, a Personalidade de Deus, e, após a aniquilação, o que permane­cer também serei Eu, a Personalidade de Deus.” (Śrīmad-Bhāgavatam 2.9.33) A māyā primordial e a alma jīva podem merecer os títulos respectivos de causas upādāna e nimitta da criação em sentido relativo, mas o Senhor, afinal, é a origem de ambas.

Até escolher aceitar a misericórdia da Personalidade de Deus, a alma jīva está anuśayī, desamparadamente presa no abraço da ilusão. Quando se volta para a adoração ao Senhor, ela torna-se anuśayī em um sentido diferente: caída como uma vara para prestar reverências aos pés do Senhor. Por meio desta rendição, a alma tem facilidade de rechaçar a ilusão. Mesmo que a alma liberada pareça estar vivendo ainda em um corpo material, a ligação que aquela tem com este não passa de uma aparência externa; ela não lhe dispensa mais conside­ração do que um homem adormecido dispensa a seu corpo enquanto está muito ocupado e distante em seu mundo onírico.

A pessoa deixa a ignorância ao abandonar a identificação falsa com o próprio corpo material. Às vezes, alguém pode alcançar esse estado apenas através de um severo esforço que leva muitas vidas, mas, em alguns casos, o Senhor pode mostrar consideração especial por alguém que Ele favoreça, sem levar em conta o pouco crédito que aquela alma possa ter adquirido mediante a prática regulada. Con­forme as palavras de Śrī Bhīṣmadeva, yam iha nirīkṣya hatā gatāḥ svarūpam: “Aqueles que simplesmente viram Kṛṣṇa no Campo de Batalha de Kurukṣetra alcançaram suas formas originais depois de serem mortos.” (Śrīmad-Bhāgavatam 1.9.39) O fato de que até mesmo demônios como Agha, Baka e Keśī foram liberados pelo Senhor Kṛṣṇa sem terem executado nenhuma prática espiritual é uma indicação de Sua posição única como a original Personalidade de Deus. Sabendo disso, devemos deixar de lado todo medo e dúvida e nos entregarmos sem re­servas ao processo do serviço devocional.

Como palavras finais de seu comentário sobre este capítulo, Śrīla Śrīdhara Svāmī escreve:

sarva-śruti-śiro-ratna-
nīrājita-padāmbujam
bhoga-yoga-pradaṁ vande
mādhavam karmi-namrayoḥ

“Com sua refulgência, as principais joias entre todos os śrutis oferecem āratī aos pés de lótus do Senhor Mādhava. Presto homenagem a Ele, que concede o gozo material honrado pelos trabalhadores materiais e que também concede a ligação divina com Ele valorizada por aqueles que se prostram diante dEle com reverência.”

Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura também aproveita essa oportunidade para oferecer esta oração humilde:

he bhaktā dvāry ayaṁ cañcad-
vāladhī rauti vo manāk
prasādaṁ labhatāṁ yasmād
viśiṣṭaḥ śveva nāthati

“Ó devotos, esta pobre criatura está postada à vossa porta abanando o rabo e latindo. Por favor, dai-lhe alguma prasada para que ela possa tornar-se excepcional entre os cães e conseguir o melhor dos amos como seu dono.” Nesta passagem, o ācārya faz um troca­dilho com seu próprio nome: viś(iṣṭaḥ), “excepcional”; śva(iva), “como um cão”; nātha(ati), “sendo um amo”. Tal é a perfeição da humildade vaiṣṇava.

Neste ponto, encerram-se os significados apresentados pelos humildes servos de Sua Divina Graça A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupāda referentes ao décimo canto, octogésimo sétimo capítulo do Śrīmad-Bhāgavatam, intitulado “As Orações dos Vedas Personificados”.