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CAPÍTULO UM

O Advento do Senhor Kṛṣṇa: Introdução

O resumo do primeiro capítulo é o seguinte. Este capítulo descreve como Kaṁsa, apavorado ao ouvir um presságio segundo o qual ele seria morto pelo oitavo filho de Devakī, matou os filhos de Deva­kī, um após o outro.

Quando Śukadeva Gosvāmī terminou de descrever a dinastia Yadu, bem como as dinastias do deus da Lua e do deus do Sol, Mahārāja Parīkṣit pediu-lhe que falasse a respeito do Senhor Kṛṣṇa, que apa­receu com Baladeva na dinastia Yadu, e narrasse como Kṛṣṇa desem­penhou Suas atividades neste mundo. Kṛṣṇa é transcendental, disse o rei, de modo que entender Suas atividades é a ocupação das pessoas liberadas. Ouvir kṛṣṇa-līlā é o barco no qual se pode alcançar a meta última da vida. Com exceção de matadores de animais ou daqueles que preferem praticar suicídio, toda pessoa inteligente deve esforçar­-se por entender Kṛṣṇa e Suas atividades.

Para os Pāṇḍavas, Kṛṣṇa era a única Deidade adorável. Quando Mahārāja Parīkṣit estava no ventre de sua mãe, Uttarā, Kṛṣṇa o salvou do ataque do brahma-śastra. Agora, Mahārāja Parīkṣit pergunta a Śukadeva Gosvāmī como Sua Onipotência Baladeva, o filho de Rohiṇī, pôde aparecer no ventre de Devakī. Por que Kṛṣṇa mudou-Se de Mathurā para Vṛndāvana, perguntou o rei Parīkṣit, e como Ele viveu ali com Seus membros familiares? O que Kṛṣṇa fez em Mathurā e Vṛndāvana, e por que Ele matou Kaṁsa, Seu tio materno? Durante quantos anos Kṛṣṇa residiu em Dvārakā, e quantas rainhas Ele teve? Mahārāja Parīkṣit fez a Śukadeva Gosvāmī todas essas perguntas. Ele também pediu que Śukadeva Gosvāmī descrevesse outras ativida­des de Kṛṣṇa que ele acaso tivesse se omitido de perguntar.

Quando Śukadeva Gosvāmī começou a falar sobre a consciência de Kṛṣṇa, Mahārāja Parīkṣit se esqueceu da fadiga provocada pelo seu jejum. Entusiasmado por descrever Kṛṣṇa, Śukadeva Gosvāmī disse: “Como as águas do Ganges, as descrições das atividades de Kṛṣṇa podem purificar todo o universo. O orador, o indagador e a audiência – todos se purificam.”

Certa vez, quando o mundo inteiro estava atormentado pelo inces­sante poder militar dos demônios que agiam como reis, a mãe Terra assumiu a forma de uma vaca e aproximou-se do senhor Brahmā em busca de alívio. Compadecido ante a lamentação da mãe Terra, Brahmā, acompanhado pelo senhor Śiva e outros semideuses, levou a mãe Terra, sob sua forma de vaca, à praia do oceano de leite, onde ofereceu orações para satisfazer o Senhor Viṣṇu, que repousa em uma ilha daquele oceano em êxtase trans­cendental. Então, Brahmā compreendeu o conselho de Mahā-Viṣṇu, que o informou que apa­receria na superfície da Terra para mitigar a opressão criada pelos demônios. Os semideuses, juntamente com suas esposas, também deveriam aparecer na família de Yadu como associados do Senhor Kṛṣṇa para que houvesse muitos filhos e netos naquela dinastia. Conforme o desejo do Senhor Kṛṣṇa, Anantadeva, como Balarāma, apareceria primeiro, e a potência de Kṛṣṇa, yogamāyā, também apa­receria. Brahmā informou à mãe Terra tudo isso, após o que regressou à sua própria morada.

Após casar-se com Devakī, Vasudeva retornava ao lar com ela, em uma quadriga dirigida por Kaṁsa, o irmão dela, quando uma voz agourenta chegou aos ouvidos de Kaṁsa, advertindo-o de que o oitavo filho de Devakī o mataria. Ao ouvir esse presságio, Kaṁsa imediatamente se preparou para matar Devakī, mas Vasudeva, agindo com diplomacia, apresentou-lhe suas instruções. Vasudeva enfatizou que não seria bom Kaṁsa matar sua irmã mais nova, especialmente na ocasião do seu casamento. Todo aquele que possui um corpo material tem de morrer, disse-lhe Vasudeva. Toda entidade vida permanece em um corpo por algum tempo e, então, transmigra para outro corpo; infelizmente, porém, as pessoas deixam-se desencaminhar e aceitam o corpo como se este fosse a alma. Se alguém, sob esta concepção errônea, dispõe-se a matar outro corpo, ele é condenado como atroz.

Como Kaṁsa não ficou satisfeito com as instruções de Vasudeva, Vasudeva arquitetou um plano. Ele se prontificou a levar para Kaṁsa todos os filhos de Devakī para que Kaṁsa pudesse matá-los. Por que agora, então, Kaṁsa deveria matar Devakī? Kaṁsa aceitou essa proposta. No decorrer do tempo, quando Devakī deu à luz um filho, Vasudeva levou o bebê recém-nascido para Kaṁsa, que, ao ver a magnanimidade de Vasudeva, ficou espantado. Quando Vasudeva entregou o filho a Kaṁsa, Kaṁsa, mostrando alguma inteligência, disse que, como seria morto pelo oitavo filho, por que matar o primeiro? Embora Vasudeva não confiasse nele, Kaṁsa pediu-lhe que levasse a criança de volta. Mais tarde, entretanto, depois que Nārada apro­ximou-se de Kaṁsa e revelou-lhe que os semideuses estavam apare­cendo nas dinastias Yadu e Vṛṣṇi, conspirando para matá-lo, Kaṁsa decidiu eliminar sumariamente todas as crianças nascidas nessas fa­mílias, e também decidiu que qualquer criança nascida do ventre de Devakī deveria ser morta. Assim, ele capturou e prendeu Deva­kī e Vasudeva e matou consecutivamente seis de seus filhos. Nārada também havia informado a Kaṁsa que, em seu nascimento anterior, Kaṁsa fora Kālanemi, um demônio morto por Viṣṇu. Por conseguinte, Kaṁsa tornou-se um grande inimigo de todos os descendentes do yadu-vaṁśa, a dinastia de Yadu. Ele chegou ao ponto de capturar e apri­sionar seu próprio pai, Ugrasena, pois Kaṁsa queria reinar sozinho.

Kṛṣṇa tem três classes de passatempos – vraja-līlā, māthura-līlā e dvārakā-līlā. Como já se mencionou, no décimo canto do Śrīmad-Bhāgavatam, há noventa capítulos, que descrevem todas essas līlās. Os quatro primeiros capítulos descrevem as orações feitas pelo senhor Brahmā, pedindo alívio para a opressão a que a Terra se su­jeitava, e também descrevem o aparecimento da Suprema Persona­lidade de Deus. Do capítulo cinco até o capítulo trinta e nove, narram-se os passatempos que Kṛṣṇa executou em Vṛndāvana. O quadragésimo capítulo descreve como Kṛṣṇa desfrutou na água do Yamunā e como Akrūra ofereceu orações. Os capítulos de quarenta e um até cinquenta e um, onze capítulos, falam dos passatem­pos de Kṛṣṇa em Mathurā, e os capítulos de cinquenta e dois a no­venta, trinta e nove capítulos, relatam os passatempos de Kṛṣṇa em Dvārakā.

Os capítulos vinte e nove a trinta e três descrevem a dança de Kṛṣṇa com as gopīs, conhecida como rasa-līlā. Portanto, esses cinco capítulos são conhecidos como rāsa-pañcādhyāya. O quadragésimo sétimo capítulo do décimo canto é uma descrição conhecida como bhramara-gītā.

Texto

śrī-rājovāca
kathito vaṁśa-vistāro
bhavatā soma-sūryayoḥ
rājñāṁ cobhaya-vaṁśyānāṁ
caritaṁ paramādbhutam

Sinônimos

śrī-rājā uvāca — o rei Parīkṣit disse; kathitaḥ — já foi apresentada; vaṁśa-vistāraḥ — uma ampla descrição das dinastias; bhavatā — por Sua Santidade; soma-sūryayoḥ — do deus da Lua e do deus do Sol; rājñām — dos reis; ca — e; ubhaya — ambas; vaṁśyānām — dos membros das dinastias; caritam — o caráter; parama — elevado; adbhutam — e maravilhoso.

Tradução

O rei Parīkṣit disse: Meu querido senhor, descreveste elaboradamente as dinastias do deus da Lua e do deus do Sol, com o sublime e maravilhoso caráter dos seus reis.

Comentário

SIGNIFICADO—No final do nono canto, ou seja, no vigésimo quarto capítulo, Śukadeva Gosvāmī resumiu as atividades de Kṛṣṇa. Ele falou como Kṛṣṇa aparecera pessoalmente para aliviar o fardo que oprimia a Terra, como Ele manifestara Seus passatempos de pai de família, e como, logo após Seu nascimento, Ele Se transferiu para Sua vraja­bhūmi-līlā. Parīkṣit Mahārāja, sendo naturalmente um devoto de Kṛṣṇa, queria continuar ouvindo a respeito do Senhor Kṛṣṇa. Portanto, para encorajar Śukadeva Gosvāmī a prosseguir falando acerca de Kṛṣṇa e a fornecer mais pormenores, ele agradeceu a Śukadeva Gosvāmī por ter descrito as atividades de Kṛṣṇa resumidamente. Śukadeva Gosvāmī dissera:

jāto gataḥ pitṛ-gṛhād vrajam edhitārtho
hatvā ripūn suta-śatāni kṛtorudāraḥ
utpādya teṣu puruṣaḥ kratubhiḥ samīje
ātmānam ātma-nigamaṁ prathayañ janeṣu

“A Suprema Personalidade de Deus, Śrī Kṛṣṇa, conhecido como līlā-puruṣottama, apareceu como filho de Vasudeva, mas imediata­mente deixou o lar do Seu pai e foi a Vṛndāvana para expandir Suas relações amorosas com Seus devotos íntimos. Em Vṛndāvana, o Senhor matou muitos demônios, e depois regressou a Dvārakā, onde, de acordo com os princípios védicos, casou-Se com muitas esposas que eram as melhores entre as mulheres, gerou nelas centenas de filhos, e realizou sacrifícios para Sua própria adoração e para assim estabelecer os princípios da vida familiar.” (Śrīmad-Bhāgavatam 9.24.66)

A dinastia de Yadu descendia da família de Soma, o deus da Lua. Embora os sistemas planetários estejam organizados de tal modo que o Sol vem primeiro, antes da Lua, Parīkṣit Mahārāja prestou mais respeito à dinastia do deus da Lua, o soma-vaṁśa, porque foi na dinastia de Yadu, descendente da Lua, que Kṛṣṇa apareceu. Na ordem real, existem duas diferentes famílias kṣatriyas, uma descen­dente do rei do planeta Lua e outra descendente do rei do Sol. Sempre que aparece, a Suprema Personalidade de Deus em geral escolhe uma família kṣatriya porque Ele vem estabelecer princípios religio­sos e a vida de retidão. De acordo com o sistema védico, a família kṣatriya é protetora da raça humana. Ao aparecer como Senhor Rāmacandra, a Suprema Personalidade de Deus encarnou no sūrya-vaṁśa, a família que descende do deus do Sol, e, ao aparecer como o Senhor Kṛṣṇa, Ele Se juntou à dinastia Yadu, ou yadu-vaṁśa, que descendia do deus da Lua. No nono canto, vigésimo quarto capítulo, do Śrīmad-Bhāgavatam, há uma longa lista dos reis do yadu-vaṁśa. Todos os reis do soma-vaṁśa e do sūrya-vaṁśa eram grandes e poderosos, e Mahārāja Parīkṣit louvou-os muito (rājñāṁ cobhaya-vaṁśyānāṁ caritaṁ paramādbhutam). Entretanto, ele queria continuar ouvindo sobre o soma-vaṁśa porque foi nessa dinastia que Kṛṣṇa havia aparecido.

A morada suprema da Personalidade de Deus, Kṛṣṇa, é descrita na Brahma-saṁhitā como a morada onde há cintāmaṇi: cintāmaṇi-prakara-sadmasu kalpa-vṛkṣa-lakṣāvṛteṣu surabhīr abhipālayantam. O Vṛndāvana-dhāma desta Terra é uma réplica dessa mesma mora­da. Como se afirma na Bhagavad-gītā (8.20), no céu espiritual há outra natureza, que é eterna e transcendental à matéria manifesta e imanifesta. O mundo manifesto pode ser visto sob a forma de muitas estrelas e planetas, tais como o Sol e a Lua, mas, além deste, existe o imanifesto, que é imperceptível àqueles que são corporifica­dos. E além desta matéria imanifesta, fica o reino espiritual, que é descrito na Bhagavad-gītā como supremo e eterno. Esse reino jamais é aniquilado. Embora a natureza material se sujeite a repetidas criações e aniquilações, a natureza espiritual permanece constante por toda a eternidade. No décimo canto do Śrīmad-Bhāgavatam, essa natureza espiritual, o mundo espiritual, é descrita como Vṛndāvana, Goloka Vṛndāvana ou Vraja-dhāma. A descrição elaborada do śloka acima mencionado, que faz parte do nono canto – jāto gataḥ pitṛ-gṛhād – será apresentada aqui no décimo canto.

Texto

yadoś ca dharma-śīlasya
nitarāṁ muni-sattama
tatrāṁśenāvatīrṇasya
viṣṇor vīryāṇi śaṁsa naḥ

Sinônimos

yadoḥ — de Yadu ou a dinastia Yadu; ca — também; dharma-śīlasya — que eram estritamente apegados aos princípios religiosos; nita­rām — altamente qualificados; muni-sattama — ó melhor de todos os munis, ó rei dos munis (Śukadeva Gosvāmī); tatra — naquela dinas­tia; aṁśena — com Sua expansão plenária, Baladeva; avatīrṇasya — que apareceu como encarnação; viṣṇoḥ — do Senhor Viṣṇu; vīryāṇi — as atividades gloriosas; śaṁsa — por favor, descrevei; naḥ — para nós.

Tradução

Ó melhor dos munis, descreveste também os descendentes de Yadu, que eram muito piedosos e estritamente fiéis aos princípios religiosos. Agora, se assim o desejares, por favor, descreve as maravilhosas e gloriosas atividades do Senhor Viṣṇu, ou Kṛṣṇa, que, juntamente com Baladeva, Sua expansão plenária, apareceu naquela dinastia Yadu.

Comentário

SIGNIFICADO—A Brahma-saṁhitā (5.1) explica que Kṛṣṇa é a origem do viṣṇu-tattva.

īśvaraḥ paramaḥ kṛṣṇaḥ
sac-cid-ānanda-vigrahaḥ
anādir ādir govindaḥ
sarva-kāraṇa-kāraṇam

“Kṛṣṇa, conhecido como Govinda, é o controlador supremo. Ele tem um corpo espiritual eterno e bem-aventurado. Ele é a origem de tudo. Ele não tem origem extrínseca, pois Ele é a causa primor­dial de todas as causas.”

yasyaika-niśvasita-kālam athāvalambya
jīvanti loma-vilajā jagad-aṇḍa-nāthāḥ
viṣṇur mahān sa iha yasya kalā-viśeṣo
govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi

“Os Brahmās, os líderes dos inúmeros universos, vivem apenas o tempo correspondente a uma respiração do Mahā-Viṣṇu. Adoro Govinda, o Senhor original, de quem Mahā-Viṣṇu é apenas uma porção de uma porção plenária dEle.” (Brahma-saṁhitā 5.48)

Govinda, Kṛṣṇa, é a Personalidade de Deus original. Kṛṣṇas tu bhagavān svayam. Até mesmo o Senhor Mahā-Viṣṇu, que através de Sua respiração cria muitos milhões e milhões de universos, é o kalā-viśeṣa, ou a porção plenária de uma porção plenária, do Senhor Kṛṣṇa. Mahā-Viṣṇu é uma expansão plenária de Saṅkarṣaṇa, que, por Sua vez, é uma expansão plenária de Nārāyaṇa. Nārāyaṇa é uma expansão plenária do catur-vyūha, e o catur-vyūha são expan­sões plenárias de Baladeva, a primeira manifestação de Kṛṣṇa. Por­tanto, quando Kṛṣṇa apareceu com Baladeva, todos os viṣṇu-tattvas estavam com Ele.

Mahārāja Parīkṣit pediu a Śukadeva Gosvāmī que descrevesse Kṛṣṇa e Suas atividades gloriosas. Outro significado que pode ser extraído deste verso é o seguinte. Embora fosse o maior muni, Śuka­deva Gosvāmī pôde descrever Kṛṣṇa apenas parcialmente (aṁśena), pois ninguém pode descrever Kṛṣṇa em Sua totalidade. Afirma-se que Anantadeva tem milhares de cabeças, mas, embora Ele use Suas milhares de línguas para tentar descrever Kṛṣṇa, Suas descrições são incompletas.

Texto

avatīrya yador vaṁśe
bhagavān bhūta-bhāvanaḥ
kṛtavān yāni viśvātmā
tāni no vada vistarāt

Sinônimos

avatīrya — após descer; yadoḥ vaṁśe — na dinastia de Yadu; bhagavān — a Suprema Personalidade de Deus; bhūta-bhāvanaḥ — que é a causa da manifestação cósmica; kṛtavān — executou; yāni — quaisquer (atividades); viśva-ātmā — a Superalma de todo o universo; tāni — todas aquelas (atividades); naḥ — a nós; vada — por favor, dize; vista­rāt — elaboradamente.

Tradução

A Superalma, a Suprema Personalidade de Deus, Śrī Kṛṣṇa, a causa da manifestação cósmica, apareceu na dinastia de Yadu. Por favor, fala-me elaboradamente sobre Suas gloriosas atividades e ca­ráter, desde o começo até o fim de Sua vida.

Comentário

SIGNIFICADO—Neste verso, as palavras kṛtavān yāni indicam que todas as diferentes atividades que Kṛṣṇa realizou enquanto esteve presente na Terra são benéficas para a sociedade humana. Se os religiosos, os filósofos e as pessoas em geral simplesmente ouvirem as atividades de Kṛṣṇa, eles se libertarão. Descrevemos diversas vezes que existem duas categorias de kṛṣṇa-kathā, uma delas representada pela Bhagavad-gītā, em que Kṛṣṇa fala pessoalmente sobre Ele próprio, e a outra é o Śrīmad-Bhāgavatam, onde Śukadeva Gosvāmī fala sobre as glórias de Kṛṣṇa. Todo aquele que se torne mesmo levemente interessado em kṛṣṇa-kathā alcançará a liberação. Kīrtanād eva kṛṣṇasya mukta-saṅgaḥ paraṁ vrajet (Śrīmad-Bhāgavatam 12.3.51). Pelo simples fato de cantar ou repetir kṛṣṇa-kathā, qualquer pessoa se liberta da contaminação de Kali-yuga. Caitanya Mahāprabhu, portanto, aconselha: yāre dekha, tāre kaha ‘kṛṣṇa’-upadeśa (Caitanya-caritāmṛta, Madhya 7.128). Esta é a missão da consciência de Kṛṣṇa: ouvir sobre Kṛṣṇa e, então, libertar-­se do cativeiro material.

Texto

nivṛtta-tarṣair upagīyamānād
bhavauṣadhāc chrotra-mano-’bhirāmāt
ka uttamaśloka-guṇānuvādāt
pumān virajyeta vinā paśughnāt

Sinônimos

nivṛtta — livres de; tarṣaiḥ — luxúria ou atividades materiais; upagīyamānāt — que é descrita ou cantada; bhava-auṣadhāt — que é o remédio correto para a doença material; śrotra — o processo de recepção auditiva; manaḥ — tema próprio para a mente pensar nele; abhi­rāmāt — das agradáveis vibrações dessa glorificação; kaḥ — quem; ut­tamaśloka — da Suprema Personalidade de Deus; guṇa-anuvādāt — de descrever essas atividades; pumān — uma pessoa; virajyeta — pode omitir-se; vinā — exceto; paśu-ghnāt — ou um açougueiro ou aquele que prefere matar sua própria existência.

Tradução

A glorificação da Suprema Personalidade de Deus é realizada no sistema paramparā, isto é, ela é transmitida de mestre espiritual a discípulo. Essa glorificação é saboreada por aqueles que deixaram de se interessar pela falsa e temporária glorificação desta manifestação cósmica. As descrições do Senhor são o remédio correto para a alma condicionada que se submete a repetidos nascimentos e mortes. Portanto, quem se negará a ouvir tal glorificação do Senhor, exceto alguém que é açougueiro ou aquele que prefere matar seu próprio eu?

Comentário

SIGNIFICADO—Na Índia, é prática entre o povo em geral ouvir sobre Kṛṣṇa, quer através da Bhagavad-gītā, quer através do Śrīmad-Bhāgavatam, para alívio da doença caracterizada sob a forma de repetidos nasci­mentos e mortes. Embora atualmente a Índia esteja em uma condição caída, quando corre a notícia de que alguém falará sobre a Bhagavad-gītā ou o Śrīmad-Bhāgavatam, milhares de pessoas ainda se reúnem para ouvir. Entretanto, este verso indica que essa recitação da Bhagavad-gītā e do Śrīmad-Bhāgavatam deve ser feita por pessoas intei­ramente livres de desejos materiais (nivṛtta-tarṣaiḥ). Neste mundo material, todos, começando de Brahmā e indo até a formiga insigni­ficante, estão cheios de desejos materiais, buscando o gozo dos sen­tidos, e todos estão ocupados em gozo dos sentidos, mas, quando alguém se entrega a essas atividades, não pode entender plenamente o valor do kṛṣṇa-kathā, seja na forma da Bhagavad-gītā, seja do Śrīmad-Bhāgavatam.

Se ouvirmos as glórias da Suprema Personalidade de Deus serem narradas por pessoas liberadas, esse processo de audição na certa nos livrará do cativeiro das atividades materiais, mas ouvir o Śrīmad­Bhāgavatam sendo falado por um recitador profissional não pode de fato ajudar-nos a obter a liberação. Kṛṣṇa-kathā é algo muito simples. Na Bhagavad-gītā, afirma-se que Kṛṣṇa é a Suprema Personalidade de Deus. Como Ele próprio explica, mattaḥ parataraṁ nānyat kiñcid asti dhanañjaya: “Ó Arjuna, não há verdade superior a Mim.” (Bhagavad-gītā 7.7) Basta compreender este fato – de que Kṛṣṇa é a Suprema Per­sonalidade de Deus – para que alguém possa tornar-se liberado. Porém, especialmente nesta era, como estão interessadas em ouvir a Bhagavad-gītā sendo transmitida por indivíduos inescrupulosos e que se desviam da apresentação simples da Bhagavad-gītā e distor­cem-na para sua satisfação pessoal, as pessoas não conseguem obter o verdadeiro benefício. Há grandes eruditos, políticos, filósofos e cientistas que falam sobre a Bhagavad-gītā, utilizando o seu próprio método deturpado, e as pessoas em geral ouvem-nos, sem interesse em conhecer as glórias da Suprema Personalidade de Deus conforme descritas pelo devoto. Devoto é aquele cujo único motivo que o leva a recitar a Bhagavad-gītā e o Śrīmad-Bhāgavatam é prestar serviço ao Senhor. Śrī Caitanya Mahāprabhu, portanto, aconselha-nos que, para ouvirmos as glórias do Senhor, devemos procurar pessoas realizadas (bhāgavata paro diya bhāgavata sthane). A menos que alguém seja pessoalmente uma alma absorta na ciência da consciência de Kṛṣṇa, nenhum neófito deve aproximar-se dele para ouvi-lo falar a respeito do Senhor, pois isso é estritamente proi­bido por Śrīla Sanātana Gosvāmī, que cita o Padma Purāṇa:

avaiṣṇava-mukhodgīrṇaṁ
pūtaṁ hari-kathāmṛtam
śravaṇaṁ naiva kartavyaṁ
sarpocchiṣṭaṁ yathā payaḥ

Deve-se evitar escutar alguém que não demonstre um comportamento vaiṣṇava. O vaiṣṇava é nivṛtta-tṛṣṇa, isto é, ele não tem objetivos materiais, pois seu único objetivo é pregar a consciência de Kṛṣṇa. Os pretensos eruditos, filósofos e políticos exploram a importância da Bhagavad-gītā, distorcendo seu significado para seus fins pessoais. Portanto, este verso adverte que o kṛṣṇa-kathā deve ser recitado pela pessoa que é nivṛtta-tṛṣṇa. Śukadeva Gosvāmī é o exemplo do perfeito recitador do Śrīmad-Bhāgavatam, e Parīkṣit Mahārāja, que fez questão de deixar seu reino e sua família antes de enfrentar a morte, simboliza a pessoa que reúne todas as condições de ouvi­-lo. Um recitador qualificado do Śrīmad-Bhāgavatam ministra às almas condicionadas o remédio certo (bhavauṣadhi). O movimento da consciência de Kṛṣṇa, portanto, está empenhado na tentativa de treinar pregadores qualificados a recitar o Śrīmad-Bhāgavatam e a Bhagavad-gītā em todo o mundo, para que, em todas as partes do mundo, o povo em geral possa tirar proveito deste movimento e, assim, aliviar-se das três classes de sofrimentos encontrados na existência material.

As instruções da Bhagavad-gītā e as descrições do Śrīmad-Bhāgavatam são tão agradáveis que quase todas as pessoas que padecem as três classes de sofrimentos da existência material desejarão ouvir as glórias do Senhor conforme apresentadas nestes livros e, em virtude disso, poderão beneficiar-se, trilhando o caminho da liberação. Duas classes de homens, entretanto, jamais se interessarão em ouvir a men­sagem da Bhagavad-gītā e do Śrīmad-Bhāgavatam – aqueles que estão determinados a cometer suicídio e aqueles determinados a matar vacas e outros animais para satisfazerem suas próprias línguas. Embora tais pessoas talvez façam uma exibição, ouvindo o Śrīmad­-Bhāgavatam em um bhāgavata-saptāha, isso não passa de outra criação dos karmīs, que não podem obter nenhum benefício nesse empreendimento. A palavra paśu-ghnāt é importante a esse respeito. Paśu-ghna significa “açougueiro”. As pessoas que gostam de reali­zar cerimônias ritualísticas para se elevarem aos sistemas planetários superiores tendem a oferecer sacrifícios (yajñas) matando animais. O senhor Buddhadeva, portanto, rejeitou a autoridade dos Vedas, pois era sua missão acabar com o sacrifício de animais, que são recomendados nas cerimônias ritualísticas védicas.

nindasi yajña-vidher ahaha śruti-jātaṁ
sa-daya-hṛdaya darśita-paśu-ghātaṁ
keśava dhṛta-buddha-śarīra jaya jagadīśa hare

(Gīta-govinda)

Muito embora os sacrifícios de animais sejam sancionados nas ceri­mônias védicas, os homens que matam animais nessas cerimônias são considerados açougueiros. Os açougueiros não podem interessar-­se pela consciência de Kṛṣṇa, pois já estão enamorados da matéria. Seu único interesse é desenvolver confortos para o corpo temporário.

bhogaiśvarya-prasaktānāṁ
tayāpahṛta-cetasām
vyavasāyātmikā buddhiḥ
samādhau na vidhīyate

“Nas mentes daqueles que estão muito apegados à gratificação dos sentidos e à opulência material, e que se deixam confundir por essas coisas, não ocorre a determinação resoluta de prestar serviço devocional ao Senhor Supremo.” (Bhagavad-gītā 2.44) Śrīla Narottama Dāsa Ṭhākura diz:

manuṣya-janama pāiyā, rādhā-kṛṣṇa nā bhajiyā,
jāniyā śuniyā viṣa khāinu

Todo aquele que não é consciente de Kṛṣṇa e, portanto, não se ocupa no serviço ao Senhor também paśu-ghna, pois está bebendo veneno deliberadamente. Tal pessoa não pode interessar-se por kṛṣṇa-kathā porque ainda deseja gozo dos sentidos materiais; ela não é nivṛtta-tṛṣṇa. Declara-se que traivargikās te puruṣā vimukhā hari-medhasaḥ. Aqueles interessados em trivarga – isto é, em dharma, artha e kāma – são religiosos com o propósito de alcançar uma posição material com a qual possam obter melhores condições de gozo dos sentidos. Essas pessoas estão se matando, permanecendo deliberada­mente no ciclo de nascimentos e mortes. Elas não podem interessar­-se pela consciência de Kṛṣṇa.

Para que se promova kṛṣṇa-kathā, tópicos referentes à consciên­cia de Kṛṣṇa, deve haver um orador e um ouvinte, ambos os quais podem interessar-se pela consciência de Kṛṣṇa caso tenham deixado de envolver-se com tópicos materiais. Pode-se de fato ver como essa atitude desenvolve-se naturalmente naqueles que são conscientes de Kṛṣṇa. Embora os devotos do movimento da consciência de Kṛṣṇa sejam muito jovens, eles deixaram de ler jornais, revistas e outras publicações materialistas, pois já não se interessam por esses tópicos (nivṛtta-tarṣaiḥ). Eles abandonam por completo o conceito de vida corpórea. Nos tópicos relativos a Uttamaśloka, a Suprema Personalidade de Deus, o mestre espiritual fala, e o discípulo ouve com atenção. A menos que ambos estejam livres de desejos mate­riais, eles não podem interessar-se pelos tópicos da consciência de Kṛṣṇa. O mestre espiritual e o discípulo só precisam entender Kṛṣṇa, porque, pelo simples fato de entender Kṛṣṇa e falar sobre Kṛṣṇa, a pessoa se torna um erudito perfeito (yasmin vijñāte sarvam evaṁ vijñātaṁ bhavati, Muṇḍaka Upaniṣad 1.3). O Senhor está situado no coração de todos, e, pela graça do Senhor, o devoto recebe instruções diretamente do próprio Senhor, que diz na Bhagavad-gītā (15.15):

sarvasya cāhaṁ hṛdi sanniviṣṭo
mattaḥ smṛtir jñānam apohanaṁ ca
vedaiś ca sarvair aham eva vedyo
vedānta-kṛd veda-vid eva cāham

“Estou situado no coração de todos, e é de Mim que vêm a lembrança, o conhecimento e o esquecimento. Através de todos os Vedas, é a Mim que se deve conhecer. Na verdade, sou o compilador do Vedānta e sou aquele que conhece os Vedas.” A consciência de Kṛṣṇa é tão sublime que alguém perfeitamente situado em consciên­cia de Kṛṣṇa, sob a orientação do mestre espiritual, sente completa satisfação lendo kṛṣṇa-kathā, existente no Śrīmad-Bhāgavatam, na Bhagavad-gītā e em textos védicos semelhantes. Se a simples conver­sa sobre Kṛṣṇa é tão agradável, é fácil imaginar quão estupendo é prestar serviço a Kṛṣṇa.

Quando o colóquio sobre kṛṣṇa-kathā ocorre entre um mestre es­piritual liberado e seu discípulo, às vezes outros também tiram pro­veito ao ouvirem esses tópicos e obtêm o mesmo benefício. Esses tópicos são o remédio indicado para acabar com a repetição de nas­cimentos e mortes. O ciclo de repetidos nascimentos e mortes, em que alguém vezes e mais vezes assume diferentes corpos, chama-se bhava ou bhava-roga. Se alguém, voluntária ou involuntariamente, ouve kṛṣṇa-kathā, seu bhava-roga, a doença manifesta sob a forma de nascimentos e mortes, decerto será descontinuada. Portanto, o kṛṣṇa-kathā chama-se bhavauṣadha, o remédio para encerrar a repetição de nasci­mentos e mortes. Os karmīs, ou as pessoas apegadas ao gozo dos sentidos materiais, de um modo geral não podem renunciar seus desejos materiais, mas o kṛṣṇa-kathā é um remédio tão potente que, se alguém concorda em ouvir kṛṣṇa-kīrtana, decerto se livrará dessa doença. Um exemplo prático é Dhruva Mahārāja, que no final de seu tapasya estava plenamente satisfeito. Quando o Senhor quis conferir­-lhe uma bênção, Dhruva recusou a mesma. Svāmin kṛtārtho ’smi varaṁ na yāce. “Meu querido Senhor”, ele disse, “estou plenamente satisfei­to. Não peço nenhuma bênção através da qual eu possa obter o gozo dos sentidos materiais.” Vemos de fato que até mesmo os rapazes e as moças do movimento da consciência de Kṛṣṇa deixaram de pra­ticar maus hábitos com os quais conviviam há muito tempo, tais como sexo ilícito, consumo de carne, intoxicação e jogos de azar. Porque a consciência de Kṛṣṇa é tão potente e lhes confere plena satisfação, eles perderam o interesse pelo gozo dos sentidos materiais.

Texto

pitāmahā me samare ’marañjayair
devavratādyātirathais timiṅgilaiḥ
duratyayaṁ kaurava-sainya-sāgaraṁ
kṛtvātaran vatsa-padaṁ sma yat-plavāḥ
drauṇy-astra-vipluṣṭam idaṁ mad-aṅgaṁ
santāna-bījaṁ kuru-pāṇḍavānām
jugopa kukṣiṁ gata ātta-cakro
mātuś ca me yaḥ śaraṇaṁ gatāyāḥ
vīryāṇi tasyākhila-deha-bhājām
antar bahiḥ pūruṣa-kāla-rūpaiḥ
prayacchato mṛtyum utāmṛtaṁ ca
māyā-manuṣyasya vadasva vidvan

Sinônimos

pitāmahāḥ — meus avós, os cinco Pāṇḍavas (Yudhiṣṭhira, Bhīma, Arjuna, Nakula e Sahadeva); me — meus; samare — no campo de ba­talha de Kurukṣetra; amaram jayaiḥ — com lutadores que, no campo de batalha, poderiam sair vitoriosos sobre os semideuses; devavrata-­ādya — Bhīṣmadeva e outros; atirathaiḥ — grandes comandantes-em-­chefe; timiṅgilaiḥ — parecendo o grande peixe timiṅgila, que muito facilmente pode devorar tubarões enormes; duratyayam — muito difícil de ser atravessado; kaurava-sainya-sāgaram — o oceano de soldados Kauravas reunidos; kṛtvā — considerando esse oceano; ataran — cruzaram-no; vatsa-padam — exatamente como alguém passa por cima da pequena pegada de um bezerro; sma — no passado; yat-plavāḥ — o refúgio sob a forma do barco dos pés de lótus de Kṛṣṇa; drauṇi — de Aśvatthāmā; astra — pelo brahmāstra; vipluṣṭam — sendo atacado e queimado; idam — este; mat-aṅgam — meu corpo; santāna-bījam — a única semente restante, o último descendente da família; kuru-pāṇḍavānām — dos Kurus e dos Pāṇḍavas (porque fui o único a viver após a batalha de Kurukṣetra); jugopa — deu proteção; kukṣim — dentro do ventre; gataḥ — estando situado; ātta-cakraḥ — empunhando o disco; mātuḥ — de minha mãe; ca — também; me — meu; yaḥ — o Senhor que; śaraṇam — o refúgio; gatāyāḥ — que assumira; vīryāṇi — a glorificação das características transcendentais; tasya — dEle (a Su­prema Personalidade de Deus); akhila-deha-bhājām — de todas as entidades vivas materialmente corporificadas; antaḥ bahiḥ — dentro e fora; pūruṣa — da Pessoa Suprema; kāla-rūpaiḥ — sob a forma do tempo eterno; prayacchataḥ — que é o outorgador; mṛtyum — da morte; uta — assim se diz; amṛtam ca — e da vida eterna; māyā-manuṣyasya — do Senhor, que apareceu como um ser humano comum através de Sua própria potência; vadasva — por favor, descreve; vidvan — ó orador erudito (Śukadeva Gosvāmī).

Tradução

Subindo para o barco dos pés de lótus de Kṛṣṇa, meu avô Arjuna e outros cruzaram o oceano que era o campo de batalha de Kurukṣetra, no qual comandantes tais como Bhīṣmadeva pareciam grandes peixes capazes de muito facilmente tê-los engolido. Pela misericór­dia do Senhor Kṛṣṇa, meus avós cruzaram esse oceano, que era muito difícil de ser atravessado, tão facilmente como alguém passa por cima da pegada de um bezerro. Porque minha mãe rendeu-se aos pés de lótus do Senhor Kṛṣṇa, o Senhor, com o Sudarśana-cakra em mãos, entrou em seu ventre e salvou meu corpo, o corpo do último descendente dos Kurus e dos Pāṇḍavas, que quase foi destruído pela ardente arma de Aśvatthāmā. O Senhor Śrī Kṛṣṇa, aparecendo dentro e fora de todos os seres vivos materialmente corporificados, através de Sua própria potência manifesta sob a forma do tempo eterno – isto é, como Paramātmā e como o virāṭ-rūpa –, deu a liberação a todos, quer manifestando-Se como a morte cruel, quer como a vida. Por favor, ilumina-me, descrevendo Suas características transcenden­tais.

Comentário

SIGNIFICADO—Como se afirma no Śrīmad-Bhāgavatam (10.14.58):

samāśritā ye pada-pallava-plavaṁ
mahat-padaṁ puṇya-yaśo murāreḥ
bhavāmbudhir vatsa-padaṁ paraṁ padaṁ
padaṁ padaṁ yad vipadāṁ na teṣām

“Para aquele que aceitou o barco dos pés de lótus do Senhor, que é o refúgio da manifestação cósmica e é famoso como Murāri, ou o inimigo do demônio Mura, o oceano do mundo material é como a água contida na pegada de um bezerro. Sua meta é paraṁ padam, ou Vaikuṇṭha, o lugar onde não há sofrimentos materiais, e não o lugar onde há perigo a cada passo.”

A pessoa que busca abrigo nos pés de lótus do Senhor Kṛṣṇa é imediatamente protegida pelo Senhor. Como o Senhor promete na Bhagavad-gītā (18.66), ahaṁ tvāṁ sarva-pāpebhyo mokṣayiṣyāmi mā śucaḥ: “Eu te libertarei de todas as reações pecaminosas. Não temas.” Refugiando-se no Senhor Kṛṣṇa, a pessoa fica sob a proteção mais segura. Logo, quando os Pāṇḍavas se refugiaram nos pés de lótus de Kṛṣṇa, todos eles se colocaram no lado seguro do campo de batalha de Kurukṣetra. Portanto, nos últimos dias de sua vida, Parīkṣit Mahārāja sentia-se obrigado a pensar em Kṛṣṇa. Este é o resultado ideal da consciência de Kṛṣṇa: ante nārāyaṇa-smṛtiḥ. Se na hora da morte a pessoa pode lembrar-se de Kṛṣṇa, sua vida foi exitosa. Parīkṣit Mahārāja, portanto, devido às suas muitas obriga­ções para com Kṛṣṇa, agiu com inteligência e decidiu pensar constan­temente em Kṛṣṇa durante os últimos dias de sua vida. Kṛṣṇa salvara os Pāṇḍavas, os avós de Mahārāja Parīkṣit, no campo de batalha de Kurukṣetra, e Kṛṣṇa salvara o próprio Mahārāja Parīkṣit quando este foi atacado pelo brahmāstra de Aśvatthāmā. Kṛṣṇa agiu como o amigo e a Deidade adorável da família Pāṇḍava. Ademais, como se não bastasse o contato pessoal de Kṛṣṇa com os Pāṇḍavas, Kṛṣṇa é a Superalma de todas as entidades vivas, e Ele confere a liberação a todos, mesmo que alguém não seja um devoto puro. Kaṁsa, por exemplo, não era um devoto de modo algum, mas Kṛṣṇa, após matá-lo, outorgou-lhe a salvação. A consciência de Kṛṣṇa é benéfica para todos, quer alguém seja um devoto puro, quer seja um não-devoto. Essa é a glória da consciência de Kṛṣṇa. Considerando isso, quem deixaria de refugiar-se nos pés de lótus de Kṛṣṇa? Neste verso, Kṛṣṇa é descrito como māyā-manu­ṣya porque Ele desce exatamente como um ser humano. Diferente­mente dos karmīs, ou seres vivos comuns, Ele não é obrigado a vir até aqui; ao contrário, Ele aparece por intermédio de Sua própria energia interna (sambhavāmy ātma-māyayā) simplesmente para favo­recer as almas condicionadas e caídas. Kṛṣṇa sempre está situado em Sua posição original como sac-cid-ānanda-vigraha, e todo aquele que Lhe prestar serviço também se situará em sua identidade espiri­tual original (svarūpeṇa vyavasthitiḥ). Essa é a perfeição máxima da vida humana.

Texto

rohiṇyās tanayaḥ prokto
rāmaḥ saṅkarṣaṇas tvayā
devakyā garbha-sambandhaḥ
kuto dehāntaraṁ vinā

Sinônimos

rohiṇyāḥ — de Rohiṇīdevī, a mãe de Baladeva; tanayaḥ — o filho; proktaḥ — é famoso; rāmaḥ — Balarāma; saṅkarṣaṇaḥ — Balarāma não é outrem senão Saṅkarṣaṇa, a primeira Deidade no grupo quádruplo (Saṅkarṣaṇa, Aniruddha, Pradyumna e Vāsudeva); tvayā — por ti (foi dito assim); devakyāḥ — de Devakī, a mãe de Kṛṣṇa; garbha-sambandhaḥ — ligado ao ventre; kutaḥ — como; deha-antaram — transferência de corpos; vinā — sem.

Tradução

Meu querido Śukadeva Gosvāmī, já explicaste que Saṅkarṣaṇa, o qual pertence à segunda expansão quádrupla, apareceu como o filho de Rohiṇī chamado Balarāma. Se Balarāma não foi transferido de um corpo a outro, como é possível que primeiramente Ele esti­vesse no ventre de Devakī e, em seguida, no ventre de Rohiṇī? Por favor, explica-me isto.

Comentário

SIGNIFICADO—Eis uma pergunta com o objetivo específico de compreender Balarāma, que é o próprio Saṅkarṣaṇa. Balarāma é famoso como o filho de Rohiṇī, mas se sabe também que Ele era filho de Devakī. Parīkṣit Mahārāja queria entender o mistério através do qual Balarāma era filho tanto de Devakī quanto de Rohiṇī.

Texto

kasmān mukundo bhagavān
pitur gehād vrajaṁ gataḥ
kva vāsaṁ jñātibhiḥ sārdhaṁ
kṛtavān sātvatāṁ patiḥ

Sinônimos

kasmāt — por que; mukundaḥ — Kṛṣṇa, que pode conceder a libera­ção a todos; bhagavān — a Suprema Personalidade de Deus; pituḥ — de Seu pai (Vasudeva); gehāt — de casa; vrajam — a Vrajadhāma, Vrajabhūmi; gataḥ — foi; kva — onde; vāsam — instalou-Se para viver; jñātibhiḥ — Seus parentes; sārdham — com; kṛtavān — fez isto; sātva­tām patiḥ — o mestre de todos os devotos vaiṣṇavas.

Tradução

Por que Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, deixou a casa de Seu pai, Vasudeva, e Se transferiu para a casa de Nanda, em Vṛndāvana? Onde foi que o Senhor, o mestre da dinastia Yadu, viveu com Seus parentes em Vṛndāvana?

Comentário

SIGNIFICADO—Estas são perguntas sobre o itinerário de Kṛṣṇa. Logo após Seu nascimento na casa de Vasudeva em Mathurā, Kṛṣṇa transferiu-Se a Gokula, no outro lado do Yamunā, e, após alguns dias, mudou-Se com Seu pai, mãe e outros parentes para Nanda-grāma, Vṛndāvana. Mahārāja Parīkṣit estava muito ansioso por ouvir sobre as atividades que Kṛṣṇa realizou em Vṛndāvana. Todo este canto do Śrīmad­Bhāgavatam está repleto das atividades executadas em Vṛndāvana e Dvārakā. Os primeiros quarenta capítulos descrevem os afazeres de Kṛṣṇa em Vṛndāvana, e os cinquenta seguintes descrevem as ativida­des de Kṛṣṇa em Dvārakā. Mahārāja Parīkṣit, para satisfazer seu desejo de ouvir a respeito de Kṛṣṇa, pediu a Śukadeva Gosvāmī que descrevesse essas atividades com todos os pormenores.

Texto

vraje vasan kim akaron
madhupuryāṁ ca keśavaḥ
bhrātaraṁ cāvadhīt kaṁsaṁ
mātur addhātad-arhaṇam

Sinônimos

vraje — em Vṛndāvana; vasan — enquanto residia; kim akarot — o que Ele fez; madhupuryām — em Mathurā; ca — e; keśavaḥ — Kṛṣṇa, o matador de Keśī; bhrātaram — o irmão; ca — e; avadhīt — matou; kaṁsam — Kaṁsa; mātuḥ — de Sua mãe; addhā — diretamente; a-tat-­arhaṇam — que não era sancionado pelos śāstras de modo algum.

Tradução

O Senhor Kṛṣṇa viveu tanto em Vṛndāvana quanto em Mathurā. O que Ele fez nessas localidades? Por que Ele matou Kaṁsa, o irmão de Sua mãe? Semelhante aniquilamento não é sancionado nos śāstras de maneira alguma.

Comentário

SIGNIFICADO—O tio materno, o irmão da mãe, está no mesmo nível do pai. Quando um tio materno não tem filho, seu sobrinho legalmente herda sua propriedade. Portanto, por que Kṛṣṇa matou diretamente Kaṁsa, o irmão de Sua mãe? Mahārāja Parīkṣit estava muito curioso acerca dos fatos relativos a isso.

Texto

dehaṁ mānuṣam āśritya
kati varṣāṇi vṛṣṇibhiḥ
yadu-puryāṁ sahāvātsīt
patnyaḥ katy abhavan prabhoḥ

Sinônimos

deham — corpo; mānuṣam — exatamente como um homem; āśritya — aceitando; kati varṣāṇi — quantos anos; vṛṣṇibhiḥ — na companhia dos Vṛṣṇis, aqueles que nasceram na família Vṛṣṇi; yadu-puryām — em Dvārakā, na residência dos Yadus; saha — com; avātsīt — o Senhor viveu; patnyaḥ — esposas; kati — quantas; abhavan — havia; prabhoḥ — do Senhor.

Tradução

Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, não tem um corpo mate­rial, mas Ele aparece como um ser humano. Por quantos anos Ele viveu com os descendentes de Vṛṣṇi? Com quantas esposas Ele Se casou, e durante quantos anos Ele viveu em Dvārakā?

Comentário

SIGNIFICADO—Em muitas passagens, descreve-se a Suprema Personalidade de Deus como sac-cid-ānanda-vigraha, possuidor de um corpo espiri­tual e bem-aventurado. Seus traços físicos são narākṛti, isto é, exata­mente como os de um ser humano. Aqui, repete-se a mesma ideia com as palavras mānuṣam āśritya, que indicam que Ele aceita um corpo exatamente igual ao de um homem. Em toda parte, confir­ma-se que Kṛṣṇa jamais é nirākāra, ou desprovido de forma. Sua forma é exatamente como a de um ser humano. Quanto a isso, não há dúvidas.

Texto

etad anyac ca sarvaṁ me
mune kṛṣṇa-viceṣṭitam
vaktum arhasi sarvajña
śraddadhānāya vistṛtam

Sinônimos

etat — todos esses pormenores; anyat ca — e outros também; sarvam — tudo; me — a mim; mune — ó grande sábio; kṛṣṇa-viceṣṭitam — as ati­vidades do Senhor Kṛṣṇa; vaktum — de descrever; arhasi — és capaz; sarva-jña — porque conheces tudo; śraddadhānāya — porque não sou invejoso, mas deposito toda a fé nEle; vistṛtam — nos mínimos por­menores.

Tradução

Ó grande sábio, conhecedor de tudo sobre Kṛṣṇa, por favor, descreve em pormenores todas as atividades sobre as quais indaguei e também aquelas sobre as quais não indaguei, pois tenho plena fé e estou muito ansioso por ouvi-las.

Texto

naiṣātiduḥsahā kṣun māṁ
tyaktodam api bādhate
pibantaṁ tvan-mukhāmbhoja-
cyutaṁ hari-kathāmṛtam

Sinônimos

na — não; eṣā — tudo isto; ati-dusahā — extremamente difícil de suportar; kṣut — fome; mām — a mim; tyakta-udam — mesmo após deixar de beber água; api — também; bādhate — não incomoda; pibantam — enquanto bebo; tvat-mukha-ambhoja-cyutam — que emana de tua boca de lótus; hari-kathā-amṛtam — o néctar dos tópicos rela­tivos a Kṛṣṇa.

Tradução

Por causa do meu voto à beira da morte, deixei até mesmo de beber água, mas, como estou bebendo o néctar dos tópicos relacionados com Kṛṣṇa, que flui da boca de lótus de Sua Santidade, minha fome e sede, que são extremamente difíceis de su­portar, não podem incomodar-me.

Comentário

SIGNIFICADO—Como maneira de preparar-se para enfrentar a morte em sete dias, Mahārāja Parīkṣit deixou completamente de comer e beber. Como um ser humano, ele decerto estava faminto e sedento, de modo que Śukadeva Gosvāmī talvez achasse melhor parar de narrar os tópicos transcendentais referentes a Kṛṣṇa; porém, apesar do seu jejum, Mahārāja Parīkṣit não estava fatigado de modo algum. “A fome e a sede decorrentes do meu jejum não me perturbam”, disse ele. “Certa vez, quando eu estava dominado pela sede, fui ao āśrama de Śamīka Muni para beber água, mas o muni não a forneceu. Portanto, en­volvi seu ombro com uma serpente morta e, em razão disso, fui amaldiçoado pelo menino brāhmaṇa. Agora, entretanto, tenho muita disposição. Não estou nada perturbado pela minha fome e sede.” Isso indica que, embora haja perturbações provocadas pela fome e pela sede na plataforma material, não há fenômenos tais como fadiga na plataforma espiritual.

O mundo inteiro está sofrendo devido à sede espiritual. Todo ser vivo é Brahman, ou alma espiritual, e precisa de alimento espiritual para satisfazer sua fome e sua sede. Infelizmente, entretanto, o mundo desconhece por completo o néctar do kṛṣṇa-kathā. O movimento da consciência de Kṛṣṇa, portanto, é uma dádiva para os filósofos, religiosos e pessoas em geral. Decerto, há uma atração fascinante em Kṛṣṇa e no kṛṣṇa-kathā. Portanto, a Verdade Absoluta chama-se Kṛṣṇa, o mais atrativo.

A palavra amṛta é também uma importante referência à Lua, e a palavra ambuja significa “lótus”. O agradável luar e a agradável fragrância do lótus combinavam-se para dar prazer a todos os que ouviam kṛṣṇa-kathā fluir da boca de Śukadeva Gosvāmī. Segundo se afirma:

matir na kṛṣṇe parataḥ svato vā
mitho ’bhipadyeta gṛha-vratānām
adānta-gobhir viśatāṁ tamisraṁ
punaḥ punaś carvita-carvaṇānām

“Devido aos seus sentidos descontrolados, as pessoas demasiadamente apegadas à vida materialista progridem rumo às condições in­fernais e repetidamente mastigam aquilo que já foi mastigado. Mesmo que instruídas pelos outros, ou mesmo que se valham de seus próprios esforços, ou inclusive mediante uma combinação de ambos os pro­cessos, elas jamais sentem inclinação por Kṛṣṇa.” (Śrīmad-Bhāgavatam 7.5.30) No momento atual, toda a sociedade humana está ocupada na ativi­dade de mastigar o mastigado (punaḥ punaś carvita-carvaṇānām). As pessoas estão dispostas a se submeterem a mṛtyu-saṁsāra-vart­mani, nascer em uma forma, morrer, aceitar outra forma e nova­mente morrer. A fim de acabar com esses repetidos nascimentos e mortes, o kṛṣṇa-kathā, ou a consciência de Kṛṣṇa, é uma necessidade imprescindível. Porém, enquanto não ouvir kṛṣṇa-kathā de uma alma realizada como Śukadeva Gosvāmī, pessoa alguma poderá saborear o néctar de kṛṣṇa-kathā, que põe termo a toda fadiga material, nem desfrutar da bem-aventurança da existência transcendental. Em relação ao movimento da consciência de Kṛṣṇa, realmente vemos que aqueles que saborearam o néctar de kṛṣṇa-kathā perdem todos os desejos materiais, ao passo que aqueles que não entendem Kṛṣṇa ou kṛṣṇa-kathā consideram a vida consciente de Kṛṣṇa como “lava­gem cerebral” e “controle da mente”. Enquanto os devotos desfrutam de bem-aventurança espiritual, os não-devotos ficam surpresos de que os devotos tenham-se esquecido dos anseios materiais.

Texto

sūta uvāca
evaṁ niśamya bhṛgu-nandana sādhu-vādaṁ
vaiyāsakiḥ sa bhagavān atha viṣṇu-rātam
pratyarcya kṛṣṇa-caritaṁ kali-kalmaṣa-ghnaṁ
vyāhartum ārabhata bhāgavata-pradhānaḥ

Sinônimos

sūtaḥ uvāca — Sūta Gosvāmī disse; evam — assim; niśamya — ouvindo; bhṛgu-nandana — ó filho da dinastia de Bhṛgu, Śaunaka; sādhu-­vādam — perguntas piedosas; vaiyāsakiḥ — Śukadeva Gosvāmī, o filho de Vyāsadeva; saḥ — ele; bhagavān — o poderosíssimo; atha — assim; viṣṇu-rātam — a Parīkṣit Mahārāja, que sempre estava protegido por Viṣṇu; pratyarcya — oferecendo-lhe respeitosas reverências; kṛṣṇa-­caritam — tópicos referentes ao Senhor Kṛṣṇa; kali-kalmaṣa-ghnam — que diminuem os problemas desta era de Kali; vyāhartum — a descrever; ārabhata — começou; bhāgavata-pradhānaḥ — Śukadeva Gosvāmī, o principal entre os devotos puros.

Tradução

Sūta Gosvāmī disse: Ó filho de Bhṛgu, após ouvir as perguntas piedosas formuladas por Mahārāja Parīkṣit, Śukadeva Gosvāmī, o mais respeitável devoto, o filho de Vyāsadeva, agradeceu ao rei com muito respeito. Então, começou a discorrer sobre tópi­cos relativos a Kṛṣṇa, que são o remédio para todos os sofrimentos desta era de Kali.

Comentário

SIGNIFICADO—Neste verso, as palavras kṛṣṇa-caritaṁ kali-kalmaṣa-ghnam indicam que as atividades do Senhor Kṛṣṇa são na certa a maior panaceia para todos os sofrimentos, especialmente nesta era de Kali. Afirma-se que as pessoas têm vidas muito curtas em Kali-yuga e são desprovidas da cultura em que há consciência espiritual. Se alguém demonstra algum interesse em cultura espiritual, é desencaminhado por muitos svāmīs e yogīs farsantes que não se interessam em kṛṣṇa-kathā. Portanto, a maioria das pessoas é desafortunada e perturbada por muitas cala­midades. Śrīla Vyāsadeva preparou o Śrīmad-Bhāgavatam a pedido de Nārada Muni para dar alívio ao sofrimento da população desta era (kali-kalmaṣa-ghnam). O movimento da consciência de Kṛṣṇa está seriamente ocupado em iluminar as pessoas através dos agradá­veis tópicos do Śrīmad-Bhāgavatam. No mundo inteiro, a mensa­gem do Śrīmad-Bhāgavatam e da Bhagavad-gītā está sendo aceita em todas as esferas de vida, especialmente nos círculos avançados e educados.

Neste verso, Śrīla Śukadeva Gosvāmī é descrito como bhāgavata-pradhānaḥ, ao passo que Mahārāja Parīkṣit é descrito como viṣṇu-­rātam. Ambas as palavras têm o mesmo significado, isto é, Mahārāja Parīkṣit era um grande devoto de Kṛṣṇa, e Śukadeva Gosvāmī também era uma grande pessoa santa e um grande devoto de Kṛṣṇa. Encon­trando-se para apresentar kṛṣṇa-kathā, eles dão grande alívio à hu­manidade sofredora.

anarthopaśamaṁ sākṣād
bhakti-yogam adhokṣaje
lokasyājānato vidvāṁś
cakre sātvata-saṁhitām

“Os sofrimentos materiais da entidade viva, que são supérfluos para ela, podem ser diretamente mitigados pelo processo unitivo de serviço devocional. Contudo, a massa popular não sabe disso, em razão do que o erudito Vyāsadeva compilou esta literatura védica, relativa à Verdade Suprema.” (Śrīmad-Bhāgavatam 1.7.6) O povo em geral desconhece que a mensagem do Śrīmad-Bhāgavatam pode fazer toda a sociedade humana se aliviar das dores de Kali-yuga (kali-kalmaṣa-ghnam).

Texto

śrī-śuka uvāca
samyag vyavasitā buddhis
tava rājarṣi-sattama
vāsudeva-kathāyāṁ te
yaj jātā naiṣṭhikī ratiḥ

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; samyak — completamente; vyavasitā — fixa; buddhiḥ — inteligência; tava — de Vossa Majestade; rāja-ṛṣi-sattama — ó melhor dos rājarṣis, reis santos; vāsudeva-kathāyām — em ouvir sobre os tópicos de Vāsudeva, Kṛṣṇa; te — tua; yat — porque; jātā — desenvolvida; naiṣṭhikī — sem cessar; ratiḥ­ — atração ou serviço devocional extático.

Tradução

Śrīla Śukadeva Gosvāmī disse: Ó Majestade, ó melhor de todos os reis santos, porque és muito atraído aos tópicos de Vāsudeva, decerto tua inteligência está firmemente fixa em compreensão espiri­tual, que é a única verdadeira meta da humanidade. Porque essa atração é incessante, ela com certeza é sublime.

Comentário

SIGNIFICADO—O kṛṣṇa-kathā é compulsório para o rājarṣi, ou líder executivo do governo. Isso também é mencionado na Bhagavad-gītā (imaṁ rājarṣayo viduḥ). Infelizmente, entretanto, o poder de gover­nar nesta era está sendo pouco a pouco tomado por homens de terceira ou quarta classe que não têm compreensão espiritual, de forma que a so­ciedade está se degradando muito rapidamente. Os líderes executivos do governo devem compreender o kṛṣṇa-kathā, pois, se não o fizerem, como as pessoas serão felizes e como ficarão aliviadas das dores da vida material? Aquele que fixou sua mente em consciência de Kṛṣṇa deve ser tido como possuidor de uma inteligência muito aguçada para conhecer o valor da vida. Mahārāja Parīkṣit era um rājarṣi-sattama, o melhor de todos os reis santos, e Śukadeva Gosvāmī era muni-sattama, o melhor dos munis. Ambos eram elevados devido ao seu interesse comum por kṛṣṇa-kathā. A posição sublime do orador e da audiên­cia será muito bem explicada no próximo verso. O kṛṣṇa-kathā é tão vivificante que Mahārāja Parīkṣit esqueceu-se de tudo o que é material, inclusive de seu conforto pessoal em relação a comer e beber. Este é um exemplo de como o movimento da consciência de Kṛṣṇa deve espalhar-se por todo o mundo para colocar tanto o orador quanto a audiência na plataforma transcendental e levá-los de volta ao lar, de volta ao Supremo.

Texto

vāsudeva-kathā-praśnaḥ
puruṣāṁs trīn punāti hi
vaktāraṁ pracchakaṁ śrotṝṁs
tat-pāda-salilaṁ yathā

Sinônimos

vāsudeva-kathā-praśnaḥ — perguntas sobre os passatempos e características de Vāsudeva, Kṛṣṇa; puruṣān — pessoas; trīn — três; punāti — purificam; hi — na verdade; vaktāram — o orador, tal como Śukadeva Gosvāmī; pracchakam — e um ouvinte interrogador, tal como Mahā­rāja Parīkṣit; śrotṝn — e, acompanhando-os, aqueles que escutam os tópicos; tat-pāda-salilam yathā — exatamente como o mundo in­teiro é purificado pela água do Ganges que emana do dedão do pé do Senhor Viṣṇu.

Tradução

O Ganges, que emana do dedão do pé do Senhor Viṣṇu, purifica os três mundos: os sistemas planetários superior, intermediário e in­ferior. Igualmente, quando alguém faz perguntas sobre os passatem­pos e características do Senhor Vāsudeva, Kṛṣṇa, três variedades de homens purificam-se: o orador ou pregador, aquele que pergunta, e o público ouvinte.

Comentário

SIGNIFICADO—Afirma-se que tasmād guruṁ prapadyeta jijñāsuḥ śreya uttamam (Śrīmad-Bhāgavatam 11.3.21). Os que estão interessados em compreender temas transcendentais e alcançar a meta da vida devem aproximar-se do mestre espiritual genuíno. Tasmād guruṁ prapadyeta. Todos devem render-se a semelhante guru, que pode fornecer informações corretas sobre Kṛṣṇa. Aqui, Mahārāja Parīkṣit rende-se à personalidade certa, Śukadeva Gosvāmī, para iluminar-se em vāsudeva-kathā. Vāsudeva é a Personalidade de Deus original, que tem ilimitadas atividades espirituais. O Śrīmad-Bhāgavatam é um registro dessas atividades, e a Bhagavad-gītā é a mensagem falada pessoalmente por Vāsudeva. Portanto como o movimento da consciência de Kṛṣṇa está repleto de vāsudeva­-kathā, qualquer um que ouça, qualquer um que se una ao movimento e qualquer um que pregue se purificará.

Texto

bhūmir dṛpta-nṛpa-vyāja-
daityānīka-śatāyutaiḥ
ākrāntā bhūri-bhāreṇa
brahmāṇaṁ śaraṇaṁ yayau

Sinônimos

bhūmiḥ — a mãe Terra; dṛpta — arrogantes; nṛpa-vyāja — fazendo-se passar por reis, ou o supremo poder personificado do Estado; daitya — dos demônios; anīka — de falanges militares de soldados; śata-ayutaiḥ — ilimitadamente, por muitas centenas de milhares; ākrān­tā — estando sobrecarregada; bhūri-bhāreṇa — por um desnecessário fardo de poder bélico; brahmāṇam — ao senhor Brahmā; śaraṇam — para refugiar-se; yayau — foi.

Tradução

Certa vez, quando estava sobrecarregada por centenas e milhares de falanges militares de vários demônios presunçosos que se faziam passar por reis, a mãe Terra aproximou-se do senhor Brahmā em busca de alívio.

Comentário

SIGNIFICADO—Quando o mundo está sobrecarregado por excessivos arranjos militares e quando os reis demoníacos se apresentam como líderes executivos do Estado, esse fardo ocasiona o aparecimento da Suprema Personalidade de Deus. Como o Senhor diz na Bhagavad-gītā (4.7):

yadā yadā hi dharmasya
glānir bhavati bhārata
abhyutthānam adharmasya
tadātmānaṁ sṛjāmy aham

“Sempre e onde quer que haja um declínio na prática religiosa, ó descendente de Bharata, e uma ascensão predominante de irreligião – aí então Eu próprio desço.” Ao tornarem-se ateístas ímpios, os habitantes desta Terra assumem condições animalescas de cães e porcos, e assim sua única ocupação é latir uns para os outros. Isso é dharmasya glāni, afastar-se da meta da vida. Na vida humana, deve-se alcançar a perfeição máxima, a consciência de Kṛṣṇa, mas, quando a população é ímpia e os presidentes ou reis or­gulham-se excessivamente de seu poder militar, a atividade deles é lutar e aumentar a força militar de seus respectivos Estados. Hoje em dia, portanto, parece que cada Estado está sempre atarefado em fabricar armas atômicas para preparar-se para uma terceira guerra mundial. Esses preparativos certamente são desnecessários; eles refletem o falso orgulho dos líderes do Estado. A verdadeira obrigação do líder executivo é zelar pela felicidade da massa de pessoas, treinando-a em consciência de Kṛṣṇa, nos diferentes setores da vida. Cātur-varṇyaṁ mayā sṛṣṭaṁ guṇa-karma-vibhāgaśaḥ (Bhagavad-gītā 4.13). O líder deve treinar a população como brāhmaṇas, kṣatriyas, vaiśyas e śūdras, e ocupá-la nos diversos ofícios, ajudando-a assim a progredir rumo à consciência de Kṛṣṇa. Em vez disso, entretanto, os ladrões e assaltantes disfarçados de protetores organizam um sistema eleito­ral e, em nome da democracia, chegam ao poder por bem ou por mal e exploram os cidadãos. Mesmo há um tempo bem remoto, os asuras, pessoas desprovidas de consciência de Deus, tornaram-se lí­deres do Estado, e agora isso voltou a acontecer. Os vários Estados do mundo estão preocupados em armar-se de forças militares. Às vezes, eles destinam sessenta e cinco por cento da arrecadação governamen­tal para esse propósito. Porém, por que deveria ser gasto dessa ma­neira o dinheiro que o povo conseguiu a duras penas? Devido à atual situação do mundo, Kṛṣṇa desceu sob a forma do movimento da consciência de Kṛṣṇa. Isso é completamente natural, pois, sem o movimento da consciência de Kṛṣṇa, o mundo não pode ser pacífico nem feliz.

Texto

gaur bhūtvāśru-mukhī khinnā
krandantī karuṇaṁ vibhoḥ
upasthitāntike tasmai
vyasanaṁ samavocata

Sinônimos

gauḥ — a forma de uma vaca; bhūtvā — assumindo; aśru-mukhī — com lágrimas nos olhos; khinnā — muito aflita; krandantī — choran­do; karuṇam — súplice; vibhoḥ — do senhor Brahmā; upasthitā — apa­receu; antike — diante; tasmai — a ele (senhor Brahmā); vyasanam — sua aflição; samavocata — apresentou.

Tradução

A mãe Terra assumiu a forma de uma vaca. Muito aflita e com lágrimas nos olhos, ela apareceu diante do senhor Brahmā e lhe falou sobre seu infortúnio.

Texto

brahmā tad-upadhāryātha
saha devais tayā saha
jagāma sa-tri-nayanas
tīraṁ kṣīra-payo-nidheḥ

Sinônimos

brahmā — o senhor Brahmā; tat-upadhārya — compreendendo tudo corretamente; atha — em seguida; saha — com; devaiḥ — os semideu­ses; tayā saha — com a mãe Terra; jagāma — aproximou-se; sa-tri-nayanaḥ — com o senhor Śiva, que tem três olhos; tīram — da praia; kṣīra-payaḥ-nidheḥ — do oceano de leite.

Tradução

Em seguida, tomando conhecimento da aflição pela qual passava a mãe Terra, o senhor Brahmā, com a mãe Terra, o senhor Śiva e todos os outros semideuses, aproximou-se da praia do oceano de leite.

Comentário

SIGNIFICADO—Após compreender a precária situação da Terra, o senhor Brahmā primeiramente visitou os semideuses encabeçados pelo senhor Indra, que estão encarregados dos vários afazeres deste universo, e o senhor Śiva, que é responsável pela aniquilação. Mas a manutenção e a aniquilação ocorrem perpetuamente, sob a ordem da Suprema Personalidade de Deus. Como se afirma na Bhagavad-gītā (4.8), paritrāṇāya sādhūnāṁ vināśāya ca duṣkṛtām. Aqueles que obedecem às leis de Deus são protegidos por diferentes servos e semideuses, ao passo que os rebeldes são aniquilados pelo senhor Śiva. O senhor Brahmā primeiramente se encontrou com todos os semideuses, incluindo o senhor Śiva. Então, juntamente com a mãe Terra, eles se dirigiram à praia do oceano de leite, onde o Senhor Viṣṇu repousa em uma ilha branca, Śvetadvīpa.

Texto

tatra gatvā jagannāthaṁ
deva-devaṁ vṛṣākapim
puruṣaṁ puruṣa-sūktena
upatasthe samāhitaḥ

Sinônimos

tatra — lá (na praia do oceano de leite); gatvā — após irem; jagan­nātham — ao senhor de todo o universo, o Ser Supremo; deva-devam — o supremo Deus de todos os deuses; vṛṣākapim — a Pessoa Suprema, Viṣṇu, que sustenta a todos e mitiga os sofrimentos de todos; puruṣam — a Pessoa Suprema; puruṣa-sūktena — com o mantra védico conhecido como Puruṣa-sūkta; upatasthe — adoraram; samāhitaḥ — com plena atenção.

Tradução

Após alcançarem a praia do oceano de leite, os semideuses adora­ram a Suprema Personalidade de Deus, o Senhor Viṣṇu, o mestre de todo o universo, o supremo Deus de todos os deuses, que mantém a todos e mitiga o sofrimento de todos. Com muita atenção, recitando os mantras védicos conhecidos como Puruṣa-sūkta, eles adoraram o Senhor Viṣṇu, que repousa no oceano de leite.

Comentário

SIGNIFICADO—Os semideuses, tais como o senhor Brahmā, o senhor Śiva, o rei Indra, Candra e Sūrya, são todos subordinados à Suprema Persona­lidade de Deus. Além dos semideuses, também há na sociedade humana muitas personalidades influentes que supervisionam diversas atividades e empreendimentos. O Senhor Viṣṇu, entretanto, é o Deus dos deuses (parameśvara). Ele é parama-puruṣa, o Ser Supremo, Paramātmā. Como se confirma na Brahma-saṁhitā (5.1), īśvaraḥ paramaḥ kṛṣṇaḥ sac-cid-ānanda-vigrahaḥ: “Kṛṣṇa, conhecido como Govinda, é o controlador supremo. Ele tem um corpo espiritual eterno e bem-aventurado.” Ninguém é igual à Suprema Personalidade de Deus ou maior do que Ele, o qual, portanto, é descrito aqui com muitas palavras: jagannātha, deva-deva, vṛṣākapi e puruṣa. Confirma também a supremacia do Senhor Viṣṇu esta afirmação da Bhagavad-gītā (10.12) proferida por Arjuna:

paraṁ brahma paraṁ dhāma
pavitraṁ paramaṁ bhavān
puruṣaṁ śāśvataṁ divyam
ādi-devam ajaṁ vibhum

“Sois definitivamente o Brahman Supremo, a morada suprema e o purificador, a Verdade Absoluta e a eterna pessoa divina. Sois o Deus primordial, transcendental e original, e sois a beleza não-nascida e onipenetrante.” Kṛṣṇa é ādi-puruṣa, a Personalidade de Deus origi­nal (govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi). Viṣṇu é uma expansão plenária do Senhor Kṛṣṇa, e todos os viṣṇu-tattvas são parameśvara, deva-deva.

Texto

giraṁ samādhau gagane samīritāṁ
niśamya vedhās tridaśān uvāca ha
gāṁ pauruṣīṁ me śṛṇutāmarāḥ punar
vidhīyatām āśu tathaiva mā ciram

Sinônimos

giram — uma vibração de palavras; samādhau — em transe; gagane — no céu; samīritām — proferidas; niśamya — ouvindo; vedhāḥ — o senhor Brahmā; tridaśān — aos semideuses; uvāca — disse; ha — oh!; gām — a ordem; pauruṣīm — recebida da Pessoa Suprema; me — de mim; śṛṇuta — por favor, ouvi; amarāḥ — ó semideuses; punaḥ — novamen­te; vidhīyatām — executai; āśu — imediatamente; tathā eva — bem assim; — não; ciram — percais tempo.

Tradução

Enquanto em transe, o senhor Brahmā ouviu as palavras do Senhor Viṣṇu vibrando no céu. Então, ele disse aos semideuses: Ó semideu­ses, prestai atenção à ordem que vos transmito da parte de Kṣīrodakaśāyī Viṣṇu, a Pessoa Suprema, e a executai fielmente e sem demora.

Comentário

SIGNIFICADO—Parece que pessoas competentes que entram em transe podem ouvir as palavras da Suprema Personalidade de Deus. A ciência mo­derna nos dá telefones, pelos quais é possível ouvir vibrações sono­ras vindas de um lugar distante. Igualmente, embora outras pessoas não possam ouvir as palavras do Senhor Viṣṇu, o senhor Brahmā é capaz de ouvir em seu íntimo as palavras do Senhor. Isso é con­firmado no começo do Śrīmad-Bhāgavatam (1.1.1): tene brahma hṛdā ya ādi-kavaye. Ādi-kavi é o senhor Brahmā. No começo da criação, o senhor Brahmā recebeu em seu coração (hṛdā) as instruções do conhecimento védico conforme transmitidas pelo Senhor Viṣṇu. O mesmo princípio é confirmado neste ensejo. Enquanto es­tava em transe, Brahmā foi capaz de ouvir as palavras de Kṣīrodakaśāyī Viṣṇu, e falou aos semideuses a mensagem do Senhor. Do mesmo modo, no começo, Brahmā primeiro recebeu no âmago do coração o conhecimento védico a ele dado pela Suprema Personalidade de Deus. Em ambos os casos, o mesmo processo foi usado para trans­mitir a mensagem ao senhor Brahmā. Em outras palavras, embora o Senhor Viṣṇu fosse invisível mesmo ao senhor Brahmā, este pôde ouvir as palavras do Senhor Viṣṇu através do coração. A Suprema Personalidade de Deus é invisível mesmo ao senhor Brahmā, mas Ele desce a esta Terra e torna-Se visível ao povo em geral. Essa ação decerto é decorrente de Sua misericórdia imotivada, apesar do que os tolos e os não-devotos pensam que Kṛṣṇa é uma pessoa histórica comum. Como pensam que o Senhor é uma pessoa ordinária como eles, são descritos como mūḍha (avajānanti māṁ mūḍhāḥ). A misericór­dia imotivada da Suprema Personalidade de Deus é desprezada por essas pessoas demoníacas, que não podem entender as instruções da Bhagavad-gītā e, portanto, distorcem-nas.

Texto

puraiva puṁsāvadhṛto dharā-jvaro
bhavadbhir aṁśair yaduṣūpajanyatām
sa yāvad urvyā bharam īśvareśvaraḥ
sva-kāla-śaktyā kṣapayaṁś cared bhuvi

Sinônimos

purā — mesmo antes disto; eva — na verdade; puṁsā — pela Supre­ma Personalidade de Deus; avadhṛtaḥ — com certeza era conhecida; dharā-jvaraḥ — a aflição que reina sobre a Terra; bhavadbhiḥ — por vós próprios; aṁśaiḥ — expandindo-vos como porções plenárias; yaduṣu — na família do rei Yadu; upajanyatām — nascei e aparecei ali; saḥ — Ele (a Suprema Personalidade de Deus); yāvat — enquanto; urvyāḥ — da Terra; bharam — o fardo; īśvara-īśvaraḥ — o Senhor dos senhores; sva-kāla-śaktyā — através de Sua própria potência, o fator tempo; kṣapayan — diminuindo; caret — deve locomover-se; bhuvi — sobre a superfície da Terra.

Tradução

O senhor Brahmā informou aos semideuses: Antes de apresentar­mos nosso pedido ao Senhor, Ele já estava ciente da aflição reinan­te na Terra. Consequentemente, enquanto o Senhor, sob a forma do tempo, estiver Se movimentando sobre a Terra para aliviar sua carga através de Sua própria potência, todos vós, semideuses, deveis aparecer através de porções plenárias como filhos e netos na família dos Yadus.

Comentário

SIGNIFICADO—Como se afirma na Brahma-saṁhitā (5.39):

rāmādi-mūrtiṣu kalā-niyamena tiṣṭhan
nānāvatāram akarod bhuvaneṣu kintu
kṛṣṇaḥ svayaṁ samabhavat paramaḥ pumān yo
govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi

“Adoro a Suprema Personalidade de Deus, Govinda, que sempre Se apresenta em várias encarnações, tais como Rāma, Nṛsimha e também em muitas subencarnações, mas que é a Personalidade de Deus original, conhecido como Kṛṣṇa, e que também encarna pes­soalmente.”

Neste verso do Śrīmad-Bhāgavatam, encontramos as palavras puraiva puṁsāvadhṛto dharā-jvaraḥ. A palavra puṁsā refere-se a Kṛṣṇa, que já estava ciente do fato de que o mundo inteiro sofria devido ao aumento no número de demônios. Sem levarem em conta o poder supremo da Personalidade de Deus, os demônios definem a si mesmos como reis e presidentes independentes, e assim criam perturbações, aumentando seu poder militar. Quando essas perturbações ficam muito intensas, Kṛṣṇa aparece. Também hoje em dia, vários Estados demoníacos em todo o mundo estão aumentando seu poder militar de muitas maneiras, e tornam a vida muito angus­tiante. Portanto, Kṛṣṇa apareceu através do Seu nome, no movimento Hare Kṛṣṇa, que certamente diminuirá a opressão que paira sobre o mundo. Os filósofos, os religiosos e o povo em geral devem levar este movimento muito a sério, pois os planos e projetos humanos não ajudarão a trazer paz à Terra. O som transcendental Hare Kṛṣṇa não é diferente da pessoa Kṛṣṇa.

nāma cintāmaṇiḥ kṛṣṇaś
caitanya-rasa-vigrahaḥ
pūrṇaḥ śuddho nitya-mukto
’bhinnatvān nāma-nāminoḥ

(Padma Purāṇa)

Não há diferença entre o som Hare Kṛṣṇa e Kṛṣṇa em pessoa.

Texto

vasudeva-gṛhe sākṣād
bhagavān puruṣaḥ paraḥ
janiṣyate tat-priyārthaṁ
sambhavantu sura-striyaḥ

Sinônimos

vasudeva-gṛhe — na casa de Vasudeva (que será o pai de Kṛṣṇa quando o Senhor aparecer); sākṣāt — pessoalmente; bhagavān — a Suprema Personalidade de Deus, que tem plena potência; puruṣaḥ — a pessoa original; paraḥ — que é transcendental; janiṣyate — aparecerá; tat-priya-artham — e para Sua satisfação; sambhavantu — devem nascer; sura-striyaḥ — todas as esposas dos semideuses.

Tradução

A Suprema Personalidade de Deus, Śrī Kṛṣṇa, que tem plena potência, aparecerá pessoalmente como o filho de Vasudeva. Portanto, todas as esposas dos semideuses também devem aparecer para satis­fazê-lO.

Comentário

SIGNIFICADO—Na Bhagavad-gītā (4.9), o Senhor diz que tyaktvā dehaṁ punar janma naiti mām eti: após abandonar o corpo material, o devoto do Senhor retorna ao lar, retorna ao Supremo. Isso significa que o devoto primeiramente é transferido ao universo específico onde o Senhor, naquele momento, está presente para manifestar Seus passa­tempos. Existem inúmeros universos, e, a cada momento, o Senhor está aparecendo em um desses universos. Portanto, Seus passatem­pos chamam-se nitya-līlā, passatempos eternos. O aparecimento do Senhor como uma criança na casa de Devakī acontece continuamente em universos sucessivos. Portanto, o devoto é primeiramente transferido àquele universo específico onde os passatempos do Senhor estão sendo realizados. Como se afirma na Bhagavad-gītā, mesmo que não complete o curso do serviço devocional, o devoto desfruta de felicidade nos planetas celestiais, onde vivem as pessoas mais piedosas, e depois nasce na casa de um śuci ou śrīmān, um brāhmaṇa piedoso ou um vaiśya rico (śucīnāṁ śrīmatāṁ gehe yoga-bhraṣṭo ’bhijāyate). Logo, um devoto puro, mesmo que não tenha conseguido executar todo o seu serviço devocional, é transferido ao sistema pla­netário superior, onde residem as pessoas piedosas. Dali, se seu ser­viço devocional se completar, esse devoto será transferido ao lugar onde estão acontecendo os passatempos do Senhor. Nesta passagem, afirma-se que sambhavantu sura-striyaḥ. Sura-strī, as mulheres resi­dentes nos planetas celestiais, receberam essa ordem de aparecer na dinastia de Yadu, em Vṛndāvana, para enriquecer os passatempos do Senhor Kṛṣṇa. Essas sura-strī, quando enfim estivessem devidamente treinadas para viver com Kṛṣṇa, seriam transferidas para a Goloka Vṛndāvana original. Durante os passatempos que Kṛṣṇa desempenharia neste mundo, as sura-strī deveriam aparecer de diferentes maneiras e em diversas famílias para dar prazer ao Senhor, a fim de que estivessem completamente treinadas antes de ir para a eterna Goloka Vṛndāvana. Com a associação do Senhor Kṛṣṇa, seja em Dvārakā-purī, Mathurā-purī ou Vṛndāvana, elas na certa retornariam ao lar, retornariam ao Supremo. Entre as sura-strī, as mulheres residentes dos planetas celestiais, há muitas devotas, tais como a mãe da encarnação em que Kṛṣṇa apa­rece como Upendra. Essas mulheres devotadas foram convocadas nesse ensejo.

Texto

vāsudeva-kalānantaḥ
sahasra-vadanaḥ svarāṭ
agrato bhavitā devo
hareḥ priya-cikīrṣayā

Sinônimos

vāsudeva-kalā anantaḥ — a expansão plenária do Senhor Kṛṣṇa conhecida como Anantadeva ou Saṅkarṣaṇa Ananta, a encarnação onipenetrante do Senhor Supremo; sahasra-vadanaḥ — tendo milha­res de capelos; svarāṭ — plenamente independente; agrataḥ — antes; bhavitā — aparecerá; devaḥ — o Senhor; hareḥ — do Senhor Kṛṣṇa; priya-cikīrṣayā — com o desejo de agir para o prazer.

Tradução

A principal manifestação de Kṛṣṇa é Saṅkarṣaṇa, que é conhecido como Ananta. Ele é a origem de todas as encarnações dentro deste mundo material. Antes do aparecimento do Senhor Kṛṣṇa, esse Saṅkarṣaṇa original aparecerá como Baladeva simplesmente para satisfazer o Supremo Senhor Kṛṣṇa em Seus passatempos transcendentais.

Comentário

SIGNIFICADO—Śrī Baladeva é a própria Suprema Personalidade de Deus. Em supremacia, ele iguala a Divindade Suprema, mas onde quer que Kṛṣṇa apareça, Śrī Baladeva vem como Seu irmão, ora mais velho, ora mais novo. Quando Kṛṣṇa advém, todas as Suas expansões ple­nárias e outras encarnações aparecem com Ele. Isso é elaboradamente explicado no Caitanya-caritāmṛta. Dessa vez, Baladeva apareceria antes de Kṛṣṇa, como o irmão mais velho de Kṛṣṇa.

Texto

viṣṇor māyā bhagavatī
yayā sammohitaṁ jagat
ādiṣṭā prabhuṇāṁśena
kāryārthe sambhaviṣyati

Sinônimos

viṣṇoḥ māyā — a potência da Suprema Personalidade de Deus, Viṣṇu; bhagavatī — em nível de igualdade com Bhagavān e, portanto, conhecida como Bhagavatī; yayā — por quem; sammohitam — cativados; jagat — todos os mundos, tanto materiais quanto espirituais; ādiṣṭā — sendo ordenada; prabhuṇā — pelo mestre; aṁśena — com seus diferentes fatores potenciais; kārya-arthe — para realizar tarefas; sambhaviṣyati — também apareceria.

Tradução

A potência do Senhor, conhecida como viṣṇu-māyā, que está em nível de igualdade com a Suprema Personalidade de Deus, também aparecerá com o Senhor Kṛṣṇa. Essa potência, agindo com diferentes poderes, cativa todos os mundos, tanto materiais quanto espirituais. A pedido do seu mestre, ela aparecerá com suas diferentes potên­cias para executar o trabalho do Senhor.

Comentário

SIGNIFICADO—Parāsya śaktir vividhaiva śrūyate (Śvetāśvatara Upaniṣad 6.8). Os Vedas dizem que as potências da Suprema Personalidade de Deus são chamadas por diferentes nomes, tais como yogamāyā e mahāmāyā. Em última análise, entretanto, a potência do Senhor é una, exatamente como a potência elétrica é una, embora possa agir tanto para esfriar quanto para aquecer. A potência do Senhor age nos mundos espiritual e material. No mundo espiritual, a potência do Senhor funciona como yogamāyā, e, no mundo material, a mesma potência atua como mahāmāyā, exatamente como a eletricidade fun­ciona tanto em um aquecedor quanto em um refrigerador. No mundo material, essa potência, funcionando como mahāmāyā, age sobre as almas condicionadas para privá-las cada vez mais do serviço devo­cional. Afirma-se que yayā sammohito jīva ātmānaṁ tri-guṇātmakam. No mundo material, a alma condicionada julga-se um produto de tri-guṇa, os três modos da natureza material. Esse conceito de vida é corpóreo. Por associarem-se com os três guṇas da potência material, todos se identificam com seus corpos. Um indivíduo pensa que é brāhmaṇa, outro pensa que é kṣatriya, enquanto um terceiro pensa que é vaiśya ou śūdra. Na verda­de, porém, ninguém é brāhmaṇa, kṣatriya, vaiśya ou śūdra; todos são partes integrantes do Senhor Supremo (mamaivāṁśaḥ), mas, como está coberta pela energia material, mahāmāyā, a pessoa assume essas diferentes identificações. Entretanto, ao libertar-se, a alma condicionada sabe que ela é serva eterna de Kṛṣṇa. Jīvera ‘svarūpa’ haya-kṛṣṇera ‘nitya-dāsa’. Quando ela chega a essa posição, a mesma potência, agora agindo como yogamāyā, ajuda-a a purificar­-se progressivamente e a empregar sua energia a serviço do Senhor.

Em qualquer caso, quando a alma é condicionada ou liberada, o Senhor é Supremo. Como se afirma na Bhagavad-gītā (9.10), mayā­dhyakṣeṇa prakṛtiḥ sūyate sa-carācaram: é obedecendo à ordem da Suprema Personalidade de Deus que a energia material, mahāmāyā, age sobre a alma condicionada.

prakṛteḥ kriyamāṇāni
guṇaiḥ karmāṇi sarvaśaḥ
ahaṅkāra-vimūḍhātmā
kartāham iti manyate

“Confusa, a alma espiritual que está sob a influência do falso ego julga-se a autora das atividades que, de fato, são executadas pelos três modos da natureza material.” (Bhagavad-gītā 3.27) Na vida condicionada, ninguém tem liberdade, mas, como a pessoa se desorienta e se sujeita às normas de mahāmāyā, ela comete a tolice de julgar-se independente (ahaṅkāra-vimūḍhātmā kartāham iti manyate). Porém, ao libertar-se executando o serviço devocional, a alma condicionada recebe a oportu­nidade cada vez maior de saborear um relacionamento com a Suprema Personalidade de Deus, em diferentes níveis transcendentais, como dāsya-rasa, sakhya-rasa, vātsalya-rasa e mādhurya-rasa.

Logo, a potência do Senhor, viṣṇu-māyā, tem dois aspectos: āvaraṇikā e unmukha. Quando o Senhor apareceu, Sua potência veio com Ele e agiu de diferentes maneiras. Com Yaśodā, Devakī e outros associados íntimos do Senhor, ela agiu como yogamāyā, e com Kaṁsa, Śalva e outros asuras, agiu de maneira diferente. Por ordem do Senhor Kṛṣṇa, Sua potência yogamāyā veio com Ele e manifestou diferentes atividades de acordo com o tempo e as circuns­tâncias (kāryārthe sambhaviṣyati). Yogamāyā agiu diferentemente para executar os diversos propósitos desejados pelo Senhor. Como se confirma na Bhagavad-gītā (9.13), mahātmānas tu māṁ pārtha daivīṁ prakṛtim āśritāḥ. Os mahātmās, que se rendem por completo aos pés de lótus do Senhor, são dirigidos por yogamāyā, ao passo que os durātmās, aqueles que não praticam o serviço devocional, são dirigidos por mahāmāyā.

Texto

śrī-śuka uvāca
ity ādiśyāmara-gaṇān
prajāpati-patir vibhuḥ
āśvāsya ca mahīṁ gīrbhiḥ
sva-dhāma paramaṁ yayau

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; iti — assim; ādiśya — após informar; amara-gaṇān — todos os semideuses; prajāpati-patiḥ — senhor Brahmā, o mestre dos Prajāpatis; vibhuḥ — todo-poderoso; āśvāsya — após apaziguar; ca — também; mahīm — mãe Terra; gīrbhiḥ — com palavras doces; sva-dhāma — seu próprio planeta, conhecido como Brahmaloka; paramam — o melhor (dentro do universo); yayau — retornou a.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī prosseguiu: Após dar esse conselho aos semi­deuses e apaziguar a mãe Terra, o poderosíssimo senhor Brahmā, que é o mestre de todos os outros Prajāpatis e, portanto, é conhecido como Prajāpati-pati, regressou à sua própria morada, Brahmaloka.

Texto

śūraseno yadupatir
mathurām āvasan purīm
māthurāñ chūrasenāṁś ca
viṣayān bubhuje purā

Sinônimos

śūrasenaḥ — o rei Śūrasena; yadu-patiḥ — o líder da dinastia Yadu; mathurām — no lugar conhecido como Mathurā; āvasan — foi viver; purīm — na cidade; māthurān — no lugar conhecido como distrito de Māthura; śūrasenān ca — e no lugar conhecido como Śūrasena; viṣayān — desses reinos; bubhuje — desfrutou; purā — outrora.

Tradução

Outrora, Śūrasena, o líder da dinastia Yadu, fora viver na cidade de Mathurā, onde desfrutou dos lugares conhecidos como Māthura e Śūrasena.

Texto

rājadhānī tataḥ sābhūt
sarva-yādava-bhūbhujām
mathurā bhagavān yatra
nityaṁ sannihito hariḥ

Sinônimos

rājadhānī — a capital; tataḥ — a partir daquela época; — a região e a cidade conhecidas como Mathurā; abhūt — tornaram-se; sarva­-yādava-bhūbhujām — de todos os reis que apareceram na dinastia Yadu; mathurā — o lugar conhecido como Mathurā; bhagavān — a Suprema Personalidade de Deus; yatra — onde; nayam — eternamen­te; sannihitaḥ — intimamente ligado, vivendo eternamente; hariḥ — o Senhor, a Suprema Personalidade de Deus.

Tradução

Desde aquela época, a cidade de Mathurā tem sido a capital de todos os reis da dinastia Yadu. A cidade e o distrito de Mathurā estão muito intimamente relacionados com Kṛṣṇa, pois o Senhor Kṛṣṇa vive ali eternamente.

Comentário

SIGNIFICADO—Compreende-se que a cidade de Mathurā é a morada transcendental do Senhor Kṛṣṇa; ela não é uma cidade material comum, pois está eternamente relacionada com a Suprema Personalidade de Deus. Vṛndāvana está dentro da jurisdição de Mathurā, e ela continua a existir. Como Mathurā e Vṛndāvana guardam eternamente uma relação íntima com Kṛṣṇa, afirma-se que o Senhor Kṛṣṇa jamais deixa Vṛndāvana (vṛndāvanaṁ parityajya padam ekaṁ na gacchati). No mo­mento atual, o lugar conhecido como Vṛndāvana, situado no distrito de Mathurā, continua detendo o status de um lugar transcendental, e na certa toda pessoa que vá para lá purifica-se transcendentalmente. Navadvīpa-dhāma também se relaciona intimamente com Vrajabhūmi. Śrīla Narottama Dāsa Ṭhākura, portanto, diz:

śrī gauḍa-maṇḍala-bhūmi, yebā jāne cintāmaṇi,
tāra haya vrajabhūme vāsa

“Vrajabhūmi” refere-se a Mathurā-Vṛndāvana, e Gauḍa-maṇḍala-bhūmi inclui Navadvīpa. Esses dois lugares não são diferentes. Portanto, todo aquele que vive em Navadvīpa-dhāma e sabe que Kṛṣṇa e Śrī Caitanya Mahāprabhu são a mesma personalidade, reside em Vrajabhūmi, Mathurā-Vṛndāvana. O Senhor viu a conveniência de a alma condicionada viver em Mathurā, Vṛndāvana e Navadvīpa e, então, unir-se diretamente à Suprema Personalidade de Deus. Pelo simples fato de viver nesses lugares, qualquer um pode de imediato entrar em contato com o Senhor. Existem muitos devotos que fazem o voto de nunca deixarem Vṛndāvana ou Mathurā. Sem dúvida, esse é um bom voto, mas, se alguém deixa Vṛndāvana, Mathurā ou Nava­dvīpa-dhāma para prestar serviço ao Senhor, não se desliga da Supre­ma Personalidade de Deus. Em todo caso, devemos procurar entender a importância transcendental de Mathurā-Vṛndāvana e Navadvīpa-dhāma. Todo aquele que executa serviço devocional nesses lugares decerto volta ao lar, volta ao Supremo, após abandonar seu corpo. Logo, as palavras mathurā bhagavān yatra nityaṁ sannihito hariḥ são particularmente importantes. O devoto deve utilizar plenamente esta instrução com o máximo de seu conhecimento. Sempre que aparece pessoalmente, o Senhor Supremo escolhe Mathurā devido à Sua re­lação íntima com esse lugar. Portanto, embora estejam localizadas neste planeta Terra, Mathurā e Vṛndāvana são moradas transcendentais do Senhor.

Texto

tasyāṁ tu karhicic chaurir
vasudevaḥ kṛtodvahaḥ
devakyā sūryayā sārdhaṁ
prayāṇe ratham āruhat

Sinônimos

tasyām — naquele lugar conhecido como Mathurā; tu — na verda­de; karhicit — algum tempo atrás; śauriḥ — o semideus, descendente de Śūra; vasudevaḥ — que apareceu como Vasudeva; kṛta-udvahaḥ — após casar-se; devakyā — com Devakī; sūryayā — sua esposa recém-casada; sārdham — juntamente com; prayāṇe — para retornar ao lar; ratham — na quadriga; āruhat — montou.

Tradução

Há algum tempo, Vasudeva, que pertencia à família dos semideu­ses [ou à dinastia Śūra], casou-se com Devakī. Após o casamento, ele subiu para sua quadriga a fim de retornar ao lar com sua consorte recém-desposada.

Texto

ugrasena-sutaḥ kaṁsaḥ
svasuḥ priya-cikīrṣayā
raśmīn hayānāṁ jagrāha
raukmai ratha-śatair vṛtaḥ

Sinônimos

ugrasena-sutaḥ — o filho de Ugrasena; kaṁsaḥ — chamado Kaṁsa; svasuḥ — de sua própria irmã Devakī; priya-cikīrṣayā — para satisfa­zê-la na ocasião do seu casamento; raśmīn — as rédeas; hayānām — dos cavalos; jagrāha — tomou; raukmaiḥ — feitas de ouro; ratha-śataiḥ — por centenas de quadrigas; vṛtaḥ — cercado.

Tradução

Kaṁsa, o filho do rei Ugrasena, para satisfazer sua irmã Devakī por ocasião do casamento dela, tomou as rédeas dos cavalos e tornou-se o quadrigário. Ele estava cercado por centenas de quadrigas de ouro.

Texto

catuḥ-śataṁ pāribarhaṁ
gajānāṁ hema-mālinām
aśvānām ayutaṁ sārdhaṁ
rathānāṁ ca tri-ṣaṭ-śatam
dāsīnāṁ sukumārīṇāṁ
dve śate samalaṅkṛte
duhitre devakaḥ prādād
yāne duhitṛ-vatsalaḥ

Sinônimos

catuḥ-śatam — quatrocentos; pāribarham — dote; gajānām — de ele­fantes; hema-mālinām — decorados com guirlandas de ouro; aśvānām — de cavalos; ayutam — dez mil; sārdham — juntamente com; rathānām — de quadrigas; ca — e; tri-ṣaṭ-śatam — três vezes seiscentos (mil e oitocentos); dāsīnām — de criadas; su-kumārīṇām — belas mocinhas solteiras; dve — duas; śate — centenas; samalaṅkṛte — plenamente decoradas com adornos; duhitre — à sua filha; devakaḥ — o rei Devaka; prādāt — deu de presente; yāne — enquanto partia; duhitṛ-vatsalaḥ — que gostava muito de sua filha Devakī.

Tradução

O pai de Devakī, o rei Devaka, tinha muita afeição por sua filha. Portanto, enquanto ela e seu esposo deixavam o lar, ele lhe deu um dote de quatrocentos elefantes belamente decorados com guirlandas de ouro. Deu também dez mil cavalos, mil e oitocentas quadri­gas, e duzentas belíssimas criadas, todas elas jovens e plenamente adornadas com ornamentos.

Comentário

SIGNIFICADO—O sistema de dar um dote à filha existe na civilização védica desde muito tempo. Mesmo hoje em dia, seguindo o mesmo sistema, um pai que tem dinheiro confere à sua filha um dote opulento. Uma filha jamais herdaria a propriedade do seu pai, de modo que um pai afetuoso, durante o casamento de sua filha, daria o máximo possível a ela. Portanto, de acordo com o sistema védico, um dote nunca é ilegal. Aqui, evidentemente, o presente que Devaka ofereceu a Devakī como dote não era comum. Como era rei, Devaka deu um dote inteira­mente compatível com sua posição real. Mesmo um homem comum, especialmente um brāhmaṇa, kṣatriya ou vaiśya de alta classe, tende a dar à sua filha um dote liberal. Logo após o casamento, a filha vai para a casa do esposo, e também é costume que o irmão da noiva acompanhe sua irmã e seu cunhado para demonstrar afeição por ela. Esse sistema foi seguido por Kaṁsa. Todos esses são antigos costumes na sociedade de varṇāśrama-dharma, que agora é erroneamente designada como hindu. Esses costumes existentes há muito tempo são belamente descritos aqui.

Texto

śaṅkha-tūrya-mṛdaṅgāś ca
nedur dundubhayaḥ samam
prayāṇa-prakrame tāta
vara-vadhvoḥ sumaṅgalam

Sinônimos

śaṅkha — búzios; tūrya — cornetas; mṛdaṅgāḥ — tambores; ca — também; neduḥ — vibraram; dundubhayaḥ — timbales; samam — em harmonia; prayāṇa-prakrame — na hora da partida; tāta — ó amado filho; vara-vadhvoḥ — do noivo e da noiva; su-maṅgalam — para anunciar a auspiciosa partida deles.

Tradução

Ó amado filho, Mahārāja Parīkṣit, quando a noiva e o noivo estavam prontos para partir, búzios, cornetas, tambores e timbales vibraram todos em harmonia, anunciando a auspiciosa partida deles.

Texto

pathi pragrahiṇaṁ kaṁsam
ābhāṣyāhāśarīra-vāk
asyās tvām aṣṭamo garbho
hantā yāṁ vahase ’budha

Sinônimos

pathi — na estrada; pragrahiṇam — que estava manobrando as rédeas dos cavalos; kaṁsam — a Kaṁsa; ābhāṣya — dirigindo-se; āha — disse; a-śarīra-vāk — uma voz vindo de alguém cujo corpo era invisível; asyāḥ — desta jovem (Devakī); tvām — tu; aṣṭamaḥ — a oitava; garbhaḥ — gravidez; hantā — matador; yām — aquela que; vahase — esta, carregando; abudha — seu patife tolo.

Tradução

Enquanto Kaṁsa, controlando as rédeas dos cavalos, dirigia a quadriga pela estrada, uma voz vinda do alto dirigiu-se a ele: “Seu patife tolo, a oitava criança da mulher que carregas te matará”!­

Comentário

SIGNIFICADO—O presságio falou de aṣṭamo garbhaḥ, referindo-se à oitava gravidez, mas não mencionou claramente se a criança seria um filho ou uma filha. Mesmo que, no final das contas, visse que a oitava criança de Devakī era uma filha, Kaṁsa não deveria ter dúvida alguma de que ela iria matá-lo. De acordo com o dicionário Viśva-kośa, a pala­vra garbha significa “embrião” e também arbhaka, ou “criança”. Kaṁsa tinha afeição por sua irmã e, portanto, fez questão de ser o quadrigário que conduziria tanto a noiva quanto o cunhado para o lar deles. Os semideuses, entretanto, não queriam que Kaṁsa fosse afetuoso com Devakī e portanto, de uma posição invisível, eles encorajaram Kaṁsa a ofendê-la. Ademais, os seis filhos de Ma­rīci foram amaldiçoados a nascer no ventre de Devakī e, ao serem mortos por Kaṁsa, eles se libertariam. Ao compreender que Kaṁsa seria morto pela Suprema Personalidade de Deus, que apareceria de seu ventre, Devakī sentiu muita alegria. A palavra vahase também é significativa porque indica que a vibração agourenta condenou Kaṁsa por este agir exatamente como uma besta de carga, transportando a mãe do seu inimigo.

Texto

ity uktaḥ sa khalaḥ pāpo
bhojānāṁ kula-pāṁsanaḥ
bhaginīṁ hantum ārabdhaḥ
khaḍga-pāṇiḥ kace ’grahīt

Sinônimos

iti uktaḥ — sendo assim interpelado; saḥ — ele (Kaṁsa); khalaḥ — invejoso; pāpaḥ — pecaminoso; bhojānām — da dinastia Bhoja; kula­-pāṁsanaḥ — alguém que pode degradar a reputação de sua família; bhaginīm — à sua irmã; hantum ārabdham — estando inclinado a matar; khaḍga-pāṇiḥ — empunhando uma espada; kace — cabelo; agrahīt — agarrou.

Tradução

Kaṁsa era uma personalidade condenada da dinastia Bhoja porque era tomado de inveja e pecaminoso. Portanto, ao ouvir essa profecia vinda do céu, ele agarrou sua irmã pelo cabelo com a mão esquerda e, com a mão direita, empunhou sua espada para decapitá-la.

Comentário

SIGNIFICADO—Kaṁsa dirigia a quadriga e controlava as rédeas com sua mão esquerda, mas logo que ouviu a profecia de que a oitava criança nascida de sua irmã o mataria, ele largou as rédeas, agarrou sua irmã pelo cabelo e, com sua mão direita, pegou da espada para matá-la. Antes, ele tinha tanta afeição que agia como quadrigário de sua irmã, mas logo que percebeu que seu interesse próprio ou sua vida estavam em risco, ele se esqueceu de toda a afeição que sentia por ela e tornou-se um grande inimigo. Essa é a natureza dos demônios. Ninguém deve confiar em um demônio, por mais afetuoso que ele seja. Além disso, um rei, um político ou uma mulher não podem merecer con­fiança, pois, em troca de seu interesse pessoal, podem tomar qualquer atitude abominável. Cāṇakya Paṇḍita, portanto, diz que viśvāso naiva kartavyaḥ strīṣu rāja-kuleṣu ca.

Texto

taṁ jugupsita-karmāṇaṁ
nṛśaṁsaṁ nirapatrapam
vasudevo mahā-bhāga
uvāca parisāntvayan

Sinônimos

tam — a ele (Kaṁsa); jugupsita-karmāṇam — que estava pronto para cometer semelhante ofensa; nṛśaṁsam — muito cruel; nirapatrapam — desavergonhado; vasudevaḥ — Vasudeva; mahā-bhāgaḥ — o afortunadíssimo pai de Vāsudeva; uvāca — disse; parisāntvayan — apaziguando.

Tradução

Desejando apaziguar Kaṁsa, que era tão cruel e invejoso que estava descaradamente disposto a matar sua irmã, a grande alma Vasudeva, que no futuro seria o pai de Kṛṣṇa, falou-lhe as seguintes palavras.

Comentário

SIGNIFICADO—Vasudeva, que seria o pai de Kṛṣṇa, é descrito aqui como mahā-bhāga, uma personalidade muito honesta e sóbria, porque, embora Kaṁsa estivesse disposto a matar a esposa de Vasudeva, este permaneceu sóbrio e tranquilo. Em uma atitude pacífica, Vasudeva começou a dirigir-se a Kaṁsa apresentando argumentos razoáveis. Vasudeva era uma grande personalidade, pois sabia como apaziguar uma pessoa cruel e como perdoar até mesmo o inimigo mais mordaz. Quem possui boa fortuna jamais é dominado, nem mesmo por tigres ou serpentes.

Texto

śrī-vasudeva uvāca
ślāghanīya-guṇaḥ śūrair
bhavān bhoja-yaśaskaraḥ
sa kathaṁ bhaginīṁ hanyāt
striyam udvāha-parvaṇi

Sinônimos

śrī-vasudevaḥ uvāca — a grande personalidade Vasudeva disse; ślāghanīya-guṇaḥ — uma pessoa que possui qualidades louvadas; śūraiḥ — por grandes heróis; bhavān — tu; bhoja-yaśaḥ-karaḥ — uma estrela brilhante da dinastia Bhoja; saḥ — alguém como tu; katham — como; bhaginīm — tua irmã; hanyāt — pode matar; striyam — especialmente uma mulher; udvāha-parvaṇi — no momento da cerimônia de casamento.

Tradução

Vasudeva disse: Meu querido cunhado Kaṁsa, és o orgulho de tua família, a dinastia Bhoja, e grandes heróis louvam tuas qualidades. Como é que uma pessoa tão qualificada como tu poderia matar uma mulher, tua própria irmã, especialmente na ocasião do seu casamento?

Comentário

SIGNIFICADO—De acordo com os princípios védicos, um brāhmaṇa, um ancião, uma mulher, uma criança ou uma vaca não podem ser mortos em nenhuma circunstância. Vasudeva enfatizou que Devakī não era apenas uma mulher, mas também um membro da família de Kaṁsa. Porque agora ela se casara com Vasudeva, ela era para-strī, a esposa de um homem, e se tal mulher fosse morta, Kaṁsa não apenas in­correria em atividades pecaminosas, mas sua reputação como rei da dinastia Bhoja ficaria prejudicada. Por isso, Vasudeva tentou de muitas maneiras convencer Kaṁsa, a fim de impedi-lo de matar Devakī.

Texto

mṛtyur janmavatāṁ vīra
dehena saha jāyate
adya vābda-śatānte vā
mṛtyur vai prāṇināṁ dhruvaḥ

Sinônimos

mṛtyuḥ — morte; janma-vatām — das entidades vivas que nasceram; vīra — ó grande herói; dehena saha — juntamente com o corpo; jāya­te — nasce (aquele que nasce com certeza morrerá); adya — hoje; — ou; abda-śata — de centenas de anos; ante — no final; — ou; mṛtyuḥ — morte; vai — na verdade; prāṇinām — para toda entidade viva; dhruvaḥ — é certa.

Tradução

Ó grande herói, quem nasce com certeza morrerá, pois a morte nasce com o corpo. Alguém pode morrer hoje ou daqui a centenas de anos, mas a morte é certa para toda entidade viva.

Comentário

SIGNIFICADO—Vasudeva queria convencer Kaṁsa de que, embora Kaṁsa temes­se morrer e, para escapar disso, fosse capaz de matar até mesmo uma mulher, ele não evitaria a morte. A morte é certa. Por que, então, Kaṁsa deveria fazer algo que seria prejudicial à sua reputação e à de sua família? Como se confirma na Bhagavad-gītā (2.27):

jātasya hi dhruvo mṛtyur
dhruvaṁ janma mṛtasya ca
tasmād aparihārye ’rthe
na tvaṁ śocitum arhasi

“Para aquele que nasce a morte é certa, e, após a morte, ele voltará a nascer. Portanto, no inevitável cumprimento do teu dever, não deves te lamentar.” Ninguém deve temer a morte. Em vez disso, todos devem preparar-se para o próximo nascimento. Deve-se utilizar o tempo nesta forma humana para encerrar o pro­cesso de nascimento e morte. A ninguém é aconselhado pensar que, para salvar-se da morte, a pessoa precisa enredar-se em ativida­des pecaminosas. Isso não é bom.

Texto

dehe pañcatvam āpanne
dehī karmānugo ’vaśaḥ
dehāntaram anuprāpya
prāktanaṁ tyajate vapuḥ

Sinônimos

dehe — quando o corpo; pañcatvam āpanne — decompõe-se em cinco elementos; dehī — o proprietário do corpo, o ser vivo; karma­-anugaḥ — seguindo as reações de suas próprias atividades fruitivas; ava­śaḥ — espontaneamente, automaticamente; deha-antaram — outro corpo (feito de elementos materiais); anuprāpya — recebendo como resultado; prāktanam — o anterior; tyajate — abandona; vapuḥ — corpo.

Tradução

Quando o presente corpo se reduz a pó e volta a decompor-se em cinco elementos – terra, água, fogo, ar e éter –, o proprietário do corpo, o ser vivo, de acordo com suas atividades fruitivas, automaticamente recebe outro corpo formado de elementos materiais. Ao obter o próximo corpo, ele se desfaz do corpo atual.

Comentário

SIGNIFICADO—Confirma isso a Bhagavad-gītā, que apresenta o começo da compreensão espiritual.

dehino ’smin yathā dehe
kaumāraṁ yauvanaṁ jarā
tathā dehāntara-prāptir
dhīras tatra na muhyati

“Assim como a alma encarnada passa seguidamente, neste corpo, da infância à juventude e à velhice, da mesma maneira, a alma passa para um outro corpo após a morte. Uma pessoa sóbria não se confunde com tal mudança.” (Bhagavad-gītā 2.13) Uma pessoa ou um animal não são o corpo material; ao contrário, o corpo material é a cobertura do ser vivo. A Bhagavad-gītā compara o corpo a uma roupa e explica elaboradamente como as pessoas mudam de roupa, uma após outra. O mesmo conhecimento védico é confirmado aqui. O ser vivo, a alma, está constantemente trocando de corpos, um após outro. Mesmo na vida atual, o corpo passa da infância à me­ninice, da meninice à juventude, e da juventude à velhice; igualmen­te, quando o corpo é demasiadamente velho para continuar, o ser vivo abandona esse corpo e, pelas leis da natureza, automaticamente recebe outro corpo, de acordo com suas atividades, desejos e ambi­ções fruitivas. Essa sequência é controlada pelas leis da natureza, e, portanto, enquanto a entidade viva estiver sob o controle da energia material externa, o processo de mudança corpórea ocorre automati­camente, de acordo com as atividades fruitivas por ela desempenhadas. Vasudeva, portanto, queria deixar Kaṁsa ciente de que, se ele come­tesse esse ato pecaminoso, matando uma mulher, ele decerto obteria um corpo material ainda mais condicionado aos sofrimentos da existência material em sua próxima vida. Por isso, Vasudeva aconselhou Kaṁsa a não cometer atividades pecaminosas.

Alguém que, devido à ignorância, tamo-guṇa, comete atividades pecaminosas, obtém um corpo inferior. Kāraṇaṁ guṇa-saṅgo ’sya sad-asad-yoni janmasu. (Bhagavad-gītā 13.22) Existem centenas e milhares de diferentes espécies de vida. Por que existem corpos superiores e inferiores? Esses corpos são recebidos por alguém de acordo com o seu grau de contaminação na natureza material. Se nesta vida a pessoa é contaminada pelo modo da ignorância e por atividades pecamino­sas (duṣkṛtī), na próxima vida, pelas leis da natureza, ela decerto obterá um corpo que propicia muito sofrimento. As leis da nature­za não se sujeitam aos desejos caprichosos da alma condicionada. Nosso empenho, portanto, deve consistir em associarmo-nos sempre com sattva-guṇa e afastarmo-nos de rajo-guṇa ou tamo-guṇa (rajas-­tamo-bhāvāḥ). Os desejos luxuriosos e a cobiça mantêm a entidade viva em ignorância perpétua e impedem-na de elevar-se à platafor­ma de sattva-guṇa ou śuddha-sattva-guṇa. Todos são aconselhados a situar-se em śuddha-sattva-guṇa, serviço devocional, pois assim ficam imunes às reações dos três modos da natureza material.

Texto

vrajaṁs tiṣṭhan padaikena
yathaivaikena gacchati
yathā tṛṇa-jalaukaivaṁ
dehī karma-gatiṁ gataḥ

Sinônimos

vrajan — uma pessoa, enquanto anda na estrada; tiṣṭḥan — enquanto se apoia; padā ekena — sobre um pé; yathā — como; eva — na verdade; ekena — com o outro pé; gacchati — vai; yathā — como; tṛṇa-jalau­kā — uma lagarta em uma planta; evam — dessa maneira; dehī — a enti­dade viva; karma-gatim — as reações das atividades fruitivas; gataḥ — submete-se a.

Tradução

Assim como alguém que anda pela estrada firma um pé no chão e depois levanta o outro, ou assim como uma lagarta em uma planta transfere-se para uma outra folha e só então abandona a anterior, a alma condicionada aceita outro corpo e, então, abandona o antigo.

Comentário

SIGNIFICADO—É através deste processo que a alma transmigra de um corpo a outro. Na hora da morte, de acordo com sua condição mental, o ser vivo é carregado pelo corpo sutil, que consiste em mente, inteli­gência e ego, para outro corpo grosseiro. Quando as autoridades superiores decidem que espécie de corpo grosseiro a entidade viva receberá, ela é forçada a entrar nesse corpo, e assim abandona seu corpo anterior automaticamente. As pessoas de mentalidade tacanha e que, portanto, não têm inteligência para entender esse processo de transmigração julgam-se certas de que, quando o corpo grosseiro acaba, a vida termina para sempre. Essas pessoas não têm cérebro para entender o processo da transmigração. No momento atual, há grande oposição ao movimento Hare Kṛṣṇa, que é chamado de movimento de “lavagem cerebral”. Mas o que acontece, na verdade, é que os supostos cientistas, filósofos e outros líderes dos países oci­dentais não têm cérebro nenhum. O movimento Hare Kṛṣṇa está ten­tando elevar esses tolos, iluminando sua inteligência para que possam tirar proveito do corpo humano. Infelizmente, devido à ignorância crassa, eles tratam o movimento Hare Kṛṣṇa como um movimento de lavagem cerebral. Eles não sabem que, sem consciência de Deus, a pessoa é forçada a continuar transmigrando de um corpo a outro. Devido a seus cérebros diabólicos, eles, posteriormente, serão forçados a aceitar uma vida abominável, e praticamente nunca serão capazes de libertar-se da vida condicionada à existência material. Explica-se muito claramente neste verso como ocorre essa transmigração da alma.

Texto

svapne yathā paśyati deham īdṛśaṁ
manorathenābhiniviṣṭa-cetanaḥ
dṛṣṭa-śrutābhyāṁ manasānucintayan
prapadyate tat kim api hy apasmṛtiḥ

Sinônimos

svapne — em um sonho; yathā — como; paśyati — alguém vê; deham — a espécie de corpo; īdṛśam — igualmente; manorathena — pela espe­culação mental; abhiniviṣṭa — está plenamente absorta; cetanaḥ — aquele cuja consciência; dṛṣṭa — por tudo aquilo que passou a ser conhecido pelo processo visual; śrutābhyām — e ouvindo a descrição de algum outro fenômeno; manasā — com a mente; anucintayan — pensando, sentindo e desejando; prapadyate — rende-se; tat — àquela situação; kim api — o que dizer de; hi — na verdade; apasmṛtiḥ — esquecer-se do corpo atual.

Tradução

Tendo experienciado uma situação por vê-la ou ouvir sobre ela, o indivíduo contempla e especula acerca dessa situação e, então, entrega-se a ela, sem considerar seu corpo atual. Do mesmo modo, através de processos mentais, alguém pode sonhar à noite que, em diferentes corpos, vive em diferentes circunstâncias, e esquece-se de sua verdadeira posição. Através desse mesmo método, alguém abandona seu corpo atual e aceita outro [tathā dehāntara­-prāptiḥ].

Comentário

SIGNIFICADO—A transmigração da alma é muito claramente explicada neste verso. Às vezes, a pessoa se esquece de seu corpo atual e pensa em seu corpo infantil, um corpo do passado, e como ela brincava, pulava, falava e assim por diante. Ao deixar de funcionar, o corpo mate­rial transforma-se em pó: “És pó e ao pó voltarás.” Mas quando o corpo novamente se mistura com os cinco elementos materiais – terra, água, fogo, ar e éter –, a mente continua a funcionar. A mente é a substância sutil na qual o corpo é criado, como de fato experimentamos em nossos sonhos e também quando estamos acordados, vendo os acontecimentos. Deve-se entender que o processo de especulação mental desenvolve uma nova espécie de corpo que, na verdade, não existe. Se alguém compreende a natureza da mente (manorathena) e seus pensamentos, sentimentos e desejos, muito facil­mente ele pode entender como, a partir da mente, desenvolvem-se diferentes categorias de corpos.

O movimento da consciência de Kṛṣṇa, portanto, oferece um processo de atividades transcendentais, onde a mente absorve-se por completo em afazeres relativos a Kṛṣṇa. A presença da alma é percebida como a consciência, e deve-se purificar a consciência tirando-a do plano material e levando-a ao espiritual, ou, em outras palavras, à consciência de Kṛṣṇa. Aquilo que é espiritual é eterno, e aquilo que é material é temporário. Sem a consciência de Kṛṣṇa, a consciên­cia sempre está absorta em temas temporários. Para todos, portanto, Kṛṣṇa recomenda na Bhagavad-gītā (9.34): man-manā bhava mad-bhakto mad-yājī māṁ namaskuru. A pessoa deve sempre absorver-­se em pensar em Kṛṣṇa, deve tornar-se Seu devoto, deve ocupar-se sempre em Seu serviço e adora-lO como a grandeza suprema, e deve sempre oferecer-Lhe reverências. No mundo material, cada um é sempre servo de outra pessoa maior, e, no mundo espiritual, nossa posição constitucional é servir ao Supremo, o maior, paraṁ brahma. Esta é a instrução de Śrī Caitanya Mahāprabhu. Jīvera ‘svarūpa’ haya-kṛṣṇera ‘nitya-dāsa’. (Caitanya-caritāmṛta, Madhya 20.108)

Agir em consciência de Kṛṣṇa é a perfeição da vida e a perfeição máxima do yoga. Como o Senhor Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā (6.47):

yoginām api sarveṣāṁ
mad-gatenāntarātmanā
śraddhāvān bhajate yo māṁ
sa me yuktatamo mataḥ

“De todos os yogīs, aquele que sempre se refugia em Mim com muita fé, adorando-Me com transcendental serviço amoroso, está muito inti­mamente unido a Mim através do yoga e é o mais elevado de todos.”

A condição da mente, que oscila entre saṅkalpa e vikalpa, aceitar ou rejeitar algo, é muito importante no processo de transferir a alma para outro corpo material na hora da morte.

yaṁ yaṁ vāpi smaran bhāvaṁ
tyajaty ante kalevaram
taṁ tam evaiti kaunteya
sadā tad-bhāva-bhāvitaḥ

“Qualquer que seja o estado de existência do qual alguém se lembre ao deixar o corpo, esse estado ele alcançará impreterivelmente.” (Bhagavad-gītā 8.6) Portanto, deve-se treinar a mente no sistema de bhakti-yoga, seguindo, assim, o exemplo de Mahārāja Ambarīṣa, que sempre se mantinha em consciência de Kṛṣṇa. Sa vai manaḥ kṛṣṇa-padāravindayoḥ. Todos têm de fixar a mente nos pés de lótus de Kṛṣṇa vinte e quatro horas por dia. Se a mente se fixa nos pés de lótus de Kṛṣṇa, as atividades dos outros sentidos se ocuparão no serviço a Kṛṣṇa. Hṛṣīkeṇa hṛṣīkeśa-sevanaṁ bhaktir ucyate: servir a Hṛṣīkeśa, o mestre dos sentidos, com sentidos purificados chama-se bhakti. Aqueles que se ocupam em serviço devocional constante estão situados em um estado transcendental, acima dos modos da natureza mate­rial. Como Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā (14.26):

māṁ ca yo ’vyabhicāreṇa
bhakti-yogena sevate
sa guṇān samatītyaitān
brahma-bhūyāya kalpate

“Aquele que se ocupa em serviço devocional pleno e não falha em circunstância alguma, transcende de imediato os modos da natureza material e chega, então, ao nível de Brahman.” É através dos textos védicos que se deve aprender o segredo do sucesso, especialmente quando a nata do conhecimento védico é apresentada pela Bhagavad-gītā como ela é.

Porque, em última análise, a mente é controlada pela Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa, a palavra apasmṛtiḥ é significativa. Esquecer-se da própria identidade chama-se apasmṛtiḥ. Esse apasmṛtiḥ pode ser controlado pelo Senhor Supremo, pois o Senhor diz que mattaḥ smṛtir jñānam apohanaṁ ca: “De Mim, vêm a lembrança, o conhecimento e o esquecimento.” Em vez de ajudar alguém a esquecer-se de sua verdadeira posição, Kṛṣṇa pode fazê-lo reviver sua identidade original na hora de sua morte, apesar da insta­bilidade da mente. Embora talvez a mente não funcione a contento na hora da morte, Kṛṣṇa confere o refúgio a Seus pés de lótus para o devoto. Portanto, quando o devoto abandona seu corpo, a mente não o leva a outro corpo material (tyaktvā dehaṁ punar janma naiti mām eti); em vez disso, Kṛṣṇa conduz o devoto àquele lugar onde Ele está ocupado em Seus passatempos (mām eti), como já comentamos em versos anteriores. A consciência, portanto, deve estar sempre absorta em Kṛṣṇa, em decorrência do que a vida será exitosa. De outra maneira, a mente transportará a alma para outro corpo material. A alma será depositada no sêmen de um pai, que a introduzirá no ventre de uma mãe. De acordo com a forma do pai e da mãe, o sêmen e o óvulo criam uma determinada espécie de corpo, e, quando o corpo amadurece, a alma se manifesta naquele corpo e começa uma nova vida. Esse é o processo através do qual a alma transmigra de um corpo a outro (tathā dehāntara-prāptiḥ). Infelizmente, aqueles que são menos inteligentes pensam que, quando o corpo desaparece, tudo se acaba. O mundo inteiro está sendo desencaminhado por esses tolos e patifes. Contudo, como se afirma na Bhagavad-gītā (2.20), na hanyate hanyamāne śarīre. A alma não morre quando o corpo é destruído, senão que a alma aceita outro corpo.

Texto

yato yato dhāvati daiva-coditaṁ
mano vikārātmakam āpa pañcasu
guṇeṣu māyā-raciteṣu dehy asau
prapadyamānaḥ saha tena jāyate

Sinônimos

yataḥ yataḥ — de um a outro lugar ou de uma a outra posição; dhāvati — especula; daiva-coditam — impelida por acaso ou de manei­ra deliberada; manaḥ — a mente; vikāra-ātmakam — mudando de uma classe de pensamento, sentimento e desejo para outro; āpa — no final, obtém-se (uma mentalidade); pañcasu — na hora da morte (quando o corpo material transforma-se apenas em matéria); guṇe­ṣu — (a mente, não estando liberada, apega-se) às qualidades mate­riais; māyā-raciteṣu — onde a energia material cria um corpo semelhante; dehī — a alma espiritual que aceita tal corpo; asau — ela; prapadyamānaḥ — rendendo-se (a essa condição); saha — com; tena — um corpo semelhante; jāyate — nasce.

Tradução

Na hora da morte, de acordo com o pensamento, sentimento e desejo da mente, que está envolvida em atividades fruitivas, recebe-se um corpo específico. Em outras palavras, o corpo desenvolve-se de acordo com as atividades da mente. As mudanças de corpo devem­-se à instabilidade da mente, pois, de outro modo, a alma poderia permanecer em seu corpo espiritual original.

Comentário

SIGNIFICADO—Pode-se entender com muita facilidade que a mente está sempre oscilan­do, mudando a qualidade de seu pensamento, sentimento e desejo. Arjuna explica isso na Bhagavad-gītā (6.34):

cañcalaṁ hi manaḥ kṛṣṇa
pramāthi balavad dṛḍham
tasyāhaṁ nigrahaṁ manye
vāyor iva suduṣkaram

A mente é cañcala, instável, e sofre mudanças bruscas. Portanto, Arjuna admitiu que controlar a mente não é uma tarefa possível; isso seria tão difícil como controlar o vento. Por exemplo, se em um rio ou no mar alguém estiver em um barco que navega ao sabor do vento e o vento for incontrolável, o barco instável ficará em uma situação crítica e será muito difícil controlá-lo. Ele poderá até mesmo virar. Portanto, no bhava-samudra, o oceano da especulação mental e da transmigração para diferentes classes de corpos, a pessoa primeiro deve controlar a mente.

Através da prática regulada, pode-se controlar a mente, e esse é o propósito do sistema de yoga (abhyāsa-yoga-yuktena). Contudo, sempre existe a possibilidade de o sistema de yoga falhar, em especial nesta era de Kali, porque o sistema de yoga utiliza meios artificiais. Entre­tanto, se a mente se ocupa em bhakti-yoga, pode-se controlá-la com muita facilidade, pela graça de Kṛṣṇa. Portanto, Śrī Caitanya Mahāprabhu recomenda que harer nāma harer nāma harer nāmaiva kevalam. Deve-se sempre cantar o santo nome do Senhor, pois o santo nome do Senhor não é diferente de Hari, a Pessoa Suprema.

Cantando sempre o mantra Hare Kṛṣṇa, pode-se fixar a mente nos pés de lótus de Kṛṣṇa (sa vai manaḥ kṛṣṇa-padāravindayoḥ) e, dessa maneira, alcançar a perfeição do yoga. Caso contrário, a mente oscilante, em busca de gozo dos sentidos, ficará pairando na plataforma da especulação mental, e a pessoa terá de transmigrar de um tipo de corpo a outro, porque a mente aprende a conviver apenas com os elementos materiais, ou, em outras palavras, com o gozo dos sentidos, que é falso. Māyā-sukhāya bharam udvahato vimūḍhān. (Śrīmad-Bhāgavatam 7.9.43) Os patifes (vimūḍhān), sendo controlados pela especulação mental, fazem enormes arranjos para poderem desfrutar da vida temporária, mas eles têm de abandonar o corpo na hora da morte, quando tudo é levado pela energia externa de Kṛṣṇa (mṛtyuḥ sarva-haraś cāham). Naquele momento, tudo o que a pessoa criou nesta vida se esvai, e ela automaticamente deve aceitar um novo corpo, que lhe é imposto pela natureza material. Nesta vida, talvez alguém tenha construído um arranha-céu muito alto, mas, na próxima vida, devido à sua mentalidade, ela talvez tenha de aceitar um corpo de cão, gato, árvore ou mesmo de semideus. Logo, o corpo é oferecido pelas leis da natureza material. Kāraṇaṁ guṇa-saṅgo ’sya sad-asad-yoni janmasu. (Bhagavad-gītā 13.22) A alma espiri­tual nasce em espécies de vida superiores ou inferiores devido apenas à sua associação com as três qualidades da natureza material.

ūrdhvaṁ gacchanti sattva-sthā
madhye tiṣṭhanti rājasāḥ
jaghanya-guṇa-vṛtti-sthā
adho gacchanti tāmasāḥ

“Aqueles situados no modo da bondade gradualmente elevam-se aos planetas superiores, aqueles no modo da paixão vivem nos planetas terrestres, e aqueles no abominável modo da ignorância descem para os mundos infernais.” (Bhagavad-gītā 14.18)

Concluindo, o movimento da consciência de Kṛṣṇa oferece a atividade que mais beneficia a sociedade humana. Portanto, para o benefício de toda a humanidade, o setor saudável da sociedade hu­mana deve levar este movimento muito a sério. Para salvar-se de repetidos nascimentos e mortes, a pessoa deve purificar sua consciência. Sarvopādhi-vinirmuktaṁ tat-paratvena nirmalam. Deve-se estar livre de todas as designações – “eu sou americano”, “eu sou indiano”, “eu sou isto”, “eu sou aquilo” –, e chegar à plataforma em que se compreende que Kṛṣṇa é o amo original e que somos Seus servos eternos. Quando os sentidos se purificam e ocupam-se a serviço de Kṛṣṇa, pode-se alcançar a perfeição máxima. Hṛṣīkeṇa hṛṣīkeśa-sevanaṁ bhaktir ucyate. O movimento da consciência de Kṛṣṇa é um movimento de bhakti-yoga. Vairāgya-vidyā-nija-bhakti-yoga. Seguindo os princípios deste movimento, as pessoas afastam-se das invenções mentais materiais e se estabelecem na plataforma original, na qual existe a relação eterna segundo a qual a entidade viva e a Suprema Personalidade de Deus agem como servo e mestre. Este, em suma, é o propósito do movimento da consciência de Kṛṣṇa.

Texto

jyotir yathaivodaka-pārthiveṣv adaḥ
samīra-vegānugataṁ vibhāvyate
evaṁ sva-māyā-raciteṣv asau pumān
guṇeṣu rāgānugato vimuhyati

Sinônimos

jyotiḥ — os luzeiros do céu, tais como o Sol, a Lua e as estrelas; yathā — como; eva — na verdade; udaka — na água; pārthiveṣu — ou em outros líquidos, como o óleo; adaḥ — diretamente; samīra-vega­anugatam — sendo forçados pelos movimentos do vento; vibhāvyate — aparecem em diferentes formas; evam — dessa maneira; sva-māyā-raciteṣu — na situação criada pelas próprias invenções mentais de alguém; asau — a entidade viva; pumān — pessoa; guṇeṣu — no mundo mate­rial, manifestada pelos modos da natureza; rāga-anugataḥ — de acordo com o seu apego; vimuhyati — confunde-se com a identificação.

Tradução

Ao refletirem-se em líquidos, tais como óleo ou água, os luzeiros do céu, tais como a Lua, o Sol e as estrelas, parecem ter diferentes formas – às vezes redondas, às vezes longas, e assim por diante – devido aos movimentos do vento. De maneira semelhante, ao absorver-se em pensamentos materiais, a entidade viva, a alma, devido à ignorância, aceita várias manifestações como sua própria identida­de. Em outras palavras, é devido à agitação produzida pelos modos da natureza material que alguém se deixa confundir pelas invenções mentais.

Comentário

SIGNIFICADO—Este verso apresenta um ótimo exemplo para se compreenderem as diferentes posições que a alma espiritual eterna assume no mundo material e mostra como a alma aceita diferentes corpos (dehāntara-prāptiḥ). A Lua é estacionária e única, mas, ao refletir-se na água ou no óleo, ela parece tomar diferentes formas devido aos movimentos do vento. De modo semelhante, a alma é uma serva eterna de Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, mas, quando é posta nos modos da natureza material, ela assume diferentes corpos, ora como semi­deus, ora como homem, cachorro, árvore e assim por diante. Pela influência de māyā, a potência ilusória da Suprema Personalidade de Deus, a entidade viva pensa que é essa pessoa, aquela pessoa, americano, indiano, gato, cachorro, árvore ou qualquer outra coisa. Isso se chama māyā. Quando alguém está livre dessa perplexidade e entende que a alma não pertence a nenhuma das formas deste mundo material, situa-se na plataforma espiritual (brahma-bhūta).

Essa compreensão às vezes é explicada como nirākāra, ou ausência de forma. Essa amorfia, entretanto, não significa que a alma não tenha forma. A alma tem forma, mas a forma externa que adquiriu devido à agitação e contaminação material é falsa. Igualmente, Deus também é descrito como nirākāra, o que significa que Deus não tem forma material, senão que é sac-cid-ānanda-vigraha. A entidade viva é parte integrante da sac-cid-ānanda-vigraha suprema, mas suas formas materiais são temporárias, ou ilusórias. Tanto a entidade viva quanto o Senhor Supremo têm formas espirituais originais (sac-cid­-ānanda-vigraha), mas o Senhor, o Supremo, não muda de forma. O Senhor aparece como Ele é, ao passo que a entidade viva aparece porque a natureza material a obriga a aceitar diferentes formas. Ao receber essas diferentes formas, a entidade viva identifica-se com elas, e não com sua forma espiritual original. Logo que retorna à sua forma e compreensão espirituais originais, a entidade viva ime­diatamente rende-se à forma suprema, a Personalidade de Deus. Isso é explicado na Bhagavad-gītā (7.19): bahūnāṁ janmanām ante jñānavān māṁ prapadyate. Quando a entidade viva, depois de muitos e muitos nascimentos em diferentes formas, retorna à sua forma origi­nal, a consciência de Kṛṣṇa, ela se rende de imediato aos pés de lótus da forma suprema, Kṛṣṇa. Isso é a liberação. Como o Senhor diz na Bhagavad-gītā (18.54):

brahma-bhūtaḥ prasannātmā
na śocati na kāṅkṣati
samaḥ sarveṣu bhūteṣu
mad-bhaktiṁ labhate parām

“Aquele que está situado nessa posição transcendental compreende de imediato o Brahman Supremo e torna-se completamente feliz. Ele nunca se lamenta nem deseja ter algo, e é equânime para com todas as entidades vivas. Nesse estado, ele passa a Me prestar serviço devocional puro.” Render­-se à forma suprema é resultado de bhakti. Essa bhakti, que consiste em alguém compreender sua própria posição, é a liberação completa. Enquanto alguém compreende apenas o aspecto impessoal da Verda­de Absoluta, não está em conhecimento puro, senão que ainda deve se empenhar para obter o conhecimento puro. Kleśo ’dhikataras teṣām avyaktāsakta-cetasām (Bhagavad-gītā 12.5). Embora alguém possa ser espiritualmente avançado, se estiver apegado ao aspecto impessoal da Verdade Absoluta, ainda terá de trabalhar muito arduamente, como indicam as palavras kleśo ’dhikataraḥ, que significam “sofrimento intenso”. O devoto, entretanto, facilmente alcança sua posição original, sua forma espiri­tual, e entende a Suprema Personalidade de Deus em Sua forma original.

O próprio Kṛṣṇa explica as formas das entidades vivas no segundo capítulo da Bhagavad-gītā, onde Ele claramente diz a Arjuna que Ele, Arjuna e todas as outras entidades vivas, que anteriormente estavam em suas formas originais, são identidades individuais separadas. Eles foram indivíduos no passado, agora estão gozando de individua­lidade e, no futuro, continuarão a manter suas formas individuais. A única diferença é que a entidade viva condicionada aparece em várias formas materiais, ao passo que Kṛṣṇa aparece em Sua forma espiritual original. Infelizmente, aqueles que não são avançados em conhecimento espiritual pensam que Kṛṣṇa é como eles e que Sua forma é como suas formas materiais. Avajānanti māṁ mūḍhā mānuṣīṁ tanum āśritam. (Bhagavad-gītā 9.11) Kṛṣṇa jamais Se envaidece por causa de conhecimento material e, portanto, chama-Se acyuta, mas as enti­dades vivas caem e são agitadas pela natureza material. Essa é a dife­rença entre o Senhor Supremo e as entidades vivas.

Com relação a isso, deve-se observar que Vasudeva, que estava situado em uma posição transcendental, aconselhou Kaṁsa a não con­tinuar cometendo atividades pecaminosas. Kaṁsa, um representante dos demônios, estava sempre disposto a matar Kṛṣṇa, ou Deus, e Vasudeva representa uma pessoa transcendentalmente situada de quem Kṛṣṇa nasce (Vāsudeva é o filho de Vasudeva). Vasudeva queria que seu cunhado se eximisse de praticar o ato pecaminoso que con­sistia em matar sua irmã, uma vez que o resultado de ele ser agitado pela natureza material seria que Kaṁsa teria de aceitar um corpo no qual sofreria repetidas vezes. Em outra passagem do Śrīmad­-Bhāgavatam (5.5.4), Ṛṣabhadeva também diz:

na sādhu manye yata ātmano ’yam
asann api kleśada āsa dehaḥ

Enquanto estiver enredada nas atividades fruitivas em troca de apa­rente felicidade e infelicidade, a entidade viva receberá uma deter­minada espécie de corpo no qual se submeterá às três classes de sofrimento decorrentes da natureza material (tri-tāpa-yantraṇā). Toda pessoa inteligente, portanto, deve livrar-se da influência dos três modos da natureza material e reviver seu corpo espiritual original, ocupando-se no serviço à Pessoa Suprema, Kṛṣṇa. Enquanto alguém estiver materialmente apegado, terá de aceitar o processo de nascimento, morte, velhice e doença. Portanto, aconselha-se que, em vez de enredarem-se nas atividades fruitivas aparentemente boas ou más, as pessoas inteligentes devem ocupar sua vida em avançar em cons­ciência de Kṛṣṇa para que, em vez de aceitarem outro corpo mate­rial (tyaktvā dehaṁ punar janma naiti), retornem ao lar, retornem ao Supremo.

Texto

tasmān na kasyacid droham
ācaret sa tathā-vidhaḥ
ātmanaḥ kṣemam anvicchan
drogdhur vai parato bhayam

Sinônimos

tasmāt — portanto; na — não; kasyacit — de ninguém; droham — inveja; ācaret — alguém deve agir; saḥ — uma pessoa (Kaṁsa); tathā-­vidhaḥ — que foi aconselhada dessa maneira (por Vasudeva); ātmanaḥ — seu próprio; kṣemam — bem-estar; anvicchan — se ela deseja; drogdhuḥ — de alguém que inveja os outros; vai — na verdade; para­taḥ — dos outros; bhayam — há motivo de sentir temor.

Tradução

Portanto, como as atividades ímpias e invejosas causam um corpo no qual se sofre na vida seguinte, por que alguém deveria agir impie­dosamente? Para o seu próprio bem-estar, a pessoa não deve invejar ninguém, pois a pessoa invejosa sempre deverá temer ser hostilizada por seus inimigos, nesta vida ou na próxima.

Comentário

SIGNIFICADO—Em vez de procederem como inimigas de outras entidades vivas, as pessoas devem agir piedosamente, ocupando-se no serviço ao Senhor Supremo, evitando assim uma situação desastrosa tanto nesta vida quanto na próxima. Com relação a isso, a seguinte instrução moral do grande político Cāṇakya Paṇḍita é muito significativa:

tyaja durjana-saṁsargaṁ
bhaja sādhu-samāgamam
kuru puṇyam aho rātraṁ
smara nityam anityatām

Deve-se fugir da companhia de diabos, demônios e não-devotos, e sempre deve-se buscar a associação de devotos e pessoas santas. Convém agir sempre piedosamente, sabendo que esta vida é temporária, e não se deixar influenciar por felicidade e aflição temporá­rias. O movimento da consciência de Kṛṣṇa está ensinando a toda a sociedade humana este princípio de tornar-se consciente de Kṛṣṇa e, assim, resolver para sempre os problemas da vida (tyaktvā dehaṁ punar janma naiti mām eti so ’rjuna).

Texto

eṣā tavānujā bālā
kṛpaṇā putrikopamā
hantuṁ nārhasi kalyāṇīm
imāṁ tvaṁ dīna-vatsalaḥ

Sinônimos

eṣā — esta; tava — tua; anujā — irmã caçula; bālā — mulher inocente; kṛpaṇā — completamente dependente de ti; putrikā-upamā — tal qual tua própria filha; hantum — matá-la; na — não; arhasi — mereces; kalyāṇīm — que está sob tua afeição; imām — a ela; tvam — tu; dīna­vatsalaḥ — muito compassivo com os pobres e os inocentes.

Tradução

Sendo tua irmã caçula, esta pobre jovem Devakī deve ser tratada como tua própria filha, e precisa receber muito afeto. És misericordioso e, portanto, não deves matá-la. Na verdade, ela merece tua afeição.

Texto

śrī-śuka uvāca
evaṁ sa sāmabhir bhedair
bodhyamāno ’pi dāruṇaḥ
na nyavartata kauravya
puruṣādān anuvrataḥ

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; evam — dessa maneira; saḥ — ele (Kaṁsa); sāmabhiḥ — pela tentativa de apaziguá-lo (Kaṁsa); bhedaiḥ — pelas instruções morais de que não se deve ser cruel com ninguém; bodhyamānaḥ api — mesmo sendo apaziguado; dāruṇaḥ — aquele que era o mais terrivelmente cruel; na nyavartata — não pôde ser demovido (da ação hedionda); kauravya — ó Mahārāja Parīkṣit; puruṣa-adān — os Rākṣasas, canibais; anuvrataḥ — seguindo seus passos.

Tradução

Śukadeva Gosvāmī continuou: Ó melhor da dinastia Kuru, Kaṁsa era terrivelmente cruel e um autêntico seguidor dos Rākṣasas. Por­tanto, as boas instruções de Vasudeva não podiam apaziguá-lo nem o amedrontar. Ele não se importava com os resultados das ativida­des pecaminosas que acaso cometesse nesta ou na próxima vida.

Texto

nirbandhaṁ tasya taṁ jñātvā
vicintyānakadundubhiḥ
prāptaṁ kālaṁ prativyoḍhum
idaṁ tatrānvapadyata

Sinônimos

nirbandham — determinação para fazer algo; tasya — dele (Kaṁsa); tam — aquela (determinação); jñātvā — entendendo; vicintya — pensan­do profundamente; ānakadundubhiḥ — Vasudeva; prāptam — chegara; kālam — perigo de morte iminente; prativyodhum — para dissuadi-lo de executar essas atividades; idam — isto; tatra — em seguida; anvapadyata — pensou em outros métodos.

Tradução

Ao ver que Kaṁsa estava determinado a matar sua irmã Devakī, Vasudeva pensou consigo mesmo com grande profundidade. Considerando o perigo da morte iminente, ele arquitetou outro plano para dissuadir Kaṁsa.

Comentário

SIGNIFICADO—Embora testemunhasse o perigo iminente de que sua esposa Devakī poderia ser morta, Vasudeva estava convicto do seu bem-estar porque, na hora do seu nascimento, os semideuses tocaram tambores e timbales. Portanto, ele tentou outra maneira de salvar Devakī.

Texto

mṛtyur buddhimatāpohyo
yāvad buddhi-balodayam
yady asau na nivarteta
nāparādho ’sti dehinaḥ

Sinônimos

mṛtyuḥ — morte; buddhi-matā — por uma pessoa inteligente; apohyaḥ — deve ser evitada; yāvat — enquanto; buddhi-bala-udayam — a inteligência e a força física estiverem presentes; yadi — se; asau — essa (morte); na nivarteta — não pode ser impedida; na — não; aparādhaḥ — ofensa; asti — existe; dehinaḥ — da pessoa que está em risco de morte.

Tradução

Enquanto tiver inteligência e força corpórea, a pessoa deve tentar evitar a morte. É esse o dever de toda pessoa corporificada. Mas se, apesar de todos os esforços, a morte torna-se inevitável, a pessoa que se defronta com a morte não comete ofensa alguma.

Comentário

SIGNIFICADO—É natural que, ao defrontar-se com a morte extemporânea, a pessoa faça tudo para salvar-se. Esse é o seu dever. Embora a morte seja certa, todos devem tentar evitá-la e não aceitar a morte passivamente, porque toda alma vivente é eterna por natureza. Porque a morte é uma punição imposta àqueles que estão condenados à existência ma­terial, a cultura védica baseia-se em evitar a morte (tyaktvā dehaṁ punar janma naiti). Todos devem valer-se do cultivo da vida espiri­tual e evitar a morte, e ninguém deve submeter-se à morte sem lutar pela sobrevivência. Aquele que não tenta acabar com a morte não é um ser humano inteligente. Visto que Devakī estava face a face com a morte iminente, era dever de Vasudeva salvá-la, como ele de fato o tentava na medida de suas forças. Portanto, ele decidiu descobrir outra maneira de aproximar-se de Kaṁsa para que Deva­kī fosse salva.

Texto

pradāya mṛtyave putrān
mocaye kṛpaṇām imām
sutā me yadi jāyeran
mṛtyur vā na mriyeta cet
viparyayo vā kiṁ na syād
gatir dhātur duratyayā
upasthito nivarteta
nivṛttaḥ punar āpatet

Sinônimos

pradāya — prometendo entregar; mṛtyave — a Kaṁsa, quem, para Devakī, é a morte personificada; putrān — meus filhos; mocaye — estou libertando-a do perigo iminente; kṛpaṇām — inocente; imām — De­vakī; sutāḥ — filhos; me — meus; yadi — se; jāyeran — devem nascer; mṛtyuḥ — Kaṁsa; — ou; na — não; mriyeta — deve morrer; cet — se; viparyayaḥ — exatamente o oposto; — ou; kim — se; na — não; syāt — pode acontecer; gatiḥ — o movimento; dhātuḥ — da providên­cia; duratyayā — muito difícil de entender; upasthitaḥ — aquilo que atualmente é obtido; nivarteta — pode impedir; nivṛttaḥ — a morte de Devakī sendo impedida; punaḥ āpatet — no futuro pode voltar a acontecer (mas o que posso fazer?).

Tradução

Vasudeva ponderou: Entregando todos os meus filhos a Kaṁsa, que é a morte personificada, salvarei a vida de Devakī. Talvez Kaṁsa morra antes de que meus filhos nasçam, ou, uma vez que ele já está destinado a morrer nas mãos de meu filho, um de meus filhos pode­rá matá-lo. Por enquanto, é melhor que eu prometa entregar meus filhos para que Kaṁsa desista de sua ameaça imediata, e se, no de­correr do tempo, Kaṁsa morrer, nada terei a temer.

Comentário

SIGNIFICADO—Vasudeva queria salvar a vida de Devakī, prometendo entregar seus filhos a Kaṁsa. “No futuro”, pensava ele, “Kaṁsa poderá morrer, ou talvez eu não gere nenhum filho. Mesmo que nasça um filho e eu o entregue a Kaṁsa, Kaṁsa pode morrer em suas mãos, pois, através da ação da providência, tudo pode acontecer. É muito difícil entender como as coisas são determinadas pela providência.” Assim, Vasudeva decidiu que prometeria entregar seus filhos nas mãos de Kaṁsa para salvar Devakī do perigo da morte iminente.

Texto

agner yathā dāru-viyoga-yogayor
adṛṣṭato ’nyan na nimittam asti
evaṁ hi jantor api durvibhāvyaḥ
śarīra-saṁyoga-viyoga-hetuḥ

Sinônimos

agneḥ — de um fogo na floresta; yathā — como; dāru — da madei­ra; viyoga-yogayoḥ — tanto a fuga quanto a captura; adṛṣṭataḥ — do que a providência invisível; anyat — alguma outra razão ou casualidade: na — não; nimittam — uma causa; asti — existe; evam — dessa maneira; hi — decerto; jantoḥ — do ser vivo; api — na verdade; durvibhāvyaḥ — não pode ser encontrada; śarīra — do corpo; saṁyoga — da aceitação; viyoga — ou do abandono; hetuḥ — a causa.

Tradução

Quando o fogo, por alguma razão desconhecida, salta um pedaço de madeira e incendeia o próximo, o fator que causa isso é o destino. Igualmente, quando o ser vivo aceita uma classe de corpo e se desfaz de outro, a única razão de tudo isso é o destino invisível.

Comentário

SIGNIFICADO—Quando acontece um incêndio em uma vila, o fogo às vezes salta uma casa e queima a outra. Igualmente, quando há um incêndio na flo­resta, o fogo às vezes salta uma árvore e queima a outra. Ninguém pode dizer o motivo pelo qual isso acontece. Alguém pode formular alguma razão imaginária na tentativa de explicar o motivo pelo qual uma árvore ou uma casa mais perto não pegaram fogo, ao passo que uma árvore ou uma casa em um lugar distante pegaram, mas, na verdade, a razão é o destino. Essa razão também se aplica à trans­migração da alma, devido à qual alguém que, em determinada vida, é primeiro-ministro pode, na próxima vida, tornar-se um cachorro. O tra­balho do destino invisível não pode ser averiguado pelo conhecimento experimental prático, de modo que todos devem contentar-se em saber que tudo é feito pela providência suprema.

Texto

evaṁ vimṛśya taṁ pāpaṁ
yāvad-ātmani-darśanam
pūjayām āsa vai śaurir
bahu-māna-puraḥsaram

Sinônimos

evam — dessa maneira; vimṛśya — após contemplar; tam — a Kaṁsa; pāpam — o pecaminosíssimo; yāvat — tanto quanto possível; ātmani-­darśanam — com toda a inteligência de que dispunha; pūjayām āsa — louvou; vai — na verdade; śauriḥ — Vasudeva; bahu-māna — oferecendo todo o respeito; puraḥsaram — diante dele.

Tradução

Após considerar o assunto até onde seu conhecimento lhe permitia chegar, Vasudeva, com muito respeito, apresentou sua proposta ao pecaminoso Kaṁsa.

Texto

prasanna-vadanāmbhojo
nṛśaṁsaṁ nirapatrapam
manasā dūyamānena
vihasann idam abravīt

Sinônimos

prasanna-vadana-ambhojaḥ — Vasudeva, que aparentava estar muito feliz; nṛśaṁsam — ao crudelíssimo; nirapatrapam — o descarado Kaṁsa; manasā — com a mente; dūyamānena — que estava cheia de ansiedade e pesar; vihasan — esboçando um sorriso; idam abravīt — e falou o seguinte.

Tradução

A mente de Vasudeva encheu-se de ansiedade porque sua esposa corria perigo, mas, para satisfazer o cruel, descarado e pecaminoso Kaṁsa, ele esboçou um sorriso e lhe falou as seguintes palavras.

Comentário

SIGNIFICADO—Às vezes, em uma situação perigosa, alguém pode disfarçar seus sen­timentos, assim como agiu Vasudeva, que queria salvar sua esposa. O mundo material é complexo, e, para executar seus deveres, a pessoa não pode deixar de adotar atitudes diplomáticas. Vasudeva fez tudo o que podia para salvar sua esposa, pois ela deveria gerar Kṛṣṇa. Isso indica que, com o propósito de salvar Kṛṣṇa e Seus inte­resses, pode-se agir com duplicidade. De acordo com a predição, Kṛṣṇa apareceria através de Vasudeva e Devakī para matar Kaṁsa. Vasudeva, portanto, deveria fazer tudo para contornar a atual situa­ção. Embora todos os eventos já estivessem pré-estabelecidos por Kṛṣṇa, o devoto deve esforçar-se ao máximo para cumprir o pro­pósito de Kṛṣṇa. O próprio Kṛṣṇa é todo-poderoso, mas isso não quer dizer que o devoto deva, portanto, sentar-se tranquilamente e deixar tudo nas mãos dEle. Essa instrução também se encontra na Bhagavad-gītā. Embora Kṛṣṇa estivesse fazendo tudo para Arjuna, Arjuna nunca se deixou ficar indolente, como um cavalheiro não-­violento. Em vez disso, ele envidou todos os esforços na batalha para sair vitorioso.

Texto

śrī-vasudeva uvāca
na hy asyās te bhayaṁ saumya
yad vai sāhāśarīra-vāk
putrān samarpayiṣye ’syā
yatas te bhayam utthitam

Sinônimos

śrī-vasudevaḥ uvāca — Śrī Vasudeva disse; na — não; hi — na verdade; asyāḥ — de Devakī; te — teu; bhayam — medo; saumya — ó pessoa das mais sóbrias; yat — que; vai — na verdade; — aquele presságio; āha — proferiu; a-śarīra-vāk — uma vibração sem um corpo; putrān — todos os meus filhos; samarpayiṣye — entregarei a ti; asyāḥ — dela (Devakī); yataḥ — de quem; te — teu; bhayam — medo; utthitam — surgiu.

Tradução

Vasudeva disse: Ó melhor dos homens sóbrios, não precisas temer tua irmã Devakī em razão do que ouviste do presságio de fonte invisível. A causa da tua morte serão os filhos dela. Portanto, prometo que, quando ela der à luz os filhos de quem teu medo surgiu, entregarei todos eles em tuas mãos.

Comentário

SIGNIFICADO—Kaṁsa temia a existência de Devakī porque, após sua oitava gravidez, ela daria à luz um filho que o mataria. Vasudeva, portanto, para dar ao seu cunhado a máxima segurança, prometeu levar-lhe todos os filhos. Ele não esperaria pelo oitavo filho, senão que, desde o começo, entregaria nas mãos de Kaṁsa todos os filhos que Devakī desse à luz. Essa foi uma proposta muito liberal que Vasudeva ofe­receu a Kaṁsa.

Texto

śrī-śuka uvāca
svasur vadhān nivavṛte
kaṁsas tad-vākya-sāra-vit
vasudevo ’pi taṁ prītaḥ
praśasya prāviśad gṛham

Sinônimos

śrī-śukaḥ uvāca — Śrī Śukadeva Gosvāmī disse; svasuḥ — de sua irmã (Devakī); vadhāt — do ato de matar; nivavṛte — impedido por enquanto; kaṁsaḥ — Kaṁsa; tat-vākya — as palavras de Vasudeva; sāra-vit — sabendo que eram perfeitamente corretas; vasudevaḥ — Vasudeva; api — também; tam — a ele (Kaṁsa); prītaḥ — estando satisfeito; praśasya — continuando a apaziguar; prāviśat gṛham — entrou em sua própria casa.

Tradução

Śrīla Śukadeva Gosvāmī prosseguiu: Kaṁsa concordou com os argumentos lógicos de Vasudeva e, tendo plena fé nas palavras de Vasudeva, desistiu de matar sua irmã. Vasudeva, estando satisfeito com Kaṁsa, continuou apaziguando-o e entrou em sua própria casa.

Comentário

SIGNIFICADO—Embora fosse um demônio pecaminoso, Kaṁsa acreditava que Vasudeva jamais faltaria com sua palavra. O caráter de um devoto puro como Vasudeva é tal que até mesmo um demônio do porte de Kaṁsa acreditou firmemente em suas palavras e ficou satisfeito. Yasyāsti bhaktir bhagavaty akiñcanā sarvair guṇais tatra samāsate surāḥ. (Śrīmad-Bhāgavatam 5.18.12) Todos os bons atributos estão presentes no devoto, tanto que até mesmo Kaṁsa acreditou piamente nas palavras de Vasudeva.

Texto

atha kāla upāvṛtte
devakī sarva-devatā
putrān prasuṣuve cāṣṭau
kanyāṁ caivānuvatsaram

Sinônimos

atha — em seguida; kāle — no decorrer do tempo; upāvṛtte — quando estava maduro; devakī — Devakī, a esposa de Vasudeva, o pai de Kṛṣṇa; sarva-devatā — Devakī, a quem todos os semideuses e o próprio Deus apareceram; putrān — filhos; prasuṣave — deu à luz; ca — e; aṣṭau — oito; kanyāṁ ca — e uma filha chamada Subhadrā; eva — na verdade; anuvatsaram — ano após ano.

Tradução

Em seguida, todo ano, no devido tempo, Devakī, a mãe de Deus e de todos os semideuses, dava à luz uma criança. Assim, ela gerou oito filhos, um após o outro, e uma filha chamada Subhadrā.

Comentário

SIGNIFICADO—O mestre espiritual às vezes é glorificado como sarva-devamayo guruḥ. (Śrīmad-Bhāgavatam 11.17.27) Pela graça do guru, o mestre espiritual, alguém pode entender as diferentes classes de devas. A palavra deva se refere­ a Deus, a Personalidade Suprema, que é a fonte da qual se origi­nam todos os semideuses, que também são chamados devas. Na Bhagavad-gītā (10.2), o Senhor diz que aham ādir hi devānām: “Eu sou a fonte de todos os devas.” O Senhor Supremo, Viṣṇu, a Pessoa Original, expande-Se em diferentes formas. Tad aikṣata bahu syām (Chāndogya Upaniṣad 6.2.3). Sozinho, Ele Se expandiu em muitos. Advaitam acyutam anādim ananta-rūpam (Brahma-saṁhitā 5.33). Existem diferentes graus de formas, conhecidas como svāṁśa e vibhin­nāṁśa. As expansões svāṁśa, ou viṣṇu-tattva, são a Suprema Perso­nalidade de Deus, ao passo que vibhinnāṁśa são jīva-tattva, partes integrantes do Senhor (mamaivāṁśo jīva-loke jīva-bhūtaḥ sanāta­naḥ). Se aceitamos Kṛṣṇa como a Suprema Personalidade de Deus e O adoramos, todas as partes e expansões do Senhor são automati­camente adoradas. Sarvārhaṇam acyutejyā. (Śrīmad-Bhāgavatam 4.31.14) Kṛṣṇa é conhecido como Acyuta (senayor ubhayor madhye rathaṁ sthāpaya me ’cyuta). Adorando Acyuta, Kṛṣṇa, a pessoa automaticamente adora todos os semideuses. Não há necessidade de adorar separada­mente o viṣṇu-tattva ou o jīva-tattva. Se alguém se concentra em Kṛṣṇa, adora a todos. Portanto, como deu à luz Kṛṣṇa, mãe Devakī é descrita como sarva-devatā neste trecho.

Texto

kīrtimantaṁ prathamajaṁ
kaṁsāyānakadundubhiḥ
arpayām āsa kṛcchreṇa
so ’nṛtād ativihvalaḥ

Sinônimos

kīrtimantam — chamado Kīrtimān; prathama-jam — o bebê primogênito; kaṁsāya — a Kaṁsa; ānakadundubhiḥ — Vasudeva; arpayām āsa — entregou; kṛcchreṇa — com muita dor; saḥ — ele (Vasudeva); anṛtāt — de quebrar a promessa, ou de passar por mentiroso; ati­vihvalaḥ — estava muito perturbado, sentindo medo.

Tradução

O medo de tornar-se um mentiroso por quebrar sua promessa perturbava profundamente Vasudeva. Assim, com muita dor, ele entregou nas mãos de Kaṁsa seu filho primogênito, chamado Kīrtimān.

Comentário

SIGNIFICADO—No sistema védico, ao nascer uma criança, especialmente um menino, o pai convoca os brāhmaṇas eruditos e, de acordo com a descrição do horóscopo da criança, ela imediatamente recebe um nome. Essa cerimônia se chama nāma-karaṇa. Existem dez diferentes saṁs­kāras, ou métodos reformatórios, adotados no sistema de varṇāśrama-dharma, e a cerimônia na qual se recebe o nome é um deles. Embora o primeiro filho de Vasudeva devesse ser entregue nas mãos de Kaṁsa, a cerimônia nāma-karaṇa foi realizada, e assim a criança foi chamada Kīrtimān. Esses nomes são dados logo após o nascimento.

Texto

kiṁ duḥsahaṁ nu sādhūnāṁ
viduṣāṁ kim apekṣitam
kim akāryaṁ kadaryāṇāṁ
dustyajaṁ kiṁ dhṛtātmanām

Sinônimos

kim — o que é; duḥsaham — doloroso; nu — na verdade; sādhūnām — para pessoas santas; viduṣām — das pessoas eruditas; kim apekṣitam — qual a dependência; kim akāryam — que é trabalho proibido; kadaryāṇām — das pessoas do mais baixo grau; dustyajam — muito difícil de abandonar; kim — o que é; dhṛta-ātmanām — das pessoas que são autorrealizadas.

Tradução

O que poderia causar dor a pessoas santas que aderem estritamente à verdade? Como não haveria independência para os devotos puros que conhecem o Senhor Supremo como a substância? Que feitos são proibidos para pessoas do mais baixo caráter? E acaso existe algo que as pessoas que se renderam por completo aos pés de lótus do Senhor Kṛṣṇa não sejam capazes de abandonar em prol dEle?

Comentário

SIGNIFICADO—Uma vez que somente o oitavo filho de Devakī é quem mataria Kaṁsa, pode-se perguntar que necessidade haveria de Vasudeva entregar o filho primogênito. A resposta é que Vasudeva prometera a Kaṁsa que lhe entregaria todos os filhos nascidos de Devakī. Kaṁsa, sendo um asura, não acreditava que apenas o oitavo filho o mataria; ele tinha certeza de que poderia ser morto por qualquer filho de Deva­kī. Vasudeva, portanto, para salvar Devakī, prometeu dar a Kaṁsa todos os filhos, meninos ou meninas. De outro ponto de vista, Vasu­deva e Devakī ficaram muito satisfeitos quando entenderam que a Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa, viria como o oitavo filho deles. Vasudeva, um devoto puro do Senhor, estava ansioso por ver Kṛṣṇa aparecer como seu filho através da oitava gravidez de Deva­kī. Portanto, ele queria entregar todos os filhos rapidamente para que, na oitava vez, Kṛṣṇa aparecesse. Ele gerou um filho cada ano para que Kṛṣṇa aparecesse e viesse o mais rápido possível.

Texto

dṛṣṭvā samatvaṁ tac chaureḥ
satye caiva vyavasthitim
kaṁsas tuṣṭa-manā rājan
prahasann idam abravīt

Sinônimos

dṛṣṭvā — vendo; samatvam — sendo equânime, imperturbável na aflição ou felicidade; tat — isto; śaureḥ — de Vasudeva; satye — na veracidade; ca — na verdade; eva — decerto; vyavasthitim — a situação firme; kaṁsaḥ — Kaṁsa; tuṣṭa-manāḥ — estando muito satisfeito (com o comportamento de Vasudeva ao entregar o primeiro filho para manter sua promessa); rājan — ó Mahārāja Parīkṣit; prahasan — com um rosto sorridente; idam — isto; abravīt — disse.

Tradução

Meu querido rei Parīkṣit, ao ver que Vasudeva, mostrando veraci­dade, teve a tranquilidade de dar-lhe a criança, Kaṁsa ficou muito feliz. Portanto, com um rosto sorridente, ele falou o seguinte.

Comentário

SIGNIFICADO—Neste verso, a palavra samatvam é muito significativa. Samatvam refere-se àquele que é sempre equânime, que não se deixa afetar pela felicidade ou aflição. Vasudeva estava tão firmemente equânime que não parecia nem um pouco agitado quando entregou seu filho primogênito para ser morto nas mãos de Kaṁsa. Na Bhagavad-gītā (2.56), afirma-se que duḥkheṣv anudvigna-manāḥ sukheṣu vigata-spṛhaḥ. Ninguém deve almejar a felicidade material nem deve se deixar perturbar pela aflição material. O Senhor Kṛṣṇa aconselhou a Arjuna:

mātrā-sparśās tu kaunteya
śītoṣṇa-sukha-duḥkha-dāḥ
āgamāpāyino ’nityās
tāṁs titikṣasva bhārata

“Ó filho de Kuntī, o aparecimento temporário da felicidade e da aflição, e o seu desaparecimento no devido tempo, são como o aparecimento e o desaparecimento das estações de inverno e verão. Eles surgem da percepção sensorial, ó descendente de Bharata, e precisa-se aprender a tolerá-los sem se perturbar.” (Bhagavad-gītā 2.14) A alma autorrealizada jamais se deixa perturbar pela aparente aflição ou felicidade, e isso é especialmente verdadeiro no caso de um devoto grandioso como Vasudeva, que mostrou isso na prática através de seu exemplo. Vasudeva não ficou perturbado de modo algum quando entregou seu primeiro filho a Kaṁsa para ser morto.

Texto

pratiyātu kumāro ’yaṁ
na hy asmād asti me bhayam
aṣṭamād yuvayor garbhān
mṛtyur me vihitaḥ kila

Sinônimos

pratiyātu — meu querido Vasudeva, pega teu filho de volta e vai para casa; kumāraḥ — a criança recém-nascida; ayam — esta; na — não; hi — na verdade; asmāt — dela; asti — existe; me — meu; bhayam — medo; aṣṭamāt — da oitava; yuvayoḥ — de ti e de tua esposa; garbhāt — da gravidez; mṛtyuḥ — morte; me — minha; vihitaḥ — foi ordenada; kila — na verdade.

Tradução

Ó Vasudeva, podes pegar de volta o teu filho e ir para casa. Não temo teu primeiro filho. É o oitavo filho teu e de Devakī que me preocupa porque é por aquela criança que eu estou destinado a morrer.

Texto

tatheti sutam ādāya
yayāv ānakadundubhiḥ
nābhyanandata tad-vākyam
asato ’vijitātmanaḥ

Sinônimos

tathā — muito bem; iti — assim; sutam ādāya — levando seu filho de volta; yayau — deixou aquele lugar; ānakadundubhiḥ — Vasudeva; na abhyanandata — não deu muito valor; tat-vākyam — às palavras (de Kaṁsa); asataḥ — que não tinha caráter; avijita-ātmanaḥ — nem autocontrole.

Tradução

Vasudeva concordou e levou seu filho de volta para casa, mas, como Kaṁsa não tinha caráter nem autocontrole, Vasudeva sabia que não poderia confiar na palavra de Kaṁsa.

Texto

nandādyā ye vraje gopā
yāś cāmīṣāṁ ca yoṣitaḥ
vṛṣṇayo vasudevādyā
devaky-ādyā yadu-striyaḥ
sarve vai devatā-prāyā
ubhayor api bhārata
jñātayo bandhu-suhṛdo
ye ca kaṁsam anuvratāḥ

Sinônimos

nanda-ādyāḥ — começando com Nanda Mahārāja; ye — todas essas pessoas; vraje — em Vṛndāvana; gopāḥ — os vaqueiros; yāḥ — que; ca — e; amīṣām — todos aqueles (habitantes de Vṛndāvana); ca — bem como; yoṣitaḥ — as mulheres; vṛṣṇayaḥ — membros da família Vṛṣṇi; vasudeva-ādyāḥ — encabeçados por Vasudeva; devakī-ādyāḥ — encabeçadas por Devakī; yadu-striyaḥ — todas as mulheres da dinastia de Yadu; sarve — todos eles; vai — na verdade; devatā-prāyāḥ — eram ha­bitantes do céu; ubhayoḥ — de Nanda Mahārāja e Vasudeva; api — na verdade; bhārata — ó Mahārāja Parīkṣit; jñātayaḥ — os parentes; bandhu — amigos; suhṛdaḥ — benquerentes; ye — todos os quais; ca — e; kaṁsam anuvratāḥ — muito embora aparentemente fossem seguidores de Kaṁsa.

Tradução

Os habitantes de Vṛndāvana, encabeçados por Nanda Mahārāja e incluindo seus companheiros pastores de vacas e as esposas desses, eram exatamente os cidadãos dos planetas celestiais, ó Mahārāja Parīkṣit, melhor dos descendentes de Bharata. E o mesmo é verdade para os descendentes da dinastia Vṛṣṇi, encabeçados por Vasudeva, Devakī e todas as outras mulheres da dinastia de Yadu. Os amigos, parentes e benquerentes de Nanda Mahārāja e Vasu­deva e mesmo aqueles que aparentemente agiam como seguidores de Kaṁsa eram todos semideuses.

Comentário

SIGNIFICADO—Como se mencionou anteriormente, a Suprema Personalidade de Deus, Viṣṇu, informou ao senhor Brahmā que o Senhor Kṛṣṇa des­ceria pessoalmente para mitigar o sofrimento existente na Terra. O Senhor ordenou que todos os cidadãos dos planetas celestiais nascessem em diferentes famílias das dinastias de Yadu e Vṛṣṇi e em Vṛndāvana. Agora, este verso informa-nos que todos os amigos e familiares da dinastia Yadu, da dinastia Vṛṣṇi, Nanda Mahārāja e os gopas desceram dos planetas celestiais para participar dos passatempos do Senhor. Como se confirma na Bhagavad-gītā (4.8), os passatempos do Senhor consistem em paritrāṇāya sādhūnāṁ vināśāya ca duṣkṛtām: salvar os devotos e matar os demônios. Para realizar tais atividades, o Senhor convocou os devotos que se encontravam em diferentes partes do universo.

Existem muitos devotos que são elevados aos sistemas planetários superiores.

prāpya puṇya-kṛtāṁ lokān
uṣitvā śāśvatīḥ samāḥ
śucīnāṁ śrīmatāṁ gehe
yoga-bhraṣṭo ’bhijāyate

“Após muitos e muitos anos de gozo nos planetas habitados por entidades vivas piedosas, o yogī malogrado nasce em uma família de pessoas virtuosas ou em uma família aristocrata e rica.” (Bhagavad-gītā 6.41) Alguns devotos, tendo deixado de completar o processo de ser­viço devocional, são promovidos aos planetas celestiais, para onde se elevam as pessoas piedosas, e, após desfrutarem ali, podem ser di­retamente convocados ao lugar onde acontecem os passatempos do Senhor. Quando o Senhor Kṛṣṇa estava prestes a aparecer, os cida­dãos dos planetas celestiais foram convidados a ver os passatempos do Senhor, de modo que aqui se diz que os membros das dinastias Yadu e Vṛṣṇi, bem como os habitantes de Vṛndāvana, eram semideuses ou praticamente como os semideuses. Mesmo aqueles que externamente ajudavam nas atividades de Kaṁsa pertenciam aos sistemas planetários superiores. O aprisionamento e a libertação de Vasudeva, bem como a matança de vários demônios, tudo isso eram manifestações dos passatempos do Senhor, e, como ficariam satisfeitos por verem essas atividades pessoalmente, todos os devotos foram convidados a nascer como amigos e parentes dessas famílias. Como se confirma nas orações de Kuntī (Śrīmad-Bhāgavatam 1.8.19): nato nāṭya-dharo yathā. O Senhor desempenharia o papel de matador de demônios, e de amigo, filho ou irmão de Seus devotos, daí todos esses devotos terem sido requisitados.

Texto

etat kaṁsāya bhagavāñ
chaśaṁsābhyetya nāradaḥ
bhūmer bhārāyamāṇānāṁ
daityānāṁ ca vadhodyamam

Sinônimos

etat — todas essas palavras sobre a família Yadu e a família Vṛṣṇi; kaṁsāya — ao rei Kaṁsa; bhagavān — o poderosíssimo representante da Suprema Personalidade de Deus; śaśaṁsa — informou (a Kaṁsa, que estava indeciso); abhyetya — após aproximar-se dele; nāradaḥ — o grande sábio Nārada; bhūmeḥ — sobre a superfície da Terra; bhāraya­māṇānām — daqueles que eram um fardo; daityānām ca — e dos de­mônios; vadha-udyamam — o esforço para matar.

Tradução

Certa vez, o grande santo Nārada aproximou-se de Kaṁsa e informou-lhe como as pessoas demoníacas, que eram um grande fardo para a Terra, seriam mortas. Assim, Kaṁsa ficou muito temeroso e indeciso.

Comentário

SIGNIFICADO—Já se mencionou que a mãe Terra havia implorado ao senhor Brahmā que a aliviasse da aflição criada pelos demônios opressores e que o senhor Brahmā informou-lhe que o próprio Senhor Kṛṣṇa iria aparecer. Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā (4.8):

paritrāṇāya sādhūnāṁ
vināśāya ca duṣkṛtām
dharma-saṁsthāpanārthāya
sambhavāmi yuge yuge

Sempre que há um fardo criado pelos demônios e sempre que os devotos inocentes são oprimidos pelos governantes demoníacos, o Senhor, com a assistência de Seus verdadeiros representantes, que tecnicamente são chamados de semideuses, aparece oportunamente para matar os demônios. Nas Upaniṣads, afirma-se que os semideu­ses são diversas partes da Suprema Personalidade de Deus. Assim como é dever das partes do corpo servir ao todo, é dever dos devotos de Kṛṣṇa servir a Kṛṣṇa conforme Ele deseje. A ocupação de Kṛṣṇa é matar os demônios, de modo que esta deve ser também a ocupação do devoto. Entretanto, visto que as pessoas de Kali-yuga são caídas, Śrī Caitanya Mahāprabhu, mostrando-Se bondoso com elas, não trouxe nenhuma arma para matá-las. Em vez disso, espalhando a consciência de Kṛṣṇa, o amor a Kṛṣṇa, Ele quis matar todas as suas atividades nefastas e demoníacas. É esse o objetivo do movimento da consciência de Kṛṣṇa. Enquanto atividades demoníacas forem pra­ticadas na superfície do mundo, ninguém poderá ser feliz. O programa para a alma condicionada é plenamente descrito na Bhagavad-gītā, e todos simplesmente devem seguir essas instruções para tornarem-­se felizes. Śrī Caitanya Mahāprabhu, portanto, prescreve:

harer nāma harer nāma
harer nāmaiva kevalam
kalau nāsty eva nāsty eva
nāsty eva gatir anyathā

É bom que as pessoas cantem o mantra Hare Kṛṣṇa constantemente. Então, suas tendências demoníacas serão exterminadas, e elas se tornarão devotos primorosos, felizes nesta vida e na próxima.

Texto

ṛṣer vinirgame kaṁso
yadūn matvā surān iti
devakyā garbha-sambhūtaṁ
viṣṇuṁ ca sva-vadhaṁ prati
devakīṁ vasudevaṁ ca
nigṛhya nigaḍair gṛhe
jātaṁ jātam ahan putraṁ
tayor ajana-śaṅkayā

Sinônimos

ṛṣeḥ — do grande sábio Nārada; vinirgame — com a partida (após dar informações); kaṁsaḥ — Kaṁsa; yadūn — todos os membros da dinastia Yadu; matvā — pensando em; surān — como semideuses; iti — assim; devakyāḥ — de Devakī; garbha-sambhūtam — os filhos nasci­dos do ventre; viṣṇum — (aceitando) como Viṣṇu; ca — e; sva-vadham prati — temendo morrer nas mãos de Viṣṇu; devakīm — Devakī; vasu­devam ca — e seu esposo, Vasudeva; nigṛhya — prendendo; nigaḍaiḥ — com algemas de ferro; gṛhe — confinados no lar; jātam jātam — cada um que nascia, um após o outro; ahan — matou; putram — os filhos; tayoḥ — de Vasudeva e Devakī; ajana-śaṅkayā — suspeitando que eles poderiam ser Viṣṇu.

Tradução

Após a partida do grande santo Nārada, Kaṁsa considerou que todos os membros da dinastia Yadu eram semideuses e que qualquer filho nascido do ventre de Devakī poderia ser Viṣṇu. Temendo morrer, Kaṁsa prendeu Vasudeva e Devakī e acorrentou­-os com algemas de ferro. Suspeitando que cada filho fosse Viṣṇu, Kaṁsa matou-os um após o outro, devido à profecia de que Viṣṇu o mataria.

Comentário

SIGNIFICADO—Śrīla Jīva Gosvāmī, em seus apontamentos sobre este verso, menciona como Nārada Muni deu esta informação a Kaṁsa. Este episódio é descrito no Hari-vaṁśa. Por arranjo da providência, Nārada Muni foi ter com Kaṁsa, e Kaṁsa recebeu-o muito bem. Nārada, portan­to, informou-lhe que qualquer um dos filhos de Devakī poderia ser Viṣṇu. Porque Viṣṇu o mataria, Kaṁsa não deveria poupar a vida de nenhum filho de Devakī, aconselhou Nārada Muni. A intenção de Nārada era que Kaṁsa, matando as crianças, aumentasse suas atividades pecaminosas para que Kṛṣṇa aparecesse logo e o matasse. Ao receber as instruções de Narada Muni, Kaṁsa matou seguidamente todos os filhos de Devakī.

A palavra ajana-śaṅkayā indica que o Senhor Viṣṇu nunca nasce (ajana) e que Ele, portanto, apareceu como Kṛṣṇa, nascendo exata­mente como um ser humano (mānuṣīṁ tanum āśritam). Kaṁsa tentou matar todos os bebês nascidos de Devakī e Vasudeva, embora sou­besse que, se Viṣṇu nascesse, Ele não poderia ser morto. Na verdade, aconteceu que, quando Viṣṇu apareceu como Kṛṣṇa, Kaṁsa não pôde matá-lo; ao contrário, como fora predito, foi Ele que matou Kaṁsa. Deve-se de fato saber como Kṛṣṇa, que nasce transcenden­talmente, age matando os demônios, mas nunca é morto. Quando alguém, por intermédio dos śāstras, entende perfeitamente Kṛṣṇa dessa maneira, ele se torna imortal. Como o Senhor diz na Bhagavad-gītā (4.9):

janma karma ca me divyam
evaṁ yo vetti tattvataḥ
tyaktvā dehaṁ punar janma
naiti mām eti so ’rjuna

“Aquele que conhece a natureza transcendental do Meu aparecimento e atividades, ao deixar o corpo não volta a nascer neste mundo material, senão que alcança Minha morada eterna, ó Arjuna.”

Texto

mātaraṁ pitaraṁ bhrātṝn
sarvāṁś ca suhṛdas tathā
ghnanti hy asutṛpo lubdhā
rājānaḥ prāyaśo bhuvi

Sinônimos

mātaram — à mãe; pitaram — ao pai; bhrātṝn — aos irmãos; sarvān ca — e a qualquer outra pessoa; suhṛdaḥ — aos amigos; tathā — bem como; ghnanti — eles matam (como se vê na prática); hi — na verdade; asu-tṛpaḥ — aqueles que, em troca do gozo de seus próprios sentidos, invejam a vida alheia; lubdhāḥ — cobiçosos; rājānaḥ — tais reis; prāyaśaḥ — quase sempre; bhuvi — na Terra.

Tradução

Os reis ávidos por gozo dos sentidos nesta Terra quase sempre matam indiscriminadamente seus inimigos. Para satis­fazerem seus próprios caprichos, são capazes de matar qualquer pessoa, até mesmo suas mães, pais, irmãos ou amigos.

Comentário

SIGNIFICADO—Vemos na história da Índia que Aurangzeb matou seu irmão e seus sobrinhos e aprisionou o seu pai para satisfazer suas ambições po­líticas. Há muitos exemplos semelhantes, e Kaṁsa era dessa mesma classe de reis. Kaṁsa não hesitou em matar seus sobrinhos e em aprisionar sua irmã e seu pai. O fato de os demônios praticarem essas ações não é nada espantoso. Entretanto, embora fosse um de­mônio, Kaṁsa sabia que o Senhor Viṣṇu não poderia ser morto e, assim, alcançou a salvação. Mesmo a pessoa que obtém uma compreen­são parcial das atividades do Senhor Viṣṇu qualifica-se para a salva­ção. Kaṁsa sabia um pouco sobre Kṛṣṇa – que Ele não poderia ser morto – e, portanto, alcançou a salvação, embora pensasse em Viṣṇu, Kṛṣṇa, como um inimigo seu. Então, o que dizer de alguém que, através das descrições dos śāstras, como a Bhagavad-gītā, co­nhece Kṛṣṇa perfeitamente? Logo, é dever de todos lerem a Bhagavad-gītā e compreender Kṛṣṇa perfeitamente. Isso fará exitosa a vida de qualquer pessoa.

Texto

ātmānam iha sañjātaṁ
jānan prāg viṣṇunā hatam
mahāsuraṁ kālanemiṁ
yadubhiḥ sa vyarudhyata

Sinônimos

ātmānam — pessoalmente; iha — neste mundo; sañjātam — nascido de novo; jānan — compreendendo bem; prāk — outrora, antes deste nascimento; viṣṇunā — pelo Senhor Viṣṇu; hatam — foi morto; mahā­-asuram — um grande demônio; kālanemim — chamado Kālanemi; yadubhiḥ — contra os membros da dinastia Yadu; saḥ — ele (Kaṁsa); vyarudhyata — agiu inamistosamente.

Tradução

Em seu nascimento anterior, Kaṁsa fora um grande demônio cha­mado Kālanemi, que foi morto por Viṣṇu. Ao receber essa informa­ção de Nārada, Kaṁsa passou a invejar todas as pessoas ligadas à dinastia Yadu.

Comentário

SIGNIFICADO—Aqueles que são demônios, inimigos da Suprema Personalidade de Deus, são denominados asuras. Como se afirma na Bhagavad-gītā, os asuras, devido à sua inimizade para com a Suprema Personalidade de Deus, nascem em famílias asuras vida após vida e, portanto, desli­zam rumo às mais escuras regiões infernais.

Texto

ugrasenaṁ ca pitaraṁ
yadu-bhojāndhakādhipam
svayaṁ nigṛhya bubhuje
śūrasenān mahā-balaḥ

Sinônimos

ugrasenam — a Ugrasena; ca — e; pitaram — que era seu próprio pai; yadu — da dinastia Yadu; bhoja — da dinastia Bhoja; andhaka — da dinastia Andhaka; adhipam — o rei; svayam — pessoalmente; ni­gṛhya — subjugando; bubhuje — desfrutou de; śūrasenān — todos os Estados conhecidos como Śūrasena; mahā-balaḥ — o extremamente poderoso Kaṁsa.

Tradução

Kaṁsa, o poderosíssimo filho de Ugrasena, aprisionou até mesmo o seu próprio pai, o rei das dinastias Yadu, Bhoja e Andhaka, e governou pessoalmente os Estados conhecidos como Śūrasena.

Comentário

SIGNIFICADO—O Estado conhecido como Mathurā também estava incluído dentro dos Estados conhecidos como Śūrasena.

NOTAS ADICIONAIS SOBRE ESTE CAPÍTULO

Com respeito à transmigração da alma, Śrīla Madhvācārya apresenta as seguintes informações. Quando alguém está acordado, tudo o que ele vê ou ouve é gravado na mente, que mais tarde age em sonhos para mostrar-lhe diferentes experiências, embora nos sonhos pareça que se aceitam diferentes corpos. Por exemplo, quando alguém está acordado, faz negócios e fala com clientes, e, também nos sonhos, ele encontra vários clientes, fala de negócios e faz ofertas. Madhvācārya diz, portanto, que os sonhos acontecem de acordo com aquilo que alguém vê, ouve ou recorda. É claro que, ao voltar a despertar, a pessoa se esquece do corpo que utilizou em seu sonho. Esse esque­cimento chama-se apasmṛti. Assim, estamos mudando de corpos porque ora estamos sonhando, ora estamos acordados, ora estamos esque­cidos. O fenômeno através do qual nos esquecemos do nosso corpo criado anteriormente se chama morte, e nossa atividade no corpo atual se chama vida. Após a morte, ninguém consegue lembrar-se das atividades de seu corpo anterior, imaginário ou real.

Compara-se a mente agitada à água revolta que reflete o Sol ou a Lua. Na verdade, o Sol ou a Lua refletidos na água não existem nela; entretanto, são refletidos de acordo com os movimentos da água. De modo semelhante, quando nossas mentes estão agitadas, vagamos em diferentes atmosferas materiais e recebemos diferentes classes de corpos. Isso é descrito na Bhagavad-gītā como guṇa-saṅga. Kāraṇaṁ guṇa-saṅgo ’sya. Madhvācārya diz: guṇā-nubaddhaḥ san. E Śrī Caitanya Mahāprabhu diz: brahmāṇḍa bhramite kona bhāgya­vān jīva. (Caitanya-caritāmṛta, Madhya 19.151) A entidade viva sobe e desce em todo o universo, e ora ela está no sistema planetário superior, ora nos sistemas planetários intermediário e inferior, ora ela age como se fosse um homem, um deus, um cão, uma árvore e assim por diante. Tudo isso se deve à agitação da mente. Portanto, a mente deve estar bem firme e fixa. Como se diz, sa vai manaḥ kṛṣṇa-padāravindayoḥ. A pessoa deve fixar sua mente nos pés de lótus de Kṛṣṇa e, então, ela ficará livre da agitação. Esta é a instrução do Garuḍa Purāṇa, e descreve-se o mesmo processo no Nāradīya Purāṇa. Como se afirma na Bhagavad-gītā, yānti deva­-vratā devān. Agitada, a mente vai a diferentes sistemas planetários porque está apegada a diferentes classes de semideuses, mas ninguém vai à morada da Suprema Personalidade de Deus adorando os semideuses, pois isso não é apoiado por nenhum texto védico. O homem é o arquiteto de seu próprio destino. Nesta vida humana, a pessoa tem condições favoráveis para entender sua verdadeira situação, e ela pode decidir entre perambular eternamente pelo universo ou re­gressar ao lar, regressar ao Supremo. Isso também é confirmado na Bhagavad-gītā (aprāpya māṁ nivartante mṛtyu-saṁsāra-vartmani).

O acaso não é algo que realmente exista. Quando uma árvore está queimando em um incêndio de floresta, às vezes uma árvore mais próxima é poupada e uma árvore distante se incendeia, o que pode parecer obra do acaso. De modo semelhante, tem-se a impressão de que alguém con­segue diferentes classes de corpos por acaso, mas, na verdade, ele re­cebe esses corpos devido à mente. A mente oscila entre a aceitação e a rejeição e, de acordo com a aceitação e rejeição exercidas pela mente, recebemos diferente classe de corpos, embora tenha-se a im­pressão de que obtemos esses corpos por acaso. Mesmo que aceite­mos a teoria do acaso, a causa imediata para a mudança de corpo é a agitação da mente.

Notas sobre aṁśa. Este capítulo descreve que Kṛṣṇa apareceu aṁśena, com Suas partes integrantes ou Sua manifestação parcial. A esse respeito, Śrīdhara Svāmī diz que Kṛṣṇa é cem por cento Bha­gavān (kṛṣṇas tu bhagavān svayam). Todavia, devido às nossas imperfeições, não podemos apreciar Kṛṣṇa por completo, de modo que tudo o que Kṛṣṇa apresentou durante Sua presença na Terra era apenas uma manifestação parcial de Sua opulência. Kṛṣṇa também apareceu com Sua expansão plenária, Baladeva. No entanto, Kṛṣṇa é completo; não há possibilidade de Ele aparecer parcialmente. No Vaiṣṇava-toṣaṇī, Śrīla Sanātana Gosvāmī diz que aceitar que Kṛṣṇa Se manifestou parcialmente contradiria a afirmação kṛṣṇas tu bhagavān svayam. Śrīla Jīva Gosvāmī diz que a palavra aṁśena significa que Kṛṣṇa apareceu com todas as Suas expansões plenárias. As palavras aṁśena viṣṇoḥ não querem dizer que Kṛṣṇa é um representante parcial de Viṣṇu. Em vez disso, Kṛṣṇa apareceu por completo, e Ele Se mani­festa parcialmente nos Vaikuṇṭhalokas. Em outras palavras, o Senhor Viṣṇu é uma representação parcial de Kṛṣṇa; não é Kṛṣṇa que é uma representação parcial de Viṣṇu. No Caitanya-caritāmṛta, Ādi-līlā, capítulo quatro, esse assunto é explicado muito claramente. Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura também sublinha que ninguém pode descrever Kṛṣṇa na íntegra. Quaisquer descrições que encontre­mos no Śrīmad-Bhāgavatam são explicações parciais a respeito de Kṛṣṇa. Em conclusão, portanto, a palavra aṁśena indica que o Senhor Viṣṇu é uma representação parcial de Kṛṣṇa, e não que Kṛṣṇa é uma representação parcial de Viṣṇu.

O Vaiṣṇava-toṣaṇī de Śrīla Sanātana Gosvāmī explica a palavra dharma-śīlasya. O significado exato de dharma-śīla é “um devoto inadulterado”. O verdadeiro dharma consiste em rendição plena a Kṛṣṇa (sarva-dharmān parityajya mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja). Alguém que se rendeu completamente a Kṛṣṇa é um religioso autêntico. Uma dessas pessoas religiosas foi Mahārāja Parīkṣit. Todo aquele que aceita o princípio de rendição aos pés de lótus do Senhor, aban­donando todos os outros sistemas de religião, é de fato dharma-śīla, perfeitamente religioso.

A palavra nivṛtta-tarṣaiḥ aplica-se a alguém que deixou de ter desejos materiais (sarvopādhi-vinirmuktam). Devido à contaminação neste mundo material, talvez alguém tenha muitos desejos materiais, mas, quando está completamente livre de todos os desejos materiais, ele é chamado nivṛtta-tṛṣṇa, o que indica que ele deixou de ter sede de gozo material. Svāmin kṛtārtho ’smi varaṁ na yāce (Hari-bhakti-sudhodaya). As pessoas materialistas querem algum lucro a partir da execução do serviço devocional, mas não é esse o propósito do serviço. A perfei­ção do serviço devocional baseia-se na completa rendição aos pés de lótus de Kṛṣṇa, sem desejos materiais. Aquele que leva a efeito essa rendição já está liberado. Jīvan-muktaḥ sa ucyate. Aquele que, em qualquer condição em que possa viver, sempre se ocupa em servir a Kṛṣṇa, é tido como liberado, mesmo na vida atual. Semelhante pessoa, sendo um devoto puro, não precisa mudar de corpo; na ver­dade, ele não possui corpo material, pois seu corpo já foi espiritua­lizado. Uma barra de ferro mantida constantemente dentro do fogo acabará virando fogo, e queimará tudo aquilo em que ela tocar. Do mesmo modo, o devoto puro está no fogo da existência espiritual, e, portanto, seu corpo é cin-maya, ou seja, ele é espiritual, e não mate­rial, porque o devoto puro tem apenas o desejo transcendental de servir ao Senhor. No verso quatro, utiliza-se a palavra upagīyamānāt: nivṛtta-tarṣair upagīyamānāt. Quem é que, não sendo devoto, cantará as glórias do Senhor? Portanto, a palavra nivṛtta-tarṣaiḥ refere-se ao devoto, e a nenhuma outra pessoa. Essas afirmações são de ācāryas como Vīrarāghava Ācārya e Vijayadhvaja. Desejar algo que não é serviço devocional dificultará a alguém libertar-se dos desejos materiais; porém, ao livrar-se desses desejos, ele se chamará nivṛtta-tarṣaiḥ.

Vinā paśu-ghnāt. A palavra paśu significa “animal”. Um matador de animais, paśu-ghna, não pode ingressar na consciência de Kṛṣṇa. Em nosso movimento da consciência de Kṛṣṇa, portanto, a matança de animais é estritamente proibida.

Uttamaśloka-guṇānuvādāt. A palavra uttamaśloka significa “aquele que é famoso como o melhor entre os bondosos”. O Senhor é bom em todas as circunstâncias. Essa é a Sua reputação natural. Sua bondade é ilimitada, e Ele a usa ilimitadamente. O devoto, às vezes, é descrito como uttamaśloka, significando que ele está ansioso por glorificar a Suprema Personalidade de Deus ou os devotos do Senhor. Glorifi­car o Senhor e glorificar os devotos do Senhor são atos idênticos. Ou, melhor dizendo, glorificar o devoto é mais importante do que glori­ficar diretamente o Senhor. Narottama Dāsa Ṭhākura explica este fato: chāḍiyā vaiṣṇava-sevā, nistāra pāyeche kebā. Ninguém pode libertar-se da contaminação material a não ser que sirva sinceramente a um devoto de Kṛṣṇa.

Bhavauṣadhāt significa “do remédio universal”. Cantar o santo nome e glorificar o Senhor Supremo são o remédio universal para acabar com todos os sofrimentos da vida material. As pessoas que dese­jam livrar-se deste mundo material chamam-se mumukṣu. Tais pessoas podem entender os sofrimentos da vida material e, glorificando as atividades do Senhor, podem libertar-se de todos esses sofrimentos. As vibrações sonoras transcendentais, relativas ao nome, fama, forma, qualidades e parafernália do Senhor, não são diferentes do Senhor. Portanto, a própria vibração sonora da glorificação e do nome do Senhor agrada os ouvidos, e, compreendendo a natureza absoluta do nome, forma e qualidades do Senhor, o devoto se torna jubiloso. Entretanto, mesmo aqueles que não são devotos podem desfrutar das agradáveis narrações das atividades transcendentais do Senhor. Mesmo as pessoas comuns que não são muito avançadas em cons­ciência de Kṛṣṇa sentem prazer em descrever as narrações reproduzidas no Śrīmad-Bhāgavatam. Ao receber essa purificação, o materialista ocupa-se em ouvir e cantar as glórias do Senhor. A glorificação dos passatempos do Senhor é muito agradável ao ouvido e ao cora­ção do devoto, motivo pelo qual, para ele, ela é simultaneamente o ponto de partida e o ponto de chegada.

Neste mundo, existem três categorias de homem: aqueles que são liberados, aqueles que tentam libertar-se, e aqueles enredados no gozo dos sentidos. Dessas três, aqueles que já estão liberados cantam e ouvem o santo nome do Senhor, sabendo perfeitamente que glori­ficar o Senhor é a única maneira de manter alguém em uma posição trans­cendental. Aqueles que estão tentando libertar-se, ou seja, a segunda classe, podem considerar o processo de cantar e ouvir o santo nome do Senhor como um meio de liberação, e também sentirão o prazer transcendental desse canto. Quanto aos karmīs e às pessoas ocupadas no gozo dos sentidos, eles também podem sentir prazer em ouvir os passatempos do Senhor, como, por exemplo, os episódios em que Ele luta no campo de batalha de Kurukṣetra e dança em Vṛndāvana com as gopīs.

A palavra uttamaśloka-guṇānuvāda refere-se às qualidades transcendentais do Senhor Supremo, tais como Sua afeição por mãe Yaśodā e Seus amigos vaqueirinhos, e Sua atitude amorosa para com as gopīs. Devotos do Senhor, como Mahārāja Yudhiṣṭhira, também são descritos pela qualificação uttamaśloka-guṇānuvāda. A palavra anuvāda aplica-se à descrição das qualidades do Senhor Supremo ou de Seus devotos. Quando essas qualidades são descritas, outros devotos interessam-se em ouvi-las. Quanto mais alguém se interes­sa em ouvir essas qualidades transcendentais, mais desfruta transcendentalmente. Todos, portanto, incluindo os mumukṣus, os vimuktas e os karmīs, devem cantar e ouvir as glórias do Senhor, e, dessa maneira, todos se beneficiarão.

Embora a vibração sonora das qualidades transcendentais do Senhor traga a todos o mesmo benefício, para aqueles que são muktas, liberados, ela é especialmente agradável. Como se descreve no Śrīmad­-Bhāgavatam, oitavo canto, terceiro capítulo, verso vinte, porque se rendem plenamente aos pés de lótus do Senhor, os devotos puros, que deixaram de sentir desejos materiais, sempre mergulham no oceano de bem-aventurança, cantando e ouvindo o santo nome do Senhor. De acordo com esse verso, devotos como Nārada e outros habitantes de Śvetadvīpa, são sempre vistos ocupados em cantar o santo nome do Senhor porque, através desse processo, eles sempre permanecem bem-aventurados interna e externamente. Os mumukṣus, aqueles que desejam libertar-se, não dependem dos prazeres dos sentidos, senão que se concentram plenamente em libertar-se, cantando o santo nome do Senhor. Os karmīs gostam de criar algo agradável a seus ouvidos e corações e, embora às vezes gostem de cantar ou ouvir as glórias do Senhor, agem com receio. Os devotos, entretanto, sempre ouvem, cantam e lembram as atividades do Senhor esponta­neamente e, através desse processo, ficam plenamente satisfeitos, muito embora haja quem as veja como tópicos de gozo dos senti­dos. Pelo simples fato de ouvir as narrações transcendentais das ati­vidades do Senhor, Parīkṣit Mahārāja libertou-se. Portanto, ele era śrotramano-’bhirāma, isto é, ele glorificava o processo de ouvir. Esse processo deve ser aceito por todas as entidades vivas.

Para distinguir as pessoas que são desprovidas desses prazeres transcendentais, Parīkṣit Mahārāja usa as palavras virajyeta pumān. A palavra pumān refere-se a qualquer pessoa, seja homem, seja mulher, seja alguém entre ambos. Devido à concepção de vida corpórea, estamos sujei­tos à lamentação, mas aquele que não tem essas concepções corpóreas pode sentir prazer no processo de ouvir e cantar temas transcendentais. Portanto, quem se absorve plenamente no conceito de vida corpórea na certa está se matando porque deixa de fazer progresso espiritual. Semelhante pessoa chama-se paśu-ghna. Especialmente excluídos da vida espiritual estão os caçadores de animais, que não se interes­sam em ouvir e cantar o santo nome do Senhor. Esses caçadores sempre são infelizes, tanto nesta vida quanto na próxima. Portanto, afirma-se que caçadores não devem viver nem morrer porque, para essas pessoas, viver e morrer geram problemas. Os caçadores de animais são bem diferentes dos karmīs comuns, daí serem excluídos do processo de ouvir e cantar. Vinā paśu-ghnāt. Eles não podem ser admitidos no prazer transcendental do cantar e ouvir o santo nome do Senhor.

A palavra mahā-ratha refere-se a um grande herói que pode lutar sozinho contra outros onze mil heróis, e a palavra atiratha, que é encontrada no verso cinco, refere-se àquele que pode lutar contra um número ilimitado de inimigos. Menciona-se isso no Mahābhārata da seguinte maneira:

ekādaśa-sahasrāṇi
yodhayed yas tu dhanvinām
astra-śastra-pravīṇaś ca
mahā-ratha iti smṛtaḥ
amitān yodhayed yas tu
samprokto ’tirathas tu saḥ

Esta é a descrição dada no Bṛhad-vaiṣṇava-toṣaṇī por Śrīla Sanātana Gosvāmī.

Māyā-manuṣyasya (10.1.17). Por estar coberto por yogamāyā (nāhaṁ prakāśaḥ sarvasya yoga-māyā-samāvṛtaḥ), Kṛṣṇa às vezes é chamado de māyā-manuṣya, indicando que, embora seja a Supre­ma Personalidade de Deus, Ele aparece como uma pessoa comum. Disso, origina-se um equívoco porque yogamāyā cobre a visão do público em geral. Com efeito, a posição do Senhor é diferente daquela de uma pessoa comum, pois, embora pareça agir como um homem comum, Ele é sempre transcendental. A palavra māyā também in­dica “misericórdia”, e às vezes também significa “conhecimento”. O Senhor é sempre pleno de todo o conhecimento transcendental, e, portanto, embora aja como um ser humano, Ele é a Suprema Personalidade de Deus, repleto de conhecimento. Em Sua identidade original, o Senhor é o controlador de māyā (mayādhyakṣeṇa prakṛtiḥ sūyate sa-carācaram). Portanto, o Senhor pode ser chamado de māyā-manuṣya, ou a Suprema Personalidade de Deus que faz o papel de um ser humano comum, embora Ele seja o controlador das energias material e espiritual. O Senhor é a Pessoa Suprema, Puruṣottama, mas, como somos iludidos por yogamāyā, Ele parece ser uma pessoa comum. Em última análise, entretanto, yogamāyā induz até mesmo o não-devoto a entender o Senhor como a Pessoa Suprema, Puruṣottama. Na Bhagavad-gītā, encontramos duas afirmações feitas pela Suprema Personalidade de Deus. Para os devotos, o Senhor diz:

teṣāṁ satata-yuktānāṁ
bhajatāṁ prīti-pūrvakam
dadāmi buddhi-yogaṁ taṁ
yena mām upayānti te

“Àqueles que estão constantemente devotados a Me servir com amor, Eu dou a compreensão pela qual eles podem vir a Mim.” (Bhagavad-gītā 10.10) Assim, para o devoto de boa disposição, o Senhor confere a inteligência com a qual ele pode compreendê-lO e retornar ao lar, retornar ao Supremo. Para os outros, para os não-devotos, o Senhor diz que mṛtyuḥ sarva-haraś cāham: “Eu sou a morte inevitável, que a tudo devora.” Um devoto como Prahlāda desfruta das atividades do Senhor Nṛsiṁhadeva, ao passo que os não-devotos, como o pai de Prahlāda, Hiraṇyakaśipu, morrem diante do Senhor Nṛsiṁhadeva. O Senhor, portanto, age de duas maneiras: enviando alguns ao ca­minho de repetidos nascimentos e mortes e mandando outros de volta ao lar, de volta ao Supremo.

A palavra kāla, que significa “negro”, indica a cor da Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa. O Senhor Kṛṣṇa e o Senhor Rāmacandra, ambos os quais tinham tonalidade negra, deram a liberação e bem-aventurança transcendental aos Seus devotos. Entre aqueles que possuem corpos materiais, às vezes há quem seja capaz de sujeitar a morte à sua própria vontade. Para tal pessoa, a morte é quase impossível, pois ninguém deseja morrer. Porém, em­bora Bhiṣmadeva possuísse esse poder, Bhīṣma, pela vontade suprema do Senhor, morreu muito facilmente na presença do Senhor. Também existiram muitos demônios que não tinham esperança de salvação, mas, pela vontade suprema do Senhor, Kaṁsa obteve a salvação. Para não falar de Kaṁsa, até mesmo Pūtanā salvou-se e atingiu o nível de mãe do Senhor. Parīkṣit Mahārāja, portanto, estava muito ansioso por ouvir acerca do Senhor, que tem qualidades inconcebíveis, com as quais outorga a liberação a qualquer pessoa. Parīkṣit Mahārāja, na ocasião de sua morte, decerto estava interessado em sua liberação. Quando uma personalidade tão grandiosa e excelsa como o Senhor comporta-Se como um ser humano comum apesar de possuir qualidades inconcebíveis, Seu comportamento chama-se māyā. Portanto, o Senhor é descrito como māyā-manuṣya. Essa é a opinião de Śrīla Jīva Gosvāmī. Mu refere-se a mukti, ou salvação, e ku, àquilo que é mau ou muito prejudicial. Assim, mukti refere-se à Suprema Personalidade de Deus, que nos salva da condição negativa da existência material. O Senhor Se chama mukunda porque não apenas salva o devoto, tirando-o da existência material, mas também lhe oferece a transcendental bem-aventurança do serviço amoroso.

Quanto a Keśava, ka significa Brahmā, e īśa, senhor Śiva. Com Suas qualidades transcendentais, a Personalidade de Deus cativa tanto o senhor Brahmā quanto o senhor Mahādeva, ou Śiva. Portanto, Ele Se chama Keśava. Essa opinião é dada por Sanātana Gosvāmī em seu comentário Vaiṣṇava- toṣaṇī.

Afirma-se que todos os semideuses, acompanhados de Tri-nayana, o senhor Śiva, foram à praia do oceano de leite e ofereceram suas orações através do mantra conhecido como Puruṣa-sūkta. Nessa afirmação, compreende-se que os semideuses não podem nem aproximar-se diretamente do Senhor Viṣṇu, que repousa no oceano de leite, nem entrar em Sua morada. Também se afirma isso claramente no Mahābhārata, Mokṣa-dharma, e no próximo capítulo do Śrīmad-Bhāgavatam. Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, reside em Goloka (goloka-nāmni nija-dhāmni tale ca tasya). A partir do Senhor Kṛṣṇa, vem o catur-vyūha, as expansões quádruplas: Saṅkarṣaṇa, Aniruddha, Pradyumna e Vāsudeva. Existem inúmeros brahmāṇḍas, todos os quais emanam dos poros de Kāraṇodakaśāyī Viṣṇu, e, em cada brahmāṇḍa, existe um Garbhodakaśāyī Viṣṇu, que é uma ex­pansão parcial de Aniruddha. Esse Aniruddha, por Sua vez, é uma expansão parcial de Pradyumna, que é parcialmente representado como Kṣīrodakaśāyī Viṣṇu, a Superalma de todas as entidades vivas. Essas expansões Viṣṇu são diferentes de Kṛṣṇa, que reside em Goloka Vṛndāvana. Quando se diz que os semideuses ofereceram orações ao Senhor cantando o Puruṣa-sūkta, isso indica que eles satisfizeram ao Senhor proferindo orações de bhakti.

A palavra vṛṣākapi refere-se àquele que satisfaz Seu devoto de todas as maneiras e liberta Seu devoto de todas as ansiedades mate­riais. Vṛṣa aplica-se às práticas religiosas, tais como os sacrifícios. Mesmo sem executar sacrifícios, o Senhor pode desfru­tar dos mais aprimorados confortos dos planetas celestiais. A afir­mação segundo a qual Puruṣottama, Jagannātha, apareceria na casa de Vasudeva mostra a diferença entre a Suprema Personalidade de Deus e as pessoas comuns. A afirmação de que Ele apareceu pes­soalmente indica que Ele não enviou Sua expansão plenária. A pala­vra priyārtham deixa claro que o Senhor apareceu para satisfazer Rukmiṇī e Rādhārāṇī. Priyā significa “o mais amado”.

No comentário de Śrī Vīrarāghava Ācārya, o seguinte verso extra é aceito após o verso vinte e três:

ṛṣayo ’pi tad-ādeśāt
kalpyantāṁ paśu-rūpiṇaḥ
payo-dāna-mukhenāpi
viṣṇuṁ tarpayituṁ surāḥ

“Ó semideuses, até mesmo os grandes sábios, seguindo a ordem de Viṣṇu, apareceram sob as formas de vacas e bezerros para satisfa­zer a Suprema Personalidade de Deus e dar-Lhe leite.”

Rāmānujācārya às vezes aceita Baladeva como um śaktyāveśa-avatāra, mas Śrīla Jīva Gosvāmī explica que Baladeva é uma expansão de Kṛṣṇa e que Saṅkarṣaṇa é uma parte de Baladeva. Embora seja idêntico a Saṅkarṣaṇa, Baladeva é a origem de Saṅkarṣaṇa. Portanto, a palavra svarāṭ é usada para mostrar que Baladeva sempre tem uma existência independente. A palavra svarāṭ também indica que Baladeva está além do conceito de existência material. Māyā não pode atraí-lO, mas, como é plenamente independente, Ele pode recorrer à Sua potência espiritual e aparecer onde quer que deseje. Māyā está sob pleno controle de Viṣṇu. Porque se unificam quando o Senhor aparece, a potência material e yogamāyā são des­critas como ekānaṁśā. Às vezes, interpreta-se ekānaṁśā como signi­ficando “sem diferenciação”. Saṅkarṣaṇa e Śeṣa-nāga são idênticos. Como afirma Yamunādevī: “Ó Rāma, ó mestre universal cujos braços são portentosos, ó Vós que através de uma expansão plenária Vos estendestes por todo o universo, não é possível entender-Vos por completo.” Portanto, ekānaṁśā refere-se a Śeṣa-nāga. Em outras palavras, Baladeva, meramente com Sua expansão parcial, sustenta todo o universo.

A palavra kāryārthe refere-se a alguém que atraiu a gravidez de Devakī e confundiu mãe Yaśodā. Esses passatempos são muito confidenciais. A Suprema Personalidade de Deus ordenou a yogamāyā que confundisse Seus associados em Seus passatempos e deixasse confusos os demônios, como Kaṁsa. Como se afirmou anteriormente, yogamāyāṁ samādiśat. Para que o Senhor tivesse serviços a fazer, yogamāyā apareceu juntamente com mahā­māyā. Mahāmāyā refere-se a yayā sammohitaṁ jagat: “Aquela que confunde todo o mundo material.” Através desta afirmação, deve-­se tomar conhecimento de que yogamāyā, em sua expansão parcial, torna-se mahāmāyā e confunde as almas condicionadas. Em outras palavras, toda a criação divide-se em duas categorias – transcendental, ou espiritual, e material. Yogamāyā cuida do mundo espiritual e, através de sua expansão parcial como mahāmāyā, ela se encarrega do mundo material. Como se afirma no Nārada-pañcarātra, mahāmāyā é uma expansão parcial de yogamāyā. O Nārada-pañcarātra afirma claramente que a Suprema Personalidade tem uma potência, que às vezes é descrita como Durgā. A Brahma-saṁhitā diz: chāyeva yasya bhu­vanāni bibharti durgā. Durgā não é diferente de yogamāyā. Quando alguém obtém a correta compreensão relativa a Durgā, liberta-se de imediato, pois, originalmente, Durgā é a potência espiritual, hlādinī-śakti, por cuja misericórdia pode-se entender com muita facilidade a Suprema Personalidade de Deus. Rādhā kṛṣṇa-praṇaya-vikṛtir hlādinī-śaktir asmād. Entretanto, a mahā-māyā-śakti impede que se perceba a ação de yogamāyā, daí ela ser chamada de potência encobridora. Todo o mundo material é desorientado (yayā sammohitaṁ jagat) por esta potência encobridora. Concluindo, confundir as almas condicionadas e libertar os devotos são funções pertencen­tes a yogamāyā. Transferir a gravidez de Devakī e manter mãe Yaśodā em sono profundo foram dois acontecimentos realizados por yogamāyā. Mahāmāyā não pode agir sobre esses devotos, pois eles são eternamente liberados. Porém, embora não seja possível que mahāmāyā controle as almas liberadas ou a Suprema Personali­dade de Deus, ela confundiu Kaṁsa. O episódio em que yogamāyā apresenta-se diante de Kaṁsa é um evento de mahāmāyā, e não de yogamāyā. Yogamāyā nem sequer vê ou toca pessoas tão poluídas como Kaṁsa. Em Caṇḍī, no Mārkaṇḍeya Purāṇa, décimo primeiro capí­tulo, Mahāmāyā diz: “Durante o vigésimo oitavo yuga no período de Vaivasvata Manu, nascerei como a filha de Yaśodā e serei conhe­cida como Vindhyācala-vāsinī.”

A diferença entre as duas māyāsyogamāyā e mahāmāyā – é descrita da seguinte maneira. A rāsa-līlā de Kṛṣṇa com as gopīs e o fato de as gopīs ficarem confusas em relação a seus esposos, sogros e outros parentes foram um arranjo de yogamāyā, no qual mahā­māyā não teve influência alguma. O Bhāgavatam fornece evidências o sufi­ciente acerca disso ao dizer claramente: yoga-māyām upāśritaḥ. Por outro lado, houve asuras, encabeçados por Śalva, e kṣatriyas, como Du­ryodhana, que eram desprovidos de serviço devocional apesar de verem o carregador de Kṛṣṇa, Garuḍa, e a forma universal, e que não puderam entender que Kṛṣṇa é a Suprema Personalidade de Deus. Eles também estavam confusos, mas essa confusão devia-se a mahāmāyā. Portanto, deve-se concluir que a māyā que afasta alguém da Suprema Personalidade de Deus chama-se jaḍamāyā, e a māyā que age na plataforma transcendental chama-se yogamāyā. Ao ser levado por Varuṇa, Nanda Mahārāja viu a opulência de Kṛṣṇa, mas, mesmo assim, pensou que Kṛṣṇa era seu filho. Esses sentimen­tos de amor paterno no mundo espiritual são atos de yogamāyā, e não de jaḍamāyā, ou mahāmāyā. Esta é a opinião de Śrīla Viśva­nātha Cakravartī Ṭhākura.

Śūrasenāṁś ca. O filho de Kārtavīryārjuna foi Śūrasena, e as regiões que ele governou também se chamavam Śūrasena. Sanātana Gosvāmī observa isso em seu comentário Vaiṣṇava-toṣaṇī.

Em relação a Mathurā, encontramos esta citação:

mathyate tu jagat sarvaṁ
brahma-jñānena yena vā
tat-sāra-bhūtaṁ yad yasyāṁ
mathurā sā nigadyate

Quando uma alma autorrealizada age em sua posição transcenden­tal, sua situação chama-se Mathurā. Em outras palavras, quando alguém age no processo de bhakti-yoga, em qualquer parte que ele esteja, ele, na verdade, vive em Mathurā, Vṛndāvana. A devoção a Kṛṣṇa, o filho de Nanda Mahārāja, é a essência de todo o conheci­mento, e onde quer que esse conhecimento se manifeste, tal lugar chama-se Mathurā. Também, quando alguém realiza bhakti-yoga e não sofre influência de nenhum outro método, sua situação chama­-se Mathurā. Yatra nityaṁ sannihito hariḥ: o lugar onde Hari, a Su­prema Personalidade de Deus, vive eternamente chama-se Mathurā. A palavra nitya indica eternidade. O Senhor Supremo é eterno, e Sua morada também o é. Goloka eva nivasaty akhilātma-bhūtaḥ. Embora nunca saia de Sua morada, Goloka Vṛndāvana, o Senhor está amplamente presente em toda parte. Isso significa que, quando o Senhor Supremo desce à superfície do mundo, Sua morada original não fica vazia, pois Ele pode permanecer em Sua morada original e simultaneamente descer a Mathurā, Vṛndāvana, Ayodhyā e outros lugares. Ele não precisa descer, uma vez que já está presente ali; Ele simplesmente torna-Se manifesto.

Śrīla Śukadeva Gosvāmī dirigiu-se a Mahārāja Parīkṣit como tāta, ou “amado filho”. Isso se deveu ao amor paterno existente no cora­ção de Śukadeva Gosvāmī. Porque Kṛṣṇa logo viria como o filho de Vasudeva e Devakī, devido à afeição parental, Śukadeva Go­svāmī chamou Mahārāja Parīkṣit de tāta, “meu querido filho”.

Explica-se no dicionário Viśva-kośa a palavra garbha: garbho bhrūṇe arbhake kukṣāv ity ādi. Quando Kaṁsa estava prestes a matar Devakī, Vasudeva quis dissuadi-lo através da diplomacia de sāma e bheda. Sāma significa “apaziguar”. Vasudeva quis apaziguar Kaṁsa empregando argumentos tais como grau de parentesco, ganho, bem-estar, identidade e glorificação. Aludir a esses cinco tó­picos constitui sāma, e o fato de Vasudeva apresentar a existência do temor em duas situações – nesta vida e na próxima – chama­-se bheda. Assim, Vasudeva usou tanto sāma quanto bheda para apa­ziguar Kaṁsa. Louvar as qualidades de Kaṁsa era glorificação, e elogiá-lo como descendente da bhoja-vaṁśa era uma alusão a sambandha, relacionamento. Ao dizer “tua irmã”, ele se referia à iden­tidade. Falar sobre o assassinato de uma mulher levanta a questão de sua fama e bem-estar, e suscitar o medo de cometer o ato pecaminoso de matar a irmã durante sua cerimônia de casamento é um aspecto de bheda. A dinastia Bhoja representa aqueles que es­tavam simplesmente interessados no gozo dos sentidos e que, portanto, não eram muito aristocráticos. Outro significado de bhoja é “luta”. Isso indicava que se estava difamando Kaṁsa. Ao dirigir-se a Kaṁsa como dīna-vatsala, Vasudeva louvou-o em excesso. Kaṁsa costumava aceitar bezerros como uma forma de seus contribuintes pobres pagarem o imposto e, por isso, ele se chamava Dīna-vatsala. Vasudeva sabia muito bem que, à força, não conseguiria resgatar De­vakī do perigo iminente. Devakī era de fato a filha do tio de Kaṁsa e, portanto, era descrita como suhṛt, que significa “parente”. Afir­ma-se que Kaṁsa absteve-se de matar sua parenta próxima Devakī porque, se a tivesse matado, ocorreria uma grande luta entre os outros membros da família. Kaṁsa preferiu não provocar esse grande perigo que era uma luta na família, pois isso resultaria na morte de muitas pessoas.

Outrora, um asura chamado Kālanemi teve seis filhos, chamados Haṁsa, Suvikrama, Krātha, Damana, Ripurmardana e Krodhahan­tā. Eles eram conhecidos como ṣaḍ-garbhas, ou seis garbhas, e eram todos igualmente poderosos e hábeis em atividades militares. Os ṣaḍ-garbhas abandonaram a associação de Hiraṇyakaśipu, seu avô, e submeteram-se a grandes austeridades para satisfazer o senhor Brahmā, quem, uma vez satisfeito, concordou em dar-lhes qualquer bênção que desejassem. Quando solicitados pelo senhor Brahmā a manifestarem o seu desejo, os ṣaḍ-garbhas responderam: “Querido senhor Brahmā, se quereis de alguma maneira abençoar-nos, dai-nos a bênção de que não sejamos mortos por nenhum semideus, Mahoraga, Yakṣa, Gandharva-pati, Siddha, Cārana ou ser humano, nem pelos grandes sábios que executam com perfeição suas penitências e austeridades. Brahmā compreendeu o propósito deles e satisfez-lhes o desejo. Porém, ao tomar conhecimento deste episódio, Hiraṇya­kaṣipu sentiu muita raiva de seus netos. “Abandonastes minha companhia e fostes adorar o senhor Brahmā”, disse ele, “e, portanto, deixo de ter alguma afeição por vós. Tentastes salvar-vos das mãos dos semideuses, mas lanço-vos a seguinte maldição: Vosso pai nasce­rá como Kaṁsa e matará todos vós porque nascereis como filhos de Devakī.” Devido a essa maldição, os netos de Hiraṇyakaśipu ti­veram de nascer do ventre de Devakī e serem mortos por Kaṁsa, embora anteriormente ele fosse pai deles. Essa descrição é mencionada no Hari-vaṁśa, Viṣṇu-parva, segundo capítulo. De acordo com os comentários do Vaiṣṇava-toṣaṇī, o filho de Devakī conhecido como Kīrtimān encarnara pela terceira vez. Em sua primeira encarnação, ele era conhecido como Smara e foi filho de Marīci; mais tarde, tornou-se filho de Kālanemi. Estes são os relatos históricos.

Há um verso adicional deste capítulo do Śrīmad-Bhāgavatam que é aceito pelo samprādaya de Madhvācārya, representado por Vijaya­dhvaja Tīrtha. O verso é o seguinte:

atha kaṁsam upāgamya
nārado brahma-nandanaḥ
ekāntam upasaṅgamya
vākyam etad uvāca ha

atha — dessa maneira; kaṁsam — a Kaṁsa; upāgamya — após ir; nāradaḥ — o grande sábio Nārada; brahma-nandanaḥ — que é filho de Brahmā; ekāntam upasaṅgamya — após dirigir-se a um lugar muito solitário; vākyam — a seguinte instrução; etat — isto; uvāca — disse; ha — no passado.

Tradução: “Em seguida, Nārada, o filho que surgiu da mente do senhor Brahmā, aproximou-se de Kaṁsa e, em um lugar muito soli­tário, comunicou-lhe as seguintes notícias.”

O grande santo Nārada veio dos planetas celestiais até a floresta de Mathurā e enviou seu mensageiro a Kaṁsa. Quando o mensageiro se aproximou de Kaṁsa e o informou da chegada de Nārada, Kaṁsa, o líder dos asuras, ficou muito feliz e imediatamente saiu de seu pa­lácio para receber Nārada, que era tão brilhante como o Sol, tão poderoso como o fogo, e livre de todos os estigmas de atividades pecaminosas. Kaṁsa aceitou Nārada como seu visitante, ofereceu­-lhe respeitosas reverências e deu-lhe um assento de ouro, brilhante como o Sol. Nārada era amigo do rei dos céus, e assim disse a Kaṁsa, o filho de Ugrasena: “Meu querido herói, satisfizeste-me com uma recepção adequada, de modo que eu te falarei algo secreto e confiden­cial. Enquanto me dirigia para cá, tendo partido de Nandakānana e atravessado a floresta de Caitraratha, vi um grande encontro de semideuses, que me seguiram até Sumeru Parvata. Viajamos por muitos lugares santificados e, por fim, vimos o sagrado Ganges. Enquanto o senhor Brahmā consultava os outros semideuses no topo da colina Sumeru, eu também estava presente com meu instrumento de cordas, a vīṇā. Eu te confidenciarei que o encontro reali­zou-se com o simples propósito de que se planejasse a morte dos asuras, encabeçados por ti. Tens uma irmã mais nova chamada Deva­kī, e é um fato que o oitavo filho dela te matará.” (referência: Hari-­vaṁśa, Viṣṇu-parva 1.2-16)

Ninguém pode culpar Nāradajī de encorajar Kaṁsa a matar os filhos de Devakī. O santo Nārada é sempre um benquerente da sociedade humana, e ele desejava que a Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa, descesse a este mundo o mais rápido possível para que a sociedade dos semideuses ficasse satisfeita e pudesse ver Kaṁsa e seus amigos mortos por Kṛṣṇa. Kaṁsa também se salvaria de suas atividades nefastas, e isso também agradaria muito aos semideu­ses e seus seguidores. A esse respeito, Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura comenta que Nārada Muni às vezes agia de modo a benefi­ciar os semideuses e os demônios simultaneamente. Śrī Vīrarāghava Ācārya, em seu comentário, inclui a seguinte metade de verso, que ilustra isso: asurāḥ sarva evaita lokopadrava-kāriṇaḥ. Os asuras sempre são elementos perturbadores para a sociedade humana.

Neste ponto, encerram-se os Significados Bhaktivedanta do décimo canto, primeiro capítulo, do Śrīmad-Bhāgavatam, intitulado “O Advento do Senhor Kṛṣṇa: Introdução”.